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FERRARA, Francesco (1963). Interpretação e aplicação das leis

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COLECÇÃO CULTURA JURíDICA
MANUEL A. DOMINGUES DE ANDRADE
ENSAIO
SOBRE A
n~RIA DA INnRPR~TA~Á~ DA~ m~
2.' EDIÇÃO
ARMÉNIO AMADO, EDITOR, SUCESSOR - COIMBRA
1 963
106
interpretação, aquele que melhor corresponda aos interesses da
vida, - assunto este onde, aliás, é realmente de suma dificul-
dade chegar-se, com pleno conhecimento de causa e verdadeiro
escrúpulo científico no decidir, a pontos de vista duma grande
precisão e firmeza '.
1 Bastante maior segurança pomos nós nas conclusões que adoptamos
quanto ao problema das lacunas, salvo pelo que diz respeito à opinião emitida
na pág. 78 e nota 3 (como aliás se depreendia já do que escrevemos neste último
lugar e também na pág. 90, notas 3 e 4).
COLECÇÃO CULTURA JUR(OICA
FRANCESCO FERRARA
PROfESSOR ORDINÁRIO DE DIREITO CIVIL NA UNIVERSIDADE DE PISA
TRADUZIDO
POR
MANUEL A. D. DE ANDRADE
PROFESSOR DA FACULDADE Dê DIREITO DE COIMBRA
2: EDIÇÃO
ARMÉNIO AMADO, EDITOR, SUCESSOR - COIMBRA
1 963
ESTA OBRA É CONSTITUíDA PELOS CAPÍTULOS III,
IV E V DO «TRATATTO DE DIRITTO CIVILE ITALIANO»,
VOL. I (ROMA, 1921), DO PROF. FRANCESCO FERRARA.
DIREITOS EXCLUSIVOS EM LÍNGUA PORTUGUESA DE
ARMÉNIO AMADO - EDITOR - SUCESSOR
CEtRA - COIMBRA - PORTUGAL
NOÇÕES PRELIMINARES 1
1. - Funções da actividade do juiz 2
o direito opera por comandos abstractos. Mas a reali-
zação forçada destes comandos efectua-se por im.posição judi-
ciária.
O juiz é o intermediário entre a norma e a vida: é o
instrumento vivo que transforma a regulamentação típica
imposta pelo legislador na regulamentação individual das
relações dos particulares; que traduz o comando abstracto
da lei no comando concreto entre as partes, formulado na
sentença. O juiz é a viva vox iuris.
O juiz, porém, está submetido às leis, decide como a lei
ordena, é o executor e não o criador da lei. A sua função espe-
cífica consiste na aplicação do direito 3.
1 Alguma leve indicação do tradutor vai entre aspas.
• HELLVVIG. - Lehrbuch des Civilprozess «Tratado do processo civil», I,
pág. 38 e II, § 91.°. WACH - Handbuch dcs Zivilprozess «Manual do Processo
Civil», pág. 6. CHIOVENDA - Pril1cipi di diritto processuale, pág. 52 e segs.
e 595 e segs. RUMPF - Gesctz und Richtcr «A lei e o juiz», Berlim, 1906,
e em geral todos os escritores que se ocupam da livre descoberta do direito.
«Cfr. infra, n.o 12».
• A autoridade judiciária exerce também. funções administrativas e de
protecção de relações privadas que não são controvertidas. Funções de
documentação ou cooperação na conelusão de negócios jurídicos (adopção,
reconhecimento, prestação de juramento) ou de tutela e vigilância nas relações
privadas (tutela, curatela, pátrio poder, inventários) ou de cooperação com
intuito protectivo na formação ou dissolução de negócios jurídicos (autori-
zação, homologação, etc.).
112
Esta actividade desdobra-se em três operações:
I) Averiguar o estado de facto que é objecto da con-
trovérsia.
II) Determinar a norma jurídica aplicáveL
III) Pronunciar o resultado jurídico que deriva da subsun-
ção do estado de facto aos princípios jurídicos 1.
Tem-se dito que o julgamento é um silogismo em que
a premissa maior está na lei, a menor na espécie de facto e o
corolário na sentença. E isto é verdade, embora se não deva
acreditar que a actividade judicial se reduz a uma simples ope-
ração lógica, porque na aplicação do direito entram ainda
factores psíquicos e apreciações de interesses, especialmente no
determinar o sentido da lei, e o juiz nunca deixa de ser uma
personalidade que pensa e tem consciência e vontade, para se
degradar num autómato de decisões 2.
As tarefas preliminares da actividade judicial são pois:
o apuramento do facto, da relação material a julgar, e a deter-
minação do direito a que o facto está subordinado.
Mas é diversa a posição do juiz com respeito a estes dois
elementos do processo. Na realidade, quanto aos factos o ónus
da prova incumbe às partes, ficando por completo a cargo
delas, como negócio privativamente seu, preparar os mate-
riais que hão-de sustentar o pedido ou a defesa, para se formar
o convencimento do juiz, sem o que este repele a acção ou
a excepção (princípio dispositivo ou da iniciativa das partes 3) j
e quanto ao direito, pelo contrário, é dever profissional do
juiz conhecê-lo (iura novit curia).
1 HELLVVIG. - Lehrbuch, I, pág. 36. CHIOVENDA, Principi, pág. 596.
, RUMPF. - Op. cit., págs. 4 e 39 e segs.
3 O juiz decide segundo allegata et probata, não podendo suprir de
ofício à invocação (rilievo) de factos constitutivos e extintivos, ainda mesmo
que deles tenha notícia particular: o que não está no processo não existe em
direito.
113
o conhecimento do direito é pressuposto no magistrado,
em virtude da função que reveste. O juiz deve em cada caso
achar a norma ou a combinação de normas que se aplica ao
facto concreto; e se para este trabalho as alegações dos inte-
ressados lhe podem fornecer sugestões, o juiz não está vinculado
por elas, uma vez que pode aplicar princípios de direito não
invocados pelas partes e até mesmo princípios de direito qne
as partes concordemente excluiram 1. "
A regra iura novit curia sofre uma limitação aparente no
que toca ao direito estrangeiro, visto que o tribunal pode chamar
em seu alLxílio a cooperação das partes, impondo-lhes o ónus
da prova; mas tem uma função muito diversa da que tem a
prova dos factos, pois o tribunal pode sempre de ofício pro-
curar ou completar o conhecimento das normas aplicáveis.
A tarefa central a que o juiz se dedica é, porém, a deter-
minação do direito que há-de valer no caso concreto. Para
este fim deve levar a cabo três indagações:
1. ') Apurar que o direito existe.
2. a) Determinar o sentido desta norma jurídica.
3. a) Decidir se esta norma se aplica ao caso concreto.
A aplicação das leis envolve, por consequência, uma trí-
plice investigação: sobre a existência da norma; sobre o seu
significado e valor; e sobre a sua aplicabilidade.
Examinemos distintamente estas operações.
1 REGELSBERGER-Palldektm «Pandectas», Leipzig, 1893, pág. 133.
CHIOVENDA - Prillcipi, pág. 596.
8
VERIFICAÇÃO DA EXISTÊNCIA DA NORMA
JURÍDICA
2. - Crítica do texto da lei
A averiguação da existência da lei pode ser formal ou
substancial: uma refere-se à cY{tica do texto da lei; a outra é
atinente ao controlo jurisdicional.
Para se aplicar uma lei, importa verificar que é autêntica,
já no seu complexo, já em cada uma das suas partes. A veri-
ficação da genuidade do texto da lei diz-se crítica. Esta, nos
tempos modernos, tem pouco espaço, dado que as leis são
redigidas em forma escrita e resultam de um documento
público em forma oficial. Texto autêntico é o que resulta
da publicação na Colecção Oficial (Raccolta !ifficiale).
a) Erros materiais do texto:
Todavia pode suceder que este texto se encontre viciado
por incorrecções tipográficas, erros de impressão, mudança de
palavras ou de algarismos, acrescentos ou omissões, pontuação
diversa, transposições, que podem alterar o sentido da dispo-
sição.
Entende-se de plano (da se) que em tais casos a autoridade
encarregada da execução das leis, isto é, o Governo 1, pode
prover à rectificação.
1 O Regulamento sobre a publicação das leis de 1909, no seu art. 17.°,
dispõe: «Caso na impressão se verifiquem erros que possam modificar o signi-
ficado ou o conteúdo do acto, a sua correcção será ordenada pelo tvlinistro
116
Mas fora ou independentemente disto pode a autoridade
judiciária, ao fazer aplicação da lei, rectificar o texto publicado
em modo diverso do original aprovado pelas Câmaras? 1.
É preciso distinguir.
Quando se trata de simples erros materiais que à primeira
vista aparecem como incorrecções tipográficas, ou porque a
palavra inserida no texto não faz sentido ou tem um signi-
ficado absolutamente estranho ao pensamento que o texto
exprime,enquanto a palavra que foneticamente se lhe asse-
melha se encastra exactamente na conexão lógica do discurso,
ou porque estamos em face de omissões ou transposições que
é fácil integrar ou corrigir pelo contexto da proposição - deve
admitir-se que o juiz pode exercer a sua crítica, chegando, na
aplicação da lei, até a emendar-lhe o texto 2.
da Justiça (Ministro Guardasigílli) , quer mediante inserção na Gazeta Oficial,
quer mediante uma errata (errata-corrige) no fim do volume da Colecção••
Nem se julgue que estas incorrecções são raridades, porque, ao contrário,
são por demais assás;frequentes. Assim, só no decreto de 24 de Novembro
de 1919 acerca do imposto extraordinário sobre o património, foi ordenada
a rectificação de nada menos de dez erros e mudanças de cifras (Gazeta Oficial,
17 de Janeiro de 1920, n.o 13).
1 Sobre a questão veja REGELSBERGER, Pandektet1, pág. 138; UNGER
- System des osterreichischen allgemeinem Privatrechts «Sistema do direito pri-
vado geral austríaco., I, pág. 73; BINDING - Handbuch des Strafrechts «Manual
de direito penal», § 98.°, II; PFAFF - HOFMANN - Kommentar zum osterrei-
chischen biirgerlichen Gesetzbuch. «Comentário ao Código Civil austríaco., I,
pág. 174; BIERMANN - Biirgerliches Recht «Direito Civil., pág. 29; DERNBURG
- Das biirgerliches Recht des deutschen Reichs «O direito civil no império alemão.,
§ 22.°, nota 4; e uma decisão do Reichsgericht «Tribunal do Império., 27, 4II,
onde se diz: «o legislador só pode falar uma língua - a da publicação da lei.
Aquilo que da lei se não pode deduzir não é direito legal».
Consulte ainda LUKAS - Fehler im Gesetzgebungysverfahren, 1907 «Vícios
no processo legislativo»; LINDEMANN, no Archiv fiir offentlichen Recht «Arquivo
para o direito público., 14, 145; e ZANOBINI - La publicazione delle leggi,
págs. 267 e sego
, O art. 16.° do Regulamento de 1919 sobre a publicação das leis
diz: «Enquanto se não provar a sua inexactidão, tem carácter de autenticidade
117
Pelo contrário, a solução tem de ser outra quando se trata
de mudanças ou adjunções de palavras ou frases que importam
uma substancial divergência de pensamento, ou determinam
equívoco sobre o sentido da lei, tornando possíveis diferentes
significados da vontade legislativa.
Em tal caso o juiz não pode escolher a dição que lhe pareça
mais racional e correcta, mas está vinculado ao texto da Colecção
Oficial. Incumbirá à parte litigante que invoca o erro, e daí
quer tirar consequências a seu favor, provar a inexactidão do
texto impresso - e pode fazer esta demonstração produzindo
cópia autêntica do original da lei ou decreto, passada pelo
Arquivo Geral do Reino (regulamento de 5 de Setembro
de 1902, art. 74-3) 1.
Toda a vez que assim resulte discordância entre o texto
impresso e o original da lei, o juiz não pode proceder a qual-
quer emenda, mas deve entender-se, relativamente ao ponto
em que a disconformidade se verifi~a, que nenhuma lei chegou
a ter existência jurídica: nem o texto sancionado a que falta
publicação adequada 2, nem o texto publicado que não corres-
e de conformidade com o original e constitui texto legal das leis e decretos
a respectiva edição (stampa) oficial, seja em folhas separadas, seja na Colecção
em volumes, seja na Gazeta Oficial.
Mas é evidente que a prova pode resultar ex se, do próprio texto impresso,
que prima faeie, se patenteia como incorrecto e incongruente, e para tanto
não é necessário o confronto do texto com o original depositado no Arquivo
geral do Reino, demais sendo certo que se não trata de prova de factos, mas
de crítica do texto, para que é competente em primeira linha e pela sua mesma
função o juiz.
1 Note-se, porém, que não se trata de verdadeira prova, mas duma
forma de cooperação das partes na actividade judicial, semelhante à que tem lugar
na prova do costume. Não é de excluir que a Cassação possa, de ofício, requi-
sitar cópia do texto original depositado no Arquivo do Reino.
• Não pode aceitar-se a opinião de BINDING - HaIldbuch, pág. 460,
segundo a qual a ordem de publicação é destinada a tomar conhecido o con-
teúdo do documento original, e portanto mesmo por falsa publicação se
torna lei o texto genuino. O A. explica (n. 6) que em tal caso o real princípio
118
ponde à vontade do poder legislativo. Cai-se, portanto, na
nulidade da norma.
A esta situação só pode trazer remédio uma nova publi-
cação do texto genuíno, ou uma rectificação oficial que, em
substância, outra coisa não é senão uma nova publicação 1,
parcial, que tem eficácia retroactiva.
b) Erros conceituais de redacção ou coordenação:
Dos erros materiais de texto devem separar-se bem os
erros conceituais de redacção ou coordenação - erros na mani-
festação de vontade, cometidos na elaboração das leis, e que
por inadvertência passaram através das discussões parlamen-
tares até ao texto definitivo. Estes deslises podem ser positivos
ou negativos, segundo introduzem no texto palavras ou
frases que não correspondem à vontade reconhecível do
legislador ou omitem outras que, inversamente, lá deviam
estar contidas.
Tais erros fazem parte da lei e têm força vinculante.
O juiz não pode remediá-los, excepto no caso único de a recti-
ficação poder deduzir-se por interpretação do próprio conteúdo
do texto ou da sua conexão com outras normas. Em qualquer
outro caso a correcção só é possível por via legislativa.
A actividade crítica do poder judicial tem mais vasto
campo para se exercitar quando se trata de aplicar leis antigas
- hipótese em que é necessário proceder a investigações histó-
ricas ou paleográficas, podendo o juiz, nesta tarefa, reclamar
o auxílio de peritos.
jurídico não está na lei, mas pertence ao direito lião escrito. A verdade é que
o texto genuíno, não tendo tido publicação conforme, não se tomou lei.
Sobre a questão, veja SONNTAG - RedaktiollSversehell des Gesetzgebers «Lapsos
de redacção do legislado1'>, no Archiv !ür Strafrecht -Arquivo para o direito
penal., 19,291; SCHUHE - ibi., 20, 351; ZANOBINI - La publicaziolle, pág. 282.
1 ZANOBINl - La publicaziolle, pág. 287.
119
Outras vezes a investigação do juiz, sem se engolfar na
diplomática, não é menos difícil e subtil; assim acontece quando
se trata de aplicar princípios de direito comum, vigentes ainda
para certas relações. Em tal caso a determinação da norma
aplicável não pode fazer-se simplesmente com remontar ao
código de JUSTINIANO; é preciso, além disso, ter em conta
todas as modificações e adaptamentos que o princípio romano
sofreu na elaboração doutrinal e na jurisprudência. Trata-se,
portanto, de uma crítica conjectural, de uma selecção avisada
das opiniões dos doutores, o que requer visão segura e profundo
conhecimento das fontes, para se determinar o verdadeiro e
genuino princípio dominante e regulador naquele tempo.
3. - Controlo substancial da existência da lei
Mais importante é hoje o controlo substancial da exis-
tência das leis. Uma norma jurídica existe desde que surgiu
e não se extinguiu ainda. Por isso o poder judicial deve recusar
a aplicação a todas as regras que não têm carácter jurídico, ou
por falta das condições e formas constitucionais para o seu
nascimento, ou por falta de competência e poder na autoridade
que as emanou, ou enfim porque essas normas perderam a
sua eficácia em virtude de abrogação.
Compreende-se como nestas investigações se produzem
contactos entre o poder judicial e o legislativo, e se torna
necessário marcar limites a tais investigações, que poderiam
transformar-se numa ilegítima intrusão de um dos poderes na
esfera do outro.
Faz-se mister distinguir entre o controlo da existência
formal das leis e o controlo substancial do seu conteúdo.
O nosso direito público não admite uma fiscalização sobre
o conteúdo substancial das leis por inconstitucionalidade, como
sucede nos Estados Unidos da América, pois o nosso Estatuto
não representa uma lei inviolável acima dasoutras leis, mas
é apenas uma lei como todas as outras, uma lei que pode ser
120
modificada e abrogada pelas fonuas ordinárias: o poder cons-
tituinte é imanente no poder legislativo. Por consequência,
o verificar-se que uma lei derogou ao Estatuto não é motivo
para lhe infmnar a eficácia, mas só faz constatar um desenvol-
vimento ou modificação da lei constitucional.
Inversamente, cabe ao poder judicial um controlo sobre
a exisdncia formal das leis. Pois que, de facto, lhe cumpre julgar
secundum legem, o poder judicial tem não só o direito como
até o dever de verificar se uma lei existe formalmente, quer
dizer, se estão integradas as condições e formas constitucionais
para que haja uma lei válida.
Se, portanto, há discordância entre os textos aprovados
pelas duas Câmaras, ou entre o texto aprovado pelo Parlamento
e o sancionado e promulgado, não há uma lei, mas uma apa-
rência de lei, a que não pode infundir força nem a sanção régia,
que deve juntar-se à vontade das Câmaras e não substitui-la,
nem o acto da promulgação, que anuncia a existência da lei
e ordena a sua execução, mas cuja eficácia é subordinada à
integração efecti~a dos elementos da existência da lei, e prin-
cipalmente à aprovação do Parlamento.
Todavia este ponto é objecto de controvérsia na doutrina 1.
1 A questão foi debatida em Itália, a propósito da lei pautal de 30 de
Janeiro de 1878, que no seu art. 96.• estabelecia sobre os tecidos de algodão
lavados (imbiam:hiti) um direito superior em 20% ao que recaía sobre os
tecidos brutos ou virgens (greggi) , o que correspondia ao projecto aprovado
pelo Senado, enquanto que a Câmara dos Deputados tinha votado só 15%.
Veja Cassação de Roma, 20 de Junho de 1886, (Foro Italiano, 1886, I, 705).
A doutrina dividiu-se: alguns sustentaram a ineficácia da disposíção
legislativa e a admissibilidade do sindicato ou controlo da autoridade judi.
ciária, outros, às avessas, a impossibilidade de todo o controlo judici:ú:io.
Pela primeira opinião veja: ORLANDO - Teoria generale delle guarantigie della
libertà, pág. 966; CAMMEO- Legge e ordinanza, n.· 25. FADDA e BENSA, ad
WINDSCHEID -- Diritto delle pandette, I, pág. 107; RANELLETTI - Principi di
diritto amministrativo, n, pág. 342; UGO - Le leggi incostituzionali, pág. 106;
GABBA, no Foro italiano, 1886, 705; LESSONA - La legalità della norma e ii potere
121
Opõe-se que o acto de promulgação é uma atestação
solene do chefe do estado sobre a constitucionalidade formal
da lei, que tem o valor duma sentença ou dum acto público,
cuja fé não pode ser impugnada perante os tribunais; que a
promulgação é o único meio formal para constatar a existência
f da lei; e que emanando do poder legislativo é insindicável
pelo poder judicial. E demais, acrescenta-se, deve em.
qualquer caso ser vedado aos juizes o investigarem sobre
o período de formação interna da lei, para se não criarem
conflitos e fiscalizações que diminuem a autonomia do poder
legislativo.
Estes argumentos não são decisivos. Ou se considere a
promulgação um acto que o Rei pratica como chefe do poder
legislativo, ou um acto em que o Rei funciona como chefe do
Governo, de toda a maneira a promulgação não tem de per si
a qualidade de acto legislativo subtraído ao controlo judiciário.
Inautorizada é a comparação que se quer instituir entre
promulgação e sentença, porque o Rei ao promulgar a lei
não decide processo algum, nem se pronuncia causa cognita,
depois de ter examinado a observância das formas constitu-
cionais da lei, como ex adverso se pretende.
E menos se pode induzir a insindicabilidade da promul-
gação do considerar-se esta um acto público, porque a publici-
dade dos actos estaduais tem carácter diverso do da publicidade
giudiziario, (Florença, 1900). Opostamente, negam à autoridade judiciária o
direito de contestar a constitucionalidade formal da lei, em contradição com
o acto de promulgação: ARMANNI, no Foro Italiano, 1890,1, 1I06; SCHANZER,
na Legge, 1894, II, 610. ROMANO, no Archivio giuridico, 1905, 48; CRISCUOLI
- La promulgazione, pág. 76 e seg., (Nápoles, 191I); ZANOB1NI - La publi-
cazione, pág. 276. Ao mesmo resultado de negar todo o controlo judiciário
chega MORTARA - Comentário dei Códice e delle leggi de procedura civile, 1,
n.· 112, argumentando, porém, com a sanção, que no seu entender é o acto
aperfeiçoador da lei, que lhe confere a patente (brevetto) de constitucionali-
dade externa. No mesmo sentido veja ainda VENZ1, ad PAClFICl MAZZONI
- Istituzioni di diritto civile italiano, 1, 60 e sego
122
dos negoclOs privados r, e, em particular, a circunstância de
tal acto emanar do Rei como chefe do poder legislativo
não o torna imune de vícios e de impugnativas. A promul-
gação, com efeito, não serve para completar a lei, não é o último
estádio do seu processo de formação, mas _pres_sl1P-ª~ lei já
formada. É um documento que atesta solenemente ;;- exis-
tência da lei, mas esta atestação deve corresponder à verdade,
deve ter o seu fundamento num acto legislativo real; de outro
modo a lei não deveria o seu nascimento ao poder legislativo,
mas ao acto régio de promulgação.
E assim volta a questão: o juiz quando aplica as leis deve
conhecer da sua existência só através da promulgação, ou pode
levar mais longe o seu exame, constatando que a promulgação
se apoia num erro 1
Assevera-se que a promulgação é o único meio para cons-
tatar a existência das leis, mas este o thema probandum!
Em conclusão, pode observar-se que, na falta de uma
disposição explícita, também esta acto solene é susceptível de
crítica e revisão, 'c e quando se constata que ele repousa sobre
um equívoco a autoridade judiciária negará reconhecimento
a esta larva de lei que não veio à existência nas formas consti-
tucionais.
Todavia o seu controlo cifra-se em averiguar da existência
exterior dos elementos da lei: aprovação dos órgãos legislativos,
promulgação, publicação; e não pode penetrar no vestíbulo
interno da formação da lei, para inquirir da observância das
1 É de consentir a CRISCUOLI - La promulgaziol1e, pág. 81, que acto
público em direito constitucional tem significado diverso do que tem no
direito privado. Sucede todavia que os Autores contrários procuram jogar
com o equívoco, deduzindo do princípio privatístico de que o acto notarial.
faz fé sobre aquilo que nele se atesta a irrevogabilidade da promulgação.
Mas, pondo-se neste terreno, replica justo COVIELLO - Manuale di diritto
civile italiano, pág. 62, que o oficial público atesta de modo inopugnável
aquilo que se passa na sua presença, enquanto que o Rei não pode fazer fé
plena da aprovação das Câmaras, que tem lugar sem o seu concurso.
123
regras de processo das Câmaras, na discussão e votação, sobre
o número legal, a capacidade dos representantes para votar,
e outras análogas. Estas normas dizem respeito ao funciona-
mento interno das assembleias, são iura interna corporis de carácter
autonómico, que fogem às indagações do poder judiciário.
Por conseguinte, o poder de investigação do juiz não vai além
do resultado da aprovação, além do voto fmal que põe termo
ao processo legislativo interno, sem indagar da forma e do
processo por que se chegou a este resultado.
A fiscalização jurisdicional exercita-se ainda nos casos de
delegação legislativa, tendo por objecto então o examinar se
as disposições emanadas pelo Governo entram na esfera de
poder que lhe foi assinada pela lei de delegação. É natural,
de facto, que as normas emanadas pelo poder executivo, quando
exorbitam da delegação, sejam privadas de força jurídica 1.
Mais duvidosa se apresenta a questão da sindicabilidade
dos decretos-leis.
Uma forte corrente doutrinal contesta a legitimidade
deste processo de que o Governo se serve em circunstâncias
extraordinárias ou de urgência, e por isso nega que tais decretos
possam achar aplicação nos tribunais. Outros, pelo contrário,
subordinam a sua validade à verificaçãoconcreta, por parte
da autoridade judiciária, das condições excepcionais em que
esses diplomas foram emanados.
Deve regeitar-se esta última opinião que levaria a intro-
meter-se o poder judicial em indagações de carácter político
para as quais não tem competência; mas tão pouco é de seguir
afoitamente a tese rigorosa da ineficácia dos decretos-leis.
1 Como decisão mais recente, veja Cassação de Roma, 2r de Agosto
de 1907, (Foro italiano, r907, r, 1304). O poder de sindicato judiciário foi
admitido até no caso de concessão de plenos poderes, durante a guerra actual
para controlar se o Governo excedeu ou não os limites desta delegação. Veja
Apelação de Génova, 13 de Junho de 1919 (Foro italiano, 1919, r, IlrS).
124
Na verdade, sendo certo que do ponto de vista político
não se pode negar ao Governo o direito de em condições de
urgência se antecipar ao poder legislativo, fazendo-se uma
espécie de gestor de negócios deste, resulta que os decretos-leis
hão-de considerar-se como leis potenciais, dependentes de apro-
vação, e que tal aprovação opera com eficácia retroactiva.
E pois que deve partir-se do princípio de que a actuação
governativa tem carácter legítimo, e portanto deve presmnir-se
que será. ratificada pelo poder legislativo, à autoridade judi-
ciária cumpre, em vista deste normal pressuposto, dar apli-
cação ao decreto-lei, salvo ficando o recusar-lhe eficácia se
vier a ter lugar a desaprovação do poder legislativo.
Mais rigoroso se exercita o controlo sobre os regulamentos
administrativos, a que a autoridade judiciária dará aplicação
só enquanto forem conformes as leis. (Lei sobre o contencioso
administrativo, art. 5.°).
A actividade regulamentar deve mover-se dentro de
limites precisos, ~ não só não pode pôr-se em contradição com
a lei, mas não pode também formular princípios novos, que
apenas ao legislador compete pronunciar. Um regulamento
pode ser contra ou praeter legem. Mais interessante é o segundo
caso.
O regulamento não pode sair da esfera discricionária que
lhe é assinada pelo direito vigente (leis gerais ou lei de autori-
zação) e não pode ditar normas estranhas ou exorbitantes daquela
faculdade discricionária. Independentemente disto, transcende o
poder discricionário toda a norma que limita direitos de liber-
dade ou impõe encargos financeiros ou inflige penas, salvo
se houver uma delegação conferida por lei. E quando se trate
de regulamentos de execução, além destas restrições um limite
imediato se encontra na lei mesma para cuja execução o regula-
mento foi expedido. De facto o regulamento poderá desen-
volver, concretizar, dar regras de detalhe sobre as formas e
modos de actuação da lei, mas não pode introduzir princípios
125
autónomos novos que não derivem das prescrições da lei c,
muito menos, que as contradigam. A autoridade judiciária
em tais circunstâncias não infirma por nulidade o regulamento;
apenas no caso concreto se nega aplicar a nornla ou as normas
que resultam inconstitucionais.
Mas não basta estabelecer que uma norma jurídica nasceu
em forma regular; ocorre igualmente saber se ela está cm vigor,
se, isto é, não foi mudada ou suprimida por uma norma pos-
terior. A tal propósito deve ter-se em conta a teoria da abro-
gação das leis «veja infra, n.O 16».
O que se disse para as normas legislativas, vale também
para os costumes, onde forem reconhecidos. O juiz não pode
aplicá-los sem primeiro veriftcar a sua existência, apurando os
elementos de que resultam, e a sua não cessação por efeito de
desuso ou de usos contrários, ou mediante abrogação por via
legal.
II
DETERMINAÇÃO DO SENTIDO
DAS NORMAS JURÍDICAS. INTERPRETAÇÃO 1
4. - Ideias gerais
Mas a actividade central que se desenvolve na aplicação
da norma de direito é a que tem por objecto a interpretação.
O texto da lei não é mais do que um complexo de palavras
escritas 2 que servem para uma manifestação de vontade, a casca
1 Da vastíssima literatura sobre o argumento bastará recordar os tra-
balhos fundamentais: SAVIGNY - Sl'stelll des heutigen rOl11ischen Rechts «Sis-
tema do direito romano hodierno», I, § 32.'°; UNGER - Sl'stem, I, § 10.°;
BINDING - Strafrecht, pág. 450. W ACH - Hmzdbuch, pág. 50; KOHLER - Ueber
die Illterpretation Von Gesetzen «Sobre a interpretação das leis» na Grützlmt's
Zeitschrift für das privat und offentlichen Ihering's «Revista de Grunhut para
O direito privado e público» 1896, e nos Ihering' s Iahrbücher ftir Dogmatik
«Anuários de Iherillg para a dogmátic<l» 25, 270; BüLOw - Gesetz und Rich-
teramt «A lei e a fWlção do juiz», Leipzig, 1885; KRAus-Die leitende Grandsiitze
der Gesetzinterpretation «Os princípios directivos da interpretação das leis», na
Grüuhut's Zeitschrift, 32; GÉNY - Méthode d'interpretatioll ft sourees ell droit
prifJé positif, Paris, 1899; BRÜTT - Die Kunst der ReclttsallUJendullg «A arte
da aplicação do direito», Berlim, 1907; SCIALOJA - SuIla teoria deIla illter-
pretaziolle deIle leggi, nos sttldi per Scltupfer, III; DEGNI, L' interpretazione deIle
leggi, 2.' ed., Nápoles, 1909; ALFREDO Rocco - L'iuterpretazi01Je deIle leggi
processuali, no Arcltivio Giuridico, 1906, pág. 91 e seg.; SCIALOJA (ANTÓNIO)
- Le fonti e l'interpretazione deI diritto commerciale, 1907; CARNELUTTI - Criteri
d'interpretazione deIla legge sugli Ítlfortuni nel lavora, nos Sttldi sllgli infortllni,
voI. I; ROMANO - L'interpretazione deIle leggi di diritto publico, no Filangieri,
99, 242 e segs.; FADDA e BENSA, ad WINDSCHEID - Palldette, I, rr8 e segs.;
SALEILLES - Ifattori d'illterpretazione giuridica, Corte Napoli, 1903.
• Em forma paradoxal SCHLOSSMANN - Der Irrttlln über UJesentlichen
Eigmschaften. «Erros sobre qualidades essenciais», pág. 27, chama à lei lima
folha de papel impresso, uma combinação de papel com sinais negros! Mas
128
exterior que encerra um pensamento, o corpo de um conteúdo
espiritual.
A lei, porém, não se identifica com a letra da lei. Esta
é apenas um meio de comunicação: as palavras são símbolos
e portadores de pensamento, mas podem ser defeituosas. Só
nos sistemas jurídicos primitivos a letra da lei era decisiva,
tendo um valor místico e sacramental. Pelo contrário, com
o desenvolvimento da civilização, esta concepção é aban-
donada e procura-se a intenção legislativa. Relevante é o
elemento espiritual, a voluntas legis, embora deduzida através
das palavras do legislador.
Entender uma lei, portanto, não é somente aferrar de
modo mecânico o sentido aparente e imediato que resulta
da conexão verbal; é indagar com profundeza o pensamento
legislativo, descer da superfície verbal ao conceito íntimo que
o texto encerra e desenvolvê-lo em todas as suas direcções
possíveis: Scire leges 11011 !toe est verba earum tenere, sed vim ac
potestatem (17,Dig. 1, 3).
A missão do intérprete é justamente descobrir o conteúdo
real da norma jurídica, determinar em toda a plenitude o .seu
valor, penetrar o mais que é possível (como diz WINDSCHEID) 1
na alma do legislador, reconstruir o pensamento legislativo.
Só assim a lei realiza toda a sua força de expansão e repre-
senta na vida social uma verdadeira força normativa.
De interpretação fala-se em sentido amplo e em sentido
estricto. No sentido estricto, a interpretação consiste em deter-
minar a significação da lei e desenvolver o seu conteúdo em
todas as direcções; no sentido amplo, a interpretação com-
preende também a analogia, isto é, a elaboração de normas
novas para casos não contemplados, induzidos de casos afms
não se adverte que estes sinais de escrita são a expressão dum pensamento
e duma vontade.
1 Pandekten, 324, pág. 99·
129
regulados pela lei. Na analogia o trabalho do jurista move-se
numa esfera mais alta, mas não se transforma em criação do
direito, porque fica sempre vinculado à lei.
A actividade interpretativa é a operação mais difícil e
delicada a que o jurista pode dedicar-se, e reclama fino tacto,
senso apurado,intuição feliz, muita experiência e domínio
perfeito não só do material positivo, como também do espí-
rito de uma certa legislação.
Cumpre evitar os excessos: duma parte o daqueles que
por timidez ou inexperiência estão estrictamente agarrados ao
texto da lei, para não perderem o caminho (e muitas vezes
toda uma era doutrinal é marcada por esta tendência, assim
acontecendo com a época dos comentadores que se segue ime-
diatamente à publicação dum código); por outro lado, o perigo
ainda mais grave de que o intérprete, deixando-se apaixonar
por uma tese, trabalhe de fantasia e julgue encontrar no direito
positivo ideias e princípios que são antes o fruto das suas locubra-
ções teóricas ou das suas preferências sentimentais.
A interpretação deve ser objectiva, equilibrada, sem paixão,
arrojada por vezes, mas não revolucionária, aguda, mas sempre
respeitadora da lei.
Aplica-se a interpretação a todas as leis, sejam claras ou
sejam obscuras " pois não se deve confundir a interpretação
com a dificúldade da interpretação.
A inteligência dum texto pode sair mais ou menos fácil,
e de resto a facilidade depende da pessoa que interpreta, mas
isto não tira que a lei se apresente sempre como um texto
rígido que deve ser reavivado e iluminado no seu sentido
1 Sobre a insidiosidade da máxima: ln claris non fit interpretatio, veja-se:
MORTARA - Comentaria, I, 72; FADDA e BENSA, ad WINDSCHElD - Pandette, 1,
167; FERRINI, ad GLUCK, Pandette, l, 167, nota (a). O mérito da dilucidação
deste ponto cabe a SAVIGNY - Systell1, 1, 207 e segs.
130
interior pela actividade interpretativa. Pelo contrano, as leis
claras oferecem o perigo de serem entendidas apenas no sentido
imediato que transluz dos seus dizeres, enquanto que tais normas
podem ter um valor mais amplo e proflmdo que não resulta
das suas palavras.
A interpretação juridica não é semelhante à interpretação
hist6rica ou jilo16gica, que se aplica aos documentos e que esgota
a sua missão quando acha um dado sentido histórico, sem
curar depois se é exacto ou não, harmónico ou contraditório,
completo ou dificiente. Mirando à aplicação prática do direito,
a interpretação jurídica é de sua natureza essencialmente teleo-
16gica 1.
O jurista há-de ter sempre diante dos olhos o fim da lei,
o resultado que quer alcançar na sua actuação prática; a lei
é um ordenamento de protecção que entende satisfazer certas
necessidades, e deve interpretar-se no sentido que melhor res-
ponda a esta fmalidade, e portanto em toda a plenitude que
assegure tal tutela.
A interpretação é actividade cientljica livre, indagação
racional do sentido da lei, que compete aos juristas teóricos
e práticos 2.
Devendo aplicar-se a lei, todos os cultores do direito cola-
boram para a sua inteligência, e os resultados a que chegam
podem ser vários e diversos. Não se pode afirmar a priori
como absolutamente certa uma dada interpretação, embora
1 KRAus - Die leítende Grundsiitzen, na Grünhut's Zeitschri[t, 32, 616;
RADBRUCH - Rechtswissenscha[t ais Rechtsschopfung «A ciência jurídica como
criação do direito», no Archiv für sozialwissenscha[t «Arquivo para a ciência
social», 22, 355; WAcH-Handbuch, pág. 257.
• Distingue-se ordinàriamente a interpretação em doutrinal, judicial
e legal ou autêntica, segundo emana dos escritores, dos juízes ou da lei. Esta
última forma não é interpretação.
131
consiga num dado momento o aplauso mais ou menos incon-
trastado da doutrina e da magistratura. A interpretação pode
sempre mudar quando se reconheça errónea ou incompleta.
Como toda a obra científica, a interpretação progride, afina-se.
A interpretação é uma actividade única complexa, de
natureza lógica e prática, pois consiste em induzir de certas
circunstâncias a vontade legislativa, Com respeito a tais cir-
cunstâncias é uso distinguir a interpretação em literal ou lógica,
conforme se procura determinar o sentido da lei através da sua
formulação verbal ou do seu escopo, mas a interpretação gra-
matical também é lógica, uma vez que pretende inferir logi-
camente das palavras o valor da norma juridica.
Não há várias espécies de interpretação. A interpretação
é única: os diversos meios empregados ajudam-se uns aos
-outros, combinam-se e controlam-se reciprocamente, e assim
todos contribuem para a averigua~ão do sentido legislativo.
5. - A chamada interpretação autêntica 1
Além da interpretação científica, os escritores falam duma
interpretação usual ou legal, quando a determinação do sentido
duma norma ocorre por via de costume ou por força de outra
lei. Esta última chama-se precisamente interpretação autêntica.
É de negar, porém, que se trate aqui de verdadeira inter-
pretação.
1 BREMER - Die autentische Interpretation «A interpretação autêntica»,
no Iahrbuch des gemeinen deutschen Rechts «Anuário do direito comum alemão»,
1858, 245; GOPPERT, nos Ihering' s Iahrbücher, 22, 3; ISAMBERT - De l'inter-
pretation législative, na Revue de législation et jurisprudence, 1835, 241; CAMMEO
- L'interpretazione autentica, na Giurisprudenza italiana, 1907, IV, 305 e segs.;
MORTARA - Come11tario, I, 74; MORELLl- La funzione legislativa, Bolonha,
1893, págs. 359 e segs.; Relazione Zucconi ai II Congresso dei magistratti italiani,
Nápoles, 1913.
132
A prescindir da interpretação consuetudinária, que no
nosso sistema positivo carece de força vinculante, porque os
usos têm uma posição subordinada à lei e valem só nos casos
em que são reconhecidos, também a interpretação autêntica
vale menos como interpretação, tirando eficácia da lei antiga,
do que como lei nova com força própria, mesmo que seja
uma lei meramente reprodutiva da anterior. Análogas, se
bem que distintas, são as leis confirmativas e as rectificativas.
Em outros tempos a interpretação da lei era considerada
como função exclusiva do legislador, o qual curava de escla-
recer as dúvidas e as obscuridades que se descobriam na aplicação.
Em certo país até chegou a instituir-se uma comissão legislativa
permanente, a que os Tribunais deviam enviar as suas dúvidas,
sobre as quais ela se pronunciava com eficácia vinculante.
Este sistema foi abandonado; mas de quando em quando, por
razões de oportunidade, publicam-se leis destinadas a aclarar
e especificar o sentido de outra lei.
É interpretativa toda a lei que, ou por declaração expressa
ou pela sua intenção de outro modo exteriorizada, se propõe
determinar o sentido de uma lei precedente, para esta ser
aplicada em conformidade. Observe-se que tal escopo da lei
interpretativa é essencial, porque nem toda a decisão legal de
uma controvérsia preexistente, nem toda a dilucidação de outra
lei há-de considerar-se como interpretação autêntica, bem
podendo suceder que o legislador tenha querido sàmente
afastar dúvidas para o futuro, sem pretender que a nova lei
se considere como conteúdo· duma lei passada. O conceito
de interpretação autêntica está expresso no preâmbulo da
Novela 143: «Quam interpretationem non in futuris tantummodo
casibus VERUM lN PRAETERlTIS etiam valere sancimus, tamquam
si nostra lex ab initio cum interpretatione tali a nobis promulgata
fuisset».
Não estamos em face duma interpretação autêntica, quando
se regula só para o futuro ou se completa qualquer lacuna duma
lei precedente.
133
A interpretação autêntica tem, por certo, de comum com
a interpretação doutrinal o seu fim, a saber, a determinação
do sentido duma norma jurídica; mas ao passo que a inter-
pretação doutrinal o procura livremente, deduzindo-o da
letra e das razões, e vale só na medida em que corresponde à
vontade legislativa real, a interpretação autêntica, pelo contrário,
declara formal e obrigatàriamente o sentido de uma lei anterior,
prescindindo de que este se ache efectivamente contido na 1ei
interpretada 1.
É frequente acontecer que sob a forma de interpretação
autêntica, em vez de reproduzir em termos mais claros e pre-
cisos a lei antiga,o legislador se desvia conscientemente dela,
modificando-a, ou que nem sequer toma em conta o seu sen-
tido originário - especialmente se este já se não pode descobrir,
como tem lugar quando se interpretam leis velhas de muitos
séculos - e introduz um princípio novo, que injecta e transfunde
na lei antiga, fingindo que tal foi ~ sentido originário 2.
Daqui deriva a característica das leis interpretativas, isto é,
a sua eficácia retroactiva. Desde que o princípio contido na
lei interpretativa deve considerar-se como Ínsito na lei inter-
pretada, conclui-se que todas as relações jurídicas anteriores,
mesmo que sejam objecto dum litígio pendente, deverão ser
julgadas consoante a nova lei declarativa, e por isso a sentença
de primeira instância ou a proferida em grau de apelação, ainda
que esteja conforme ao significado exacto da lei antiga, deverá
ser reformada ou cassada, quando se mostre em oposição com a
lei interpretativa. Só não são atingidas por esta lei as contro-
vérsias já encerradas por uma sentença passada em julgado ou
por transacção 3.
1 SELIGMANN - Der Begríff des Gezetzes «O conceito da lei». págs. 151
e segs.
2 COVIELLO - Manuale, pág. 68.
2 ENNECCERUS - Lehrbuch des bürgerlíche11 Rechts «Tratado de Direito
Civil", I, pág. 145; CAMMEO - op. cit., pág. 309 e segs.
134
Disto resulta que a chamada interpretação autêntica 1 não
é verdadeira interpretação, mas funda a sua eflcácia de modo
autónomo na declaração de vontade do legislador: é uma lei
com efeito retroactivo 2. (Veja o Estatuto, art. 73.°). E por
isso deve emanar de um órgão que possa derogar à norma
interpretada: assim uma lei não pode ser interpretada senão
por outra lei, um regulamento por outro regulamento ou por
uma lei, etc.; mas o costume não pode ter força de interpre-
tação autêntica.
6. - Objecto da interpretação: «voluntas Legis, non
legislatoris»
A fmalidade da interpretação é determinar o sentido objec-
tivo da lei, a vis ac potestas legis. A lei é expressão da vontade
do Estado, e tal vontade persiste de modo autónomo, desta-
cada do complexo dos pensamentos e das tendências que ani-
maram as pess9as que contribuíram para a sua emanação.
O intérprete deve apurar o conteúdo de vontade que alcançou
expressão em forma constitucional, e não já as volições alhures
manifestadas ou que não chegaram a sair do campo intencional.
Pois que a lei não é o que o legislador quis ou quís exprimir,
mas tão somente aquilo que ele exprimiu em forma de lei 3.
1 Sobre as várias leis interpretativas publicadas na Itália, veja um
elenco em STOLFI - Diritto Civile, pág. 590, nota 3; mas os casos aí recor-
dados não são todos seguros, alguns, pelo contrário, sendo de excluir, como
sucede com o do art. 28.0 da lei de 19 de Junho de 1873 que, segundo pensamos,
não se pode dizer que tenha interpretado os arts. 773.0 e 829.0 do Código
Civil.
• O direito canónico tem um conceito especial de interpretação autên-
tica: Veja o Codex iuris canonici, cânone 17, § 2.0 •
1 SCHLOSSMANN - Der 1rrtum über wesentl. Eígenschaften, pág. 26.
Veja-se também KOHLER - Lehrbuch, 20: o que pelo medium da palavra não
penetrou no texto não se tomou lei, ficou em simples tentativa sem força
jurídica.
135
Por outro lado, o comando legal tem um valor autónomo
que pode não coincidir com a vontade dos artíftces e redactores
da lei, e pode levar a consequências inesperadas e imprevistas
para os legisladores. Como diz THOL 1, pela sua aplicação a
lei desprende-se do legislador e contrapõe-se a ele como um
produto novo, e por isso a lei pode ser mais previdente do que
o legislador.
A vida jurídica todos os dias oferece ocasião para' se
tirarem novos princípios das palavras da lei que subsistem de
modo autónomo como vontade objectivada do poder legis-
lativo. Especialmente à medida que a lei se vai afastando da
sua origem, a importância da intenção do legislador vai afrou-
xando até se dissolver: o intérprete tardio acha-se imbuído de
mudadas concepções jurídicas, e com isto a lei recebe um signi-
ficado e um alcance diverso do que originàriamente foi querido
pelo legislador. Mas com isto não se veriftca, como pensa
REGELSBERGER 2, um desvirtuamento ou uma adulteração incons-
ciente da lei, devida à acção do tempo; há somente uma diversa
apreciação e projecção do princípio no meio social.
O ponto directivo nesta indagação é, por consequência,
que o intérprete deve buscar não aquilo que o legislador quis,
mas aquilo que na lei aparece objectivamente querido: a mens legis
e não a mens legis la toris.
Ao invés, a antiga concepção dominante ensinava que a
função do intérprete consiste em procurar a vontade do legis-
lador 3, e por isso tinha em alta consideração os trabalhos
preparatórios, reputando-os quase uma fonte autêntica de
interpretação.
Mas contra isto foi observado que nos sistemas constitu-
cionais hodiernos não se descobre um legislador em cujo ânimo
1 Das Handelsrecht "O direito comercial», Introdução, pág. ISO.
• Pandekten, pág. 144.
3 Ueber die 1nterpretation der Gesetze, na GrUnhI//'5 Zeitschrifi, 1886, 20.
136
se possa penetrar ou cuja vontade se possa indagar: na formação
da lei cooperam multíplices factores, uma pluralidade de pessoas,
vàriamente ordenada, pelo que a rigor a lei é o resultado duma
vontade colectiva, a síntese da vontade de órgãos estaduais diversos.
E precisamente em virtude desta colaboração, e porque
entre os que participam na elaboração da lei subsistem correntes
espirituais várias, opiniões e motivos não coincidentes, e por
vezes mesmo têm lugar transacções ele teúdências para se chegar
a um acordo, não é possivel falar duma intenção real do legis-
lador.
O legislador é uma abstracção 1. A lei, diz KOHLER, deve
conceber-se como um organismo corpóreo penetrado por um
impulso espiritual. q elemento corpóreo é a palavra da lei,
pois que a palavra não--é simplesmente o meio de próva, mas
o veiculo necessário, o substracto do conteúdo espiritual, não
é só revelação, mas realização do pensamento legislátivo.
A obra legislativa é como uma obraârtística em qué a
obra de arte e a concepção do criador não coincidem. Também
o conteúdo espiiitual da lei não coincide com aquilo que dela
pensam os seus artífices :naleCesiisempre um fundo, de insco~~:::­
ciente e apenas suspeitada vida espiritual, em que repousa o
trabalho mental de séculos.
E assim _chegamos à objectivação da lei. A lei deve inter-
pretar-se em si mesma, como incorporando um pensamento
e uma vontade própria. A interpretação consiste em declarar
não o sentido histórico que o legislador materialmente ligou ao
piincípio,(mas o sentid0'l~e ali está imanente e vivo., Eis o
que, precisamenfê~ se quer exprimir com a fórmula metafó-
1 WÜRZEL - Das Juristische Denken «O pensamento jurídico., págs. 46
e segs.: A vontade do legislador é uma grandeza variável, um reservatório
em que estão sepultadas as contradições. Mas quem é o legislador 1 Será
o Parlamento 1 Se assim fosse teria de admitir-se que o Parlamento era um
jurista de profissão, capaz de conhecer o título e o imenso conteúdo das leis
emanadas. O legislador é entidade que em parte alguma se descobre - é uma
figura mística, indeterminada.
137
rica - vontade da lei. Esta fórmula não pretende significar que
a lei tem um querer no sentido psicológico, mas apenas que
encerra uma vontade objectivada, um querido (voluto) inde-
pendente do pensar dos seus autores, e que recebe um sentido
próprio, seja em conexão com as outras normas, seja com
referência ao escopo que a lei visa alcançar.
O jurista há-de ter sempre diante dos olhos o escopo da
lei, quer dizer, o resultado prático que ela se propõe consegulr.
A lei é um ordenamento de relações que mira a satisfazer certas
necessidades e deve interpretar-se no sentido que melhor res-
ponda a esta finalidade, c portanto em toda a plenitude que
assegure tal tutela.
Ora isto pressupõe que o intérpretenão deve limitar-se
a simples operações lógicas, mas tem de efectuar complexas
apreciações de interesses, embora dentro do âmbito legal!
E daqui a dificuldade da interpretação, que não é simples arte
linguistica ou palestra de exercitações lógicas, mas ciência da
vida e metódica do direito.
Visto o carácter objectivo do sentido da lei, conclui-se
que esta pode ter um valor diferente do que foi pensado pelos
seus autores, - que pode produzir consequências e resultados
imprevisíveis ou, pelo menos, inesperados no momento em
que foi feita, e por último que com o andar dos tempos o prin-
cípio gaúha mais amplo horisonte de aplicação, estendendo-se
a relações diversas das originàriamente contempladas, mas que,
por serem de estrutura igual, se subordinam ao seu domínio
(fenómeno de projecção) 1.
1 Sobre isto veja-se WÜRZEL - Das juristische Denken, pág. 43: «Muitas
vezes acontece que uma norma é ditada tendo-se presente um certo estado de
facto, mas essa norma será também aplicável a relações que, embora origi-
nàriamente não previstas, têm, no entretanto, a mesma estrutura que as pri-
meiras: o antigo conceito projecta-se sobre novos fenómenos».
O A. recorda o caso duma disposição penal contra os falsificadores
de dinheiro, emanada num tempo em que no país não havia outra moeda
senão a metálica: se depois se introduz o papel moeda, será aplicável a mesma
138
7. - Método de interpretação
Para apreender o sentido da lei, a interpretação socorre-se
de vários meios.
Em primeiro lugar busca reconstruir o pensamentos legis-
lativo através das palavras da lei, na sua conexão linguística e
estilística, procura o sentido literal. Mas este é o grau mais
baixo, a forma inicial da actividade interpretativa. As palavras
podem ser vagas, equívocas ou deficientes e não oferecem
nenhuma garantia de espelharem com fidelidade e inteireza o
pensamento da lei: o sentido literal é apenas o conteúdo poss{vel
da lei: para se poder dizer que ele corresponde à mens legis,
é preciso sujeitá-lo a crítica e a controlo.
E deste modo se passa bem cedo à interpretação lógica,
que quer deduzir de outras circunstâncias o pensamento legal,
isto é, de elementos racionais, sistemáticos e históricos, que
todos convergem para iluminar o conteúdo do princípio.
A interpretação lógica, porém, não deve contrapor-se rasga-
damente à interpretação linguística: não se trata de duas opera-
ções separadas, porque além de terem ambas o mesmo fim,
realizam-se conjuntamente - são as partes conexas de uma só
e indivisivel actividade 1.
disposição. Ou o caso duma disposição que fala de moinhos movidos por
força mecânica, publicada num tempo em que só havia moinhos de vento
ou de água,· a qual disposição será de aplicar também aos moinhos a vapor,
a electricidade, etc.
Um exemplo típico de projecção jurídica no nosso direito, que foi
admitido pela jurisprudência, refere-se à disposição da lei sobre pensões que
concedia a reversibilidade da quota de pensão para os fIlhos menores do empre-
gado: essa disposição foi ampliada aos fIlhos da mulher empregada, não obstante
resultar que na época da formação da lei o legislador pensava exclusivamente
na prinleira hipótese. Veja a magistral sentença do Tribunal de Contas,
de 15 de Novembro de 1913, no Foro Italiano, 1913, m, 68, com nota de
VENEZIAN.
1 UNGER - System, I, pág. 79; REGELSBERGER - Pandekten, pág. 145.
139
a) INTERPRETAÇÃO LITERAL (GRAMATICAL, LINGuíSTICA,
VERBAL).
A interpretação literal é o primeiro estádio da interpre-
tação. Efectivamente, o texto da lei forma o substracto de
que deve partir e em que deve repousar o intérprete. Uma
vez que a lei está expressa em palavras, o intérprete há-de
começar por extrair o significado verbal que delas resu1ta,
segundo a sua natural conexão e as regras gramaticais.
•_Q. __s~!1!igo <las palavras estabelece-se com base no uso lin-
guístico, o qual pode ser diverso conforme os lugares e os vários
- círculos profissionais. Normalmente as palavras devem enten-
der-se no seu sentido usual comum, salvo se da conexão do
discurso ou da matéria tratada derivar um significado especial
técnico. É o que se verifica quando se trata de matérias ou de
institutos que têm entre os interessados uma terminologia par-
ticular (direito marítimo, contratos de bolsa, regime das águas,
certas espécies de venda, etc.).
Acontece também que no direito algumas palavras reves-
tem uma acepção técnica que não coincide nem corresponde
ao seu significado popular. Assim as palavras posse, usufruto,
boa fé, diligência, hipoteca, caso fortuito, legado e semelhantes.
Em tal caso deve escolher-se, na dúvida, a significação técnica
jurídica, pois é de presumir que o legislador usou das palavras
com plena reflexão, e portanto se serviu delas no seu significado
técnico, de preferência ao vulgar.
Pode existir, finalmente, um uso linguistico individual do
próprio legislador: na verdade, pode suceder que o legislador
empregue certas fó rmulas e maneiras de dizer com um valor
especial, diverso do ordinário e do jurídico, e que resulta do con-
fronto com a terminologia e a estilistica adoptada num código ou
corpo de leis. Em tal caso prevalece este significado individual.
As palavras hão-de entender-se na sua conexão, isto é,
o pensamento da lei deve inferir-se do complexo das palavras
usadas e não de fragmentos destacados, deixando-se no escuro
140
uma parte da disposição. Deve-se partir do conceito de que
todas as palavras têm no discurso-um-;I~nção~ um sentido
próprio, de que neste não há nada supérfluo ou contraditório,
e por isso o sentido literal há-de surgir da compreensão harmó-
nica de todo o contexto.
Se as palavras empregadas são equívocas ou indeterminadas 1,
se todo o princípio é obscuro, se resultam consequências contra-
ditórias ou revoltantes, a interpretação literal não pode remediar
esta situação. Será preciso recorrer à interpretação lógica.
De resto, mesmo quando o sentido é claro, não pode
haver logo a segurança de que ele corresponde exactamente
à vontade legislativa, pois é bem possível que as palavras sejam
defeituosas ou imperfeitas (manchevole), que não reproduzam
em extensão o conteúdo do princípio ou, pelo contrário, sejam
demasiado gerais e façam entender um princípio mais lato
do que o real, assim como, por último, não é excluído o emprego
de termos erróne~s que falseiem abertamente a vontade legisla-
ova. O sentido literal é incerto, hipotético, equívoco. Também
os que actuam in fraudem legis observam o sentido literal da lei,
e no entanto violam o seu espírito 2. Como ajuda, integração e
co11tr% da interpretação gramatical serve a interpretação lógica.
b) INTERPRETAÇÃO LÓGICA OU RACIONAL.
Esta move-se num ambiente mais alto e utiliza meios
mais fmos de indagação, pois remonta ao espírito da dispo-
sição, inferindo-o dos factores racionais que a inspiraram,
1 REGELSBERGER -Ioc. cito PFAFF - Zur Lehre vom sogenannt ÍlI fraudem
legis agere «Para a doutrina do chamado in fraudem legis agem, págs. 157 e segs.
FERRARA - DelIa símulazíone deí negozí gíuridicí, 4.' ed., págs. 66 e segs.
ROTONDI - Clí atti ín frode alia legge, Turinl, 191I.
2 Assim uma palavra pode ter mais de um sentido, um largo e outro
restricto ou técnico. Por exemplo: ausente, patrinlónio, alienar, alimentos,
nulidade, etc.
141
da génese histórica que a prende a leis anteriores, da conexão
que a enlaça às outras normas e de todo o sistema. É da
ponderação destes diversos factores que se deduz o valor da
norma jurídica.
I) Elemento racional.
Toda a disposição de direito tem um escopo a realizàr,
quer cumprir certa função e finalidade, para cujo conseguimento
foi criada. A norma descansa num fundamento jurídico, numa
ratio iuris, que indigita a sua real compreensão.
É preciso que a norma seja entendida no sentido que
melhor responda à consecução do resultado que quer obter.
Pois que a lei se comporta paracom a ratio iuris, como o
meio para com o fim: quem quer o fim quer também
os meIOS.
Para se determinar esta fmalidade prática da norma, é pre-
ciso atender às relações da vida, para cuja regulamentação a
norma foi criada. Devemos partir do conceito de que a lei
quer dar satisfação às exigências económicas e sociais que
brotam das relações (natureza das coisas). E portanto ocorre
em primeiro lugar um estudo atento e profundo, não só do
mecanismo técnico das relações, como também das exigências
que derivam daquelas situações, procedendo-se à apreciação dos
interesses em causa.
A interpretação não é pura arte dialéctica, não se desen-
volve com método geométrico num círculo de abstracções,
mas prescruta as necessidades práticas da vida e a realidade
social.
Averiguado, porém, qual o escopo prático que a norma
se destina a conseguir, não ficamos seguros de que isso constitua
o verdadeiro conteúdo da norma. E está aqui a fraqueza do
elemento teleológico. Pois os caminhos para se chegar a um
certo fim podem ser vários, e desse fim não se deduz qual o
caminho preferido; e por outra parte o legislador pode ter-se
142
enganado quanto ao meio que empregou '. Mas de toda a
maneira o fim é sempre um raio de luz a iluminar o caminho
do intérprete.
Da ratio legis, que consUtUl o fundamento racional objec-
civo da norma, precisamos distinguir a occasio legis que é a
circunstância histórica de onde veio o impulso exterior para
a criação da lei. Assim uma lei restritiva da liberdade de reu-
nião pode ser publicada por ocasião e por motivo de pertur-
bações internas: tais circunstâncias constituem a occasio legis,
ao passo que o fundamento racional será dado pelo fim de
restringir a liberdade.
No entanto, a circunstância que promoveu o surgir de
uma lei também pode ser utilizada para determinar o fim e
o âmbito desta. É de notar, porém, que a cessação das circuns-
tâncias que fizeram nascer uma lei não exercita nenhuma
influência sobre o seu valor juridico.
A ratio legis "pode mudar com o tempo. O intérprete,
examinando uma norma de há um século, não está incondicio-
nalmente vinculado a procurar a razão que induziu o legis-
lador de então, mas qual é o fundamento racional de agora.
Assim pode acontecer que uma norma ditada para um certo
fim adquira função e destino diverso.
A ratio legis é uma força vivente móvel que anima a dispo-
sição, acompanhando-a em toda a sua vida e desenvolvimento;
é como linfa que mantém sempre verde a planta da lei e faz
brotar sempre novas flores e novos frutos. A disposição pode,
desta sorte, ganhar com o tempo um sentido novo e aplicar-se
a novos casos. Sobre este princípio se baseia a chamada inter-
pretação evolutiva.
1 REGELSBERGER - Pandekten, pág. 148.
143
II) Elemento sistemático.
Um, princípio jurídico não existe isoladamente, mas está
ligado por nexo íntimo com outros princípios.
O direito objectivo, de facto, não é um aglomerado
caótico de disposições, mas um organismo jurídico, um sistema
. de preceitos coordenados ou subordinados, em que cada um
tem o se~ posto próprio. Há princípios jurídicos gerais de
que os outros são deduções e corolários, ou então vários prin-
cípios condicionam-se ou restringem-se mutuamente, ou cons-
tituem desenvolvimentos autónomos em campos diversos.
Assim todos os princípios são membros dum grande todo.
Desta conexão cada norma particular recebe luz. O sen-
tido duma disposição ressalta nítido e preciso, quando é con-
e frontada com outras normas gerais ou supra-ordenadas, de
que constitui uma derivação ou aplicação ou uma excepção,
quando dos preceitos singulares se remonta ao ordenamento
jurídico no seu todo. O preceito singular não só adquire indi-
vidualidade mais nítida, como pode assmnir um valor e uma
importância inesperada caso fosse considerado separadamente,
ao passo que cm correlação e em função de outras normas
pode encontrar-se restringido, ampliado e desenvolvido.
III) Elemento histórico.
Uma norma de direito não brota dum jacto, como Minerva
armada da cabeça de Júpiter legislador. Mesmo quando versa
sobre relações novas, a regulamentação inspira-se frequente-
mente na imitação de outras relações que já têm disciplina no
sistema '; e independentemente disto, o direito, em especial o
direito privado, é o produto duma lenta evolução, é uma fase
dum desenvolvimento histórico muito longo que remonta ao
1 Assim a servidão de condução de energia eléctrica foi modelada
à imitação da de aqueduto.
144
direito romano e depois, através da elaboração medieval, onde
confluem correntes de direito germânico e canónico, prossegue
no direito comum e daí, pelo trâmite do direito francês, entra
no nosso código. Uma grande parte dos princípios contidos
nos códigos são a reprodução de princípios análogos vigentes
no passado, têm cada um a sua história própria.
Compreende-se que precioso auxílio para a plena inteli-
gência dum texto resulta de se descobrir a ~ua ori[e~1li~~~ca,
e seguir o seu desenvolvimento e as suas transformações, até
ao arranjo defInitivo do assunto no presente) Fórmulas e
princípios que considerados só pelo lado racional parecem
verdadeiros enigmas, encontram a chave de solução numa
razão histórica, no rememorar de condições e concepções dum
tempo longínquo que lhes deram uma fIsionomia especial l .
A história dogmática dos institutos do direito civil ainda
não é para nós mais do que um pio desejo, porque a outros
assuntos se volvem as investigações dos historiadores do direito
(afora excepções isoladas), e por isso convém que todo o estu-
dioso solícito dlim problema jurídico tenteie por si os pre-
cedentes históricos, para adquirir uma visão plena e nítida da
disposição.
8. - Os trabalhos preparatórios
A história do preceito positivo compreende não somente
a indagação da sua origem remota, como também a do seu
nascimento recente, e portanto dos trabalhos legislativos que
prepararam a sua introdução num código. Trata-se dos pro-
jectos de lei, das discussões de comissões, dos motivos, relatórios
e discursos que constituem os materiais de elaboração das leis.
1 Assim só historicamente se explicam o princípio da natureza decla-
ra'iva da divisão, do efeito da posse dos móveis em relação a terceiros, da
Saisina iuris na herança, da subrogação por pagamento, das contra-decla-
rações no matrimónio, etc.
\
I
I
145
Questiona-se em doutrina acerca do valor a atribuir a
estes Trabalhos preparatórios.
Está hoje refutada a obsoleta concepção que, identifIcando
o legislador com o redactor da lei, dava a tais discussões e opi-
niões quase a autoridade duma interpretação autêntica.
Parte-se agora da observação exacta de que semelhantes
escritos e discursos são coisa interna dos órgãos legislativos e
não se transfundem na lei publicada: trata-se de debates internós,
de modos de ver dos diversos relatores ou preopinantes (disse-
renti), de tendências individuais, e não de pensamentos do
legislador. O silêncio dos outros elaboradores da lei não vale
por aquiescência ou apropriação dos conceitos emitidos pelos
vários proponentes, porque o texto da lei pode ser aprovado
por outros motivos e até, frequentemente, discordando-se das
razões invocadas. O conceito da lei projecta-se diversamente
no espírito dos votantes, e não é legítimo supor que haja neles
um intento único. Desta divergên~ia aparece rasto nos tra-
balhos legislativos, onde vemos sustentar opiniões contrárias,
surgir antagonismos e transacções de tendências, acordarem-se
novas fórmulas de texto, e maior se patentearia a discordância
se nos fosse dado colher ao vivo o trabalho legislativo mais
do que resulta das atestações ofIciais contidas nos actos e nos
documentos das Câmaras. E de toda a maneira não pode
falar-se dum intento único.
COSACK 1 comparou os trabalhos preparatórios duma lei
aos debates preliminares dum contrato, e como estes, em prin-
cípio, não têm influênciasobre o contrato defInitivo, que é
fruto de transacções de interesses, assim também àqueles falta
autoridade sobre o texto defInitivo da lei, que deriva do cruza-
mento de opiniões e tendências opostas dos vários órgãos
legislativos.
1 Lehrbuch des biirgerlichen Rechts «Tratado de direito eivil», I, § 12.°,
pág. 40.
lO
146
Os trabalhos preparatórios podem esclarecer-nos relativa-
mente às ideias e ao espírito dos proponentes da lei ou de alguns
votantes, e valem como subsídio, quando puder demonstrar-se
que tais ideias e princípios foram incorporados na lei. Em
caso diverso devem considerar-se momentos estranhos à lei
e sem influência jurídica. Valem apenas como ilustrações de
carácter científico.
Tanto mais se reconhece a verdade disto, quanto é certo
haver casos não raros de surpresas na formação das leis 1, quer
dizer, casos em que da lei votada resultam consequências não
previstas ou diversas das que se tinham em vista ao compilá-la,
ou em que, por um concurso de circunstâncias fortuitas, uma
norma se desvia totalmente do seu fim, convertendo-se em
meio ou instrumento para um fim oposto.
E, por último, não é difícil que urna lei encontre nos
Trabalhos preparat6rios uma falsa justificação, ou que lá apareça
desvirtuado o seu espírito. Mas nem por isso o intérprete
será vinculado pelas considerações erróneas ou limitadas dos
redactores da lei, antes deverá apreciar a norma no seu valor
objectivo, e em conexão com o sistema do direito 2.
Tudo isto basta para desacreditar suficientemente os Tra-
balhos preparat6rios, os quais amiúde não nos dizem nada ou
são uma caótica mixórdia de teorias opostas em que todo o
intérprete pode achar cómoda confirmação para as opiniões
próprias. Quando muito, podem valer como indício de certa
vontade legislativa, mas devem ser utilizados com cautela e
circunspecção.
1 POLACCO - Penombre e sorprese nella formazione delle leggi, nos Studi
per Scialogia, 1, 327 e segs.
, ENNECCERUS - Lehrbuch, 1, § 62.°. DERNBURG - Das bürgerliches
Recht des deutschen Reichs und Preuszens «O direito civil do império Alemão
e da Prússia-, 1, § 38.°. KOHLER, na Grünhut's Zeitschrift, 13, pág. 7. MORrARA
- COlnmentarío, 1, n.° 73. FADDA e BENSA, ad WINDSCHEID - Pandette, 1,
págs. IIg e segs. COVIELLO - Manuale, pág. 73·
147
9. - Resultado da interpretação
A relação da interpretação lógica com a gramatical pode
ser diversa.
a) CONCORDÂNCIA ENTRE O RESULTADO DA INTERPRETAÇ~O
LÓGICA E O DA GRAMATICAL: INTERPRETAÇÃO DECLA-
RATIVA.
Antes de mais pode dar-se que o sentido da lei, tal como
resulta da interpretação lógica, seja perfeitamente congruente
com o que as palavras da lei exprimem, que haja perfeita cor-
respondência entre as palavras e o pensamento da lei. Neste
caso a interpretação lógica não faz mais do que confirmar
e valorizar a explicação literal.
Ou então o sentido das palavra~ é dúbio e equívoco, por-
que as expressões são demasiadamente gerais ou anfibológicas;
e em tal caso a interpretação lógica ajuda a fixar o sentido
real da lei, escolhendo um dos sentidos possíveis, que resultam do
simples contexto verbal. Assim no código aparecem muitas
vezes as palavras: filhos, parentes, ausente, incapaz, alienar,
cohabitação, etc., que têm uma acepção lata e uma acepção
restrita, e que nas várias disposições legais revestem ora um
ora outro significado. A interpretação lógica adoptará con-
forme as circunstâncias o sentido que melhor se ajuste à
vontade da lei.
Em ambos os casos fala-se de interpretação declarativa, por-
que não se faz mais que declarar o sentido linguístico coinci-
dente com o pensar legislativo.
A interpretação declarativa pode ser restrita ou lata, segundo
toma em sentido limitado ou em sentido amplo as expressões
que têm vários significados. ITal distinção não deve confun-
dir-se com a de interpretaçã; extensiva ou restritiva, de que a
seguir vamos tratar, pois nada se restringe ou se estende quando
148
entre os significados possíveis da palavra se elege aquele que
parece mais adapatado à mens legis 1.
E para esta escolha valem os meios usuais de interprtação
lógica. Em particular, observaremos que na interpretação
de expressões de sentido duplo, ou indeterminadas, cabe
escolher, na dúvida, o significado pelo qual o princípio
jurídico menos se desvia do direito regular, ou pelo qual
se chega a um resultado mais benigno, de preferência a um
mais rigoroso 2.
b) DISCORDÂNCIA ENTRE O RESULTADO DA INTERPRETAÇÃO
LÓGICA E O DA GRAMATICAL.
o sentido literal não coincide com a vontade da lei,
tal como se deduz da interpretação lógica: há desconfor-
midade entre a letra e o pensamento da lei. Analisando a
disposição do ponto de vista lógico, vê-se que resulta outro
sentido que nãq, é aquele que das palavras transparece ime-
diatamente.
Ora as palavras são um meio para tomar reconhecível
a vontade, e se é certo que sem alcançar expressão nas formas
constitucionais uma vontade legislativa não tem existência
jurídica, certo é outrossim que basta uma manifestação defei-
tuosa ou errónea, através da qual se possa reconstruir e vislum-
brar essa vontade 3. Pois que o meio deve sacriftcar-se ao fim,
1 W ABeRTER - Handbuch des württembergischen Privatrechts «Manual do
direito privado de WililTEMBERG», n, pág. 143, nota 36.
, UNGER - System, l, pág. 91.
3 Exagera SCHLOSSMANN - Der rrrtum, pág. 26, quando nega a legi-
tinúdade da interpretação lógica, observando que embora estivéssemos con-
vencidos de que o legislador adoptara uma expressão demasiado larga, ou
restrita, nem por isso poderíamos dar validade como lei a uma vontade que
não alcançou expressão nas formas constitucionais. E exagera, porque também
uma manifestação defeituosa basta para exprimir a vontade.
149
o pensamento deve triunfar da forma, a vontade da escama
verbal: prior atque pote11tior est quam vox, mens dicentis (7, § 2,
Dig. 33, 10).
O confronto da interpretação lógica com a literal há-de
ter por efeito operar uma rectijicação do sentido verbal na con-
formidade e na medida do sentido lógico. Tratar-se-á de
corrigir a expressão imprecisa, adaptando-a e entendendo-a no
signiftcado real que a lei quis atribuir-lhe. A modiftcaçâo
refere-se às palavras, que não ao pensamento da lei.
A imperfeição linguística pode manifestar-se de duas
formas: ou o legislador disse mais do que queria dizer, ou disse
menos, quando queria dizer mais. A sua linguagem pode ser
demasiado genérica, e compreender aparentemente relações
que conceitualmente dela estão excluídas, ou demasiado
restricta, e não abraçar em toda a sua amplitude o pensa-
mento visado. Em suma, o legislador pode pecar por excesso
ou por defeito. .
A interpretação, para fazer corresponder o que está dito
ao que foi querido, procede acolá restringindo e aqui alargando
a letra da lei: num caso há interpretação restritiva, e no outro
há interpretação extensiva.
I) Interpretação restritiva.
A interpretação restritiva aplica-se quando se reconhece
que o legislador, posto se tenha exprimido em forma genérica
e ampla, todavia quis referir-se a uma classe especial de rela-
ções. É falso, portanto, na sua absoluteza, o provérbio: Ubi
lex 110n distinguit, nec nobis distinguere licet.
A interpretação restritiva tem lugar particularmente nos
seguintes casos: 1. o se o texto, entendido no modo tão geral
como está redigido, viria a contradizer outro texto de lei;
2. o se a lei contém em si uma contradição intima (é o chamado
argumento ad absurdum); 3. 0 se o princípio, aplicado sem res-
trições, ultrapassa o fun para que foi ordenado.
150
Além disto é de observar que se um prinClpIO foi esta-
belecido a favor de certas pessoas, não pode retorcer-se em
prejuizo delas, por interpretação restritiva das suas expressões
demasiado gerais 1.
II) Interpretação extensiva.
A interpretação extensiva, pelo contrário, destina-se a
corrigir uma formulação estreitade mais. O legislador, expri-
mindo o seu pensamento, introduz um elemento que designa
espécie, quando queria aludir ao género, ou formula para um
caso singular um conceito que deve valer para toda uma cate-
goria. Assim: fala-se de homens, quando é certo que devem
reputar-se abrangidas também as mulheres; fala-se de doação,
e devem julgar-se compreendidas todas as aquisições gratuitas,
ainda que mortis causaj diz-se alienação, e quer-se contemplar
igualmente a concessão de direitos reais de gozo ou de lúpo-
tecas; enuncia-se um princípio em tema de contratos, e pre-
tende-se que valha também para os testamentos, etc.
A interpretação extensiva, despojando o conceito das parti-
cularidades e circunstâncias especializantes em que se encontra
excepcionalmente encerrado, eleva-o a um princípio que abarca
toda a generalidade das relações, dando-lhe um âmbito e uma
compreensão que, perante a simples formulação terminológica,
parecia insuspeitada.
Falso é, pois, o brocardo: Ubi lex voluit dixit, ubi noluit,
tacuit. As omissões no texto legal, com efeito, nem sempre
significam exclúsão deliberada, mas pode tratar-se de silêncio
involuntário, por imprecisão de linguagem.
A interpretação extensiva é um dos meios mais fecundos
para o desenvolvimento dos princípios juridicos e para o seu
reagrupamento em sistema.
1 UNGER - Systelll, 1, pág. 88.
151
E como a interpretação extensiva não é mais do que reinte-
gração do pensamento legislativo, aplica-se a todas as normas,
sejam embora de carácter excepcional ou penal 1. O princípio
do art. 4. o das disposições preliminares, que veda a extensão
das leis penais ou restritivas além dos casos expressos, refere-se
à aplicação por analogia. Portanto não é verdade que as excep-
ções tenham de interpretar-se estrictamente, mas, pelo contrário,
que as excepções não se podem ampliar por analogia.
Sobre a interpretação extensiva baseia-se a proibição dos
actos in fraudem legis.
Com efeito, o mecanismo da fraude consiste na obser-
vância formal do ditame da lei, e na violação substancial do
seu espírito: tantum sententiam offendít et verba reservat. O frau-
dante, pela combinação de meios indirectos, procura atingir
o mesmo resultado ou pelo menos um. resultado equivalente
ao proibido; todavia, como a lei deve entender-se não segundo
o seu teor literal, mas no seu conteúdo espiritual, porque a
disposição quer realizar um fim e não a forma em que ele pode
manifestar-se, já se vê que, racionalmente interpretada, a proi-
bição deve negar eficácia também àqueles outros meios que
em outra forma tendem a conseguir aquele efeito 2.
III) A chamada interpretação abrogante.
Por último, a interpretação pode levar a um resultado
extremo - a negar sentido e valor a uma disposição de lei,
quando se verifIca a sua absoluta contraditoriedade e incompa-
tibilidade com outra norma supra-ordenada e principal.
1 Assim o art. 365.°, n.O 3 do Código Penal agrava a pena de homi-
cídio quando este seja cometido por meio de substdncias Ve1lenosas. O prin-
cípio, porém, deve entender-se referido não exclusivamente aos venenos
verdadeiros e próprios, mas a toda a substância capaz de produzir a morte
imediata e imprevistamente: Veja DEGN1, L'interpretazione della legge, pág. 269.
2 fERRARA - Della Si111ulazione, pág. 71; ROTONDI- cli atti Í11 frode
alla legge, pág. 22.
152
As antinomias e os desacertos não são raros nos nossos
sistemas legislativos, filiando-se muitas vezes em defeitos de
coordenação e em esquecimentos. Ora quando entre duas
disposições há uma contradição absoluta e não se descobre ."
nenhum meio de as conciliar, a interpretação deve làgicamente
eliminar a norma contradicente, reputando-a letra morta,
vazia de conteúdo. Em tal caso fala-se de interpretatio abroga/is,
não já porque o intérprete abrogue a lei, mas porque da
interpretação resulta que a norma é abrogada por incompa-
tibilidade.
Neste conflito deve ter-se em conta o diverso grau de
importância das normas contraditórias. Pois tratando-se de
preceitos igualmente principais e antagónicos, a contradição
leva à sua elisão recíproca: nenhum deles sobrevive. Mas o
caso é raro. Se pelo contrário a incompatibilidade tem lugar
entre uma disposição principal e uma disposição secundária
e acessória, então leva à ineficácia da última, deixando firme
a disposição fundamental.
Assim os autores sustentam em regra que há antinomia
entre o princípio geral que exige a forma escrita para as con.-
venções constitutivas ou translativas de direitos reais mobi-
liários (art. 1314.°) e a norma que requer a publicidade duma
sentença que reconheça a existência duma convenção que tenha
esse objecto (art. 1932.°, n.O R), visto ser patente que uma con-
venção verbal translativa de imóveis nunca poderia ter eficácia
e portanto a hipótese em questão é inverificável. Assim também
há contradição entre o princípio fundamental que admite a
acção de manutenção Unicamente para a posse de bens imóveis
ou de universalidades de móveis (art. 694.°) e a disposição proces-
sual que para fms de competência supõe uma acção de turbação
para a posse de coisas móveis (cód. de proc. civ., art. 93.°).
Em tal caso a norma acessória processual é sacrificáda e consi-
dera-se como não escrita.
153
10. - Desenvolvimento do sentido da lei
Mas a interpretação não se detém uma vez apurado o
sentido das normas: compete-lhe ainda desenvolver o conteúdo
das disposições, em todas as suas direcções e relações possíveis.
Frequentemente um só preceito de lei encerra dentro de
si vários princípios, dos quais apenas um está expresso, enquant~o
que os outros podem derivar-se por dedução lógica; e além
disso a conexão das várias normas faz com que algumas se apre-
sentem como regras e outras como excepções. Ora o intér-
prete deve tirar dos princípios todas as consequências de que
são capazes, embora algumas sejam expressas, enquanto que
outras permanecem latentes. Os preceitos jurídicos têm um
conteúdo virtual que é função do intérprete extrair e desenvolver.
Assim se enriquece e elabora o material jurídico.
Para este fim servem diversos. argumentos lógicos, dos
quais todavia se deve usar com cautela e senso crítico. Podem
valer para tal efeito as directivas que seguem:
1.° Legitimado um fim, legitimados estão os meios indis-
pensáveis para se conseguir esse fim (aplicações no tema das
servidões, art. 639.°). Vice-versa, se o fim é incondicionalmente
proibido, são também ilícitos os meios respectivos.
2.° Quem tem direito ao mais, tem direito ao menos
(argumenttlll1 a maiori ad minus). Se é vedado o menos, deve
sê-lo também o mais (arg. a minori ad maius). Se a disposição
é limitada só a uns tantos casos, para os outros casos não abran-
gidos deve entender-se o contrário (arg. a contrario).
O argumento a contrario 1 é um meio de dedução e desen-
volvimento da lei que deve empregar-se cautamente, pois
nem toda a vez que o legislador exprime uma norma para
1 Para desenvolvimentos veja: THIBAUT - Theorie der logische Ausle-
gung des romischen Rechts «Teoria da interpretação lógica do direito romano»,
págs. I42 e segs.; REGELSBERGER - Pandekten, pág. I 54; COVIELLO - Mamwle,
págs. 8I e segs.
154
um caso determinado ou a título de exemplo, se pode formular
para os outros casos não compreendidos a regra inversa, antes
é certo que nisto mesmo se funda a interpretação extensiva, ao
elevar-se dos casos particulares a um princípio geral.
Para nos servirmos dum argumento a contrario havemos de
estar seguros de que a norma em que nos baseamos deve valer
só para os casos enunciados pela lei; há-de mostrar-se que a dispo-
sição é estabelecida exclusivamente em vista daquelas relações,
coisas ou pessoas que exigem especial disciplina. Só então
será justificado induzir-se uma regra oposta válida para os
outros casos em geral.
O argumento a contrario não é uma forma de interpretação
extensiva, mas sim um

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