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A Teatralização do Drama Público

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RBP – REVISTA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE FEBRA*PSI 
 
 
 
 
1 
 
 
A teatralização do espaço público 
e a autonomia política do indivíduo 
 
 
 
 
Leandro Silva dos Santos 
Psicólogo, pós-graduado em Filosofia 
Mestrando em Sociologia Política (IUPERJ) 
 
 
 
 
RESUMO 
O objetivo deste artigo é repensar a noção de políticas públicas, investigar a criação dos 
problemas sociais e confrontar com a perda da autonomia política dos indivíduos nas sociedades 
modernas. Esta é uma abordagem psicanalítica que pretende compreender os efeitos dos 
cenários encenados no espaço público e sua relação com a subjetividade dos atores sociais. Por 
vezes, recorrerei à psicologia social para uma rápida definição do indivíduo inserido no grupo, 
mas esta oposição (se há) desaparece no exame da problematização que apresento. 
 
PALAVRAS-CHAVE: Políticas públicas; Assistencialismo; Classe social; Autonomia política; Individualidade e política. 
 
 
ABSTRACT 
The purpose of this article is to rethink the notion of public policy, to investigate the creation of 
social problems and confront the loss of political autonomy of individuals in modern societies. 
This is a psychoanalytic approach that aims to understand the effects of staged scenarios in the 
public space in the subjectivity of social actors. Sometimes, I shall turn to social psychology for 
a quick definition of the individual inserted in the group, but this opposition (if there is) 
disappears in the examination of questioning that I present. 
 
KEYWORDS: Public policy; welfarism; Social class; political autonomy; Individuality and politics. 
 
 
 
 
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 De modo bastante genérico, políticas públicas são as ações que o Estado, direta ou 
indiretamente, articula para atender o interesse público. Apresento dois dos que seriam os 
principais paradigmas de política pública: aquele que concebe como o conjunto de programas e 
ações governamentais voltados para o alívio de situação de pobreza, privação e vulnerabilidade; 
e um segundo que enfatiza ações e programas em sua capacidade de resolver problemas sociais, 
atender necessidades e criar oportunidades (Midgley, 2009). O approach que propus neste 
trabalho foi a averiguação das políticas públicas que precedem as demandas da sociedade, 
alterando o cenário das necessidades reais através da construção social dos problemas públicos. 
 
 A partir da segunda metade do século passado aprofundou-se, de modo a configurar um 
ponto característico das sociedades de mercado, certa intervenção estatal frente aos direitos de 
cidadania e projetos de desenvolvimento. Nessa ótica, as políticas sociais seriam uma reação 
autoprotetora de sociedades tradicionais frente às transformações intensas e perturbadoras, 
como a mercantilização da vida social (Polanyi 1944). Escolhi problematizar a encenação 
produzida no espaço público daquilo que seriam as necessidades reais de determinada 
comunidade. Essa teatralização, nas palavras de Bourdier, determina a realidade futura, 
estabelecendo as ações prioritárias do Estado de Bem-Estar. Sob este prisma, concluiremos que 
aquilo que é tratado por problema público na dinâmica do Estado são construções sociais, o que 
significa dizer que não existem em si mesmas. Portanto, há uma dupla apresentação encenada 
diante dos atores sociais: o aparente drama público que atinge determinado grupo, e que o 
agente passará a integrar por identificação; e a garantia de haver um grupo de pessoas 
destinadas a enfrentar o problema de modo oficial. 
 
 Não se faz necessário discorrer aqui sobre a ideia de que o Estado é, ele próprio, uma 
ficção jurídica e que, portanto, ele não existe. O estudo aqui proposto pretende lançar um olhar 
psicanalítico sobre o tema da produção de problemas sociais, tendo por resultado a se atingir 
os efeitos marcados naquele que é a matéria-prima fundamental da psicanálise, o sujeito. 
Reconhece-se, sobretudo, polissêmico que o seja, que já há vastíssimas leituras sobre a 
construção social do Estado, e inúmeros trabalhos acadêmicos são, na verdade, revisitações 
descritivas das teorias já conhecidas. Debruço-me sobre o conceito de autonomia política do 
indivíduo e trato das invenções organizacionais, dentre elas o Estado, como a entidade que 
organiza as pessoas de tal maneira que passem a agir de modo que não agiriam se não fossem 
organizadas pela entidade. Se neste ponto há entendimento pacífico será também pacífico o 
reconhecimento que alguns problemas de que tratam as políticas sociais talvez não fossem um 
problema antes de sua aparição pública. O Estado pode legitimar qualquer relatório como uma 
autoridade para expor a situação social e problematiza-la, mas as pessoas não são abastecidas 
de informações que apontam a gênese do problema, se de fato ele existiu, se especialistas 
externos ao Estado já o problematizaram e, portanto, o problema é apresentado com um 
recurso performativo e passa a ser absorvido pela comunidade. 
 
 É por meio dessa construção do que seriam os problemas sociais que o Estado vai 
elaborar suas políticas de satisfação da necessidade do cidadão, sendo, portanto, os direitos 
exercidos, um desdobramento daquilo que os articuladores políticos desejaram expor como 
problemas gerais. A simples exposição de determinado problema social já possui caráter 
reificador. O drama apresentado exerce um domínio rigoroso sobre os indivíduos, e é esta a 
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própria gênese dos problemas públicos. A partir da solidariedade dos atores que foram 
reorganizados em seus próprios lugares o mundo das relações passa a ser construído. 
 
 Por meio de retórica própria o Estado repercute no cenário público a sua exposição 
conceitual das condições que exigem intervenção estatal e promove a universalização do 
problema, enxotando qualquer disposição em contrário para fora do debate público. Surgindo 
numa ponta oposta daquela base social que percebe e vive antecipadamente os problemas 
reais, através da construção fictícia, os técnicos do Estado, ou a serviço dele, imprimem no grupo 
um assentimento pretérito, uma rede de consentimento incorporadora de dramas teatrais. A 
oficialização de que é revestido o cenário apresentado desmoraliza a mediação crítica e o agente 
internaliza toda aquela representação. 
 
 Freud já havia analisado um desejo de adesão ao grupo que se manifesta em 
determinadas ilusões no mundo real como mecanismos da luta contra a neurose individual. Isso 
nos leva a afirmar que há, portanto, na disciplinação da coesão social um diálogo racional que 
impede a desregulamentação do problema oficial em detrimento da individualização da causa, 
manifesto na adesão às ilusões advindas do governo. Não analisarei neste texto as razões 
narcísicas que também fornecem satisfações no contato de certos indivíduos com os grupos. A 
análise que proponho refere-se ao controle da autonomia pessoal promovido com a criação dos 
cenários sociais e consequente identificação com os grupos. Nesse contexto, a demanda, 
inversamente do que se espera, surge na própria esfera do poder, cabendo ao indivíduo o 
sacrifício de suas reais necessidades, através da troca daquilo que não se tem e se necessita por 
outra coisa que a política pública pretender conciliar. Essa dominação preenche uma função 
essencial de controle de classe. Por meio dela os atores sociais são organizados em 
acomodações específicas no “estrato social”. Após introjetar a dualidade sócio-política o agente 
é desacomodadopela obrigação liberal e reacomodado pela realidade encenada, a 
teatralização. O encontro da realidade de facto com a realidade encenada deve ser entendido 
não dialeticamente, antes, como um projeto heterônomo e obstaculizador da emancipação. 
Esta realidade construída é um dos mecanismos utilizados no Brasil para a orientação 
tradicionalista. Se esta exposição é real acredito estar autorizado a parafrasear Raymundo Faoro 
com os devidos ajustes: a autonomia popular não existe, senão como farsa, escamoteação ou 
engodo. 
 Acomodado no cenário virtual o povo passa a exigir a proteção do Estado naquilo que 
não era sua necessidade real e prioritária, parasitando-o. Enquanto as bases sociais se mantêm 
na menoridade popular o governo consegue articular as demandas sociais, determinando o que 
deverão ser as necessidades essenciais, estabelecendo um poderoso gatekeeping assistencial. 
Toda essa articulação política permite uma retroalimentação engenhosa, afinal, a insatisfação 
popular, quando manifestada, reclama os direitos que foram produzidos pelo Estado, não 
entrando em pauta aquilo que seriam os interesses reais do cidadão. 
 No plano psicológico poderíamos, agora sim, apresentar uma dialética histórica: o 
governo encena um drama público e o povo se insere no cenário com as suas expectativas reais, 
degustando uma síntese dualista de decepção e engodo. 
 
 Neste ponto de nossa investigação já nos resta comprovado, e sem nenhuma adoção da 
teoria crítica ou apelo desesperado a Marcuse, que a sociedade passou a desenvolver 
necessidades materiais e culturais no homem. Ao atualizar o pensamento hobbesiano dos 
perigos do “homem à solta”, Durkheim defendeu que não havia outro caminho para o homem 
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buscar a libertação senão submetendo-se à sociedade e suas normas, sendo, a coerção social, a 
ordem emancipadora e única esperança de liberdade que o homem pode razoavelmente 
aspirar. Entretanto, entendo que a encenação do drama público e sua incorporação na realidade 
é uma manobra extravagantemente antidemocrática na medida que resulta numa falta de base 
de massas para a libertação. Schopenhauer, dissertando sobre a realidade, afirmava que o 
sentimento da liberdade ocorre na medida em que a imaginação não ultrapassa a fronteira dos 
nossos desejos e que nem um ou outro ultrapassem nossa capacidade de agir. Logo, se o 
indivíduo diminui sua capacidade de agir para ajustar-se a imaginação daquilo que possa ser a 
realidade reduziu sua liberdade por desequilíbrio ao mundo real. Essa talvez seja a ambiguidade 
mais perturbadora da pós-modernidade, pois as definições do ser humano são combinadas pela 
defesa de sua especificidade cultural e psicológica que encontram-se nos próprios indivíduos e 
não mais na sociedade que o orienta e determina; e ao mesmo tempo há o agrupamento social 
definido estrategicamente pelas políticas sociais, impedindo a emancipação das classes. O que 
favorece, grosso modo, essa adesão não é a falta de liberdade, mas a incapacidade da sociedade 
em que vivemos de se questionar, nas lições de Comelius Castoriadis. Transformar a identidade 
humana em uma tarefa é a marca registrada da modernidade. A individualização consiste na 
retirada do cidadão de determinado grupo e permitir que cada ator social se encarregue da 
responsabilidade de sua mobilidade. Hodiernamente, e no contexto daquilo que apresento, a 
contradição do dever modernizante é demonstrada no intervalo que se interpõe entre o direito 
à autoafirmação e esta capacidade de controlar as situações sociais que podem, ou não, tornar 
essa autoafirmação algo inatingível.

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