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COLECÇÃO CULTURA JURíDICA
MANUEL A. DOMINGUES DE ANDRADE
ENSAIO
SOBRE A
n~RIA DA INnRPR~TA~Á~ DA~ m~
2.' EDIÇÃO
ARMÉNIO AMADO, EDITOR, SUCESSOR - COIMBRA
1 963
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interpretação, aquele que melhor corresponda aos interesses da
vida, - assunto este onde, aliás, é realmente de suma dificul-
dade chegar-se, com pleno conhecimento de causa e verdadeiro
escrúpulo científico no decidir, a pontos de vista duma grande
precisão e firmeza '.
1 Bastante maior segurança pomos nós nas conclusões que adoptamos
quanto ao problema das lacunas, salvo pelo que diz respeito à opinião emitida
na pág. 78 e nota 3 (como aliás se depreendia já do que escrevemos neste último
lugar e também na pág. 90, notas 3 e 4).
COLECÇÃO CULTURA JUR(OICA
FRANCESCO FERRARA
PROfESSOR ORDINÁRIO DE DIREITO CIVIL NA UNIVERSIDADE DE PISA
TRADUZIDO
POR
MANUEL A. D. DE ANDRADE
PROFESSOR DA FACULDADE Dê DIREITO DE COIMBRA
2: EDIÇÃO
ARMÉNIO AMADO, EDITOR, SUCESSOR - COIMBRA
1 963
ESTA OBRA É CONSTITUíDA PELOS CAPÍTULOS III,
IV E V DO «TRATATTO DE DIRITTO CIVILE ITALIANO»,
VOL. I (ROMA, 1921), DO PROF. FRANCESCO FERRARA.
DIREITOS EXCLUSIVOS EM LÍNGUA PORTUGUESA DE
ARMÉNIO AMADO - EDITOR - SUCESSOR
CEtRA - COIMBRA - PORTUGAL
NOÇÕES PRELIMINARES 1
1. - Funções da actividade do juiz 2
o direito opera por comandos abstractos. Mas a reali-
zação forçada destes comandos efectua-se por im.posição judi-
ciária.
O juiz é o intermediário entre a norma e a vida: é o
instrumento vivo que transforma a regulamentação típica
imposta pelo legislador na regulamentação individual das
relações dos particulares; que traduz o comando abstracto
da lei no comando concreto entre as partes, formulado na
sentença. O juiz é a viva vox iuris.
O juiz, porém, está submetido às leis, decide como a lei
ordena, é o executor e não o criador da lei. A sua função espe-
cífica consiste na aplicação do direito 3.
1 Alguma leve indicação do tradutor vai entre aspas.
• HELLVVIG. - Lehrbuch des Civilprozess «Tratado do processo civil», I,
pág. 38 e II, § 91.°. WACH - Handbuch dcs Zivilprozess «Manual do Processo
Civil», pág. 6. CHIOVENDA - Pril1cipi di diritto processuale, pág. 52 e segs.
e 595 e segs. RUMPF - Gesctz und Richtcr «A lei e o juiz», Berlim, 1906,
e em geral todos os escritores que se ocupam da livre descoberta do direito.
«Cfr. infra, n.o 12».
• A autoridade judiciária exerce também. funções administrativas e de
protecção de relações privadas que não são controvertidas. Funções de
documentação ou cooperação na conelusão de negócios jurídicos (adopção,
reconhecimento, prestação de juramento) ou de tutela e vigilância nas relações
privadas (tutela, curatela, pátrio poder, inventários) ou de cooperação com
intuito protectivo na formação ou dissolução de negócios jurídicos (autori-
zação, homologação, etc.).
112
Esta actividade desdobra-se em três operações:
I) Averiguar o estado de facto que é objecto da con-
trovérsia.
II) Determinar a norma jurídica aplicáveL
III) Pronunciar o resultado jurídico que deriva da subsun-
ção do estado de facto aos princípios jurídicos 1.
Tem-se dito que o julgamento é um silogismo em que
a premissa maior está na lei, a menor na espécie de facto e o
corolário na sentença. E isto é verdade, embora se não deva
acreditar que a actividade judicial se reduz a uma simples ope-
ração lógica, porque na aplicação do direito entram ainda
factores psíquicos e apreciações de interesses, especialmente no
determinar o sentido da lei, e o juiz nunca deixa de ser uma
personalidade que pensa e tem consciência e vontade, para se
degradar num autómato de decisões 2.
As tarefas preliminares da actividade judicial são pois:
o apuramento do facto, da relação material a julgar, e a deter-
minação do direito a que o facto está subordinado.
Mas é diversa a posição do juiz com respeito a estes dois
elementos do processo. Na realidade, quanto aos factos o ónus
da prova incumbe às partes, ficando por completo a cargo
delas, como negócio privativamente seu, preparar os mate-
riais que hão-de sustentar o pedido ou a defesa, para se formar
o convencimento do juiz, sem o que este repele a acção ou
a excepção (princípio dispositivo ou da iniciativa das partes 3) j
e quanto ao direito, pelo contrário, é dever profissional do
juiz conhecê-lo (iura novit curia).
1 HELLVVIG. - Lehrbuch, I, pág. 36. CHIOVENDA, Principi, pág. 596.
, RUMPF. - Op. cit., págs. 4 e 39 e segs.
3 O juiz decide segundo allegata et probata, não podendo suprir de
ofício à invocação (rilievo) de factos constitutivos e extintivos, ainda mesmo
que deles tenha notícia particular: o que não está no processo não existe em
direito.
113
o conhecimento do direito é pressuposto no magistrado,
em virtude da função que reveste. O juiz deve em cada caso
achar a norma ou a combinação de normas que se aplica ao
facto concreto; e se para este trabalho as alegações dos inte-
ressados lhe podem fornecer sugestões, o juiz não está vinculado
por elas, uma vez que pode aplicar princípios de direito não
invocados pelas partes e até mesmo princípios de direito qne
as partes concordemente excluiram 1. "
A regra iura novit curia sofre uma limitação aparente no
que toca ao direito estrangeiro, visto que o tribunal pode chamar
em seu alLxílio a cooperação das partes, impondo-lhes o ónus
da prova; mas tem uma função muito diversa da que tem a
prova dos factos, pois o tribunal pode sempre de ofício pro-
curar ou completar o conhecimento das normas aplicáveis.
A tarefa central a que o juiz se dedica é, porém, a deter-
minação do direito que há-de valer no caso concreto. Para
este fim deve levar a cabo três indagações:
1. ') Apurar que o direito existe.
2. a) Determinar o sentido desta norma jurídica.
3. a) Decidir se esta norma se aplica ao caso concreto.
A aplicação das leis envolve, por consequência, uma trí-
plice investigação: sobre a existência da norma; sobre o seu
significado e valor; e sobre a sua aplicabilidade.
Examinemos distintamente estas operações.
1 REGELSBERGER-Palldektm «Pandectas», Leipzig, 1893, pág. 133.
CHIOVENDA - Prillcipi, pág. 596.
8
VERIFICAÇÃO DA EXISTÊNCIA DA NORMA
JURÍDICA
2. - Crítica do texto da lei
A averiguação da existência da lei pode ser formal ou
substancial: uma refere-se à cY{tica do texto da lei; a outra é
atinente ao controlo jurisdicional.
Para se aplicar uma lei, importa verificar que é autêntica,
já no seu complexo, já em cada uma das suas partes. A veri-
ficação da genuidade do texto da lei diz-se crítica. Esta, nos
tempos modernos, tem pouco espaço, dado que as leis são
redigidas em forma escrita e resultam de um documento
público em forma oficial. Texto autêntico é o que resulta
da publicação na Colecção Oficial (Raccolta !ifficiale).
a) Erros materiais do texto:
Todavia pode suceder que este texto se encontre viciado
por incorrecções tipográficas, erros de impressão, mudança de
palavras ou de algarismos, acrescentos ou omissões, pontuação
diversa, transposições, que podem alterar o sentido da dispo-
sição.
Entende-se de plano (da se) que em tais casos a autoridade
encarregada da execução das leis, isto é, o Governo 1, pode
prover à rectificação.
1 O Regulamento sobre a publicação das leis de 1909, no seu art. 17.°,
dispõe: «Caso na impressão se verifiquem erros que possam modificar o signi-
ficado ou o conteúdo do acto, a sua correcção será ordenada pelo tvlinistro
116
Mas fora ou independentemente disto pode a autoridade
judiciária, ao fazer aplicação da lei, rectificar o texto publicado
em modo diverso do original aprovado pelas Câmaras? 1.
É preciso distinguir.
Quando se trata de simples erros materiais que à primeira
vista aparecem como incorrecções tipográficas, ou porque a
palavra inserida no texto não faz sentido ou tem um signi-
ficado absolutamente estranho ao pensamento que o texto
exprime,enquanto a palavra que foneticamente se lhe asse-
melha se encastra exactamente na conexão lógica do discurso,
ou porque estamos em face de omissões ou transposições que
é fácil integrar ou corrigir pelo contexto da proposição - deve
admitir-se que o juiz pode exercer a sua crítica, chegando, na
aplicação da lei, até a emendar-lhe o texto 2.
da Justiça (Ministro Guardasigílli) , quer mediante inserção na Gazeta Oficial,
quer mediante uma errata (errata-corrige) no fim do volume da Colecção••
Nem se julgue que estas incorrecções são raridades, porque, ao contrário,
são por demais assás;frequentes. Assim, só no decreto de 24 de Novembro
de 1919 acerca do imposto extraordinário sobre o património, foi ordenada
a rectificação de nada menos de dez erros e mudanças de cifras (Gazeta Oficial,
17 de Janeiro de 1920, n.o 13).
1 Sobre a questão veja REGELSBERGER, Pandektet1, pág. 138; UNGER
- System des osterreichischen allgemeinem Privatrechts «Sistema do direito pri-
vado geral austríaco., I, pág. 73; BINDING - Handbuch des Strafrechts «Manual
de direito penal», § 98.°, II; PFAFF - HOFMANN - Kommentar zum osterrei-
chischen biirgerlichen Gesetzbuch. «Comentário ao Código Civil austríaco., I,
pág. 174; BIERMANN - Biirgerliches Recht «Direito Civil., pág. 29; DERNBURG
- Das biirgerliches Recht des deutschen Reichs «O direito civil no império alemão.,
§ 22.°, nota 4; e uma decisão do Reichsgericht «Tribunal do Império., 27, 4II,
onde se diz: «o legislador só pode falar uma língua - a da publicação da lei.
Aquilo que da lei se não pode deduzir não é direito legal».
Consulte ainda LUKAS - Fehler im Gesetzgebungysverfahren, 1907 «Vícios
no processo legislativo»; LINDEMANN, no Archiv fiir offentlichen Recht «Arquivo
para o direito público., 14, 145; e ZANOBINI - La publicazione delle leggi,
págs. 267 e sego
, O art. 16.° do Regulamento de 1919 sobre a publicação das leis
diz: «Enquanto se não provar a sua inexactidão, tem carácter de autenticidade
117
Pelo contrário, a solução tem de ser outra quando se trata
de mudanças ou adjunções de palavras ou frases que importam
uma substancial divergência de pensamento, ou determinam
equívoco sobre o sentido da lei, tornando possíveis diferentes
significados da vontade legislativa.
Em tal caso o juiz não pode escolher a dição que lhe pareça
mais racional e correcta, mas está vinculado ao texto da Colecção
Oficial. Incumbirá à parte litigante que invoca o erro, e daí
quer tirar consequências a seu favor, provar a inexactidão do
texto impresso - e pode fazer esta demonstração produzindo
cópia autêntica do original da lei ou decreto, passada pelo
Arquivo Geral do Reino (regulamento de 5 de Setembro
de 1902, art. 74-3) 1.
Toda a vez que assim resulte discordância entre o texto
impresso e o original da lei, o juiz não pode proceder a qual-
quer emenda, mas deve entender-se, relativamente ao ponto
em que a disconformidade se verifi~a, que nenhuma lei chegou
a ter existência jurídica: nem o texto sancionado a que falta
publicação adequada 2, nem o texto publicado que não corres-
e de conformidade com o original e constitui texto legal das leis e decretos
a respectiva edição (stampa) oficial, seja em folhas separadas, seja na Colecção
em volumes, seja na Gazeta Oficial.
Mas é evidente que a prova pode resultar ex se, do próprio texto impresso,
que prima faeie, se patenteia como incorrecto e incongruente, e para tanto
não é necessário o confronto do texto com o original depositado no Arquivo
geral do Reino, demais sendo certo que se não trata de prova de factos, mas
de crítica do texto, para que é competente em primeira linha e pela sua mesma
função o juiz.
1 Note-se, porém, que não se trata de verdadeira prova, mas duma
forma de cooperação das partes na actividade judicial, semelhante à que tem lugar
na prova do costume. Não é de excluir que a Cassação possa, de ofício, requi-
sitar cópia do texto original depositado no Arquivo do Reino.
• Não pode aceitar-se a opinião de BINDING - HaIldbuch, pág. 460,
segundo a qual a ordem de publicação é destinada a tomar conhecido o con-
teúdo do documento original, e portanto mesmo por falsa publicação se
torna lei o texto genuino. O A. explica (n. 6) que em tal caso o real princípio
118
ponde à vontade do poder legislativo. Cai-se, portanto, na
nulidade da norma.
A esta situação só pode trazer remédio uma nova publi-
cação do texto genuíno, ou uma rectificação oficial que, em
substância, outra coisa não é senão uma nova publicação 1,
parcial, que tem eficácia retroactiva.
b) Erros conceituais de redacção ou coordenação:
Dos erros materiais de texto devem separar-se bem os
erros conceituais de redacção ou coordenação - erros na mani-
festação de vontade, cometidos na elaboração das leis, e que
por inadvertência passaram através das discussões parlamen-
tares até ao texto definitivo. Estes deslises podem ser positivos
ou negativos, segundo introduzem no texto palavras ou
frases que não correspondem à vontade reconhecível do
legislador ou omitem outras que, inversamente, lá deviam
estar contidas.
Tais erros fazem parte da lei e têm força vinculante.
O juiz não pode remediá-los, excepto no caso único de a recti-
ficação poder deduzir-se por interpretação do próprio conteúdo
do texto ou da sua conexão com outras normas. Em qualquer
outro caso a correcção só é possível por via legislativa.
A actividade crítica do poder judicial tem mais vasto
campo para se exercitar quando se trata de aplicar leis antigas
- hipótese em que é necessário proceder a investigações histó-
ricas ou paleográficas, podendo o juiz, nesta tarefa, reclamar
o auxílio de peritos.
jurídico não está na lei, mas pertence ao direito lião escrito. A verdade é que
o texto genuíno, não tendo tido publicação conforme, não se tomou lei.
Sobre a questão, veja SONNTAG - RedaktiollSversehell des Gesetzgebers «Lapsos
de redacção do legislado1'>, no Archiv !ür Strafrecht -Arquivo para o direito
penal., 19,291; SCHUHE - ibi., 20, 351; ZANOBINI - La publicaziolle, pág. 282.
1 ZANOBINl - La publicaziolle, pág. 287.
119
Outras vezes a investigação do juiz, sem se engolfar na
diplomática, não é menos difícil e subtil; assim acontece quando
se trata de aplicar princípios de direito comum, vigentes ainda
para certas relações. Em tal caso a determinação da norma
aplicável não pode fazer-se simplesmente com remontar ao
código de JUSTINIANO; é preciso, além disso, ter em conta
todas as modificações e adaptamentos que o princípio romano
sofreu na elaboração doutrinal e na jurisprudência. Trata-se,
portanto, de uma crítica conjectural, de uma selecção avisada
das opiniões dos doutores, o que requer visão segura e profundo
conhecimento das fontes, para se determinar o verdadeiro e
genuino princípio dominante e regulador naquele tempo.
3. - Controlo substancial da existência da lei
Mais importante é hoje o controlo substancial da exis-
tência das leis. Uma norma jurídica existe desde que surgiu
e não se extinguiu ainda. Por isso o poder judicial deve recusar
a aplicação a todas as regras que não têm carácter jurídico, ou
por falta das condições e formas constitucionais para o seu
nascimento, ou por falta de competência e poder na autoridade
que as emanou, ou enfim porque essas normas perderam a
sua eficácia em virtude de abrogação.
Compreende-se como nestas investigações se produzem
contactos entre o poder judicial e o legislativo, e se torna
necessário marcar limites a tais investigações, que poderiam
transformar-se numa ilegítima intrusão de um dos poderes na
esfera do outro.
Faz-se mister distinguir entre o controlo da existência
formal das leis e o controlo substancial do seu conteúdo.
O nosso direito público não admite uma fiscalização sobre
o conteúdo substancial das leis por inconstitucionalidade, como
sucede nos Estados Unidos da América, pois o nosso Estatuto
não representa uma lei inviolável acima dasoutras leis, mas
é apenas uma lei como todas as outras, uma lei que pode ser
120
modificada e abrogada pelas fonuas ordinárias: o poder cons-
tituinte é imanente no poder legislativo. Por consequência,
o verificar-se que uma lei derogou ao Estatuto não é motivo
para lhe infmnar a eficácia, mas só faz constatar um desenvol-
vimento ou modificação da lei constitucional.
Inversamente, cabe ao poder judicial um controlo sobre
a exisdncia formal das leis. Pois que, de facto, lhe cumpre julgar
secundum legem, o poder judicial tem não só o direito como
até o dever de verificar se uma lei existe formalmente, quer
dizer, se estão integradas as condições e formas constitucionais
para que haja uma lei válida.
Se, portanto, há discordância entre os textos aprovados
pelas duas Câmaras, ou entre o texto aprovado pelo Parlamento
e o sancionado e promulgado, não há uma lei, mas uma apa-
rência de lei, a que não pode infundir força nem a sanção régia,
que deve juntar-se à vontade das Câmaras e não substitui-la,
nem o acto da promulgação, que anuncia a existência da lei
e ordena a sua execução, mas cuja eficácia é subordinada à
integração efecti~a dos elementos da existência da lei, e prin-
cipalmente à aprovação do Parlamento.
Todavia este ponto é objecto de controvérsia na doutrina 1.
1 A questão foi debatida em Itália, a propósito da lei pautal de 30 de
Janeiro de 1878, que no seu art. 96.• estabelecia sobre os tecidos de algodão
lavados (imbiam:hiti) um direito superior em 20% ao que recaía sobre os
tecidos brutos ou virgens (greggi) , o que correspondia ao projecto aprovado
pelo Senado, enquanto que a Câmara dos Deputados tinha votado só 15%.
Veja Cassação de Roma, 20 de Junho de 1886, (Foro Italiano, 1886, I, 705).
A doutrina dividiu-se: alguns sustentaram a ineficácia da disposíção
legislativa e a admissibilidade do sindicato ou controlo da autoridade judi.
ciária, outros, às avessas, a impossibilidade de todo o controlo judici:ú:io.
Pela primeira opinião veja: ORLANDO - Teoria generale delle guarantigie della
libertà, pág. 966; CAMMEO- Legge e ordinanza, n.· 25. FADDA e BENSA, ad
WINDSCHEID -- Diritto delle pandette, I, pág. 107; RANELLETTI - Principi di
diritto amministrativo, n, pág. 342; UGO - Le leggi incostituzionali, pág. 106;
GABBA, no Foro italiano, 1886, 705; LESSONA - La legalità della norma e ii potere
121
Opõe-se que o acto de promulgação é uma atestação
solene do chefe do estado sobre a constitucionalidade formal
da lei, que tem o valor duma sentença ou dum acto público,
cuja fé não pode ser impugnada perante os tribunais; que a
promulgação é o único meio formal para constatar a existência
f da lei; e que emanando do poder legislativo é insindicável
pelo poder judicial. E demais, acrescenta-se, deve em.
qualquer caso ser vedado aos juizes o investigarem sobre
o período de formação interna da lei, para se não criarem
conflitos e fiscalizações que diminuem a autonomia do poder
legislativo.
Estes argumentos não são decisivos. Ou se considere a
promulgação um acto que o Rei pratica como chefe do poder
legislativo, ou um acto em que o Rei funciona como chefe do
Governo, de toda a maneira a promulgação não tem de per si
a qualidade de acto legislativo subtraído ao controlo judiciário.
Inautorizada é a comparação que se quer instituir entre
promulgação e sentença, porque o Rei ao promulgar a lei
não decide processo algum, nem se pronuncia causa cognita,
depois de ter examinado a observância das formas constitu-
cionais da lei, como ex adverso se pretende.
E menos se pode induzir a insindicabilidade da promul-
gação do considerar-se esta um acto público, porque a publici-
dade dos actos estaduais tem carácter diverso do da publicidade
giudiziario, (Florença, 1900). Opostamente, negam à autoridade judiciária o
direito de contestar a constitucionalidade formal da lei, em contradição com
o acto de promulgação: ARMANNI, no Foro Italiano, 1890,1, 1I06; SCHANZER,
na Legge, 1894, II, 610. ROMANO, no Archivio giuridico, 1905, 48; CRISCUOLI
- La promulgazione, pág. 76 e seg., (Nápoles, 191I); ZANOB1NI - La publi-
cazione, pág. 276. Ao mesmo resultado de negar todo o controlo judiciário
chega MORTARA - Comentário dei Códice e delle leggi de procedura civile, 1,
n.· 112, argumentando, porém, com a sanção, que no seu entender é o acto
aperfeiçoador da lei, que lhe confere a patente (brevetto) de constitucionali-
dade externa. No mesmo sentido veja ainda VENZ1, ad PAClFICl MAZZONI
- Istituzioni di diritto civile italiano, 1, 60 e sego
122
dos negoclOs privados r, e, em particular, a circunstância de
tal acto emanar do Rei como chefe do poder legislativo
não o torna imune de vícios e de impugnativas. A promul-
gação, com efeito, não serve para completar a lei, não é o último
estádio do seu processo de formação, mas _pres_sl1P-ª~ lei já
formada. É um documento que atesta solenemente ;;- exis-
tência da lei, mas esta atestação deve corresponder à verdade,
deve ter o seu fundamento num acto legislativo real; de outro
modo a lei não deveria o seu nascimento ao poder legislativo,
mas ao acto régio de promulgação.
E assim volta a questão: o juiz quando aplica as leis deve
conhecer da sua existência só através da promulgação, ou pode
levar mais longe o seu exame, constatando que a promulgação
se apoia num erro 1
Assevera-se que a promulgação é o único meio para cons-
tatar a existência das leis, mas este o thema probandum!
Em conclusão, pode observar-se que, na falta de uma
disposição explícita, também esta acto solene é susceptível de
crítica e revisão, 'c e quando se constata que ele repousa sobre
um equívoco a autoridade judiciária negará reconhecimento
a esta larva de lei que não veio à existência nas formas consti-
tucionais.
Todavia o seu controlo cifra-se em averiguar da existência
exterior dos elementos da lei: aprovação dos órgãos legislativos,
promulgação, publicação; e não pode penetrar no vestíbulo
interno da formação da lei, para inquirir da observância das
1 É de consentir a CRISCUOLI - La promulgaziol1e, pág. 81, que acto
público em direito constitucional tem significado diverso do que tem no
direito privado. Sucede todavia que os Autores contrários procuram jogar
com o equívoco, deduzindo do princípio privatístico de que o acto notarial.
faz fé sobre aquilo que nele se atesta a irrevogabilidade da promulgação.
Mas, pondo-se neste terreno, replica justo COVIELLO - Manuale di diritto
civile italiano, pág. 62, que o oficial público atesta de modo inopugnável
aquilo que se passa na sua presença, enquanto que o Rei não pode fazer fé
plena da aprovação das Câmaras, que tem lugar sem o seu concurso.
123
regras de processo das Câmaras, na discussão e votação, sobre
o número legal, a capacidade dos representantes para votar,
e outras análogas. Estas normas dizem respeito ao funciona-
mento interno das assembleias, são iura interna corporis de carácter
autonómico, que fogem às indagações do poder judiciário.
Por conseguinte, o poder de investigação do juiz não vai além
do resultado da aprovação, além do voto fmal que põe termo
ao processo legislativo interno, sem indagar da forma e do
processo por que se chegou a este resultado.
A fiscalização jurisdicional exercita-se ainda nos casos de
delegação legislativa, tendo por objecto então o examinar se
as disposições emanadas pelo Governo entram na esfera de
poder que lhe foi assinada pela lei de delegação. É natural,
de facto, que as normas emanadas pelo poder executivo, quando
exorbitam da delegação, sejam privadas de força jurídica 1.
Mais duvidosa se apresenta a questão da sindicabilidade
dos decretos-leis.
Uma forte corrente doutrinal contesta a legitimidade
deste processo de que o Governo se serve em circunstâncias
extraordinárias ou de urgência, e por isso nega que tais decretos
possam achar aplicação nos tribunais. Outros, pelo contrário,
subordinam a sua validade à verificaçãoconcreta, por parte
da autoridade judiciária, das condições excepcionais em que
esses diplomas foram emanados.
Deve regeitar-se esta última opinião que levaria a intro-
meter-se o poder judicial em indagações de carácter político
para as quais não tem competência; mas tão pouco é de seguir
afoitamente a tese rigorosa da ineficácia dos decretos-leis.
1 Como decisão mais recente, veja Cassação de Roma, 2r de Agosto
de 1907, (Foro italiano, r907, r, 1304). O poder de sindicato judiciário foi
admitido até no caso de concessão de plenos poderes, durante a guerra actual
para controlar se o Governo excedeu ou não os limites desta delegação. Veja
Apelação de Génova, 13 de Junho de 1919 (Foro italiano, 1919, r, IlrS).
124
Na verdade, sendo certo que do ponto de vista político
não se pode negar ao Governo o direito de em condições de
urgência se antecipar ao poder legislativo, fazendo-se uma
espécie de gestor de negócios deste, resulta que os decretos-leis
hão-de considerar-se como leis potenciais, dependentes de apro-
vação, e que tal aprovação opera com eficácia retroactiva.
E pois que deve partir-se do princípio de que a actuação
governativa tem carácter legítimo, e portanto deve presmnir-se
que será. ratificada pelo poder legislativo, à autoridade judi-
ciária cumpre, em vista deste normal pressuposto, dar apli-
cação ao decreto-lei, salvo ficando o recusar-lhe eficácia se
vier a ter lugar a desaprovação do poder legislativo.
Mais rigoroso se exercita o controlo sobre os regulamentos
administrativos, a que a autoridade judiciária dará aplicação
só enquanto forem conformes as leis. (Lei sobre o contencioso
administrativo, art. 5.°).
A actividade regulamentar deve mover-se dentro de
limites precisos, ~ não só não pode pôr-se em contradição com
a lei, mas não pode também formular princípios novos, que
apenas ao legislador compete pronunciar. Um regulamento
pode ser contra ou praeter legem. Mais interessante é o segundo
caso.
O regulamento não pode sair da esfera discricionária que
lhe é assinada pelo direito vigente (leis gerais ou lei de autori-
zação) e não pode ditar normas estranhas ou exorbitantes daquela
faculdade discricionária. Independentemente disto, transcende o
poder discricionário toda a norma que limita direitos de liber-
dade ou impõe encargos financeiros ou inflige penas, salvo
se houver uma delegação conferida por lei. E quando se trate
de regulamentos de execução, além destas restrições um limite
imediato se encontra na lei mesma para cuja execução o regula-
mento foi expedido. De facto o regulamento poderá desen-
volver, concretizar, dar regras de detalhe sobre as formas e
modos de actuação da lei, mas não pode introduzir princípios
125
autónomos novos que não derivem das prescrições da lei c,
muito menos, que as contradigam. A autoridade judiciária
em tais circunstâncias não infirma por nulidade o regulamento;
apenas no caso concreto se nega aplicar a nornla ou as normas
que resultam inconstitucionais.
Mas não basta estabelecer que uma norma jurídica nasceu
em forma regular; ocorre igualmente saber se ela está cm vigor,
se, isto é, não foi mudada ou suprimida por uma norma pos-
terior. A tal propósito deve ter-se em conta a teoria da abro-
gação das leis «veja infra, n.O 16».
O que se disse para as normas legislativas, vale também
para os costumes, onde forem reconhecidos. O juiz não pode
aplicá-los sem primeiro veriftcar a sua existência, apurando os
elementos de que resultam, e a sua não cessação por efeito de
desuso ou de usos contrários, ou mediante abrogação por via
legal.
II
DETERMINAÇÃO DO SENTIDO
DAS NORMAS JURÍDICAS. INTERPRETAÇÃO 1
4. - Ideias gerais
Mas a actividade central que se desenvolve na aplicação
da norma de direito é a que tem por objecto a interpretação.
O texto da lei não é mais do que um complexo de palavras
escritas 2 que servem para uma manifestação de vontade, a casca
1 Da vastíssima literatura sobre o argumento bastará recordar os tra-
balhos fundamentais: SAVIGNY - Sl'stelll des heutigen rOl11ischen Rechts «Sis-
tema do direito romano hodierno», I, § 32.'°; UNGER - Sl'stem, I, § 10.°;
BINDING - Strafrecht, pág. 450. W ACH - Hmzdbuch, pág. 50; KOHLER - Ueber
die Illterpretation Von Gesetzen «Sobre a interpretação das leis» na Grützlmt's
Zeitschrift für das privat und offentlichen Ihering's «Revista de Grunhut para
O direito privado e público» 1896, e nos Ihering' s Iahrbücher ftir Dogmatik
«Anuários de Iherillg para a dogmátic<l» 25, 270; BüLOw - Gesetz und Rich-
teramt «A lei e a fWlção do juiz», Leipzig, 1885; KRAus-Die leitende Grandsiitze
der Gesetzinterpretation «Os princípios directivos da interpretação das leis», na
Grüuhut's Zeitschrift, 32; GÉNY - Méthode d'interpretatioll ft sourees ell droit
prifJé positif, Paris, 1899; BRÜTT - Die Kunst der ReclttsallUJendullg «A arte
da aplicação do direito», Berlim, 1907; SCIALOJA - SuIla teoria deIla illter-
pretaziolle deIle leggi, nos sttldi per Scltupfer, III; DEGNI, L' interpretazione deIle
leggi, 2.' ed., Nápoles, 1909; ALFREDO Rocco - L'iuterpretazi01Je deIle leggi
processuali, no Arcltivio Giuridico, 1906, pág. 91 e seg.; SCIALOJA (ANTÓNIO)
- Le fonti e l'interpretazione deI diritto commerciale, 1907; CARNELUTTI - Criteri
d'interpretazione deIla legge sugli Ítlfortuni nel lavora, nos Sttldi sllgli infortllni,
voI. I; ROMANO - L'interpretazione deIle leggi di diritto publico, no Filangieri,
99, 242 e segs.; FADDA e BENSA, ad WINDSCHEID - Palldette, I, rr8 e segs.;
SALEILLES - Ifattori d'illterpretazione giuridica, Corte Napoli, 1903.
• Em forma paradoxal SCHLOSSMANN - Der Irrttlln über UJesentlichen
Eigmschaften. «Erros sobre qualidades essenciais», pág. 27, chama à lei lima
folha de papel impresso, uma combinação de papel com sinais negros! Mas
128
exterior que encerra um pensamento, o corpo de um conteúdo
espiritual.
A lei, porém, não se identifica com a letra da lei. Esta
é apenas um meio de comunicação: as palavras são símbolos
e portadores de pensamento, mas podem ser defeituosas. Só
nos sistemas jurídicos primitivos a letra da lei era decisiva,
tendo um valor místico e sacramental. Pelo contrário, com
o desenvolvimento da civilização, esta concepção é aban-
donada e procura-se a intenção legislativa. Relevante é o
elemento espiritual, a voluntas legis, embora deduzida através
das palavras do legislador.
Entender uma lei, portanto, não é somente aferrar de
modo mecânico o sentido aparente e imediato que resulta
da conexão verbal; é indagar com profundeza o pensamento
legislativo, descer da superfície verbal ao conceito íntimo que
o texto encerra e desenvolvê-lo em todas as suas direcções
possíveis: Scire leges 11011 !toe est verba earum tenere, sed vim ac
potestatem (17,Dig. 1, 3).
A missão do intérprete é justamente descobrir o conteúdo
real da norma jurídica, determinar em toda a plenitude o .seu
valor, penetrar o mais que é possível (como diz WINDSCHEID) 1
na alma do legislador, reconstruir o pensamento legislativo.
Só assim a lei realiza toda a sua força de expansão e repre-
senta na vida social uma verdadeira força normativa.
De interpretação fala-se em sentido amplo e em sentido
estricto. No sentido estricto, a interpretação consiste em deter-
minar a significação da lei e desenvolver o seu conteúdo em
todas as direcções; no sentido amplo, a interpretação com-
preende também a analogia, isto é, a elaboração de normas
novas para casos não contemplados, induzidos de casos afms
não se adverte que estes sinais de escrita são a expressão dum pensamento
e duma vontade.
1 Pandekten, 324, pág. 99·
129
regulados pela lei. Na analogia o trabalho do jurista move-se
numa esfera mais alta, mas não se transforma em criação do
direito, porque fica sempre vinculado à lei.
A actividade interpretativa é a operação mais difícil e
delicada a que o jurista pode dedicar-se, e reclama fino tacto,
senso apurado,intuição feliz, muita experiência e domínio
perfeito não só do material positivo, como também do espí-
rito de uma certa legislação.
Cumpre evitar os excessos: duma parte o daqueles que
por timidez ou inexperiência estão estrictamente agarrados ao
texto da lei, para não perderem o caminho (e muitas vezes
toda uma era doutrinal é marcada por esta tendência, assim
acontecendo com a época dos comentadores que se segue ime-
diatamente à publicação dum código); por outro lado, o perigo
ainda mais grave de que o intérprete, deixando-se apaixonar
por uma tese, trabalhe de fantasia e julgue encontrar no direito
positivo ideias e princípios que são antes o fruto das suas locubra-
ções teóricas ou das suas preferências sentimentais.
A interpretação deve ser objectiva, equilibrada, sem paixão,
arrojada por vezes, mas não revolucionária, aguda, mas sempre
respeitadora da lei.
Aplica-se a interpretação a todas as leis, sejam claras ou
sejam obscuras " pois não se deve confundir a interpretação
com a dificúldade da interpretação.
A inteligência dum texto pode sair mais ou menos fácil,
e de resto a facilidade depende da pessoa que interpreta, mas
isto não tira que a lei se apresente sempre como um texto
rígido que deve ser reavivado e iluminado no seu sentido
1 Sobre a insidiosidade da máxima: ln claris non fit interpretatio, veja-se:
MORTARA - Comentaria, I, 72; FADDA e BENSA, ad WINDSCHElD - Pandette, 1,
167; FERRINI, ad GLUCK, Pandette, l, 167, nota (a). O mérito da dilucidação
deste ponto cabe a SAVIGNY - Systell1, 1, 207 e segs.
130
interior pela actividade interpretativa. Pelo contrano, as leis
claras oferecem o perigo de serem entendidas apenas no sentido
imediato que transluz dos seus dizeres, enquanto que tais normas
podem ter um valor mais amplo e proflmdo que não resulta
das suas palavras.
A interpretação juridica não é semelhante à interpretação
hist6rica ou jilo16gica, que se aplica aos documentos e que esgota
a sua missão quando acha um dado sentido histórico, sem
curar depois se é exacto ou não, harmónico ou contraditório,
completo ou dificiente. Mirando à aplicação prática do direito,
a interpretação jurídica é de sua natureza essencialmente teleo-
16gica 1.
O jurista há-de ter sempre diante dos olhos o fim da lei,
o resultado que quer alcançar na sua actuação prática; a lei
é um ordenamento de protecção que entende satisfazer certas
necessidades, e deve interpretar-se no sentido que melhor res-
ponda a esta fmalidade, e portanto em toda a plenitude que
assegure tal tutela.
A interpretação é actividade cientljica livre, indagação
racional do sentido da lei, que compete aos juristas teóricos
e práticos 2.
Devendo aplicar-se a lei, todos os cultores do direito cola-
boram para a sua inteligência, e os resultados a que chegam
podem ser vários e diversos. Não se pode afirmar a priori
como absolutamente certa uma dada interpretação, embora
1 KRAus - Die leítende Grundsiitzen, na Grünhut's Zeitschri[t, 32, 616;
RADBRUCH - Rechtswissenscha[t ais Rechtsschopfung «A ciência jurídica como
criação do direito», no Archiv für sozialwissenscha[t «Arquivo para a ciência
social», 22, 355; WAcH-Handbuch, pág. 257.
• Distingue-se ordinàriamente a interpretação em doutrinal, judicial
e legal ou autêntica, segundo emana dos escritores, dos juízes ou da lei. Esta
última forma não é interpretação.
131
consiga num dado momento o aplauso mais ou menos incon-
trastado da doutrina e da magistratura. A interpretação pode
sempre mudar quando se reconheça errónea ou incompleta.
Como toda a obra científica, a interpretação progride, afina-se.
A interpretação é uma actividade única complexa, de
natureza lógica e prática, pois consiste em induzir de certas
circunstâncias a vontade legislativa, Com respeito a tais cir-
cunstâncias é uso distinguir a interpretação em literal ou lógica,
conforme se procura determinar o sentido da lei através da sua
formulação verbal ou do seu escopo, mas a interpretação gra-
matical também é lógica, uma vez que pretende inferir logi-
camente das palavras o valor da norma juridica.
Não há várias espécies de interpretação. A interpretação
é única: os diversos meios empregados ajudam-se uns aos
-outros, combinam-se e controlam-se reciprocamente, e assim
todos contribuem para a averigua~ão do sentido legislativo.
5. - A chamada interpretação autêntica 1
Além da interpretação científica, os escritores falam duma
interpretação usual ou legal, quando a determinação do sentido
duma norma ocorre por via de costume ou por força de outra
lei. Esta última chama-se precisamente interpretação autêntica.
É de negar, porém, que se trate aqui de verdadeira inter-
pretação.
1 BREMER - Die autentische Interpretation «A interpretação autêntica»,
no Iahrbuch des gemeinen deutschen Rechts «Anuário do direito comum alemão»,
1858, 245; GOPPERT, nos Ihering' s Iahrbücher, 22, 3; ISAMBERT - De l'inter-
pretation législative, na Revue de législation et jurisprudence, 1835, 241; CAMMEO
- L'interpretazione autentica, na Giurisprudenza italiana, 1907, IV, 305 e segs.;
MORTARA - Come11tario, I, 74; MORELLl- La funzione legislativa, Bolonha,
1893, págs. 359 e segs.; Relazione Zucconi ai II Congresso dei magistratti italiani,
Nápoles, 1913.
132
A prescindir da interpretação consuetudinária, que no
nosso sistema positivo carece de força vinculante, porque os
usos têm uma posição subordinada à lei e valem só nos casos
em que são reconhecidos, também a interpretação autêntica
vale menos como interpretação, tirando eficácia da lei antiga,
do que como lei nova com força própria, mesmo que seja
uma lei meramente reprodutiva da anterior. Análogas, se
bem que distintas, são as leis confirmativas e as rectificativas.
Em outros tempos a interpretação da lei era considerada
como função exclusiva do legislador, o qual curava de escla-
recer as dúvidas e as obscuridades que se descobriam na aplicação.
Em certo país até chegou a instituir-se uma comissão legislativa
permanente, a que os Tribunais deviam enviar as suas dúvidas,
sobre as quais ela se pronunciava com eficácia vinculante.
Este sistema foi abandonado; mas de quando em quando, por
razões de oportunidade, publicam-se leis destinadas a aclarar
e especificar o sentido de outra lei.
É interpretativa toda a lei que, ou por declaração expressa
ou pela sua intenção de outro modo exteriorizada, se propõe
determinar o sentido de uma lei precedente, para esta ser
aplicada em conformidade. Observe-se que tal escopo da lei
interpretativa é essencial, porque nem toda a decisão legal de
uma controvérsia preexistente, nem toda a dilucidação de outra
lei há-de considerar-se como interpretação autêntica, bem
podendo suceder que o legislador tenha querido sàmente
afastar dúvidas para o futuro, sem pretender que a nova lei
se considere como conteúdo· duma lei passada. O conceito
de interpretação autêntica está expresso no preâmbulo da
Novela 143: «Quam interpretationem non in futuris tantummodo
casibus VERUM lN PRAETERlTIS etiam valere sancimus, tamquam
si nostra lex ab initio cum interpretatione tali a nobis promulgata
fuisset».
Não estamos em face duma interpretação autêntica, quando
se regula só para o futuro ou se completa qualquer lacuna duma
lei precedente.
133
A interpretação autêntica tem, por certo, de comum com
a interpretação doutrinal o seu fim, a saber, a determinação
do sentido duma norma jurídica; mas ao passo que a inter-
pretação doutrinal o procura livremente, deduzindo-o da
letra e das razões, e vale só na medida em que corresponde à
vontade legislativa real, a interpretação autêntica, pelo contrário,
declara formal e obrigatàriamente o sentido de uma lei anterior,
prescindindo de que este se ache efectivamente contido na 1ei
interpretada 1.
É frequente acontecer que sob a forma de interpretação
autêntica, em vez de reproduzir em termos mais claros e pre-
cisos a lei antiga,o legislador se desvia conscientemente dela,
modificando-a, ou que nem sequer toma em conta o seu sen-
tido originário - especialmente se este já se não pode descobrir,
como tem lugar quando se interpretam leis velhas de muitos
séculos - e introduz um princípio novo, que injecta e transfunde
na lei antiga, fingindo que tal foi ~ sentido originário 2.
Daqui deriva a característica das leis interpretativas, isto é,
a sua eficácia retroactiva. Desde que o princípio contido na
lei interpretativa deve considerar-se como Ínsito na lei inter-
pretada, conclui-se que todas as relações jurídicas anteriores,
mesmo que sejam objecto dum litígio pendente, deverão ser
julgadas consoante a nova lei declarativa, e por isso a sentença
de primeira instância ou a proferida em grau de apelação, ainda
que esteja conforme ao significado exacto da lei antiga, deverá
ser reformada ou cassada, quando se mostre em oposição com a
lei interpretativa. Só não são atingidas por esta lei as contro-
vérsias já encerradas por uma sentença passada em julgado ou
por transacção 3.
1 SELIGMANN - Der Begríff des Gezetzes «O conceito da lei». págs. 151
e segs.
2 COVIELLO - Manuale, pág. 68.
2 ENNECCERUS - Lehrbuch des bürgerlíche11 Rechts «Tratado de Direito
Civil", I, pág. 145; CAMMEO - op. cit., pág. 309 e segs.
134
Disto resulta que a chamada interpretação autêntica 1 não
é verdadeira interpretação, mas funda a sua eflcácia de modo
autónomo na declaração de vontade do legislador: é uma lei
com efeito retroactivo 2. (Veja o Estatuto, art. 73.°). E por
isso deve emanar de um órgão que possa derogar à norma
interpretada: assim uma lei não pode ser interpretada senão
por outra lei, um regulamento por outro regulamento ou por
uma lei, etc.; mas o costume não pode ter força de interpre-
tação autêntica.
6. - Objecto da interpretação: «voluntas Legis, non
legislatoris»
A fmalidade da interpretação é determinar o sentido objec-
tivo da lei, a vis ac potestas legis. A lei é expressão da vontade
do Estado, e tal vontade persiste de modo autónomo, desta-
cada do complexo dos pensamentos e das tendências que ani-
maram as pess9as que contribuíram para a sua emanação.
O intérprete deve apurar o conteúdo de vontade que alcançou
expressão em forma constitucional, e não já as volições alhures
manifestadas ou que não chegaram a sair do campo intencional.
Pois que a lei não é o que o legislador quis ou quís exprimir,
mas tão somente aquilo que ele exprimiu em forma de lei 3.
1 Sobre as várias leis interpretativas publicadas na Itália, veja um
elenco em STOLFI - Diritto Civile, pág. 590, nota 3; mas os casos aí recor-
dados não são todos seguros, alguns, pelo contrário, sendo de excluir, como
sucede com o do art. 28.0 da lei de 19 de Junho de 1873 que, segundo pensamos,
não se pode dizer que tenha interpretado os arts. 773.0 e 829.0 do Código
Civil.
• O direito canónico tem um conceito especial de interpretação autên-
tica: Veja o Codex iuris canonici, cânone 17, § 2.0 •
1 SCHLOSSMANN - Der 1rrtum über wesentl. Eígenschaften, pág. 26.
Veja-se também KOHLER - Lehrbuch, 20: o que pelo medium da palavra não
penetrou no texto não se tomou lei, ficou em simples tentativa sem força
jurídica.
135
Por outro lado, o comando legal tem um valor autónomo
que pode não coincidir com a vontade dos artíftces e redactores
da lei, e pode levar a consequências inesperadas e imprevistas
para os legisladores. Como diz THOL 1, pela sua aplicação a
lei desprende-se do legislador e contrapõe-se a ele como um
produto novo, e por isso a lei pode ser mais previdente do que
o legislador.
A vida jurídica todos os dias oferece ocasião para' se
tirarem novos princípios das palavras da lei que subsistem de
modo autónomo como vontade objectivada do poder legis-
lativo. Especialmente à medida que a lei se vai afastando da
sua origem, a importância da intenção do legislador vai afrou-
xando até se dissolver: o intérprete tardio acha-se imbuído de
mudadas concepções jurídicas, e com isto a lei recebe um signi-
ficado e um alcance diverso do que originàriamente foi querido
pelo legislador. Mas com isto não se veriftca, como pensa
REGELSBERGER 2, um desvirtuamento ou uma adulteração incons-
ciente da lei, devida à acção do tempo; há somente uma diversa
apreciação e projecção do princípio no meio social.
O ponto directivo nesta indagação é, por consequência,
que o intérprete deve buscar não aquilo que o legislador quis,
mas aquilo que na lei aparece objectivamente querido: a mens legis
e não a mens legis la toris.
Ao invés, a antiga concepção dominante ensinava que a
função do intérprete consiste em procurar a vontade do legis-
lador 3, e por isso tinha em alta consideração os trabalhos
preparatórios, reputando-os quase uma fonte autêntica de
interpretação.
Mas contra isto foi observado que nos sistemas constitu-
cionais hodiernos não se descobre um legislador em cujo ânimo
1 Das Handelsrecht "O direito comercial», Introdução, pág. ISO.
• Pandekten, pág. 144.
3 Ueber die 1nterpretation der Gesetze, na GrUnhI//'5 Zeitschrifi, 1886, 20.
136
se possa penetrar ou cuja vontade se possa indagar: na formação
da lei cooperam multíplices factores, uma pluralidade de pessoas,
vàriamente ordenada, pelo que a rigor a lei é o resultado duma
vontade colectiva, a síntese da vontade de órgãos estaduais diversos.
E precisamente em virtude desta colaboração, e porque
entre os que participam na elaboração da lei subsistem correntes
espirituais várias, opiniões e motivos não coincidentes, e por
vezes mesmo têm lugar transacções ele teúdências para se chegar
a um acordo, não é possivel falar duma intenção real do legis-
lador.
O legislador é uma abstracção 1. A lei, diz KOHLER, deve
conceber-se como um organismo corpóreo penetrado por um
impulso espiritual. q elemento corpóreo é a palavra da lei,
pois que a palavra não--é simplesmente o meio de próva, mas
o veiculo necessário, o substracto do conteúdo espiritual, não
é só revelação, mas realização do pensamento legislátivo.
A obra legislativa é como uma obraârtística em qué a
obra de arte e a concepção do criador não coincidem. Também
o conteúdo espiiitual da lei não coincide com aquilo que dela
pensam os seus artífices :naleCesiisempre um fundo, de insco~~:::
ciente e apenas suspeitada vida espiritual, em que repousa o
trabalho mental de séculos.
E assim _chegamos à objectivação da lei. A lei deve inter-
pretar-se em si mesma, como incorporando um pensamento
e uma vontade própria. A interpretação consiste em declarar
não o sentido histórico que o legislador materialmente ligou ao
piincípio,(mas o sentid0'l~e ali está imanente e vivo., Eis o
que, precisamenfê~ se quer exprimir com a fórmula metafó-
1 WÜRZEL - Das Juristische Denken «O pensamento jurídico., págs. 46
e segs.: A vontade do legislador é uma grandeza variável, um reservatório
em que estão sepultadas as contradições. Mas quem é o legislador 1 Será
o Parlamento 1 Se assim fosse teria de admitir-se que o Parlamento era um
jurista de profissão, capaz de conhecer o título e o imenso conteúdo das leis
emanadas. O legislador é entidade que em parte alguma se descobre - é uma
figura mística, indeterminada.
137
rica - vontade da lei. Esta fórmula não pretende significar que
a lei tem um querer no sentido psicológico, mas apenas que
encerra uma vontade objectivada, um querido (voluto) inde-
pendente do pensar dos seus autores, e que recebe um sentido
próprio, seja em conexão com as outras normas, seja com
referência ao escopo que a lei visa alcançar.
O jurista há-de ter sempre diante dos olhos o escopo da
lei, quer dizer, o resultado prático que ela se propõe consegulr.
A lei é um ordenamento de relações que mira a satisfazer certas
necessidades e deve interpretar-se no sentido que melhor res-
ponda a esta finalidade, c portanto em toda a plenitude que
assegure tal tutela.
Ora isto pressupõe que o intérpretenão deve limitar-se
a simples operações lógicas, mas tem de efectuar complexas
apreciações de interesses, embora dentro do âmbito legal!
E daqui a dificuldade da interpretação, que não é simples arte
linguistica ou palestra de exercitações lógicas, mas ciência da
vida e metódica do direito.
Visto o carácter objectivo do sentido da lei, conclui-se
que esta pode ter um valor diferente do que foi pensado pelos
seus autores, - que pode produzir consequências e resultados
imprevisíveis ou, pelo menos, inesperados no momento em
que foi feita, e por último que com o andar dos tempos o prin-
cípio gaúha mais amplo horisonte de aplicação, estendendo-se
a relações diversas das originàriamente contempladas, mas que,
por serem de estrutura igual, se subordinam ao seu domínio
(fenómeno de projecção) 1.
1 Sobre isto veja-se WÜRZEL - Das juristische Denken, pág. 43: «Muitas
vezes acontece que uma norma é ditada tendo-se presente um certo estado de
facto, mas essa norma será também aplicável a relações que, embora origi-
nàriamente não previstas, têm, no entretanto, a mesma estrutura que as pri-
meiras: o antigo conceito projecta-se sobre novos fenómenos».
O A. recorda o caso duma disposição penal contra os falsificadores
de dinheiro, emanada num tempo em que no país não havia outra moeda
senão a metálica: se depois se introduz o papel moeda, será aplicável a mesma
138
7. - Método de interpretação
Para apreender o sentido da lei, a interpretação socorre-se
de vários meios.
Em primeiro lugar busca reconstruir o pensamentos legis-
lativo através das palavras da lei, na sua conexão linguística e
estilística, procura o sentido literal. Mas este é o grau mais
baixo, a forma inicial da actividade interpretativa. As palavras
podem ser vagas, equívocas ou deficientes e não oferecem
nenhuma garantia de espelharem com fidelidade e inteireza o
pensamento da lei: o sentido literal é apenas o conteúdo poss{vel
da lei: para se poder dizer que ele corresponde à mens legis,
é preciso sujeitá-lo a crítica e a controlo.
E deste modo se passa bem cedo à interpretação lógica,
que quer deduzir de outras circunstâncias o pensamento legal,
isto é, de elementos racionais, sistemáticos e históricos, que
todos convergem para iluminar o conteúdo do princípio.
A interpretação lógica, porém, não deve contrapor-se rasga-
damente à interpretação linguística: não se trata de duas opera-
ções separadas, porque além de terem ambas o mesmo fim,
realizam-se conjuntamente - são as partes conexas de uma só
e indivisivel actividade 1.
disposição. Ou o caso duma disposição que fala de moinhos movidos por
força mecânica, publicada num tempo em que só havia moinhos de vento
ou de água,· a qual disposição será de aplicar também aos moinhos a vapor,
a electricidade, etc.
Um exemplo típico de projecção jurídica no nosso direito, que foi
admitido pela jurisprudência, refere-se à disposição da lei sobre pensões que
concedia a reversibilidade da quota de pensão para os fIlhos menores do empre-
gado: essa disposição foi ampliada aos fIlhos da mulher empregada, não obstante
resultar que na época da formação da lei o legislador pensava exclusivamente
na prinleira hipótese. Veja a magistral sentença do Tribunal de Contas,
de 15 de Novembro de 1913, no Foro Italiano, 1913, m, 68, com nota de
VENEZIAN.
1 UNGER - System, I, pág. 79; REGELSBERGER - Pandekten, pág. 145.
139
a) INTERPRETAÇÃO LITERAL (GRAMATICAL, LINGuíSTICA,
VERBAL).
A interpretação literal é o primeiro estádio da interpre-
tação. Efectivamente, o texto da lei forma o substracto de
que deve partir e em que deve repousar o intérprete. Uma
vez que a lei está expressa em palavras, o intérprete há-de
começar por extrair o significado verbal que delas resu1ta,
segundo a sua natural conexão e as regras gramaticais.
•_Q. __s~!1!igo <las palavras estabelece-se com base no uso lin-
guístico, o qual pode ser diverso conforme os lugares e os vários
- círculos profissionais. Normalmente as palavras devem enten-
der-se no seu sentido usual comum, salvo se da conexão do
discurso ou da matéria tratada derivar um significado especial
técnico. É o que se verifica quando se trata de matérias ou de
institutos que têm entre os interessados uma terminologia par-
ticular (direito marítimo, contratos de bolsa, regime das águas,
certas espécies de venda, etc.).
Acontece também que no direito algumas palavras reves-
tem uma acepção técnica que não coincide nem corresponde
ao seu significado popular. Assim as palavras posse, usufruto,
boa fé, diligência, hipoteca, caso fortuito, legado e semelhantes.
Em tal caso deve escolher-se, na dúvida, a significação técnica
jurídica, pois é de presumir que o legislador usou das palavras
com plena reflexão, e portanto se serviu delas no seu significado
técnico, de preferência ao vulgar.
Pode existir, finalmente, um uso linguistico individual do
próprio legislador: na verdade, pode suceder que o legislador
empregue certas fó rmulas e maneiras de dizer com um valor
especial, diverso do ordinário e do jurídico, e que resulta do con-
fronto com a terminologia e a estilistica adoptada num código ou
corpo de leis. Em tal caso prevalece este significado individual.
As palavras hão-de entender-se na sua conexão, isto é,
o pensamento da lei deve inferir-se do complexo das palavras
usadas e não de fragmentos destacados, deixando-se no escuro
140
uma parte da disposição. Deve-se partir do conceito de que
todas as palavras têm no discurso-um-;I~nção~ um sentido
próprio, de que neste não há nada supérfluo ou contraditório,
e por isso o sentido literal há-de surgir da compreensão harmó-
nica de todo o contexto.
Se as palavras empregadas são equívocas ou indeterminadas 1,
se todo o princípio é obscuro, se resultam consequências contra-
ditórias ou revoltantes, a interpretação literal não pode remediar
esta situação. Será preciso recorrer à interpretação lógica.
De resto, mesmo quando o sentido é claro, não pode
haver logo a segurança de que ele corresponde exactamente
à vontade legislativa, pois é bem possível que as palavras sejam
defeituosas ou imperfeitas (manchevole), que não reproduzam
em extensão o conteúdo do princípio ou, pelo contrário, sejam
demasiado gerais e façam entender um princípio mais lato
do que o real, assim como, por último, não é excluído o emprego
de termos erróne~s que falseiem abertamente a vontade legisla-
ova. O sentido literal é incerto, hipotético, equívoco. Também
os que actuam in fraudem legis observam o sentido literal da lei,
e no entanto violam o seu espírito 2. Como ajuda, integração e
co11tr% da interpretação gramatical serve a interpretação lógica.
b) INTERPRETAÇÃO LÓGICA OU RACIONAL.
Esta move-se num ambiente mais alto e utiliza meios
mais fmos de indagação, pois remonta ao espírito da dispo-
sição, inferindo-o dos factores racionais que a inspiraram,
1 REGELSBERGER -Ioc. cito PFAFF - Zur Lehre vom sogenannt ÍlI fraudem
legis agere «Para a doutrina do chamado in fraudem legis agem, págs. 157 e segs.
FERRARA - DelIa símulazíone deí negozí gíuridicí, 4.' ed., págs. 66 e segs.
ROTONDI - Clí atti ín frode alia legge, Turinl, 191I.
2 Assim uma palavra pode ter mais de um sentido, um largo e outro
restricto ou técnico. Por exemplo: ausente, patrinlónio, alienar, alimentos,
nulidade, etc.
141
da génese histórica que a prende a leis anteriores, da conexão
que a enlaça às outras normas e de todo o sistema. É da
ponderação destes diversos factores que se deduz o valor da
norma jurídica.
I) Elemento racional.
Toda a disposição de direito tem um escopo a realizàr,
quer cumprir certa função e finalidade, para cujo conseguimento
foi criada. A norma descansa num fundamento jurídico, numa
ratio iuris, que indigita a sua real compreensão.
É preciso que a norma seja entendida no sentido que
melhor responda à consecução do resultado que quer obter.
Pois que a lei se comporta paracom a ratio iuris, como o
meio para com o fim: quem quer o fim quer também
os meIOS.
Para se determinar esta fmalidade prática da norma, é pre-
ciso atender às relações da vida, para cuja regulamentação a
norma foi criada. Devemos partir do conceito de que a lei
quer dar satisfação às exigências económicas e sociais que
brotam das relações (natureza das coisas). E portanto ocorre
em primeiro lugar um estudo atento e profundo, não só do
mecanismo técnico das relações, como também das exigências
que derivam daquelas situações, procedendo-se à apreciação dos
interesses em causa.
A interpretação não é pura arte dialéctica, não se desen-
volve com método geométrico num círculo de abstracções,
mas prescruta as necessidades práticas da vida e a realidade
social.
Averiguado, porém, qual o escopo prático que a norma
se destina a conseguir, não ficamos seguros de que isso constitua
o verdadeiro conteúdo da norma. E está aqui a fraqueza do
elemento teleológico. Pois os caminhos para se chegar a um
certo fim podem ser vários, e desse fim não se deduz qual o
caminho preferido; e por outra parte o legislador pode ter-se
142
enganado quanto ao meio que empregou '. Mas de toda a
maneira o fim é sempre um raio de luz a iluminar o caminho
do intérprete.
Da ratio legis, que consUtUl o fundamento racional objec-
civo da norma, precisamos distinguir a occasio legis que é a
circunstância histórica de onde veio o impulso exterior para
a criação da lei. Assim uma lei restritiva da liberdade de reu-
nião pode ser publicada por ocasião e por motivo de pertur-
bações internas: tais circunstâncias constituem a occasio legis,
ao passo que o fundamento racional será dado pelo fim de
restringir a liberdade.
No entanto, a circunstância que promoveu o surgir de
uma lei também pode ser utilizada para determinar o fim e
o âmbito desta. É de notar, porém, que a cessação das circuns-
tâncias que fizeram nascer uma lei não exercita nenhuma
influência sobre o seu valor juridico.
A ratio legis "pode mudar com o tempo. O intérprete,
examinando uma norma de há um século, não está incondicio-
nalmente vinculado a procurar a razão que induziu o legis-
lador de então, mas qual é o fundamento racional de agora.
Assim pode acontecer que uma norma ditada para um certo
fim adquira função e destino diverso.
A ratio legis é uma força vivente móvel que anima a dispo-
sição, acompanhando-a em toda a sua vida e desenvolvimento;
é como linfa que mantém sempre verde a planta da lei e faz
brotar sempre novas flores e novos frutos. A disposição pode,
desta sorte, ganhar com o tempo um sentido novo e aplicar-se
a novos casos. Sobre este princípio se baseia a chamada inter-
pretação evolutiva.
1 REGELSBERGER - Pandekten, pág. 148.
143
II) Elemento sistemático.
Um, princípio jurídico não existe isoladamente, mas está
ligado por nexo íntimo com outros princípios.
O direito objectivo, de facto, não é um aglomerado
caótico de disposições, mas um organismo jurídico, um sistema
. de preceitos coordenados ou subordinados, em que cada um
tem o se~ posto próprio. Há princípios jurídicos gerais de
que os outros são deduções e corolários, ou então vários prin-
cípios condicionam-se ou restringem-se mutuamente, ou cons-
tituem desenvolvimentos autónomos em campos diversos.
Assim todos os princípios são membros dum grande todo.
Desta conexão cada norma particular recebe luz. O sen-
tido duma disposição ressalta nítido e preciso, quando é con-
e frontada com outras normas gerais ou supra-ordenadas, de
que constitui uma derivação ou aplicação ou uma excepção,
quando dos preceitos singulares se remonta ao ordenamento
jurídico no seu todo. O preceito singular não só adquire indi-
vidualidade mais nítida, como pode assmnir um valor e uma
importância inesperada caso fosse considerado separadamente,
ao passo que cm correlação e em função de outras normas
pode encontrar-se restringido, ampliado e desenvolvido.
III) Elemento histórico.
Uma norma de direito não brota dum jacto, como Minerva
armada da cabeça de Júpiter legislador. Mesmo quando versa
sobre relações novas, a regulamentação inspira-se frequente-
mente na imitação de outras relações que já têm disciplina no
sistema '; e independentemente disto, o direito, em especial o
direito privado, é o produto duma lenta evolução, é uma fase
dum desenvolvimento histórico muito longo que remonta ao
1 Assim a servidão de condução de energia eléctrica foi modelada
à imitação da de aqueduto.
144
direito romano e depois, através da elaboração medieval, onde
confluem correntes de direito germânico e canónico, prossegue
no direito comum e daí, pelo trâmite do direito francês, entra
no nosso código. Uma grande parte dos princípios contidos
nos códigos são a reprodução de princípios análogos vigentes
no passado, têm cada um a sua história própria.
Compreende-se que precioso auxílio para a plena inteli-
gência dum texto resulta de se descobrir a ~ua ori[e~1li~~~ca,
e seguir o seu desenvolvimento e as suas transformações, até
ao arranjo defInitivo do assunto no presente) Fórmulas e
princípios que considerados só pelo lado racional parecem
verdadeiros enigmas, encontram a chave de solução numa
razão histórica, no rememorar de condições e concepções dum
tempo longínquo que lhes deram uma fIsionomia especial l .
A história dogmática dos institutos do direito civil ainda
não é para nós mais do que um pio desejo, porque a outros
assuntos se volvem as investigações dos historiadores do direito
(afora excepções isoladas), e por isso convém que todo o estu-
dioso solícito dlim problema jurídico tenteie por si os pre-
cedentes históricos, para adquirir uma visão plena e nítida da
disposição.
8. - Os trabalhos preparatórios
A história do preceito positivo compreende não somente
a indagação da sua origem remota, como também a do seu
nascimento recente, e portanto dos trabalhos legislativos que
prepararam a sua introdução num código. Trata-se dos pro-
jectos de lei, das discussões de comissões, dos motivos, relatórios
e discursos que constituem os materiais de elaboração das leis.
1 Assim só historicamente se explicam o princípio da natureza decla-
ra'iva da divisão, do efeito da posse dos móveis em relação a terceiros, da
Saisina iuris na herança, da subrogação por pagamento, das contra-decla-
rações no matrimónio, etc.
\
I
I
145
Questiona-se em doutrina acerca do valor a atribuir a
estes Trabalhos preparatórios.
Está hoje refutada a obsoleta concepção que, identifIcando
o legislador com o redactor da lei, dava a tais discussões e opi-
niões quase a autoridade duma interpretação autêntica.
Parte-se agora da observação exacta de que semelhantes
escritos e discursos são coisa interna dos órgãos legislativos e
não se transfundem na lei publicada: trata-se de debates internós,
de modos de ver dos diversos relatores ou preopinantes (disse-
renti), de tendências individuais, e não de pensamentos do
legislador. O silêncio dos outros elaboradores da lei não vale
por aquiescência ou apropriação dos conceitos emitidos pelos
vários proponentes, porque o texto da lei pode ser aprovado
por outros motivos e até, frequentemente, discordando-se das
razões invocadas. O conceito da lei projecta-se diversamente
no espírito dos votantes, e não é legítimo supor que haja neles
um intento único. Desta divergên~ia aparece rasto nos tra-
balhos legislativos, onde vemos sustentar opiniões contrárias,
surgir antagonismos e transacções de tendências, acordarem-se
novas fórmulas de texto, e maior se patentearia a discordância
se nos fosse dado colher ao vivo o trabalho legislativo mais
do que resulta das atestações ofIciais contidas nos actos e nos
documentos das Câmaras. E de toda a maneira não pode
falar-se dum intento único.
COSACK 1 comparou os trabalhos preparatórios duma lei
aos debates preliminares dum contrato, e como estes, em prin-
cípio, não têm influênciasobre o contrato defInitivo, que é
fruto de transacções de interesses, assim também àqueles falta
autoridade sobre o texto defInitivo da lei, que deriva do cruza-
mento de opiniões e tendências opostas dos vários órgãos
legislativos.
1 Lehrbuch des biirgerlichen Rechts «Tratado de direito eivil», I, § 12.°,
pág. 40.
lO
146
Os trabalhos preparatórios podem esclarecer-nos relativa-
mente às ideias e ao espírito dos proponentes da lei ou de alguns
votantes, e valem como subsídio, quando puder demonstrar-se
que tais ideias e princípios foram incorporados na lei. Em
caso diverso devem considerar-se momentos estranhos à lei
e sem influência jurídica. Valem apenas como ilustrações de
carácter científico.
Tanto mais se reconhece a verdade disto, quanto é certo
haver casos não raros de surpresas na formação das leis 1, quer
dizer, casos em que da lei votada resultam consequências não
previstas ou diversas das que se tinham em vista ao compilá-la,
ou em que, por um concurso de circunstâncias fortuitas, uma
norma se desvia totalmente do seu fim, convertendo-se em
meio ou instrumento para um fim oposto.
E, por último, não é difícil que urna lei encontre nos
Trabalhos preparat6rios uma falsa justificação, ou que lá apareça
desvirtuado o seu espírito. Mas nem por isso o intérprete
será vinculado pelas considerações erróneas ou limitadas dos
redactores da lei, antes deverá apreciar a norma no seu valor
objectivo, e em conexão com o sistema do direito 2.
Tudo isto basta para desacreditar suficientemente os Tra-
balhos preparat6rios, os quais amiúde não nos dizem nada ou
são uma caótica mixórdia de teorias opostas em que todo o
intérprete pode achar cómoda confirmação para as opiniões
próprias. Quando muito, podem valer como indício de certa
vontade legislativa, mas devem ser utilizados com cautela e
circunspecção.
1 POLACCO - Penombre e sorprese nella formazione delle leggi, nos Studi
per Scialogia, 1, 327 e segs.
, ENNECCERUS - Lehrbuch, 1, § 62.°. DERNBURG - Das bürgerliches
Recht des deutschen Reichs und Preuszens «O direito civil do império Alemão
e da Prússia-, 1, § 38.°. KOHLER, na Grünhut's Zeitschrift, 13, pág. 7. MORrARA
- COlnmentarío, 1, n.° 73. FADDA e BENSA, ad WINDSCHEID - Pandette, 1,
págs. IIg e segs. COVIELLO - Manuale, pág. 73·
147
9. - Resultado da interpretação
A relação da interpretação lógica com a gramatical pode
ser diversa.
a) CONCORDÂNCIA ENTRE O RESULTADO DA INTERPRETAÇ~O
LÓGICA E O DA GRAMATICAL: INTERPRETAÇÃO DECLA-
RATIVA.
Antes de mais pode dar-se que o sentido da lei, tal como
resulta da interpretação lógica, seja perfeitamente congruente
com o que as palavras da lei exprimem, que haja perfeita cor-
respondência entre as palavras e o pensamento da lei. Neste
caso a interpretação lógica não faz mais do que confirmar
e valorizar a explicação literal.
Ou então o sentido das palavra~ é dúbio e equívoco, por-
que as expressões são demasiadamente gerais ou anfibológicas;
e em tal caso a interpretação lógica ajuda a fixar o sentido
real da lei, escolhendo um dos sentidos possíveis, que resultam do
simples contexto verbal. Assim no código aparecem muitas
vezes as palavras: filhos, parentes, ausente, incapaz, alienar,
cohabitação, etc., que têm uma acepção lata e uma acepção
restrita, e que nas várias disposições legais revestem ora um
ora outro significado. A interpretação lógica adoptará con-
forme as circunstâncias o sentido que melhor se ajuste à
vontade da lei.
Em ambos os casos fala-se de interpretação declarativa, por-
que não se faz mais que declarar o sentido linguístico coinci-
dente com o pensar legislativo.
A interpretação declarativa pode ser restrita ou lata, segundo
toma em sentido limitado ou em sentido amplo as expressões
que têm vários significados. ITal distinção não deve confun-
dir-se com a de interpretaçã; extensiva ou restritiva, de que a
seguir vamos tratar, pois nada se restringe ou se estende quando
148
entre os significados possíveis da palavra se elege aquele que
parece mais adapatado à mens legis 1.
E para esta escolha valem os meios usuais de interprtação
lógica. Em particular, observaremos que na interpretação
de expressões de sentido duplo, ou indeterminadas, cabe
escolher, na dúvida, o significado pelo qual o princípio
jurídico menos se desvia do direito regular, ou pelo qual
se chega a um resultado mais benigno, de preferência a um
mais rigoroso 2.
b) DISCORDÂNCIA ENTRE O RESULTADO DA INTERPRETAÇÃO
LÓGICA E O DA GRAMATICAL.
o sentido literal não coincide com a vontade da lei,
tal como se deduz da interpretação lógica: há desconfor-
midade entre a letra e o pensamento da lei. Analisando a
disposição do ponto de vista lógico, vê-se que resulta outro
sentido que nãq, é aquele que das palavras transparece ime-
diatamente.
Ora as palavras são um meio para tomar reconhecível
a vontade, e se é certo que sem alcançar expressão nas formas
constitucionais uma vontade legislativa não tem existência
jurídica, certo é outrossim que basta uma manifestação defei-
tuosa ou errónea, através da qual se possa reconstruir e vislum-
brar essa vontade 3. Pois que o meio deve sacriftcar-se ao fim,
1 W ABeRTER - Handbuch des württembergischen Privatrechts «Manual do
direito privado de WililTEMBERG», n, pág. 143, nota 36.
, UNGER - System, l, pág. 91.
3 Exagera SCHLOSSMANN - Der rrrtum, pág. 26, quando nega a legi-
tinúdade da interpretação lógica, observando que embora estivéssemos con-
vencidos de que o legislador adoptara uma expressão demasiado larga, ou
restrita, nem por isso poderíamos dar validade como lei a uma vontade que
não alcançou expressão nas formas constitucionais. E exagera, porque também
uma manifestação defeituosa basta para exprimir a vontade.
149
o pensamento deve triunfar da forma, a vontade da escama
verbal: prior atque pote11tior est quam vox, mens dicentis (7, § 2,
Dig. 33, 10).
O confronto da interpretação lógica com a literal há-de
ter por efeito operar uma rectijicação do sentido verbal na con-
formidade e na medida do sentido lógico. Tratar-se-á de
corrigir a expressão imprecisa, adaptando-a e entendendo-a no
signiftcado real que a lei quis atribuir-lhe. A modiftcaçâo
refere-se às palavras, que não ao pensamento da lei.
A imperfeição linguística pode manifestar-se de duas
formas: ou o legislador disse mais do que queria dizer, ou disse
menos, quando queria dizer mais. A sua linguagem pode ser
demasiado genérica, e compreender aparentemente relações
que conceitualmente dela estão excluídas, ou demasiado
restricta, e não abraçar em toda a sua amplitude o pensa-
mento visado. Em suma, o legislador pode pecar por excesso
ou por defeito. .
A interpretação, para fazer corresponder o que está dito
ao que foi querido, procede acolá restringindo e aqui alargando
a letra da lei: num caso há interpretação restritiva, e no outro
há interpretação extensiva.
I) Interpretação restritiva.
A interpretação restritiva aplica-se quando se reconhece
que o legislador, posto se tenha exprimido em forma genérica
e ampla, todavia quis referir-se a uma classe especial de rela-
ções. É falso, portanto, na sua absoluteza, o provérbio: Ubi
lex 110n distinguit, nec nobis distinguere licet.
A interpretação restritiva tem lugar particularmente nos
seguintes casos: 1. o se o texto, entendido no modo tão geral
como está redigido, viria a contradizer outro texto de lei;
2. o se a lei contém em si uma contradição intima (é o chamado
argumento ad absurdum); 3. 0 se o princípio, aplicado sem res-
trições, ultrapassa o fun para que foi ordenado.
150
Além disto é de observar que se um prinClpIO foi esta-
belecido a favor de certas pessoas, não pode retorcer-se em
prejuizo delas, por interpretação restritiva das suas expressões
demasiado gerais 1.
II) Interpretação extensiva.
A interpretação extensiva, pelo contrário, destina-se a
corrigir uma formulação estreitade mais. O legislador, expri-
mindo o seu pensamento, introduz um elemento que designa
espécie, quando queria aludir ao género, ou formula para um
caso singular um conceito que deve valer para toda uma cate-
goria. Assim: fala-se de homens, quando é certo que devem
reputar-se abrangidas também as mulheres; fala-se de doação,
e devem julgar-se compreendidas todas as aquisições gratuitas,
ainda que mortis causaj diz-se alienação, e quer-se contemplar
igualmente a concessão de direitos reais de gozo ou de lúpo-
tecas; enuncia-se um princípio em tema de contratos, e pre-
tende-se que valha também para os testamentos, etc.
A interpretação extensiva, despojando o conceito das parti-
cularidades e circunstâncias especializantes em que se encontra
excepcionalmente encerrado, eleva-o a um princípio que abarca
toda a generalidade das relações, dando-lhe um âmbito e uma
compreensão que, perante a simples formulação terminológica,
parecia insuspeitada.
Falso é, pois, o brocardo: Ubi lex voluit dixit, ubi noluit,
tacuit. As omissões no texto legal, com efeito, nem sempre
significam exclúsão deliberada, mas pode tratar-se de silêncio
involuntário, por imprecisão de linguagem.
A interpretação extensiva é um dos meios mais fecundos
para o desenvolvimento dos princípios juridicos e para o seu
reagrupamento em sistema.
1 UNGER - Systelll, 1, pág. 88.
151
E como a interpretação extensiva não é mais do que reinte-
gração do pensamento legislativo, aplica-se a todas as normas,
sejam embora de carácter excepcional ou penal 1. O princípio
do art. 4. o das disposições preliminares, que veda a extensão
das leis penais ou restritivas além dos casos expressos, refere-se
à aplicação por analogia. Portanto não é verdade que as excep-
ções tenham de interpretar-se estrictamente, mas, pelo contrário,
que as excepções não se podem ampliar por analogia.
Sobre a interpretação extensiva baseia-se a proibição dos
actos in fraudem legis.
Com efeito, o mecanismo da fraude consiste na obser-
vância formal do ditame da lei, e na violação substancial do
seu espírito: tantum sententiam offendít et verba reservat. O frau-
dante, pela combinação de meios indirectos, procura atingir
o mesmo resultado ou pelo menos um. resultado equivalente
ao proibido; todavia, como a lei deve entender-se não segundo
o seu teor literal, mas no seu conteúdo espiritual, porque a
disposição quer realizar um fim e não a forma em que ele pode
manifestar-se, já se vê que, racionalmente interpretada, a proi-
bição deve negar eficácia também àqueles outros meios que
em outra forma tendem a conseguir aquele efeito 2.
III) A chamada interpretação abrogante.
Por último, a interpretação pode levar a um resultado
extremo - a negar sentido e valor a uma disposição de lei,
quando se verifIca a sua absoluta contraditoriedade e incompa-
tibilidade com outra norma supra-ordenada e principal.
1 Assim o art. 365.°, n.O 3 do Código Penal agrava a pena de homi-
cídio quando este seja cometido por meio de substdncias Ve1lenosas. O prin-
cípio, porém, deve entender-se referido não exclusivamente aos venenos
verdadeiros e próprios, mas a toda a substância capaz de produzir a morte
imediata e imprevistamente: Veja DEGN1, L'interpretazione della legge, pág. 269.
2 fERRARA - Della Si111ulazione, pág. 71; ROTONDI- cli atti Í11 frode
alla legge, pág. 22.
152
As antinomias e os desacertos não são raros nos nossos
sistemas legislativos, filiando-se muitas vezes em defeitos de
coordenação e em esquecimentos. Ora quando entre duas
disposições há uma contradição absoluta e não se descobre ."
nenhum meio de as conciliar, a interpretação deve làgicamente
eliminar a norma contradicente, reputando-a letra morta,
vazia de conteúdo. Em tal caso fala-se de interpretatio abroga/is,
não já porque o intérprete abrogue a lei, mas porque da
interpretação resulta que a norma é abrogada por incompa-
tibilidade.
Neste conflito deve ter-se em conta o diverso grau de
importância das normas contraditórias. Pois tratando-se de
preceitos igualmente principais e antagónicos, a contradição
leva à sua elisão recíproca: nenhum deles sobrevive. Mas o
caso é raro. Se pelo contrário a incompatibilidade tem lugar
entre uma disposição principal e uma disposição secundária
e acessória, então leva à ineficácia da última, deixando firme
a disposição fundamental.
Assim os autores sustentam em regra que há antinomia
entre o princípio geral que exige a forma escrita para as con.-
venções constitutivas ou translativas de direitos reais mobi-
liários (art. 1314.°) e a norma que requer a publicidade duma
sentença que reconheça a existência duma convenção que tenha
esse objecto (art. 1932.°, n.O R), visto ser patente que uma con-
venção verbal translativa de imóveis nunca poderia ter eficácia
e portanto a hipótese em questão é inverificável. Assim também
há contradição entre o princípio fundamental que admite a
acção de manutenção Unicamente para a posse de bens imóveis
ou de universalidades de móveis (art. 694.°) e a disposição proces-
sual que para fms de competência supõe uma acção de turbação
para a posse de coisas móveis (cód. de proc. civ., art. 93.°).
Em tal caso a norma acessória processual é sacrificáda e consi-
dera-se como não escrita.
153
10. - Desenvolvimento do sentido da lei
Mas a interpretação não se detém uma vez apurado o
sentido das normas: compete-lhe ainda desenvolver o conteúdo
das disposições, em todas as suas direcções e relações possíveis.
Frequentemente um só preceito de lei encerra dentro de
si vários princípios, dos quais apenas um está expresso, enquant~o
que os outros podem derivar-se por dedução lógica; e além
disso a conexão das várias normas faz com que algumas se apre-
sentem como regras e outras como excepções. Ora o intér-
prete deve tirar dos princípios todas as consequências de que
são capazes, embora algumas sejam expressas, enquanto que
outras permanecem latentes. Os preceitos jurídicos têm um
conteúdo virtual que é função do intérprete extrair e desenvolver.
Assim se enriquece e elabora o material jurídico.
Para este fim servem diversos. argumentos lógicos, dos
quais todavia se deve usar com cautela e senso crítico. Podem
valer para tal efeito as directivas que seguem:
1.° Legitimado um fim, legitimados estão os meios indis-
pensáveis para se conseguir esse fim (aplicações no tema das
servidões, art. 639.°). Vice-versa, se o fim é incondicionalmente
proibido, são também ilícitos os meios respectivos.
2.° Quem tem direito ao mais, tem direito ao menos
(argumenttlll1 a maiori ad minus). Se é vedado o menos, deve
sê-lo também o mais (arg. a minori ad maius). Se a disposição
é limitada só a uns tantos casos, para os outros casos não abran-
gidos deve entender-se o contrário (arg. a contrario).
O argumento a contrario 1 é um meio de dedução e desen-
volvimento da lei que deve empregar-se cautamente, pois
nem toda a vez que o legislador exprime uma norma para
1 Para desenvolvimentos veja: THIBAUT - Theorie der logische Ausle-
gung des romischen Rechts «Teoria da interpretação lógica do direito romano»,
págs. I42 e segs.; REGELSBERGER - Pandekten, pág. I 54; COVIELLO - Mamwle,
págs. 8I e segs.
154
um caso determinado ou a título de exemplo, se pode formular
para os outros casos não compreendidos a regra inversa, antes
é certo que nisto mesmo se funda a interpretação extensiva, ao
elevar-se dos casos particulares a um princípio geral.
Para nos servirmos dum argumento a contrario havemos de
estar seguros de que a norma em que nos baseamos deve valer
só para os casos enunciados pela lei; há-de mostrar-se que a dispo-
sição é estabelecida exclusivamente em vista daquelas relações,
coisas ou pessoas que exigem especial disciplina. Só então
será justificado induzir-se uma regra oposta válida para os
outros casos em geral.
O argumento a contrario não é uma forma de interpretação
extensiva, mas sim ummeio de desenvolvimento das leis: ao
passo que aquela tem lugar quando o legislador quis dizer
mais do que disse, e o intérprete mira a restituir (rendere) em
toda a sua integridade o pensamento legislativo deficientemente
expresso, o argumento a contrario propõe-se, ao invés, extrair
um pensamento novo não expresso, em antítese com o esta-
belecido para o" caso regulado, uma segunda norma com con-
te{do oposto ao formulado na lei.
11. - Integração das lacunas das leis: Analogia
É probleluaassaz discutido nos últimos tempos o saber
se o ordenamento jurídico apresenta lacunas 1. E a diversi-
dade dos pontos de vista sustentados depende não só do modo
vário de conceber as lacunas, mas também de a questão não
comportar, porventura, a mesma solução para o direito público
e para o direito privado.
1 ZITELMANN - Lücken im Recht «As lacunas do direito;>, Leipzig, 1903.
DONATO DONATI - II problema delle lacuae deli'ordinamento juridico, Milão, 1910,
onde vem indicada a copiosa literatura sobre o assunto (pág. 3, nota). BRU-
NETTI - II delitto civile, pág. 104 e segs., e uma série de escritos polémicos
(Scriti giuridici, 1, pág. 34 e segs.) àcerca do valor do problema das lacunas.
155
Se por lacunas se entendem vazios incolmáveis do orde-
namento jurídico, deficiências que não se podem integrar
com meios jurídicos, então deve partir-se do princípio que o
direito não tem lacunas e que para todo o caso não previsto
ocorre sempre uma norma jurídica desenvolvida e elaborada
no sistema. Isto vale, pelo menos quanto ao direito privado.
A plenitude ou completeza (completezza) da ordem jurídica
resulta de os casos não previstos recaírem por sua vez sob outras
normas de remissão (rinvio) predispostas para a sua regulamen-
tação, ou de que, por não estarem sujeitos às limitações que deri-
vam de normas particulares, saiem para fora do campo jurídico '.
1 Por parte de vários escritores (ZITELMANN, ANSCHÜTZ. DONATI)
e com diversa amplitude e entoação, fala-se aqui duma aorllla gemI aeg<1tiva
que vem a regular os casos não considerados.
DONATI, a pág. 35 e segs., escreve que do complexo das disposições
particulares deriva uma norma geral complementar que tem este conteúdo:
que elll todos os mais casos não deve haver' aen/1tI11la limitação. Simplesmente
o A., longe de atribuir a essa norma um carácter aegativo e concluir que não
é uma norma juridica, pois se re:olve na 11egação de normas jurídicas para os
casos não contemplados, e uma norma de tal conteúdo seria inútil, intuitivo
como é que para além da órbita do comando cessa de haver obrigação,
procura esquivãr este resultado, inflectindo e transformando o conteúdo da
norma do sentido de que nos casos não contemplados a lei não declara só que
não há outras limitações, mas Hão quer que as haja, e portanto exprime um
comando positivo destinado a excluir outras limitações, afora as estabelecidas.
A mim parece-me que um comando deste género não tem nenhuma
base real na ordem jurídica, porque, se a função do direito objectivo é impor
deveres, e só aqueles deveres que resultam das normas, é implicito que os casos
não regulados estão fora do círculo do dever, sem que haja precisão duma
ulterior vontade do ordenamento jurídico destinada a esse fim, quer dizer,
a excluir ou negar toda a limitação para os casos não regulados. Tal vontade
é uma superfectação. E por isso a teoria de DONATI, apesar da sua meditada
formulação diversa, resolve-se numa variedade das teorias precedentes, que
com a norma geral complementar querem abraçar a esfera da liberdade.
Ora um caso que entre no domínio deste princípio de liberdade não é um
caso jurídico, pois é Ulll caso para que lIão valem aormas de direito. Se a lei penal
não pune certo facto que segundo a consciência social merece ser plmido,
não se pode falar duma lacuna, mas sim duma imperfeição da lei.
156
Não pode tratar-se então de lacW1as, mas sim de defeitos da lei,
a apreciar segW1do critérios intrínsecos de justiça ou de prática
oportunidade.
Pode todavia falar-se de lacW1as noutro sentido, como !
de falta duma disposição que regule especialmente certa matéria
ou caso, se bem que a tal deficiência se possa suprir mediante
outra norma tirada por analogia, ou, onde o procedimento
analógico não é admitido, o facto caia numa esfera de liber-
dade extra-jurídica ou juridicamente indiferente, por mais
que este resultado possa surtir impróprio e inadaptado à índole
da relação. Aqui trata-se de lacunas aparentes que se preenchem
por via de interpretação e desenvolvimento do conteúdo legis-
lativo e que desaparecem na aplicação.
Por muito previsora e vigilante que seja a obra legislativa,
é impossível que todas as relações encontrem regulamentação
jurídica especial, e que a plenitude da vida prática se deixe
prender nas apertadas malhas dos artigos dum Código. Por
outro lado as relações sociais mudam continuamente, surgem
novas situações, mercê de descobertas e invenções em que o
legislador do tempo não pensou nem podia pensar, e uma
multidão de relações e conflitos novos irrompem na vida jurí-
dica exigindo disciplina e tutela.
A esta necessidade satisfaz em regra a ordem jurídica, por
virtude da sua tendência para contentar a aspiração das várias
relações a tornarem-se objecto de regulamentação adequada.
Pressupõe-se, isto é, que a insuficiência da disposição se filia
não já na vontade por parte da lei de negar tutela a certas
classes de relações, mas em que a lei omitiu regulá-las, enten-
dendo-se que se o legislador tivesse tido conhecimento de tais
relações as teria regulado convenientemente.
A ordem jurídica é uma atmosfera que cirCW1da a vida
social em toda a sua completeza, que lhe domina todos os
movimentos, que 'não tolera espaço algum vazio de direito
(horror vacui). Ordem jurídica e vida social coincidem: aquela
é uma superstrutura desta.
157
Por isso, embora o direito positivo não apresente dispo-
sição especial para certa matéria ou caso, há nele, porém, capa-
cidade e força latente para a elaborar, e contém os germes
de uma série indeterminada de normas não expressas, mas
ínsitas e viventes no sistema. Com efeito, se duma só disposição
ou dum grupo de normas se deduz um princípio jurídico mais
amplo, é de concluir, na dúvida, que, visto ter aplicado seme-
lhante princípio no caso particular, a ordem jurídica o apro'Va
na sua generalidade, e portanto todas as consequências que do
Rrincípio derivam 1.
E precisamente esta indagação delicada que à força de
abstracções e de induções extrai do sistema um conteúdo de
pensamento jurídico irrevelado é o instrumento técnico para
colmar as lacunas da lei.
As lacunas podem ser de vária espécie. São intencionais
ou involuntárias, segW1do é o mesmo legislador que delibe-
radamente omite regular certas situações, que não julga
ainda maduras para uma disciplina própria, abandonando
a sua decisão à ciência e à jurisprudência, ou o insuftciente
da regulamentação jurídica provém de omissão involwl-
tária ou de não se ter tido uma visão completa do assW1to
a regular.
Acresce que a lacuna se pode referir a toda uma matéria
ou instituto, ou já existente (por ex. a sucessão das pessoas jurí-
dicas, o direito de sepulcro) ou novo (por ex. a navegação aérea)
ou antes a um caso ou modalidade singular duma relação. Assim
a lei impõe a obrigação de pagar juros, mas não diz em que
medida; estabelece a protecção da propriedade industrial, mas
não determina as respectivas condições e formas.
Além disso a lacuna pode nascer ou de falta de regula-
mentação, ou por antinomia entre duas disposições contraditórias
de igual força que se elidem redprocamente.
1 KOHLER - Lehrbllch, pág. 13 8.
158
Em face das lacunas da lei, o JUlZ não pode furtar-se a
julgar, alegando que não existe norma para aplicar ao caso
concreto: a sua recusa equivaleria a uma denegação de justiça.
Deve decidir sempre qualquer controvérsia que lhe seja subme-tida, e decidi-la com base no direito. O cumprimento desta
obrigação é possível só porque o sistema positivo é capaz de
fornecer norma para qualquer caso. E de facto o art. 3. 0 das
Disposições prelinúnares aponta o caminho a seguir na inte-
gração das lacunas da lei, isto é, o método anal6gico 1.
A analogia consiste na aplicação dum princípio juridico
que a lei põe para certo facto a outro facto não regulado, mas
semelhante, sob o aspecto jurídico, ao primeiro.
Perante casos de que o legislador não cogitou, o intér-
prete busca regulá-los no sentido em que o legislador os teria
decidido se neles tivesse pensado. E como procurando bem
no sistema se podem descobrir casos análogos já regulados,
extrai-se por um processo de abstracção a disciplina juridica
que vale para esses, alargando-se até compreender os casos
não previstos m~s cuja essência jurídica é a mesma.
O procedimento por analogia radica no conceito de que
os factos de igual' natureza devem ter igual regulamentação,
e se um de tais factos encontra já no sistema a sua disciplina,
esta forma o tipo do qual se deve inferir a disciplina juridica
geral que há-de governar os casos afms.
Analogia é harmónica igualdade, proporção e parale-
lismo (paragone) entre relações semelhantes.
Esta essência do método analógico faz com que a ele
se possa recorrer independentemente de autorização do legis-
lador 2. A ordem jurídica, de facto, não é massa inerte de
1 Veja FADDA e BENSA, ad WINDSCHFJD - Pandette, 1, págs. 128 e segs.
• Em sentido contrário se pronuncia DONATI - II problema delle lacuna,
pág. 41. Para este A. o procedimento analógico não se poderia admitir sem
uma disposição legislativa expressa. Mas tal opinião depende da falsa crença
numa norma geral de exclusão para os casos não contemplados.
159
principios coexistentes, mas um corpo orgal1lCO de normas
intimamente conexas, e os princípios que lhe estão na base
levam o germe de indeterminados desenvolvimentos '.
A analogia é, pois, uma aplicação correspondente dum prin-
cipio ou dum complexo de principios a casos juridicamellte
semelhantes.
Base de analogia pode ser: ou uma só disposição (analogia
legis) ou um complexo de princípios jurídicos, a sintese delés,
e mesmo o espírito de todo o sistema (analogia iuris).
A primeira forma é a mais fácil. Decide-se um caso não
regulado, segundo a norma que preside a um caso afIm já
decidido: ubi eadem legis ratio, ihi eadem legis dispositio. Trata-se
duma aplicação por semelhança.
Outras vezes não aparece disposição para um caso afim,
e então é preciso reconstruir a norma pela combinação de
vários casos regulados, que se mostram aplicações dum pri-
cípio geral não expresso.
Ou então, por último, a lei omitiu completamente a dis-
ciplina juridica de todo um instituto, e é necessário construí-la
segundo os princípios de todo o sistema. Aqui a analogia
torna-se uma operação extremamente delicada, devendo basear-se
numa profunda e plena apreciação dos elementos e da função
do instituto a regular, confrontando-o com as tendências ideais
e as directivas do direito positivo.
A nossa lei diz que em tal caso cumpre recorrer aos prin-
cípios gerais do direito. Ora o recurso a estes principios gerais
não é senão uma forma de analogia iuris.
Discutiu-se no passado qual a significação a atribuir aos
princípios gerais do direito: para alguns tais princípios equi-
valiam aos do direito racional ou natural 2; para outros aos
1 Veja-se Motive zum bürgerlichen Gesetzbuch (Motivos para o código
civil), 1, pág. 16.
, Como diz O Código Austríaco (art. 7. 0 , que sem dúvida foi a fonte
do art. 16. 0 do nosso cód. civil).
160
ensinamentos do direito romano; e para outros ainda aos prin-
cípios da moral ou às exigências da justiça e da equidade.
Actualmente, porém, estes conceitos estão abandonados, e a
doutrina reconhece que se deve tratar de princípios de direito,
e portanto de direito positivo, de normas da legislação vigente 1.
Não se trata, pois, de vaguear por abstracções ou ideali-
dades imprecisas ou de recorrer a exigências indeterminadas,
mas de estabelece! os princípios cardeais do sistema positivo.
Todo o edificio jurídico se alicerça em princípios supremos
que formam as suas ideias directivas e o seu espírito, e não estão
expressos, mas são pressupostos pela ordem jurídica. Estes
princípios obtêm-se por induçãO, remontando de princípios
particulares a conceitos mais gerais, e por generalizações suces-
sivas aos mais elevados cumes do sistema jurídico. E é claro
que quanto mais alto se leva esta indução, tanto mais amplo
é o horizonte que se abrange.
Na aplicação dos princípios gerais do direito passa-se
sucessivamente dos mais particulares aos de mais vasto e supe-
rior conteúdo," e deve fazer-se o confronto da relação a
regular com os princípios jurídicos a que tal relação há-de
subordinar-se.
Para que possa recorrer-se à analogia é necessário:
1.° Que falte uma precisa disposição de lei para o caso
a decidir, que portanto a questão não se encontre já regulada
por uma norma de direito - e isto não apenas segundo a letra,
mas também segundo o sentido l6gico dessa/norma. Por isso,
se uma questão se pode resolver com base na interpretação
extensiva não tem lugar a analogia, pois se trata dum caso
já contemplado segundo o conceito da lei, embora fuja aparen-
temente à formulação do texto.
2.° Que haja igualdade jurídica, na essência, entre o caso
a regular e o caso regulado.
1 FADDA e BENSA, ad WINDSCHEID - Pandette, I, pág. 28.
I
161
Este reqUIsIto é o mais difícil de apurar, e põe à prova
o senso jurídico e a [mura do intérprete. Todo o facto jurídico
tem certos elementos essenciais que o caracterizam e formam
a ratio iuris da norma, e outros elementos acidentais e contin-
gentes que acompanham aqueles. Ora no confrontar o facto
já regulado com o facto a regular é mister isolar dos outros
o elemento essencial, colhendo de tais factos apenas as notas
decisivas, os traços juridicamente relevantes, e só assim est";-
belecer se entre eles há ou falta uma relação de semelhança.
Pois pode acontecer que dois factos que na aparência se afiguram
desconformes, porque diversificados por caracteres particulares,
na sua essência sejam semelhantes, e por isso capazes de ser
sotopostos por analogia ao mesmo tratamento jurídico, e que
viceversa dois factos que exteriormente parecem semelhantes
sejam no íntimo diferentes. É preciso, portanto, escrutar a
semelhança jurídica dos factos, a coincidência dos elementos
com relevância jurídica que informam a disposição.
Vejamos alguns exemplos.
Assim, dizendo o art. 1151.°: «Qualquer facto do homem
que causa dano a outrem, obriga aquele por cuja culpa teve
lugar a ressarcir o dano» - o mesmo princípio deve estender-se
por analogia às pessoas jurídicas. Porque o princípio da respon-
sabilidade depende e pressupõe necessàriamente mais a actuação
dum sujeito jurídico do que um facto humano dum indivíduo,
e por isso, despindo-o do carácter específico, mas sem influência,
de acto humano, o facto posto na base da responsabilidade
generaliza-se como acto duma pessoa 1.
Estabelecendo o art. 1482.° a garantia por evicção no caso
de venda (como caso mais frequente), a ratio iuris que informa
a disposição prescinde da natureza especial deste contracto,
e por isso tem aplicação e valor para todos os contratos trans-
lativos a título oneroso. E assim também, enunciando a lei
1 Ao contrário, para se dizer que o art. II 5r. o que fala de facto do
homem compreende também as mulheres, basta a interpretação extensiva.
11
162
o princípio da influência do dolo nos contractos (art. 1115.°) não
pode duvidar-se de que o dolo exercerá influência análoga fora
deste campo, em todos os negócios jurídicos: em que medida e
com que efeitos - é problema; mas certamente tem influência.
Desta maneira se põe a questão do dolo nos testamentos.
Estescasos são simples. Porém, se afrontarmos outras
questões, a solução nem sempre é tão intuitiva.
Dada uma promessa de recompensa a quem achar um
objecto ou descobrir um réu, se o achado ou a descoberta é
feita ao mesmo tempo por várias pessoas, para quem há-de
ser o prémio 1 Terá de dividir-se entre todos 1 Análogo é o
caso duma quota de reserva a que concorrem pelo mesmo
título duas pessoas (dois cônjuges, um legítimo e outro putativo).
A lei estabelece a responsabilidade pelo facto de animais
(art. 1154.°). Qual a razão ou o fundamento desta responsa-
bilidade 1 Será rigorosamente necessário que se trate de animais,
ou pode a mesma disposição aplicar-se a quem se serve de
máquinas, aut0!lióveis, etc. 1 Mas (questão prejudicial) ditará
o art. 1154.° uma disposição de direito singular<
Há matérias kda que estão isoladas de quaisquer normas
jurídicas: por ex., o direito de sepulcro, o exercício de poderes
sobre a própria pessoa, a sucessão das pessoas jurídicas. Quais
serão os princípios análogos a aplicar 1
A analogia distingue-se da interpretação extensiva.
De fàcto, uma aplica-se quando um caso não é contem-
plado por uma disposição de lei, enquanto a outra pressupõe
que o caso já está compreendido n~ulamentação jurídica,
entrando no sentido duma disposição, se bem que fuja à sua letra.
A interpretação extensiva não faz mais do que reconstruir
a vonade legislativa já existente, para uma relação que só por
inexacta formulação dessa vontade parece excluída; a ana-
logia, pelo contrário, está em presença duma lacuna, dum
caso não prevenido, para o qual não existe uma vontade
legislativa, e procura tirá-la de casos afins correspondentes.
163
A interpretação extensiva revela o sentido daquilo que o legis-
lador realmente queria e pensava; a analogia, pelo contrário,
. tem de haver-se com casos em que o legislador não pensou,
e vai descobrir uma norma nova inspirando-se na regulamenta-
ção de casos análogos: a primeira completa a letra e a outra
o pensamento da lei.
Esta distinção não tem só valor teórico, senão também
importância prática, porque o princípio que veda estender as
normas penais e excepcionais além dos casos expressos refere-se
Unicamente à aplicação por analogia, e não à interpretação
extensiva.
O procedimento analógico, com efeito, não pode desen-
volver-se no domínio do ius singulare, porque este, tendo sido
introduzido exclusivamente para determinadas categorias de
pessoas, coisas ou relações, constitui um campo fichado que não
pode ser alargado pelo intérprete, mas só pelo legislador 1.
Aqui há razão para se fazer valer '0 argumento a contrario, pois
se o legislador, por considerações especiais de utilidade, dispôs
limitadamente a certos factos ou pessoas, nos outros casos entendeu
que o mesmo tratamento não tivesse lugar. Sendo assim, logo
se vê que a analogia não pode funcionar porque, consistindo
ela na correspondente aplicação do pensamento jurídico a casos
não contemplados, em regulamentar casos novos pela forma
como presumivelmente os teria regulado o legislador, aqui esbarra
com a vontade precisa do legislador, que disse: fora destes
casos quero o contrário.
1 REGELSBERGER - Pandekten, pág. 160, quer limitar o prmClplO de
que o direito singular é incapaz de aplicação analógica, dizendo que o pensa-
mento fundamental do ius singulare pode alargar-se; e cita o exemplo da
sucessiva extensão do Senatus-Consulto Vel1eiano, que na origem se referia
só às alienações, às constituições de penhor, assunções de dívidas e (actos)
semelhantes.
Mas é de objectar que a extensão analógica em direito romano tem
carácter produtivo de direito, visto o sistema da participação do magistrado
pretório na evolução do material jurídico.
164
A analogia não é criação de direito novo mas descoberta
e direito existente.
O juiz, quando aplica normas por analogia, não forja
om livre actividade regras jurídicas, mas desenvolve normas
~tentes que se encontram já no sistema. Pois direito não é
ó o conteúdo imediato das disposições expressas; é também
) conteúdo virtual de disposições não expressas, mas ínsitas
odavia no sistema onde o juiz as vai descobrir.
As normas encontradas por analogia não são corpos estranhos
ntrometidos no organismo jurídico; são rebentos e desenvolvi-
nentos do direito que lá está. Porque, é de notar, as normas
leduzidas por analogia não são criadas pelo intérprete segundo
lma livre estimação de interesses, não se trata duma regula-
nentação nova excogitada pelo juiz quase legislador, mas da
:eprodução duma disciplina já posta no direito positivo para
;asos semelhantes e harmónicos com o espírito do sistema;
Ião é criação voluntarística do direito, mas elaboração vinculada
i lei. A obra do jurista é como a dum poeta que componha
1 rimas obrigadas. '
12. - A escola do direito livre e os novos métodos
de interpretação
A defrontar a orientação clássica, que defme em estreitos
limites os poderes do intérprete na aplicação e desenvolvi-
mento do direito positivo, sempre obedecendo à lei, fez-se
valer, recentemente, ,e em diversos países, uma nova orientação
doutrinal, umas vezes arrojada e outras, mesmo, revolucionária,
com a qual se vai .sustentando que, visto ser a ilei defeituosa
e insuficiente, toca 40 juiz corrigi-la e completá-la, e que nesta
função integradora ele pode guiar-se por momentos subjectivos,
por apreciações de interesses, pelo seu próprio sentimento,
criando no posto e' ao lado do direito positivo um direito
livre judiciário.
\
165
O movimento novador delineia-se com AmcKEs 1 que
impugna a teoria das fontes, dizendo que a lei e o costume
não produzem direito, mas que todo o direito tem a sua raiz
na convicção de cada um, e que o juiz se deve remeter à Sua
consciência para descobrir livremente o direito. O direito
positivo é limite à convicção do juiz, mas para além desta barreira
ele pode formar direito livremente.
Seguem-se os escritos de BÜLOW 2 que, exaltando a função
judicial, lhe atribui uma força criativa de direito, pelo que, ao
lado do direito legal e consuetudinário, deve reconhecer-~e um
direito judiciário: a lei não passa de ser um plano de ordena-
mento jurídico que é realizado só pelo juiz; de KOHLER 3, que
estuda a teoria da interpretação, pondo à luz a força criadora
da jurisprudência; de GENY 4, em França, o qual critica o método
de interpretação tradicional que a poder de lógica e deduções
abstractas restringe o direito e lhe tapa os horizontes, e quer
que o juiz produza o direito fazendo-se guiar pela observação
da natureza das coisas, dos princípios da justiça, da sociologia,
da filosofia, etc.; de SCHLOSSMANN 5, que reduz a lei a uma
folha de papel impresso, não se podendo, portanto, descobrir-
-lhe uma vonçade; e, por último, de KANTOROWICKZ, que no
seu conhecido opúsculo - A luta pela cí~l1cía jurídica 6, publicado
da primeira vez sob o pseudónimo de Gnaeus Flavius, depois
de ter renovado as críticas mordazes contra a função do juiz
no sentido tradicional, proclama o verbo novo da liberdade
absoluta e do arbítrio mais inconfmado: o juiz deve decidir
a seu arbítrio; a sentença não deve ser motivada; liberdade
1 Zur Lehere von den Rechtsquelletl. «Para a doutrina das fontes de
direito., Casse!, I872.
2 Gesetz und Richteramt.
3 Ueber die Interpretation der Gesetze, na GrÜl1hut's Zeitschrift, I896;
Die schiipferische Kraft der ]urisprudenz, nos ]hering's ]arbücher, 25, 270 e segs.
• Methode d'interpretation et sources, págs. 6, 457 e segs.
, Der Irrtum, págs. 25 e segs.
• Der Kampf um die Rechtswissenschaji.
166
em toda a linha; numa palavra, o direito entra na sua fase
voluntarística!
A questão do direito livre acende uma polémica vivaz
que se debate pelas Revistas, nos Congressos, e até nos jornais
políticos.
A favor do movimento enfileiram EHRLICH 1, que reco-
nhece ao juiz, se as regras postas o abandonam, o poder de
mediante descoberta livreadaptar o direito às necessidades da
sua época; STAMPE 2, que vê na apreciação dos interesses o
caminho para esta descoberta do direito; MÜLLER ERZBACH 3,
que defende da acusação de revolucionário o método realista
da ponderação dos interesses, afirmando que a teoria e a prática
embora inconscientemente, sempre fIzeram assim, ~tc. Outros
recorrem a fontes diversas, como, por exemplo, MAYER 4 às
normas de civilização, STAMMLER 5 ao direito justo, etc.
Os escritores, porém, não estão de acordo sobre a ampli-
tude desta livre criação do direito: pois alguns reconhecem
tal poder ao jui~ .s6 quando a lei é silenciosa, ou seja quando
está em presenç~ de lacunas; outros, pelo contrárlo, também
lho reconhecem no âmbito da interpretação l6gica; e por
último há mesmo algum autor que defende a criação do direito
em todos os casos.
Mas contra esta orientação apontam-se críticas e censuras
severas.
1 Freie Rechtsfindung und freie Rechtswissenschaft. .Livre descoberta do
direito e ciência jurídica livre», Leipzig, 1903.
• Rechtsfindung durch Interssenwiigung. «Descoberta do direito por meio
da ponderação dos interesses., no Deutsche ]uristen-Zeitung (Jornal alemão
dos juristas), 1905, pág. 717.
3 Rechtsfindung au! realer Crundlage «Descoberta do direito sobre funda-
mentos reais», no Deutsche ]uristen-Zeitung, 1906, pág. 1235.
• Rechtsnormen und Kulturnormen «Normas de Direito e normas de
cultura., Breslau, 1903.
o Die Lehre vom dem richtigem Rechte «A doutrina do direito recto',
Berlim, 1903.
167
U NGER " DERNBURG 2 e HELLWIG 3 acusam este método
de querer substituir à firmeza dos comandos legais o subjecti-
vismo dos juízes, criando um estado perigoso de anarquia
e de insegurança jurídica. Nenhuma autoridade pode ser
obrigada a mais estricta obediência à lei do que a autoridade
dos tribunais, que foram estabelecidos justamente para a sua
defesa e realização. O juiz que por uma suposta equidade
e oportunidade intenta mudar a lei, comete uma violàÇão
jurídica.
O direito, exclama LABAND 4, necessita firmeza; a juris-
prudência não se pode deixar mover pelas correntes do dia
e pelas tendências das classes e dos partidos, como a cana ao
vento. E LANDSBERG 5: Porventura nos tornámos, com o nosso
sentimento de equidade, tão neurasténicos que não sejamos
capazes de suportar o rigor indispensável que é a submissão
do caso particular à regra jurídica? Será preciso repetir a antiga
verdade que o direito foi criado contra o arbítrio subjectivo,
chame-se este direito natural ou direito recto, imperativo
racional ou estimação de interesses? E MICHAELIS 6: A tendência
para emancipar da lei o juiz não se pode apreciar senão como
uma tendência de revolta contra o legislador.
A questão foi deb~tida também na Itália, onde o movi-
mento do direito livre encontrou prevalentemente opositores,
como POLACCO, L. COVIELLO, DONATI e outros 7.
1 Der Kamp! um die Rechtswissenschaft «A luta pela ciência jurídica.,
no Deutsche ]uristen-Zeitung, 1905, pág. 781.
• Das bürgerliches Recht, 3.' ed., p. v.
3 Zivilprozessrecht, 1, § 93-", pág. 163.
• Rechtspj/ege und volkstümliches Rechtsbewusstsein «A jurisprudência e a
consciência jurídica popular., no Deutsche ]uristen-Zeitung, 1905, pág. IS.
o Deutsche ]uristen-Zeitung, 1905, pág. 921.
« Die Emancipation des Richters von Gesetzgeber .A emancipação do
juiz do legislador., no Deutsche ]uristen-Zeitung, 1906, pág. 394.
7 POLACCO, Le cabale del mondo legale, nos Atti deU'Istituto Veneto, 1908 .
L. COVIELLO - Dei modemi metodi d'interpretazione delle leggi, Palermo,
168
A plataforma desta orientação é uma crítica ao método
tradicional de interpretação, ao método chamado lógico ou
construtivo, que inculpam de estreiteza de vistas e de incoerência,
e sobretudo de não ter na mínima conta as necessidades novas
da vida moderna, pelo que se faz mister inaugurar um novo
método de interpretação baseado na livre apreciayão do juiz.
O método tradicional, observa-se, pretende chegar ao
conhecimento do direito por meio de deduções lógicas e de
silogismos, por meio, isto é, de pura força dialética: silogismos e
construções são as suas armas, com que ambiciona resolver todas
as questões que surjam, mesmo aquelas em que o legislador
não pensou. Ora este método é exageradamente sistemático,
geométrico, formal; transcura o momento da fmalidade do
direito, a natureza real das relações, os interesses em jogo;
reduz o juiz a simples máquina lógica. Por este caminho não
se podem colmar lacunas, e nem ao menos se pode penetrar
o sentido\da lei.
Que coisa é, de facto, a lei? A lei é um texto impresso,
rígido e mudo. 'Não se pode falar nllsticamente de uma vontade
da lei, porque a lei não quer nem pensa, e somos nós que pensa-
mos e queremos atribuir-lhe um conteúdo intelectual. Tanto
menos se pode falar duma vontade do legislador, que nos modernos
estados constitucionais, com a pluralidade dos factores que parti-
cipam na legislação, é puramente fantástico.
1908. DONATI - II problema delle lacune, pág. 175 e segs. F. FERRARA - Potere
dei legislatore e funzio~e dei giudice, na Rivista di diritto civile, 191 I.
Sobre a questão veja ainda: CALDARA - Per una missione della magis-
tratura, na Scienza dei diritto privato, 1895, pág. 373; DEGNI - L'interpretazione
delle leggi, págs. 205 e segs.; CRlSOSTOMI - Di alcune recenti íeorie sulle fonti
e sull'interpretazione, Frascati, 19°1; GALDI - La tendenza della moderna giuris-
prudenza, Nápoles, 1911; PACmONI - I poteri creativi della giurisprude';za,
na Rivista di diritto commerciale, 1912; CESARINI SFORZA - II modernismo giuri-
dico, no Filangieri, 1912; BARTOLOMEI - Le ragioni della giurisprudenza pura,
Nápoles, 1912; BRUGI - L'Analogia dei diritto e ii cosidetto giudice legislatore,
em II diritto commerciale, 1916.
169
E assim a chamada interpretação lógica é criação do direito,
criação mascarada, travestida, mediante a qual às vezes negamos
aplicação à letra da lei, só porque o seu sentido não corresponde
à justiça e à oportunidade. Simplesmente, esta modificação e
produção do direito para o caso concreto pretende cohonestar-se
sob a aparência da voluntas legis.
E que dizer então da hipótese das lacunas 1
O direito é uma congérie de decisões singulares, mas,
para as questões não decididas, o juiz está livre, e falar duma
poss{vel vontade do legislador é uma ficção.
Por isso o método tradicional, àparte o não ser científico,
também não é sincero, porque o juiz faz sempre isto, e nunca
fez outra coisa: satisfaz as necessidades da vida, consoante o
impulso dos seus sentimentos; e esconde o seu agir com o véu
da ratio legis e da analogia. A melhor prova é que a jurispru-
dência muda; que de há um século para cá foi voltado do avesso
o conteúdo e o sentido de muitas disposições legais.
Portanto, a doutrina da livre descoberta do direito não
exige nada de novo; só aspira a esclarecer o método e a disci-
pliná-lo abertamente, indicando o caminho a seguir na desco-
berta do direito de conformidade com a apreciação dos interesses.
Este raciocínio está viciado por alguns equívocos.
Antes de tudo, parte-se dum falso conceito da lei, já
que esta não é apenas uma folha de papel impresso, mas um
documento que incorpora um conteúdo de pensamento e
de vontade.
Certo, a lei não tem uma vontade no sentido psicológico;
mas inegàvelmente encerra um querido (voluto), o resultado
da vontade dos órgãos estaduais - a vontade do Estado. E então
não se pode negar à lei um conteúdo espiritual que ao intér-
prete cabe trazer a lume e desenvolver, antes é verdade que,
por se destacar do legislador no momento da publicação, a lei
existe de modo objectivo, e pode ter consequências e reper-
cussões não previstas pelos seus autores.
170
Erróneo, portanto, é o pensamento de SCHLOSSMANN
le quer reduzir a lei à letra pura e simples e restringir a função
) intérprete a conhecer o sentido verbal. Poisse a lei é a
(pressão dum comando, nada mais legitimo do que remontar
razões desse comando, ao fim que levou a ditar aquelas
.sposições.
Este tão alto ofício do intérprete exclui outra acusação
.le tem sido feita ao método tradicional- a de abuso de
,gica.
Não é verdade que o jurista opere só com corolários e
mstruções e seja um mero autómato de decisões. O método
mstrutivo não obsta a que se ponderem interesses e apreciem
ágências sociais, perscrutando-se a natureza das relações;
mplesmente, o intérprete induz aquelas apreciações que a lei
:z e não as que a ele lhe apraz fazer, tirando-as do sentimento
róprio ou das suas pessoais convicções.
A interpretação da lei é, de facto, essencialmente teleólo-
Lca; mira ao resultado prático; quer realizar um ordenamento
e protecção. Por ISso se explica a eficácia prática da jurispru-
ência que plasmou e plasma continuamente o material jurí-
ico e portanto, longe de situar-se no ambiente vazio da dialética,
)"e num ambiente cheio de realidade.
" Opõe-se que a interpretação lógica é máscara apenas, com
ue aos profanos se esconde o labor criativo, o qual apresenta
s mesmos perigos de arbítrio do direito livre.
Mas deve observar-se, pelo contrário, que o perigo de
rbítrio não é tamanho na interpretação lógica e analógica
omo na criação voluntarística do direito, pois no primeiro
aso a estimação de interesses e o desenvolvimento do conteúdo
a norma está vinculado pela lei: o intérprete poderá dar satis-
lção às necessidades sociais, porém só enquanto para tal efeito
char gérmens e meios no direito positivo; em outros termos:
desenvolvimento é sempre legal, e não extra-legal, como aquele
ue se funda sobre apreciações empíricas de interesses ou sobre
llovimentos incônscios do sentimento. O princípio que se
171
alcança nãó é uma invenção do intérprete, mas a descoberta
do direito que existe já em estado latente no sistema positivo.
De outra parte, não devemos equivocar-nos sobre o fenó-
meno da evolução da jurisprudência através dos tempos, que
é uma lei histórica de desenvolvimento que não legitima a
suspeita duma adulteração (travisamento) consciente dos textos
por obra da jurisprudência.
Temos de distinguir entre desvio intencional e desvio incons-"·
ciente do sentido da lei. Ora é inegável que, ainda com o mais
escrupuloso sentido do dever de respeito à lei, o juiz pode
enganar-se acerca do valor da disposição, e é induzido a con-
cebê-la no sentido que lhe parece mais conforme. Para isto
influem as ideias do tempo, as condições do arnbiente, etc.
Mas se isto é inevitável, não é justificado, porém, que se vá
passar ao juiz um salvo-conduto teórico para a violação da lei.
Por último, é falso conceber o direito como um amontoado
de decisões desligadas e dispersas, enquanto que, pelo contrário, as
disposições jurídicas são intimamente conexas entre si, e por isso
todas se revelam como deduções e aplicações de princípios gerais
que miram a dar uma ordenação completa às relações da vida.
Com estas. decisões reconstruir o sistema do direito que
tem a potencialidade de resolver mesmo os casos não previstos
- aqui está o nobile o.fficium do intérprete. É a razão por que
se fala da força sempre moça da lei, e nesta medida (in tanto)
é legitima a função da jurisprudência que reaviva ao contacto
fresco das correntes da vida os textos positivos.
Mas a questão do direito livre deve ser discutida sobre
a base do nosso sistema de direito público.
Pois a priori não é de modo nenhum ilógico e impossível
flar do juiz uma cooperação activa na produção do direito,
como nos mostram os exemplos do pretor romano e dos tri-
bunais de equidade ingleses; e também na actualidade o Código
Civil Suíço estabelece que no caso de lacunas o juiz deve decidir
segundo as regras que adoptaria se fosse legislador. Pelo que
172
oca, porém, ao problema de saber se no nosso ordenamento
onstitucional o juiz goza de tal poder, não é duvidoso que
,nosso sistema atribui a órgãos diferentes a produção do direito
a sua aplicação: os poderes da autoridade judiciária são limi-
ldos à aplicação da lei.
No entanto, a escola do direito livre trouxe uma renova-
ão benéfica à doutrina da interpretação, um novo sopro vital,
ois ao mesmo tempo que lançava a mãos cheias o descrédito
obre o abuso dos teoremas e das construções, isto é, sobre o
Ilétodo lógico, apontou que a decisão deve ser inspirada na
.atureza real das relações e nas exigências sociais.
Por isso, como reacção e transacção de tendências opostas,
lrgiram outras escolas, entre as quais a do método histórico-
~volutivo, propugnado em França por SALEILLES, que, conside-
ando a lei uma entidade distinta e autónoma, busca inter-
retá-Ia, não já segundo o pensamento do seu autor, mas no
~ntido que melhor a habilita para realizar os fms da justiça
da utilidade sociá!, e sustenta que, assim como as condições,
feias e necessidades mudam, assim também devemos adaptar
lei às condições históricas do ambiente, fazendo-a evolver-se
e harmonia com o movimento social. A lei tem de ser respei-
lda quando o seu sentido é indúbio, mas se há incerteza no
~u conteúdo, se o significado originário se mostra já em desa-
ordo com o rumo (indirizzo) da nova legislação, ou se trata
,e colmar lacunas, o intérprete, além de se inspirar nos elementos
Iltemos da lei, deve inspirar-se também nos factores sociais que
ircundam a vida do direito em todas as suas manifestações
demonstram a sua fmalidade 1.
1 Para esta direcção, veja: DEGNI - L'ínterpretqzíone, pág. 160 e segs.;
SMEIN - La jurísprudenee et la doetrine, na Revue trjmestriel/e de droit civil,
902, 5; SALEILLES - Éeole historique et droít naturel, na Revue trimestrel/e, 1902,
J; ALVAREZ - Une nouvel/e eoneeption des études juridiques, Paris, 1904; QUARTA
- Per il eentenario dei Codiee civile franeese, na Rivísta d'Italia, 1905, I, 5.
1
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I,
~
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173
Este método é certamente verdadeiro, e para nós não
constitui um desvio, antes nos parece uma exacta inteligência
do método tradicional, do qual se tem exagerado os defeitos,
que, todavia, são dos autores e nunca da orientação em si.
A chamada interpretação evolutiva é sempre mera apli-
cação do direito, e repousa em dois cânones: a ratio legis é
objectiva (não a ratio subjectiva do criador da lei) e é actual (não
a ratio histórica do tempo em que a lei foi feita). Assim pode'
acontecer que uma norma ditada para certa ordem de relações
adquira mais tarde um destino e função diversa.
É um fenómeno biológico que tem correspondência no
campo do direito.
De sorte que uma disposição jurídica pode ganhar, com
o tempo, um sentido novo que os intérpretes nunca lhe tinham
atribuído e que também não estava nas previsões do legislador,
ressalvado, já se entende, que daí não venha contradição com
outras disposições ou desarmonia com' o sistema. A interpre-
tação evoluciona e satisfaz novas necessidades, sem todavia
mudar a lei. A lei lá está; mas porque a sua ratio, como força
vivente móvel, adquire com o tempo coloração diversa, o intér-
prete sagaz colhe daí novas aplicações.
Isto, porém, não é possível sempre, e até o mais das vezes esta
actividade resulta impedida; mas não faltam disposições obscuras,
dúbias e indeterminadas, e às vezes palavras elásticas que prestam
auxílio inesperado para regular toda uma nova série de relações.
Resumindo, pois, o juiz pode aplicar princípios da lei
a casos novos, dar a princípios da lei um sentido novo, desde
que não vá de encontro a outras normas.
Até aqui pode chegar a obra do intérprete. Mas desviar-se
conscientemente da lei, querer reformá-la ou inová-la por pre-
tendidas exigências de interesses, é atraiçoar a função do magis_
trado. O juiz deve ficar pago com a sua nobre missão, e não
ir mais longe, passando a usurpar os domínios do legislador.
Os dois poderes estão divididos, e assim devem estar.
174
Decerto o JUlZ nemsempre pode dar satisfação às neces-
sidades práticas, limitando-se a aplicar a lei; alguma vez se
encontrará em momentos trágicos de ter de sentenciar em
oposição ao seu sentimento pessoal de justiça e de equidade,
e de aplicar leis más. Tal é, porém, o seu dever de ofício. Na
reforma das leis, na produção do direito novo pensam outros
órgãos do Estado: ele não tem competência para isso.
Só com esta condição se pode alcançar aquela objectiva
segurança juridica que é o bem mais alto da vida moderna,
bem que deve preferir-se a uma hipotética protecção de exi-
gências sociais que mudam ao sabor do ponto de vista, ou do
carácter, ou das paixões do individuo. Esta é a força da justiça,
a qual não é licito perder, se não deve vacilar o fundamento
do Estado; mas esta é também a sua fraqueza, a qual nós devemos
pagar, se queremos obter a inestimável vantagem de o povo
nutrir confIança em que o direito permaneça direito 1.
13. - Elabo~ação científica. O direito como ciência: 2
A missão do jurista não se exaure na interpretação e no
desenvolvimento da vontade legislativa.
Isto é, de certo, matéria da actividade da jurisprudência,
mas é a operação inicial que se realiza sobre o material legis-
lativo bruto, é a forma mais baixa e primitiva do conhecimento
do direito. Alguns povos e algumas épocas históricas queda-
ram-se neste estádio de cultura, na exegese e no comentárío,
na investigação de textos paralelos e na conciliação de anti-
nomias. Tal foi a obra dos glosadores, e tal se demonstra a
dos comentadores a toda a nova codifIcação que surge.
O progresso intelectual, porém, e o afinamento dos meios
de estudo levam a outra fase de desenvolvimento, isto é, à elabo-
ração cientifIca do material juridico.
1 HELLWIG, Lehrbuch, I, pág. 155.
• KOHLER, Lehrbuch, r, § 42.°, pág. 135.
175
O direito é também uma ciência, e, como toda a ciência,
pressupõe que a sua matéria seja transformada em conceitos
e que estes conceitos sejam compostos em unidade sistemática.
O direito deve ser organizado para se simplificar o seu conteúdo,
dando-lhe expressão mais adequada e precisa. Assim se torna
mais fácil compreender e senhorear o material e se chega a
entender o pensamento juridico.
Ora o conjunto dos meios e processos que servem para
tal objectivo constitue o método jurfdico 1.
O método juridico, por consequência, propõe-se dois fins:
a simplificação quantitativa e a simplificação qualitativa do
direito, que é apresentado numa smtese concentrada, ordenada
e rigorosa, a qual torna possível dominar intelectualmente
todo o material positivo. Com isto o direito resulta mais Hcil
de ser compreendido, mais acessivel, e aumenta-se a segurança
da sua realização, pois um direito exageradamente complicado
é direito que fica sempre meio inóbservado.
A simplificação quantitativa tende a contrair a massa dos
materiais (lei de economia), classificando-os e reduzindo-os a
categorias gerais, reagrupando sob forma abstracta as apli-
cações dispersas e concretas. A simplificação qualitativa, ao
invés, tende a purifIcar a qualidade do material, apresentando-o
numa forma interiormente ordenada, em que as partes singula-
res se reunem harmànicamente numa só unidade.
As operações fundamentais desta elaboração cientifica são
três: a análise jurfdica, a concentração 16gica e a construção jurídica.
1 Sobre o método jurídico continua a ser clássica a tratação (trataziolle)
de lHERlNG - Geist des romischen Rechts «Espírito do direito romano», II,
§ 41.° e 42.°, que aqui é particularmente utilizada.
Veja ainda, além de KOHLER, já citado: LEONHARD - Der aligemeiller
Teil des bürgerliches Gesetzbuch «A parte geral do código civiL), pág. 59;
SCHLOSSMANN - Der Vertrag «O contrato», págs. 235 e segs.; WINDSCHEID
- Pandette, I, § 24.°; e DEMOGUE - Les notions fondamentales du drait privé,
pág. 225 e segs.
176
1.o Análise jurfdica.
A análise juódica consiste na decomposição da regra de
direito nas suas unidades elementares, na separação e eliminação
daquilo que é particular e contingente, e na redução dos pre-
ceitos juridicos a conceitos juódicos 1.
Das normas de direito no seu complexo, bem como de
elementos de uma só norma, extraem-se os conceitos jurfdicos,
isto é, fórmulas abstractas em que se concentra o pensamento,
que constituem o precipitado das disposições positivas. Assim
o conceito de domínio, de contrato, de herança. E por sua vez
estes conceitos cindem-se e analisam-se em conceitos mais
simples e gerais: assim os de direito real, de negócio juridico,
de sucessão.
Estas unidades elementares têm para o direito a mesma
função e utilidade que as letras do alfabeto têm para a lingua-
gem. É a comparação clássica de lHERING. Exactamente como
para dominar a ,matéria inexaurivel duma lingua basta um
número restricto "de sons gràficamente expressos, também para
dominar a matéria juódica basta decompor as regras de direito
nos seus elementos primeiros, porque as disposições positivas
não são mais do que combinações destas unidades.
A primeira tarefa da ciência juódica é, portanto, a inves-
tigação destes elementos simples do direito.
A análise juódica pode chamar-se a qwmica do direito.
Do mesmo modo que o químico analisa os corpos singulares,
reduzindo-os aos seus elementos fundamentais, e busca os
principios segundo"os quais se produzem as combinações qui-
micas, assim o jurista deve analisar os corpos juridicos, redu-
zindo-os aos seus elementos puros, estudar as causas e as formas
de combinação, des<:obrir as relações e reacções entre os vários
1 SCHLOSSMANN _ Der Vertrag., pág. 242; ELTZBACHER - Ueber Rechts-
begriffe .Sobre os conceitos jurídicos>, Berlim, 1900•
177
elementos, para poder, por sua vez, recompô-los e reconstrui-los
sobre outra base e forma.
Neste procedimento é indispensável uma rigorosa termino-
logia que, em forma abreviada e sintética, nos dê um conteúdo
complexo de ideias. A todo o conceito deve corresponder
uma designação técnica, que poupará longos desenvolvimentos
e distinções. A terminologia pode dizer-se a estenografia do
pensamento, e tem a mesma função que na álgebra desempenham
os sinais dos logaótmos e das raizes das fracções «sic».
Este trabalho de análise é preparatório para uma operação
mais complexa, de natureza sintética.
2. o Concentração 16gica.
Uma vez distinguidos e separados, os elementos do direito
devem reunir-se para serem reagrupados segundo razões intrín-
secas de semelhança, de íntima afmidade, e extraindo-se as
regras gerais que presidem às soluções particulares.
Trata-se de reproduzir, por via de abstracção e sob uma
expressão lógica diversa e mais intensa, o princípio contido
nas soluções particulares. O volume externo da matéria jurídica
concentra-se em princípios abstractos, mais poderosos, que encer-
ram, virtualmente, a massa das aplicações. E não só isto: por
que uma vez apurado o princípio, ele mesmo se torna em fonte
de novas regras de direito.
A concentração efectua assim a transformação da massa
das decisões legislativas num complexo de princípios.
Extrair o princípio juridico é operação delicada que, para
não se cair no erro, pede um exame atento da relação.
É preciso que não nos deixemos enganar por aproxi-
mações e semelhanças extrmsecas, que não troquemos a ideia
inspiradora da regulamentação por qualquer outra que, pelo
contrário, apenas se ligue às condições peculiares do caso regu-
lado. Na formação dos princípios devem ser eliminadas como
perturbadoras todas as causas que podem ofuscar a boa solução,
e é necessário pôr à prova em outras situações o princípio obtido,
12
178
?ara se ver em que termos se comporta e a que resultados
:onduz. Como em toda a investigação científica, deverá pro-
:eder-se à experimentação. Trata-se de encontrar casos decisivos
típicos, onde o princípio é posto de modo talhante (tagliente) ,
a fim de se averiguar se é exacto ou não 1. Se oprincípio leva
ao absurdo, quer isto dizer que é errado e tem de modificar-se.
Esta redução dos materiais positivos a regras abstractas,
enquanto por um lado simplifica a estrutura do direito, reagru-
pando à volta de certos pontos, que são quase os centrosnervosos,
todas as decisões jurídicas particulares', também faz aparecer,
e põe à luz, as anomalias da lei, as singularidades sem funda-
mento, os resíduos históricos que permanecem isolados e desti-
nados a desaparecer; e por outra parte a descoberta dum prin-
cípio manifestado casualmente numa só aplicação, que constitui
o seu ponto de irrupção na vida jurídica, pode determinar a
sua expansão luxuriante.
Note-se, porém, que os princípios jurídicos mudam com
a transformação ,do material positivo, e por consequência
devem experimen:tar-se em todo o sistema legislativo, num
dado momento histórico, pois pode acontecer que um prin-
cípio excepcional em certo tempo se torne dominante mais
tarde, e vice-versa. Estas ideias-forças que são os princípios
de direito devem sempre manter contacto com a vida, sob
pena de se converterem em dogmas estéreis.
3. o Construção juddica.
A fase mais alta da elaboração teórica do material de
direito é a construção dos institutos jurídicos.
Entende-se por construção jurídica o procedimento pelo.
qual se procura colher as qualidades essenciáis características
dum instituto, reconduzindo-as a conceitos mais amplos e
conhecidos, ou então se apresenta a concepção geral dum ins-
1 KOHLER - Lehrbuch, I, pág. 136.
• DEMOGUE, Les notions fondamentales, págs. 235.
179
tituto, resumindo sob uma ideia unitária de carácter técnico
o seu complexo ordenamento positivo.
A actividade construtiva é vária pelo conteúdo e pela
intensidade.
Todo o trabalho de organização sobre a matéria jurídica
é construção. Analisado um instituto, diferenciados os seus
elementos segundo os respectivos caracteres internos, extraídos
os princípios que estão na base das várias disposições, o jurista
procede mais alto na sua obra de concentração e de síntese,
determinando as notas essenciais que individuam tal instituto,
e reconduzindo-o a uma categoria mais geral, de onde recebe
luz e desenvolvimentos.
Deste modo as figuras jurídicas se subordinam umas às
outras, agrupando-se em tipos próprios; outros tipos, com
numerosas variedades, se contrapõem; e todos se recolhem
e conjuntam num organismo jurídico único - o sistema 1.
Mas também há construção jurídica quando se concentra
em forma unitária uma regulamentação positiva, quando, isto é,
se chega a obter uma ideia única superior da qual as soluções
da lei se demonstram aplicações.
Ao passo que a regulamentação positiva aparece exterior-
mente como simples ajuntamento de decisões separadas, a mesma
questão recebe, por vezes, soluções opostas, e a matéria jurídica
está envolvida em particularidades e detalhes, a construção
jurídica, operando com conceitos abstractos, intenta abraçá-la
sistemàticamente numa forma unitária, refunde e plasma o
material jurídico num esquema técnico que constitui - pode
1 Pense-se, v. g., nos vários tipos de direitos reais: propriedade, usufruto,
servidões, a que se contrapõem os direitos de obrigação, para formarem todos
os direitos patrimoniais.
Assim também quando se discute se os direitos de autor são uma forma
de propriedade, trata-se dum problema de construção, pelo qual, cotejadas
as duas figuras, e eliminados os caracteres contingentes, se chega às notas que
formam a sua essência jurídica e se examina se é possível a subordinação dum
conceito ao outro.
180
izer-se - a armadura teórica em torno da qual se reúne e
ispõe natural e espontâneamente o material positivo.
A dificuldade da construção está em achar a ideia domi-
ante que preside à regulamentação jurídica, e tal coisa não
fruto apenas de reflexão, mas de intuição e golpe. de vista.
ó o jurisconsulto experimentado pode sair-se bem na construção
lrídica que, na simplicidade das suas linhas, dá a impressão
uma obra de arte.
De certo, há hoje nos autores um abuso de construções;
!las é necessário distinguir as tentativas artificiosas das cons-
ruções perfeitas.
As condições a que tem de satisfazer uma boa construção
.lrídica são as seguintes 1 :
1.o A construção juddica há-de coincidir exacta e inteiramente
om o direitõpósitfvo. - Os principios positivos são os pontos
lados, as pilastras sobre que deve levantar-se a construção
Ilrídica. Esta deve respeitar o conteúdo das regras legais, e todo
~ conteúdo: não pode prescindir duma parte e considerar como
xcepções arbitrárias algumas normas, para organizar o restante da
natéria. O jurista que por tal modo quisesse formular .reorias, só
lavia de fazer obra de destruição, que nunca de construção jurídica.
A actividade construtiva é portanto organização formal
la matéria de direito na sua totalidade.
Mas não basta: poisa construção jurídica. também deve
:orresponder à realidade jurídica; deve dar uma reprodução
'eal e verdadeira do material positivo, em vez de a apoiar sobre
;oncepções artificiosas e falsas.
Por isso a construção se distingue da ficção doutrinal.
l\ ficção procura satisfazer a mesma necessidade prática de
lar uma configuração simples e unitária às realções; só que,
1 Veja, além de !HERING: EXSELE, no Archiv für civilistische Praxis
(Arquivo para a prática civil., 69, 317; RÜMELIN (Gustav) - Iuristiche Begriffs-
\ildung «A formação dos conceitos jurídicos», Leipzig, 1878, pág, 20; STAMMLER,
Wirtschaft und Redu «Ecónomia e Direito., pág. II2.
181
enquanto a construção é a síntese real dos efeitos, a ficção é
uma síntese figurativa, simbólica. A ficção doutrinal não é
senão uma forma infantil e imaginosa, tecnicamente imperfeita,
de construção jurídica. Também ela abraça e aperta à volta
dum núcleo central uma regulamentação jurídica, mas este
centro, em lugar de ser uma ideia inspiradora da regulamentação,
é feito duma metáfora, duma comparação, duma imagem.
2. o A construção juddica deve ter unidade sistemática. - Signi-
fica isto que há-de estar isenta de contradições, ou seja que a
concepção. teórica não se pode pôr em conflito com outros
princípios e teoremas científicos. Um conceito não pode sofrer
excepções sem se negar a si mesmo.
Por isso é preciso submeter à prova a construção jurídica,
pondo-a em todas as situações imagináveis, combinando-a de
todas as maneiras possíveis, e confrontando-a com os princí-
pios fundamentais. Uma construção que não resiste à expe-
rimentação é ilegítima.
3. 0 A construção deve ter beleza artística (elegantia iuris).
- A concepção obtida há-de revelar-se uma configuração
artística da matéria, como forma simples, natural, transparente,
da realidade jurídica. A extrema simplicidade é a manifestação
suprema do belo. Se se chega a conceber as relações mais com-
plexas na mais simples das formas, atinge-se as culminâncias
da arte.
O valor das construções é grande, quer do ponto de vista
teórico, quer do prático.
A matéria jurídica é reproduzida numa forma sintética e
luminosa que permite abraçar numa só mirada todo o conteúdo
positivo, em toda a sua inteireza e generalidade. Com o auxilio
das construções jurídicas consegue-se reunir e compor num
sistema jurídico as várias partes do direito. Um resultado do
sistema jurídico é a criação duma Parte Geral do direito, onde
se coligem todas as teorias que valem para todo o campo
jurídico.
182
Mas este trabalho de sistematização pode também acarretar
prejuízos, pois, como o direito está sempre em movimento e
desenvolvimento, os dogmas teóricos, imobilizando-se, acabam
por já não ter correspondência na realidade. Se as correntes
da vida jurídica - diz DEMOGUE 1 ~ estão assim coaguladas por
uma doutrina demasiadamente precisa, as transformações sociais
já não se podem realizar dentro dos limites que se acham esta-
belecidos, e os factos acumulam-se como atrás dum dique.É necessário, portanto, que a doutrina reveja e retempere
contlnuamente as suas teorias ao contacto das novas leis que
se sucedem e dos fenómenos reais da vida prática.
Tudo isto nos faz ver quanto é alta e árdua a missão do
jurista, e como ele se distingue do empírico e do leigo. Oconhe-
cimento científlco do direito pede um conjunto de vistas e
uma educação muito particular. Porque não basta aprender
de cor a massa do material legislativo: ocorre saber assimilá-lo
e servir-se dele.
O jurisconsulto necessita de um poder de concepção e de
abstracção, da faculdade de transformar o concreto em abstracto,
do golpe de vista seguro e da percepção nítida dos princípios
de direito a aplicar, numa palavra, da arte juddica. A mais
disto deve ter o senso juddico, que é como o ouvido musical
para o músico, ou seja uma pronta intuição espontânea que o
guia para a solução justa.
As duas qualidades reunidas formam a educação juddica,
que não se adquire senão depois de longo habito de estudo.
Ela, e não a massa dos conhecimentos, é o que estrema o jurista
do leigo: com um saber moderado pode-se ser um jurista
distinto, e nunca se chegar a sê~lo, tendo-se embora um conhe-
cimento vastíssimo 2.
O modo diverso como se comportam o jurista e o leigo
observa-se quando um e outro tratam um caso jurídico. Ojurista
1 Les Notions fondamentales, pág. 236.
• !HEIuNG-Geist, § 37.°, pág. 313·
183
apanha, de súbito, os lados que são juridicamente importantes,
extraindo-os de outros que são irrelevantes, para desde logo
colher o princípio a aplicar. Em contraposição o leigo não é
capaz de tal força de abstracção; não sabe separar o importante
do não importante; fica embrulhado no meio duma quantidade
de pormenores que o impedem de conseguir uma exacta apli-
cação dos princípios.
A diflculdade para o leigo de resolver casos complicados'de
direito está precisamente em que ele fica enredado nos detalhes sem
importância, e não sabe que a decisão depende sempre dum ponto
essencial jurídico e tudo o mais não passa de bagagem inútil l .
Por outra parte, o jurista faz uma aplicação consciente
do direito, sabe a norma que deve aplicar; e se a não encontra
numa disposição precisa, elabora-a, tirando-a de casos seme-
lhantes, especifica a matéria jurídica servindo-se do procedi-
mento analógico. Mas o leigo dificilmente alcançará extrair
a norma adequada, se esta não se' lhe oferece já pronta no
material legislativo, e mesmo se um instinto jurídico o adverte
de que segue rota falsa, mingua-lhe a capacidade para acertar
com o caminho exacto.
O jurista precisa também de fantasia, quer de abstracção
quer de combinação, pois só desta maneira pode contribuir
para a descoberta de verdades novas. Como na ciência, assim
na jurisprudência à intuição feliz dum autor se devem tantas
descobertas, que depois a experimentação controlou e reafirmou.
Muitas vezes, e até demais, se falou na Itália do método
de estudo 2: havia quem exigisse um estudo do direito civil
1 KOHLER - Lelzrbuclz, 1, pág. 14I.
• A literatura sobre este tema, que esteve em modo algum tempo,
é assoberbante e agora, com razão, está caída no esquecimento. A discussão
que se agitava emrolvia, porém, diversos problemas, pois não só se ocupava
do método de estudo do direito civil, mas também do método do ensino,
e até mesmo do conteúdo substancial do Código Civil em confronto com
as ciências políticas e sociais, exigindo a renovação dele.
184
independente de toda a aplicação prática, ou seja um estudo
dos puros princípios da ciência pela ciência; mas não faltava
quem condenasse esta abstracta matemática das relações, e pro-
pusesse contemperá-la com o sistema prático, e até quem
quisesse inaugurar uma escola sociológica do direito, preten-
dendo transformar o direito segundo as leis da evolução, com
o que vinham a ser introduzidos na ciência jurídica elementos
e critérios não jurídicos, de dúbio e desacreditado valor.
A nós parece-nos que, sendo o método um instrumento
para a pesquisa da verdade, não se deve partir de preferências
ou exclusões a priori. Todos os métodos são bons quando
guiam ao saber.
O caminho a seguir está, por isso, no justo equilíbrio e na
combinação dos diversos meios de estudo, a que deverá simul-
tâneamente recorrer-se, consoante os casos, e que mutuamente
se completam e controlam.
Se a ciência opera com a elaboração de princípios, em
forma sistemática, não deve, porém, transcurar o método
analítico e o resultado da prática. Se não quer perder-se numa
lógica abstracta e numa jurisprudência de conceitos, tão àspe-
ramente fustigada por lHERING 1, a ciência não deve encerrar-se
num magnífico e solitário castelo de marfim, distante dos rumores
do dia, mas tem de entrar na vida, seguir-lhe os movimentos e as
aspirações, perscrutar as necessidades que a fàzem pulsar, sempre
consciente da mónita que não é· a vida que deve adaptar-se ao
direito, mas sim o·direito à vida.
1 Este autor - Scherz und Ernst íll der ]urísprudenz «jurisprudência
jocosa e jurisprudência séria., pág. 357, comparava a teoria conceituai a um
circo para exercícios acrobáticos dialécticos.
III
DETERMINAÇÃO DA NORMA A APLICAR
AO CASO CONCRETO. O DIREITO
COMO TÉCNICA
14. - Aplicação das normas jurídicas. A arte da
decisão
A actividade do intérprete tendente a apurar o conteúdo
da lei e a desenvolvê-lo e completá-lo, bem como a elaboração
científica, têm por último fim a aplicação. Porque o direito
vive para se realizar, e a sua realização consiste nem mais nem
menos que na aplicação aos casos concretos. O conhecimento
do direito visa este objectivo prático - a decisão dos casos
jurídicos.
Mas aqui se nos depara outro aspecto da actividade do
jurista - a arte da decisão. O juiz terá de adaptar a norma
abstracta à situação de facto, terá de sotopor o caso contro-
verso aos princípios exactos que o governam, de escolher, isto é,
que princípios são de aplicar na hipótese (actividade de subsunção j.
Ora esta actividade não é simples, já que o facto se apre-
senta envolvido entre circunstâncias e detalhes nem sempre
juridicamente importantes ou nem todos de igual valor, e deverá
ser isolado nos seus elementos juridicamente sensíveis; e, além
disso, a todo o caso singular não é aplicável uma só dispo-
sição, mas um conjunto de disposições combinadas e reagindo
umas sobre as outras.
Ocorre, pois, que o jurista considere o efeito das normas
na sua totalidade, e não apenas uma norma de per si; tal como
o mecânico não precisa de conhecer só uma ou outra lei cine-
mática, mas deve também saber por que modo, na cooperação
13
186
/-"
de várias leis, se produz o resultado complexivo 1: ESJ:á nisto..
a aplicação consciente do direito, ou a técnica da decisão: es~á_
em saber atinar com as diversas normas a que, na sua combinação,
pertence governar o caso concreto.
Esta actividade exige aptidões ou disposições de que nem
todos os juristas sãó dotados.
Pois não basta conhecer, ainda que profundamente, o direito
para o saber traduzir em realidade, e há teóricos distintos que
não são capazes desta elasticidade mental que os torne mestres
no manejo dos principios na arte de decidir 2. Existe ainda
uma capacidade espiritual, um sentimento próprio, e assim se
explica como, ao lado da técnica na aplicação, há também uma
aplicação instintiva do direito, por via da qual, sem mais, o prá-
tico sente a decisão justa e a segue.
De certo que este instinto jurídico é dum extraordinário
auxilio para o jurista, mas não basta, nem merece confiança
cega 3. E porque o instinto muitas vezes pode enganar, e a
aplicação inconsciente oferece o perigo do erro e do arbítrio,
por isso o juiz deve controlar se a solução instintiva que à pri-
meira vista lhe parece justa é verdadeiramente tal. e concorda
com o direito positivo, ou pelo contrário não passa duma intui-
ção ou aspiração do sentimento jurídico que não tem corres-
pondênciana lei.
Com efeito, o maior risco da prática é que, decidindo
ex aequo et bono, ela acabe por perder de mente a sua função
de executora da lei.
A actividade judiciária, porém, não se reduz ao trabalho
de subsunção dos factos à norma de direito.
Apertar nestes limites a função do juiz, é concepção falsa
e estreita. Pois o juiz não é um autómato de decisões; é um
1 KOHLER, Lehrbuch, I, pág. 140.
• A aplicação do direito é uma técnica de base científica (veja STAMMLER,
Die Lehre von dem richtigen Rechte, pág. 312).
• KOHLER, Lehrbuch, I, pág. 123.
187
homem pensante, inteligente, e participe de todas as ideias
e conhecimentos que formam o património intelectual e a
experiência do seu tempo.
Ao julgar, portanto, o juiz utiliza, e deve utilizar, conhe-
cimentos extra-jurídicos que constituem elementos ou pressu-
postos do raciocínio. Verdades naturais ou matemáticas, prin-
cípios psicológicos, regras do comércio ou da vida social,
compõem um acervo inesgotável de noções do saber humano,
de que o juiz todos os dias se serve no desenvolvimento da
sua actividade. Tais são os princípios de experiência, defmições
ou juízos hipotéticos de conteúdo geral, ganhos por obser-
vação de casos particulares, mas elevados a princípios autó-
nomos com validade para o futuro.
Estes princípios pode o indivíduo obtê-los directamente
por indução dos factos; muitas vezes, porém, constituem um
material adquirido de ideias, património comum da genera-
lidade ou pelo menos de certos circulas de pessoas.
Algumas outras vezes é a lei mesma que apela para os
conhecimentos do juiz, quando nas suas disposições não deter-
mina com precisão o estado de facto, mas remete para factores
sociais, v. g., para os bons costumes, para os usos locais, para
a boa fé do comércio: aqui deve valer como direito o que o
juiz, pelo seu conhecimento das relações da vida, considerar
normal e típico naquela série de fenómenos.
Por isso ocorre notar que a antítese COll1.Uln entre factos
da causa e normas de direito não é exaustiva, visto como entre
aqueles e estas devem pôr-se os princípios de experiência, que
são princípios de conteúdo geral, tirados duma multidão de
observações, e que o juiz pode utilizar directamente ao senten-
ciar, ou pode conseguir pela cooperação das partes, servindo-se
dos meios processuais 1.
1 Veja o que anteriormente ficou dito acerca do poder de inquirição
oficial, que o juiz tem pelo que respeita aos costumes - o que vale igualmente
para todos os princípios de experiência. "efr. supra, n. o I, e o n. o 34 do Trattato».
188
15. - Relações entre a teoria e a prática
Teoria e prática não estão em antítese, não são lUlmigas
ou estranhas que mutuamente se ignoram ou desprezam: pelo
contrário, entre elas existe uma colaboração recíproca 1. Tendo
objectos de actividade distintos, cada uma tem sempre que
aprender da outra.
A teoria, operando com conceitos abstractos, com a força
lógica, é capaz de extrair os princípios gerais da lei e de lhes
dar o máximo desenvolviménto de expansão. Este trabalho,
porém, fá-lo para a prática, para que surta mais completa e
perfeita a aplicação do direito. A jurisprudência deve, pois,
olhar à doutrina, ter em conta os resultados dos seus estudos,
e pô-los à prova na aplicação.
Mas a teoria recebe quotidianamente da prática ensina-
mentos e sugestões.
A prática, posta em face de hipóteses reais e das necessi-
dades da vida, sente primeiro a solução jurídica, ao passo que
a doutrina, trabalhando com hipóteses teóricas, não tem esta
percepção pronta da realidade. É à jurisprudência,. portanto,
que a teoria deve ir colher a expressão das necessidades sociais
que se fazem sentir e batem à porta dos Tribunais. Além disso,
a variedade inexaurível das questões práticas frequentemente
revela problemas novos, ou novos lados de problemas jurí-
dicos e abre novos campos de estudo à dogmática 2. Às vezes
llill caso jurídico mostra experimentalmente que uma teoria
1 V. SCIALOJA, Dírítto prátíco e dírítto teoríco, na Rivísta dí dírítto commer-
,íale, 19II, I, 941,
2 Daqui a importância da actividade doutrinal que se desenvolve na
motação de decisões íurisprudenciais. Por vezes uma destas anotações é o
ponto de partida duma nova elaboração dum instituto.
Em França foi um esplêndido exemplo deste método um jurisconsulto
::j.ue se dedicou a tal género de trabalhos - LABBÉ. Veja: Livre d~entenaíre
>lu Code Napolion, I, pág. 173 e segs.; e MEYNIAL - Les recueils d'arr2ts et les
lrr2tístes.
189
é errada ou unilateral, e por isso desmorona ao contacto dos
factos o edifício fadigosamente levantado pelas abstracções dos
teóricos.
Entre a teoria e a prática deve existir um enlaçanlento,
um intercâmbio de produtos espirituais, um fluxo e refluxo
de ideias. A prática deve erguer-se do empirismo e da intuição
instintiva do direito até uma aplicação consciente dos prin-
cípios; mas a teoria deve retemperar os seus teoremas" no
banho da vida real, dos fenómenos económicos, das situações
que se suscitam e são apreciadas pela jurisprudência quotidiana.
Uma e outra devem juntar e fundir as suas vistas, as suas críticas,
os seus desejos, para cooperarem na actividade legislativa.
16. - Extinção das normas jurídicas
As normas jurídicas não são imortais, mas sujeitas a modi-
ficarem-se e a extinguirem-se. Como na natureza, assim no
mundo jurídico não há imobilidade, mas transformação: o direito
renova-se com os tempos. Um direito imóvel não pode existir;
pelo contrário, se o legislador declarasse não querer de futuro
abrogar ou mudar uma certa lei, o seu comando resultaria
inútil e invinculante.
Todavia as leis, normalmente, têm um carácter de estabí-
lídade, e são destinadas a uma duração indefmida. Valem
enquanto o Estado não declarar suprimi-las no todo ou em
parte (abrogação ou derogação) 1.
Uma norma jurídica não pode considerar-se extinta pelo
conseguimento do fim que se propôs, ou por virem a faltar as
1 ULPIANO, frag. 3, De legíbus: lex abrogatur, ídest prior lex tollitur.
Lex derogatur, ídest pars príorís legís tolítur. PFAFF e HOFMANN - Kommentar, I,
págs. 214 e segs. REGELSBERGER - Pandekten, I, § 26.'. EISELE, no Archiv
für díe Cívilístische Praxis, 66, 283. SAREDO - Abrogazíone della legge, no
Dígesto ítalíauo. DONATI - Abrogazíone della legge, no Dízionario di dírítto
publíco.
190
circunstâncias ou os motivos que a determinaram, ou pela sua
contraditoriedade com as exigências sociais. Isso pode ser
motivo para a sua abrogação, e nunca uma causa de extinção
da norma. É portanto erróneo, neste sentido, o. brocardo
Cessante ratione legis, cessat et lex ipsa. A vontade do Estado
existe de modo autónomo, independente e destacada dos factores
psicológicos que a fizeram nascer, assim como prescinde dos
resultados bons ou maus a que conduz na sua realização.
A lei conserva-se não obstante as modificações da consti-
tuição política dum Estado, e mesmo se o Estado acaba, porque
o seu território é incorporado em outro Estado, este sucede
no ordenamento jurídico do Estado anterior, nos limites do
território do ex-Estado. Assim, vigoram ainda hoje leis anti-
quíssimas, como as leis sobre a transmissão dos títulos nobi-
liários, sobre o direito de padroado nas Igrejas, e leis sobre
a caça, visto que, em parte, não foram modificadas.
Para que se verifique, portanto, a extinção é necessário:
ou que a própria lei contenha em si um limite à sua eficácia
(leis ad tempus) j '.ou que a lei seja mudada ou abrogada por
outr~ posterior '.
Não infrequente é o caso de leis que no seu conteúdo
determinam a duração da sua validade, pelo que, transcorrido
o prazo, elas deixam de ter valor, a menos que intervenha uma
prorrogação da sua eficácia. Assim a lei de 15 de Agosto de 1863
para a repressão do banditismo, a lei de 19 de Julho de 1894
contra as manifestações anarquistas, etc.
Este termo pode resultar também mediatamente, emrelação a um certo evento. Assim as leis especiais de guerra
1 Aqui não são tomadas em consideração as leis formais, que são
simples actos administrativos em veste de lei, os quais, naturalmente, estão
subordinados a outros princípios, pelo que toca a sua eficácia. Assim uma
lei formal constitutiva dum direito subjectivo extingue-se por renúncia,
prescrição, etc., mas em substância trata-se aqui dum negócio jurídico e não
duma norma juridica.
191
costumam ter a sua vigência fixada até um período de tempo
depois da conclusão do tratado da paz. Uma lei sanitária pro-
vocada por uma epidemia é aplicável até que um acto admi-
nistrativo declare cessado no país o estado de infecção.
É preciso, todavia, que a lei subordine e delimite a sua
eficácia àquele dado evento, pois nem toda a lei emanada por
ocasião dum estado de facto transitório (v. g., um desastre,
uma sedição, uma crise) cai necessàriamente quando este cessa '.
A não se verificar a indicada subordinação, a lei mantém-se
em plena validade, só que a sua aplicação pode tornar-se gra-
dualmente mais rara, e por último desvanecer-se. Mas deve
distinguir-se entre a não aplicação duma lei por falta de relações
a regular e a sua inexistência jurídica: no primeiro caso a norma
existe e é sempre capaz de desenvolver eftcácia se uma nova
relação se apresenta, como um arco retesado, pronto a despedir
a [recha; ao passo que no outro não há norma.
Isto vale também para as disposições transitórias, chamadas
a disciplinar as relações existentes no passado, quando entra
em vigor uma lei nova. Formalmente, essas disposições valem
sempre. É certo que com o andar do tempo a sua aplicação
se vai tornando sempre mais rara, ou até se anula, pois as rela-
ções anteriores vão desaparecendo gradualmente. Mas nem
por isso se pode dizer que tais disposições estão abolidas. E pelo
contrário algumas disposições transitórias têm duração indeter-
minada (por ex. o art. 48.°, primeira parte, das Disposições
transitórias para a aplicação do Código Civil).
Todavia a forma ordinária de abrogação ou mutação
duma lei tem lugar por força duma lei posterior (art. 5. ° das
Disposições preliminares ao Código Civil).
É preciso que se trate duma verdadeira lei, e não dum acto
administrativo. Assim um regulamento não pode abrogar uma lei.
1 Assim COVIELLO - Manuale, pág. 97; DE RUGGIElw - Istituzioni
di díritto cíl'ile «4.' ed., l, pág. 163'"
192
Diverso é o caso de se tratar dum acto que a autoridade
administrativa emana por delegação do poder legislativo.
A lei, de facto, pode pronunciar a supressão dum princípio
jurídico ou directamente ou delegando no Governo tal facul-
dade: nesta hipótese é a lei de autorização que tira a força
formal à lei modificada 1. Em termos análogos se resolve a
questão de saber se um tratado internacional pode mudar uma
lei: não é o tratado como tal, senão a lei interna que o aprova
o que modifica o direito anterior; e quando um tratado deroga
leis, para a sua eficácia há sempre mister da aprovação do poder
legislativo.
A lei abrogativa ou modificativa deve ser posterior à lei
a mudar; e a posterioridade determina-se pela data da promul-
gação, e não já pela entrada em vigor.
Por isso, de duas leis, uma das quais foi promulgada
primeiro, se bem que entre em vigor depois, e a outra foi
promulgada depois, se bem que entre em vigor primeiro,
é a segunda que em caso de contradição prevalece, abrogando
ou modificando" a primeira. De facto, a entrada em vigor
não respeita à eficácia formal duma lei, mas à sua aplicação
prática.
E por outro lado o efeito da abrogação só tem lugar com
a entrada em vigor da lei abrogatória, pelo que pode haver um
estádio em que uma lei formalmente abolida não perdeu
ainda a sua eficácia. Na verdade, durante a vacatio subsiste
em vigor a lei precedente 2.
1 CAMMEO - Giustizia Amministrativa, n.O 29, pág. 59. Mas não basta
que o Governo tenha emitido uma norma por delegação legishtiva, para
que possa depois abrogá-la por sua iniciativa: é preciso que a mesma abro-
gação tenha sido autorizada. (FIORE - Dispozizioni gmerali aI Godice Givile,
II, 598).
• Assim aconteceu com a lei sobre a justiça administrativa e a lei
relativa a obras pias, no referente à questão das despesas de hospitalização
(spedalità). Veja CAMMEO - Giustizia Amministrativa, pág. 56.
193
A abrogação pode ser total ou parcial, conforme é supri-
mido todo o conteúdo duma lei ou só uma parte ou algumas
disposições singulares.
A abrogação pode resultar ou duma declaração expressa
do legislador que proclama abolida uma certa lei, pura e sim-
plesmente sem outra estatuição (assim aconteceu com a lei
que aboliu a prisão por dívidas), ou é conexa com uma nova
regulamentação jurídica que substitui a revogada.
Neste caso, aliás, a abrogação expressa é supérflua, pois
basta que a lei nova estabeleça uma regulamentação diversa
incompatível com a lei antiga, para que a lei nova prevaleça
e destitua de efeito a lei precedente. Então é uso falar-se de
abrogação tácita: a vontade abrogativa resulta da nova disciplina
jurídica que se vem substituir à anterior, pela incompatibilidade
do novo ordenamento com o antigo.
Mas isto aponta o limite de tal forma de supressão. A abro-
gação tácita verifica-se na medida da contraditoriedade: a lei pre-
cedente é abrogada até onde for incompatível com a lei nova;
onde, porém, esta contraditoriedade não tenha lugar, é possível
a coexistência e compenetração da lei anterior parcialmente
revogada com a lei nova modificadora. Amiudadas vezes, de
facto, as leis limitam-se a simples retoques e inovações, e estes
sucessivos remendos em certos casos dão origem_ a complicações
e dificuldades. Precisamente para obtemperar a este estado de
incerteza, o Governo é, de ora em quando, autorizado a prover
à publicação de textos únicos que recolhem pràticamente num
só corpo as disposições vigentes supérstites de leis parcialmente
modificadas.
Todavia a questão da existência da abrogação continua
a impor-se, mau grado os textos únicos. Nem sempre a incom-
patibilidade entre duas leis é seguramente determinável.
Se a uma lei geral se sucede uma especial, normalmente
aquela fica de pé, visto que pode coexistir com a outra. Mas
se a uma lei especial se segue uma lei geral, é duvidoso se a
nova regra não tolera mais os desvios e excepções da mprieira,
194
lU quer mantê-las coordenando-as com o novo princípio.
~ solução dependerá, caso por caso, da indagação do nexo
[ue existe entre as duas ordens de normas e do fundamento
la nova disposição '.
Pode tratar-se de relações distintas, e por isso a norma
:special não influenciar a geral, ou vice-versa pode a norma
:special não ser mais do que um rebento e uma aplicação da
lorma-regra, c'-Ya abolição importa naturalmente a queda da
mtra, por conflito virtual entre as duas.
A abrogação tácita não resulta só de incompatibilidade:
)pera-se também quando uma lei nova regula toda a matéria
á disciplinada pela lei anterior. Aqui deduz-se, com efeito,
, vontade por parte do legislador de liquidar o passado,
:stabelecendo um novo sistema de princípios completo e autó-
lOmo. Temos então um novo reordenamento jurídico com
lirectivas originais, que não tolera desvios ou enxertos de leis
)recedentes.
É fácil compreender que a abrogação se limita aquilo
lue consitui a matéria da nova regulamentação jurídica, não
Lbr2.ugendo institutos que, embora pertinentes e conexos com
lqude, não foram nem directa nem indirectamente contem-
,lados.
Mas, por outro lado, a abrogação não faz cair só a
ei directamente atingida; afecta ainda todas as disposições
iependentes ou acess6rias que a ela se prendem, conquanto
resultem de leis diversas. Assim as normas interpretativas,
~specificativas, limitativas, ou que tendem a regular a exe-
cução 2 ou a reforçá-la, infligindo pena, estabelecendo garan-
1 REGELSBERGER, Pandekten, pág. IIO. OERTMANN,Uber den Satz lex
?osteríor generalís non derogat príori speâalí (Archív für offentlichen Recht (Arquivo
para o direito público).
• Assim, abolida a pena de morte, caíram as disposições dos arts. 394.°
e 395.° do Cód. Civ.
195
tias, etc. Enfim, todas as disposições que são consequências
ou aplicações do princípio abolido 1.
Há aqui uma incompatibilidade conceituaI ou virtual.
Isto acontece de modo eminente quando uma lei introduz
novos prirzcípios cardeais informadores da regulamentação jurídica,
o que arrasta consigo a anulação de todas as leis e disposições
que, embora não haja manifesta contraditoriedade, são demitidas
da sua base racional. Há um conflito Íntimo nas ideias impi-
radoras, no fundamento do edifício jurídico.
As leis abolidas não ressurgem com a extinção da lei aboli-
tiva. Assim, se uma lei abrogou expressa ou tàcitamente outra
lei, e em seguida esta lei abrogativa é por sua vez abrogada,
não revive por isso a lei antiga, sendo necessária uma expressa
declaração legislativa que a reponha em vigor (lei repristinatória) 2.
É discutido se uma lei pode perder valor pela for111.ação
dum costume contrário, isto é, pelo seu não uso prolongado.
Segundo o nosso sistema positivo, o costume, tendo uma
posição subordinada, não pode entrar em contradição com a
lei. A não aplicação ou o não uso dum preceito legislativo
não pode considerar-se como abandono ou renúncia dos interes-
sados que faça tornar-se inútil a lei, porque não se deixa à vontade
dos individuos a força coactiva das normas 3.
Regras de direito nascem também pelo exercício da facul-
dade regulamentar.
Ora os regulamentos, sejam de execução, ou indepen-
dentes, ou autorizados, podem ser modificados ou abrogados
1 ENNECCERUS - Lehrbuch, I, pág. 91 (edição de 1924). REGELSBERGER
- Pandektet1, pág. III.
2 COVIELLO - Malluale, pág. 98. DE RUGGIERO - IstítuzíOllí "4.' ed., I,
pág. 165".
3 CAPlTANT - Illtrodutíoll á l'étade du droít irattçaís, 2.' edição, pág. 62.
ÍNDICE
196
por outro regulamento posterior emanado da mesma autori-
dade, e com as mesmas formas, ou da autoridade hierárquica
superior, ou, enfim, por lei 1. Mas o regulamento não pode
ser modificado por uma provisão especial sob forma de decreto,
porque vincula a autoridade administrativa a conformar-se com
ele, restringindo o seu poder discricionário.
A abrogação do regulamento pode ser total ou parcial,
expressa ou tácita, e esta última resulta não só de aberta incom-
patibilidade, senão também como consequência da abrogação
da lei, a que o regulamento acedia, enquanto norma especi-
ficativa ou de execução.
Noções preliminares
r - Funções da actividade do juiz. . . . . .
CAPITULO I
Verificação da existência da norma jurídica
2 - Crítica do texto da lei. . . . .
3 - Controlo substancial da existência da lei
CAPITULO II
Determinação do sentido das normas jurídicas. Interpretação
Pág.
III
Il5
II9
4 - Ideias gerais . . . . . . . . . . . . 127
5 - A chamada interpretação autêntica. . . . 13 I
6 - Objecto da interpretação: <<Voluntas Legis, non legislatoris« 134
7 - Método de interpretação . 138
8 - Os trabalhos preparatórios . 144
9 - Resultado da Interpretação . 147
Ia - Desenvolvimento do sentido da lei 153
II - Integração das lacunas das leis: Analogia 154
12 - A escola do direito livre e os novos métodos de interpretação 164
r3 - Elaboração científica. O direito como ciência . . 174
CAPITULO III
2 Prevalece entre nós a teoria de que o costume não pode abrogar
a lei. A questão é amplamente tratada por GÉNY - Méthode d'interpretation,
págs. 338 e sego Veja também FlORE - Disposizioni generali, u, págs. 605
e seg.; e SCIALO]A - Le fonti e l'interpretazione dei diritto commerciale, e as
citações aí feitas.
Mais controvertida é a matéria no direito público. Pela eficácia deroga-
tória do costume: CAMMEO - Giustízia amministrativa, pág. 61; contra:
RANELLETTI - La consuetudine come fonte di diritto publico intemo, pág. r6.
Deterlninação da norma a aplicar ao caso concreto.
O direito como técnica
r4 - Aplicação das normas jurídicas. A arte da decisão
r 5 - Relações entre a teoria e a prática
r6 - Extinção das normas jurídicas . . . . . . .
185
r88
r 89