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Trabalho_escravo_-_UNAMA_DH

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TRABALHO ESCRAVO – CARACTERIZAÇÃO
 
José Claudio Monteiro de Brito Filho 
Doutor em Direito das Relações Sociais (PUC/SP); Professor Titular da Universidade da Amazônia; Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPA; Procurador Regional do Trabalho, aposentado. 
jclaudiobritofilho@gmail.com
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O Problema
O problema da caracterização jurídica do trabalho escravo:
Um dos problemas ainda não resolvidos no âmbito doutrinário e jurisprudencial diz respeito à definição do crime de reduzir alguém à condição análoga à de escravo, assim como de seus modos de execução.
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O problema
Esse problema se torna ainda mais grave quando se verifica que, algumas questões consideradas importantes na esfera penal são pouco consideradas no âmbito trabalhista, assim como o contrário, em razão das óticas distintas.
A caracterização do tipo penal, então, é o primeiro passo a ser dado. Para isso, é preciso, antes de tudo, verificar a profunda alteração que o artigo 149, do Código Penal Brasileiro sofreu em 2003.
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149 – versão original
Versão original do artigo 149, do Código Penal Brasileiro: Reduzir alguém à condição análoga à de escravo. 
Tipo dependente de interpretação, mas, para a posição majoritária, claramente inspirado no princípio da liberdade, além de amplo, no tocante à relação em que seria possível a prática do crime.
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149 – versão atual 
Redação atual, decorrente da Lei nº 10.803, de 11.12.2003:
Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: 
Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência
§ 1o Nas mesmas penas incorre quem:
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149 – versão atual
I - cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho;
II - mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho
§ 2o A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido:
I - contra criança ou adolescente; 
II - por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem. 
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Caracterização genérica
Uma primeira questão a observar diz respeito ao fato de que a norma penal incriminadora materializada no artigo 149 do C.P.Brasileiro está prevista no Capítulo VI, que trata dos crimes contra a liberdade individual, na Seção I, que dispõe sobre os crimes contra a liberdade pessoal. 
Isso deve produzir uma primeira conclusão, que será retomada mais adiante, qual seja a de que a liberdade do indivíduo é um bem que deve ser considerado como tutelado pelo dispositivo.
Nesse sentido, tenho defendido que essa circunstância, a restrição à liberdade, deve constar dos relatórios dos auditores fiscais, devendo membro do MP que acompanhar a fiscalização orientar neste sentido.
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Caracterização genérica
A segunda questão a observar diz respeito ao entendimento do STF de que o crime descrito no artigo 149 deve ser entendido como uma das hipóteses de crime contra a administração do trabalho, uma vez que eles não estariam previstos, de forma taxativa, no Título IV, que trata destes (crimes contra a administração do trabalho). Essa a posição defendida, por exemplo, pelo Ministro Joaquim Barbosa, Relator no RE 398.041-6, julgado em 30/11/2006, constando, da ementa o seguinte: “Quaisquer condutas que possam ser tidas como violadoras não somente do sistema de órgãos e instituições com atribuições para proteger os direitos e deveres dos trabalhadores, mas também dos próprios trabalhadores, atingindo-os em esferas que lhes são mais caras, em que a Constituição lhes confere proteção máxima, são enquadráveis na categoria dos crimes contra a organização do trabalho, se praticadas no contexto das relações de trabalho”.
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Caracterização genérica
Em relação à classificação doutrinária, Rogério Greco (Curso de direito penal: parte especial, Volume II, p. 545) considera o crime como próprio, tanto em relação ao sujeito ativo (tomador de serviços ou preposto) como ao passivo (trabalhador), pois é preciso haver uma relação de trabalho entre agente e vítima – Bitencourt diverge, entendendo o crime como comum, pois poderia ser praticado por qualquer pessoa (Tratado de direito penal, p. 402), assim também entendendo Capez (Curso de direito penal, p. 342) -; doloso, podendo ser direto ou eventual (elemento subjetivo do delito); e, permanente, neste caso porque a consumação se prolonga no tempo, enquanto presentes “as situações narradas pelo tipo penal”.
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Caracterização genérica
Voltando à primeira questão, é importante observar que Bitencourt, não obstante considere o crime como comum, e não próprio, entende que sua forma não é mais livre, e sim vinculada, pelo sujeito passivo e, avançando, pelas formas como pode ser praticado, o que será visto no item 3.2.2, 3ª premissa (ibidem, p. 405/406).
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Caracterização genérica
Quanto à consumação, Greco entende que isto ocorre quando presentes as formas previstas pelo tipo, sendo possível a tentativa (Curso ..., p. 546). Bitencourt entende no mesmo sentido, indicando todavia que a consumação deve ocorrer por “tempo juridicamente relevante, isto é, quando a vítima torna-se totalmente submissa ao poder de outrem” (Tratado ...., p. 401/402). Já Pierangeli, a respeito disso, ensina que é necessário certo tempo de sujeição para que ocorra, embora sem maiores esclarecimentos (Manual de direito penal brasileiro ..., p. 160).
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Premissas para a caracterização do tipo
Premissa Primeira: necessidade de fixar um elemento histórico de comparação.
Opção pelo plágio romano, como aliás constou da Exposição de Motivos da Parte Especial do Código Penal (6º parágrafo do item 51), assinada em 4 de novembro de 1940. 
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Premissas para a caracterização do tipo
Não é no período da escravidão legalizada no Brasil, então, que se deve buscar elementos, mas na antiguidade, quando era crime reduzir um homem livre à condição semelhante à de escravo.
Note-se que é até possível buscar elementos históricos, no Brasil, mas, no período posterior à escravidão legalizada, nas práticas que ocorreram nas fazendas de café, no Sudeste, e nos seringais, na Amazônia, por exemplo.
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Premissas para a caracterização do tipo
Premissa Segunda: a ampliação do eixo de proteção.
Da liberdade para, também e principalmente, a dignidade da pessoa humana, a partir da noção Kantiana (ver em KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Lisboa – Portugal: Edições 70).
Isso não quer dizer que a liberdade deve ser desconsiderada. Não, apenas deve, em alguns modos, ser vista como um domínio extremado, e não na forma tradicional. 
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Premissas para a caracterização do tipo
A doutrina, a propósito, continua acentuando ser a liberdade um bem tutelado (Bitencourt, Tratado ..., p. 398/399), indo até além, como Greco, que indica também a vida, a saúde e a segurança do trabalhador (obra citada, p. 545).
A verdade, todavia, é que essa questão do bem jurídico penal não é tão bem compreendida pela doutrina penal, que ainda precisa compreender que a chave é entender Kant, e a separação que foi feita por ele entre aquilo que deve ser tratado como fim e o que pode ser tratado como meio, ou seja, instrumentalizado, pois é isso que justifica todo o artigo 149.
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Premissas para a caracterização do tipo
Premissa Terceira: modos de execução limitados e divididos em duas espécies.
Trabalho escravo típico: (1) trabalho forçado ou em (2) jornada exaustiva; (3) trabalho em condições degradantes; e (4) trabalho com restrição de locomoção, em razão de dívida contraída.
Trabalho escravo por equiparação: retenção no local de trabalho, (1) por cerceamento do uso de qualquer meio de transporte; (2) manutenção de vigilância ostensiva; ou, (3) retenção de documentos ou objetosde uso pessoal do trabalhador.
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Premissas para a caracterização do tipo
Premissa Quarta: obrigatória existência de uma relação de trabalho.
Tem sido uma unanimidade entre os autores (por exemplo, Nucci, Bitencourt e Greco) que o tipo do artigo 149 do C. Penal só se pode verificar se entre os sujeitos ativo e passivo do delito houver uma relação de trabalho.
Essa, então, a última questão a observar para a tipificação, tanto no plano criminal como trabalhista.
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Modos de execução
Surge aqui, todavia, um novo problema, após a identificação das premissas necessárias para a caracterização do tipo: o fato de que o artigo 149, do Código Penal, indica 7 modos de execução: 4 que denomino típicos, e 3 que podem ser chamados de por equiparação.
A tarefa, agora, é fazer a identificação dos modos, lembrando que o tipo do artigo 149 está caracterizado na ocorrência de cada um deles, de forma isolada.
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Modos de execução
Trabalho escravo típico:
O primeiro modo de execução, dentro do trabalho escravo típico, é o trabalho forçado.
Suas características são: 1. a existência de uma relação de trabalho entre os sujeitos ativo (tomador de serviços) e passivo (trabalhador) do ilícito; 2. o fato de o trabalho ser prestado de forma compulsória, independentemente da vontade do trabalhador, ou com a anulação de sua vontade, por qualquer circunstância que assim o determine.
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Modos de execução
O segundo é o trabalho em jornada exaustiva.
Suas características são: 1. a existência de uma relação de trabalho; 2. o estabelecimento de uma jornada que ultrapasse os limites legais estabelecidos, e/ou seja capaz de causar prejuízos à saúde física e mental do trabalhador, esgotando-o; 3. a imposição dessa jornada, contra a vontade do trabalhador, ou com a anulação de sua vontade, por qualquer circunstância que assim o determine.
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Modos de execução
O terceiro modo é o trabalho em condições degradantes.
Suas características são: 1. a existência de uma relação de trabalho; 2. a negação das condições mínimas de trabalho, a ponto de equiparar o trabalhador a uma coisa ou a um bem; 3. a imposição dessas condições contra a vontade do trabalhador, ou com a anulação sua vontade, por qualquer circunstância que assim o determine. 
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Modos de execução
O quarto e último dos modos típicos de execução é o trabalho com restrição de locomoção, em razão de dívida contraída.
Suas características são: 1. a existência de uma relação de trabalho; 2. a presença de uma dívida de qualquer natureza, lícita ou ilicitamente constituída, que tenha o trabalhador com o tomador ou prepostos; 3. o impedimento ao direito do trabalhador de deixar o trabalho, por meio da coação, que pode ser física ou moral, ou por qualquer outro meio que impossibilite o seu deslocamento.
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Modos de execução
Trabalho escravo por equiparação:
Há também o que, a partir do artigo 149, § 1º, do Código Penal, pode ser denominado de trabalho escravo por equiparação.
São 3 modos: 1. cercear o uso de qualquer meio de transporte; 2. manter vigilância ostensiva; ou, 3. reter documentos ou objetos de uso pessoal do trabalhador.
O objetivo é sempre o mesmo, nos 3 modos: reter o trabalhador no local de trabalho.
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Modos de execução
Esses modos, deve ser observado, existem de forma independente, tanto entre si, como em relação aos modos de execução típicos, para a caracterização do tipo penal. Assim, basta demonstrar que uma das hipóteses do artigo 149, § 1º, está presente, para que o ilícito penal esteja configurado.
Suas características, além das específicas, que já foram vistas e que diferenciam os modos entre si, são: 2. a existência de uma relação de trabalho; e 3. o objetivo do tomador ou do preposto de reter o trabalhador no local de trabalho.
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Bibliografia básica
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, 2: parte especial: dos crimes contra a pessoa. 9 ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
BRITO FILHO, José Claudio Monteiro de. Trabalho decente. 3 ed. São Paulo: LTr, 2013.
CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal, 2: parte especial. 9 ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
FIGUEIRA, Ricardo Rezende. Pisando fora da própria sombra: a escravidão por dívida no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.
FIGUEIRA, Ricardo Rezende e outros (Org.). trabalho escravo contemporâneo: um debate interdisciplinar. Rio de Janeiro: Mauad X, 2011.
GRECO, Rogério. Curso de direito penal: parte especial. 5 ed. Niterói – RJ: Impetus, 2008. v. 2.
KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução de Paulo Quintela. Lisboa – Portugal: Edições 70, 2003.
MELO, Luis Antônio Camargo de. Premissas para um eficaz combate ao trabalho escravo. Revista do Ministério Público do Trabalho. São Paulo, LTr, n. 26, p. 11-33, setembro/2003.
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MIESSA, Élisson, e CORREIA (Coord.). Estudos aprofundados MPT: Ministério Público do Trabalho. 2 ed. Salvador: Editora JusPodium, 2013.
NOCCHI, Andrea Saint Pastous e outros (Coord.). Trabalho escravo contemporâneo: o desafio de superar a negação. 2 ed. São Paulo: LTr, 2011.
NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado. 9 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008.
PEREIRA, Cícero Rufino. Efetividade dos direitos humanos trabalhistas: o ministério público do trabalho e o tráfico de pessoas: o protocolo de palermo, a convenção n. 169 da OIT, o trabalho escravo, a jornada exaustiva. São Paulo: LTr, 2007.
PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. 2 ed. São Paulo: Editora revista dos Tribunais, 2007. volume 2: parte especial.
PINHO, Ana Cláudia de Bastos e GOMES, Marcus Alan de Melo (Org.). Direito penal e democracia. Porto Alegre: Núria Fabris, 2010 
PRADO, Luiz Regis. Direito penal: parte especial – arts. 121 a 196. 2 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008.
VALENTE, Denise Pasello. Tráfico de pessoas para exploração do trabalho. São Paulo: LTr, 2012.
VELLOSO, Gabriel e MARANHÃO, Ney (Coord.). Contemporaneidade e trabalho: aspectos materiais e processuais – estudos em homenagem aos 30 anos da AMATRA 8. São Paulo: LTr, 2011.
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