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FÓRUM • CALÇADO DO VALE: IMERSÃO SOCIAL E REDES INTERORGANIZACIONAIS 16 • ©RAE • VOL. 46 • Nº3 CALÇADO DO VALE: IMERSÃO SOCIAL E REDES INTERORGANIZACIONAIS RESUMO O artigo aborda o setor coureiro-calçadista do Vale do Rio dos Sinos no Rio Grande do Sul e investiga como o mecanismo estrutural de imersão social influencia a ação econômica do setor. O objetivo é analisar como os tipos de laços, a posição e a arquitetura da rede afetam a ação econômica. O método adotado foi o estudo de caso, cuja abordagem longitudinal permitiu uma análise histórica desde a colonização até os dias atuais. Utilizaram-se dados primários e secundários, possibilitando identificar mudanças na dinâmica competitiva do setor, nos principais atores e nas características organizacionais. Observou-se que tanto a posição quanto a arquitetura da rede se mostraram relevantes para a ação econômica, pois tanto criaram oportunidades como limites. A constituição e os tipos de laços foram relevantes para compreender as decisões sobre a escolha de parceiros para formar sociedade ou fazer negócios, e entender a relação entre os próprios empresários e entre os empresários e os funcionários. Mariana Baldi UFRN-PPGA Marcelo Milano Falcão Vieira FGV-EBAPE ABSTRACT This article consists of a case study about the footwear sector at Sinos Valley (South of Brazil). The central question was to investigate how the structural embeddedness influenced the economic action of the sector. The method employed was the case study with a longitudinal approach and a historical analysis. Data were obtained from both primary and secondary sources, identifying changes affecting the competitive dynamics of the sector and main actors, and the organization characteristics as well. The embeddedness perspective permitted an understanding of the contingent nature of the economic action. The results showed how relevant are the position of the actor within the network and its architecture to the economic action, producing opportunities or constrains. The constitution and the types of ties were relevant for the comprehension of the decisions about choice of partners and for understanding the relation among entrepreneurs and between entrepreneurs and workers. PALAVRAS-CHAVE Imersão social, imersão estrutural, setor coureiro-calçadista, posição na rede, arquitetura da rede. KEYWORDS Social embeddedness, structural embeddedness, footwear sector, network’s position, network’s architecture. 016-027 11.07.06, 18:0616 JUL./SET. 2006 • ©RAE • 17 MARIANA BALDI • MARCELO MILANO FALCÃO VIEIRA INTRODUÇÃO O objetivo deste trabalho é analisar como os tipos de laços sociais, a posição e a arquitetura da rede social e interorganizacional afetaram a ação econômica das orga- nizações do setor coureiro-calçadista do Vale do Rio dos Sinos, no Rio Grande do Sul. As abordagens modernas sobre a teoria organizacional preocupam-se principal- mente em compreender as ações organizacionais como resposta às contingências ambientais. O ambiente é con- siderado somente uma variável técnica, e o ambiente social é relegado a um papel residual. No entanto, a definição de eficiência econômica não ocorre num vá- cuo, mas é dependente de uma contextualização social (Granovetter, 1985). O conceito de eficiência é mediado pelos atores dominantes, e as diferentes concepções de eficiência influenciam as formas e os meios pelos quais eles tentam reproduzir a sua dominação. Dentre as teorias mais utilizadas para explicar a ação econômica pode ser citada a teoria dos custos de tran- sação (TCE). O ponto central da TCE é a transação ou o intercâmbio de bens ou serviços, supondo que os indivíduos ajam de acordo com seus interesses parti- culares. Para Hall (1990), o ataque mais freqüente a esse enfoque foi desenvolvido por Granovetter (1985), ao defender que as transações econômicas estão, na realidade, imersas nas relações sociais. A pesquisa ini- cial sobre “imersão social” [embeddedness]1 represen- tava uma confrontação direta com esta abordagem. Neste trabalho – tal como em Granovetter (1985) – busca-se uma perspectiva contextualizada da organi- zação social da ação econômica. Ou seja, procura-se compreender que as ações organizacionais possuem uma dependência e uma autonomia relativas aos qua- dros culturais e institucionais de cada país, encontran- do-se imersas nesses quadros. O conceito de imersão social é apresentado como um referencial que supera os limites das abordagens comumente utilizadas para identificar e compreender as organizações. A imersão social refere-se ao inter- relacionamento entre estrutura social e atividade eco- nômica, ou seja, refere-se à forma como a atividade econômica é constituída pela estrutura social (Polanyi, 1947; Granovetter, 1985; Zukin e DiMaggio, 1990). Por sua vez, a ação econômica é entendida como um tipo de ação social economicamente orientada, isto é, orientada para obter certas utilidades. Como salienta Weber (1992, p. 87), “a realidade da ação econômica nos mostra sempre uma distribuição de serviços dis- tintos entre pessoas diversas e a coordenação deles em tarefas comuns, o que, aliás, se dá em combinações al- tamente diversas com os meios materiais de obtenção”. O conceito de imersão social permite a superação da análise da ação a partir da organização em si, ao considerar a importância dos laços formados pela or- ganização com outros atores, não apenas no que con- cerne à posição da organização nessa rede de relações,2 mas também a partir do conteúdo desses laços. Assim, para o desenvolvimento da pesquisa empírica, esco- lheu-se o setor de calçados3 do Vale dos Sinos. IMERSÃO SOCIAL: REDES SOCIAIS E INTERORGANIZACIONAIS Argumentos sobre imersão social são usados para cor- rigir o absolutismo do mercado. Em tais concepções, os atores comportam-se como o Homo economicus (Barber, 1995), o qual é freqüentemente tomado como uma característica do comportamento racional e tra- tado dentro da economia neoclássica como antropolo- gicamente “normal”. Para Polanyi (1947, p. 112), “se os chamados moti- vos econômicos fossem naturais do homem, teríamos que julgar todas as sociedades primitivas como não naturais”. Diferentemente, o autor sugere que o ho- mem econômico não age para proteger seus interesses individuais, mas sim para proteger seus direitos sociais, estando de tal forma submerso em suas redes de rela- ções sociais que seus motivos brotam dessa relação. Polanyi (1944) é conhecido como o criador do ter- mo imersão social [embeddedness]. Entretanto, sua preo- cupação não era desenvolver esse conceito per se, mas entender a diferença entre o mercado emergente e os antigos sistemas econômicos (Granovetter, 1985; Barber, 1995; Dacin, Ventresca e Beal, 1999). Seu argumento era de que nunca antes na história humana o ganho e o lucro tinham assumido um papel tão importante como no emergente sistema econômico capitalista. Granovetter (1985), que remonta a Polanyi, define a imersão social como residindo em algum lugar entre a ação sub e sobressocializada. Sua preocupação está no fato de que é necessário estabelecer um adequado elo entre as teorias de nível macro e nível micro. Para isso, é necessário ter um completo entendimento des- sas relações sociais nas quais as ações econômicas es- tão imersas. Dacin, Ventresca e Beal (1999) consideram que Zukin e DiMaggio (1990) ampliam a concepção de Granovetter ao propor que ela se atrela à natureza con- 016-027 11.07.06, 18:0617 FÓRUM • CALÇADO DO VALE: IMERSÃO SOCIAL E REDES INTERORGANIZACIONAIS 18 • ©RAE • VOL. 46 • Nº3 tingente da ação econômica no que se refere a quatro mecanismos: cognitivo, cultural, instituições políticas e estruturas sociais (estrutural). Enquanto os três pri- meiros refletem uma perspectiva social-construcionista, o estrutural reflete a necessidade de se compreender como as estruturas de rede e as qualidades de suas re- lações afetam a atividade econômica. O presente arti- go explora este último mecanismo devido à argumen- tação de Zukin e DiMaggio(1990), que é a mais im- portante, sem, no entanto, desconsiderar a relevância das demais. O artigo de Granovetter (1985) tem uma grande influência na utilização do termo “mecanismo estru- tural”. Como o autor destaca (Granovetter, 1992), a imersão social se refere às relações diádicas dos atores (por exemplo, uma relação entre A e B) e à estrutura da rede de relações como um todo, que afeta a ação econômica e suas conseqüências. O autor pressupõe que, quanto mais contatos mútuos diádicos estejam conectados uns com os outros, mais informações efi- cientes se tenham sobre o que os membros dos pares estão fazendo. Conseqüentemente, haverá mais habi- lidade para moldar aquele comportamento, forman- do-se um grupo coeso. Esses grupos coesos não ape- nas espalham informação, mas também geram estru- turas normativas e culturais que têm efeito sobre o comportamento, e são chamadas por Granovetter (1992) de redes de alta densidade.4 O comportamento dos indivíduos é afetado pela imersão estrutural porque tem um impacto sobre a informação disponível quando as decisões são toma- das. As conseqüências para as organizações são tam- bém moldadas como um resultado da ação econômica cumulativa dos indivíduos. A estrutura de relações nas quais as ações estão imersas afeta o modo como essa modelagem ocorre, bem como suas conseqüências. Assim, se a rede é fragmentada, ocorre uma redução na homogeneidade do comportamento, bem como na formação de normas (Granovetter, 1992). As organizações são compostas por diversas formas de laços, que podem diferir por serem fortes ou fracos e pelo que flui por meio deles (recursos, informações ou afeição). Por laços fracos, Granovetter (1973) en- tende aqueles formados por pessoas conhecidas, mas que não pertencem ao círculo íntimo e que podem dis- ponibilizar informações novas. Diferentemente, os la- ços fortes são formados por pessoas do círculo íntimo e que disponibilizam apenas informações redundantes. Apesar da reconhecida natureza complexa dos la- ços, há uma tendência em se enfocar a forma da rede, ou seja, a localização estrutural dos atores mais do que o seu conteúdo (Nohria e Eccles, 1992; Powell e Smith- Doerr, 1994; Dacin, Ventresca e Beal, 1999). Para Nohria (1992), é importante compreender os seguintes pontos: que tipos de laços importam; em que circuns- tâncias e de que maneira; o que leva à formação de dife- rentes padrões de redes; e como as redes evoluem e mudam ao longo do tempo. Embora a preocupação com a estrutura dos laços seja dominante na literatura, ape- nas focando o processo é possível entender como os laços são criados, por que são preservados e que recur- sos fluem por essas relações e com que conseqüências. Em relação às organizações, Gulati (1995) mostra a importância da confiança na escolha de estruturas de governança e sugere que a seleção das organizações se baseia não apenas nas atividades a serem desenvolvi- das, mas também na existência e freqüência de laços anteriores com o parceiro. Quanto ao oportunismo, defende que a confiança nos parceiros domésticos é maior do que nos parceiros internacionais: conseqüên- cias negativas para a reputação são maiores no con- texto doméstico. Gulati e Gargiulo (1999) argumentam que as redes de alianças prévias são uma fonte de informação confiável sobre parceiros potenciais. A informação que flui por meio dessas redes está “à mão”. Fontes de in- formação sobre competências, necessidades e confia- bilidade de parceiros potenciais, bem como a sua po- sição na rede e os laços indiretos com terceiros, estão relacionados aos mecanismos que moldam a criação de novos laços imersos. Adicionalmente, a posição pode influenciar tanto a facilidade para acessar infor- mação detalhada como a visibilidade e a atratividade de uma firma em relação a outras. Se a posição e a centralidade5 aumentam a atratividade da organização e o acesso à informação, as organizações têm a ten- dência de procurar parceiros centrais. Para Hargadon e Sutton (1997), é necessário ir além de uma agenda de pesquisas que abordem somente a posição, para se poder compreender como certos ar- ranjos estruturais produzem benefícios e oportunida- des. O trabalho de Burt (1992) contribuiu, nesse as- pecto, ao enfocar como certas estruturas melhoram os retornos, argumentando que aqueles que prosperam são os que possuem redes imediatas densas e coincidentes e, além disso, estão ligados às redes mais distantes, ca- racterizadas por vários contatos não redundantes. Uzzi (1996, 1997) sugere que duas formas de troca sumarizam as diferentes formas de transição: laços do tipo arm’s-length e laços imersos. Os primeiros se ca- 016-027 11.07.06, 18:0718 JUL./SET. 2006 • ©RAE • 19 MARIANA BALDI • MARCELO MILANO FALCÃO VIEIRA racterizam como relacionamentos de mercado e são distinguidos pela natureza não repetitiva das intera- ções, pelo foco exclusivo em questões econômicas, e pela falta de reciprocidade entre os parceiros. Enquanto os laços arm’s-length refletem os relacionamentos es- pecíficos da literatura econômica, os laços imersos são caracterizados pela natureza pessoal dos relacionamen- tos de negócio. Os laços imersos possuem três componentes que con- tribuem para a conformidade no comportamento dos parceiros, quais sejam: arranjos para a solução de pro- blemas em conjunto; confiança; e transferência de in- formação detalhada. Esses componentes são indepen- dentes, embora relacionados, pois todos são elementos da estrutura social. A maioria dos relacionamentos interfirmas é caracterizada por laços arm’s-length, em- bora eles sejam menos significantes que os laços imersos. Laços arm’s-length são menos importantes porque as trocas críticas, em termos de sucesso de negócio e vo- lume, ocorrem com o uso de laços imersos (Uzzi, 1996). “Confiança” é definida por Uzzi (1997) como um dos elementos-chave dos laços imersos, sendo a crença de que um parceiro de troca não agiria em função de seu auto-interesse, operando como uma heurística. Uzzi (1997) destacou um paradoxo de imersão so- cial: os mesmos processos pelos quais cria efeitos po- sitivos sobre a habilidade da organização para se adap- tar podem também reduzir sua habilidade para tal. Três condições estão relacionadas com esse efeito negati- vo. A primeira é a perda de uma organização central da rede, que pode impactar a própria viabilidade da rede. A segunda se refere às mudanças nos arranjos institucionalizados que racionalizam o mercado, cau- sando rupturas nos laços sociais, podendo ocorrer ins- tabilidade e perda dos benefícios da imersão. A tercei- ra ocorre quando todos os vínculos entre as organiza- ções na rede estão baseados em laços imersos, dimi- nuindo o fluxo de novas informações, bem como a potencialidade de acessar idéias inovadoras. No que se refere às redes altamente imersas, Chen e Chang (2004) afirmam que elas propiciam principal- mente a capacidade de inovação incremental. Adicio- nalmente, a inovação radical ocorre quando as redes são imersas mas compostas por laços diversos. Os efeitos da imersão social na ação econômica de- pendem de duas variáveis: a composição da rede e a forma como a firma é ligada à sua rede. Salienta-se que laços imersos aprofundam a rede, enquanto laços arm’s-length evitam um completo isolamento por de- mandas de mercado, ou seja, dependendo da qualida- de dos laços interfirmas, da posição da rede e de sua arquitetura, a imersão social pode beneficiar ou não a ação econômica. REFERÊNCIAS METODOLÓGICAS A estratégia de pesquisa utilizada foi o estudo de caso do setor calçadista do Vale. Os pesquisadores que es- tudam a imersão procuram realizar suas investigações em setores que são caracterizados por fortes pressões competitivas, tendo em vista que a teoria econômica dominante defende que nesses casos o papel das rela- ções sociais é mínimo (Uzzi, 1996, 1997). Relativa- mente ao objetivo deste estudo, adotou-se uma abor- dagem predominantemente qualitativa, que foca a iden- tificação de eventos, as atividades e escolhas ao longo do tempo, permitindoa compreensão da dinâmica do processo de estruturação do setor, suas mudanças, seus atores principais e eventos mais marcantes. As categorias analíticas – imersão estrutural e ação econômica – foram analisadas por meio de uma pers- pectiva histórica. Assim, buscou-se compreender o pro- cesso de estruturação do setor desde a sua formação até os dias de hoje. Os dados históricos e longitudinais fo- ram usados para identificar seqüências de eventos e para analisar como essas seqüências estão relacionadas com antecedentes bem como moldam conseqüências. Relativamente à pesquisa sobre imersão, utilizou- se uma análise multinível e cross level (Dacin, Ventresca e Beal, 1999). Foram analisadas as fontes macro, as relações interatores, os atores privados – suas ações e articulações – e as conseqüências disso para as ações econômicas do setor. Dados primários, oriundos de entrevistas semi-es- truturadas, foram combinados com dados secundá- rios para identificar como a imersão constituiu a ação econômica e suas transformações. Dados secundários foram coletados por meio de artigos científicos e dis- sertações acerca do cluster calçadista do Vale, proces- so de colonização, e de formação e consolidação da identidade teuto-brasileira. Documentos das entida- des, revistas especializadas – como, por exemplo, a Tecnicouro –, relatórios avaliativos realizados por di- ferentes órgãos do estado também foram utilizados. Os sujeitos participantes da pesquisa foram os inte- grantes do grupo de dirigentes das entidades coletivas representativas do setor ou representantes por eles indicados. Representantes do governo estadual tam- bém foram entrevistados, perfazendo um total de dez 016-027 11.07.06, 18:0719 FÓRUM • CALÇADO DO VALE: IMERSÃO SOCIAL E REDES INTERORGANIZACIONAIS 20 • ©RAE • VOL. 46 • Nº3 pessoas, as quais atuavam no setor por um período mínimo de sete e máximo de 37 anos. A análise dos dados foi realizada de forma descriti- va e interpretativa, pautada na literatura, para que fos- sem identificados os aspectos concernentes à imersão estrutural. A técnica utilizada para analisar os dados primários foi a análise de conteúdo. Por sua vez, os dados secundários foram analisados por meio da téc- nica de análise documental (Ludke e André, 1986; Silverman, 1995). ASPECTOS CONSTITUTIVOS E CONSTITUINTES Para uma compreensão adequada da estruturação e transformação do cluster calçadista do Vale é funda- mental que se remeta ao processo de estruturação da antiga colônia de São Leopoldo. Para isso, a pesquisa resgatou o processo de colonização e as relações so- ciais que permeavam a comunidade, cujo primeiro pe- ríodo foi de 1824 a 1960. As colônias alemãs foram instaladas próximo às colônias portuguesas, e uma diferença básica entre elas era que os portugueses possuíam grandes lotes, en- quanto os alemães tinham pequenas propriedades. Aliada a esse aspecto, a estruturação da colônia em forma de espinha de peixe propiciou uma proximida- de física e social dos membros da comunidade alemã, enquanto os portugueses mantinham grandes distân- cias entre os vizinhos (Schäffer, 1995; Bazan, 1997). Simbolicamente, os alemães estavam vinculados a in- divíduos rústicos e sem trato social (Bazan, 1997). Para Barbosa (1992), hierarquias econômicas, polí- ticas e simbólicas fomentam a criação e consolidação de identidades. Esses elementos facilitaram o contras- te e as oposições inerentes à construção de uma iden- tidade coletiva, e os luso-brasileiros passaram a ser identificados como preguiçosos e alcoólicos, enquan- to os teutos se percebiam como trabalhadores, hones- tos, cuja coragem e comportamento eram exemplares. Essas associações acarretaram o surgimento de con- venções coletivas utilizadas no cotidiano e nas trocas. Os estabelecimentos especializados em calçados surgem somente após o acesso a fontes artificiais de energia e a construção da usina hidrelétrica de São Leopoldo, em 1912. A construção de ferrovias tam- bém facilitou a comunicação e o escoamento da pro- dução. A crise mundial de 1929 ajudou a fomentar a expansão industrial brasileira, sendo considerada por Ramos (1966) como um fato decisivo para a formação de um mercado interno. Se até a década de 1930 o cal- çado produzido era feito à mão, a criação da Compa- nhia Hamburguesa de Energia impulsionou a introdu- ção de máquinas, que substituíram o trabalho manual. A passagem da fase artesanal para a de manufatura teve que superar diversas dificuldades, como a falta de equipamentos e o acesso à energia. Os laços fortes entre os membros da comunidade alemã possibilita- ram a formação de redes de alta densidade, constituí- das por grupos coesos que, além de compartilharem informações, possuíam estruturas normativas e cultu- rais semelhantes. As trocas econômicas estavam imersas nos compromissos sociais que permeavam a relação dos membros da comunidade. Muitos desses problemas fo- ram sanados por meio de empréstimos financeiros, de máquinas, ou por meio da troca de conhecimentos me- diada pela expectativa de reciprocidade que se baseava na coesão social e nos valores étnicos. A confiança serviu de base para a criação das pri- meiras empresas calçadistas e estava baseada no senso de pertencimento à identidade teuto-brasileira. Como defendem Gulati e Gargiulo (1999) e Uzzi (1997), a análise da disponibilidade do parceiro, de sua confia- bilidade e de sua capacidade estava imersa no contex- to social que permeava a comunidade. Corroborando Gulati (1995), formavam-se socieda- des entre o detentor de capital e o detentor de conhe- cimento, constituídas sob a certeza de que comporta- mentos oportunistas não ocorreriam em função das conseqüências negativas que isso teria para a reputa- ção daquele ator. Eram os códigos de conduta da co- munidade que exerciam o controle sobre a ação. A confiança operava como uma heurística (Uzzi, 1997), ou seja, os atores estavam predispostos a assumir o melhor em relação à ação e aos motivos do outro. O espírito associativo dos imigrantes alemães e de seus descendentes foi percebido por Klein (1991), Schneider (2004) e Schmitz (1995, 1998) como tendo grande importância ao longo da consolidação do setor. Para Klein (1991), essa influência é percebida inclusi- ve no surgimento das diversas instituições associativas ainda existentes (como a ACI – Associação Comercial, Industrial e de Serviços e a Assintecal – Associação Bra- sileira de Empresas de Componentes para Couro, Cal- çados e Artefatos). Os vínculos não econômicos desses atores foram significativos no âmbito econômico, pois tiveram papel fundamental tanto nos compromissos sociais firmados pelos empresários como também na própria rede de cooperação empresarial do período em análise (Schmitz, 1993). 016-027 11.07.06, 18:0720 JUL./SET. 2006 • ©RAE • 21 MARIANA BALDI • MARCELO MILANO FALCÃO VIEIRA Os achados desta pesquisa reforçam a importância de se pesquisarem as organizações econômicas consi- derando-as como socialmente construídas (Nohria, 1992) e como conseqüência das ações de indivíduos socialmente situados em redes de relações pessoais. Tanto os dados primários como secundários reforçam o quanto foram importantes os fortes laços estabeleci- dos entre os atores do setor calçadista nesse período, pois propiciaram soluções conjuntas de problemas e trocas de informações que permitiram a superação das dificuldades. É possível constatar que o comportamen- to econômico está imerso em redes de relações inter- pessoais e que os laços sociais possuem papel funda- mental na constituição do setor, corroborando os ar- gumentos dos autores de imersão. As características peculiares da colonização alemã propiciaram o surgimento de uma comunidade coesa, cujos laços de solidariedade foram fundamentais na sua preservação material e cultural. A reconstrução do pro- cesso de formação dos laços da comunidade alemã do Vale permite compreender como esses laços fortes fo- ram criados, bem como por que foram preservados. A confiança advinda do senso de pertencimento à identi-dade teuto-brasileira mostra que ela serviu de base para a criação das primeiras empresas calçadistas, conectando o dono do capital e o detentor de conhecimento por meio do contexto social. A reputação tem um papel cru- cial nesses casos, pois as conseqüências negativas de um comportamento oportunista dos que estão inseri- dos naquele contexto social é temida, e o mecanismo de controle que preponderava advinha dos códigos de condutas respeitados por aquela comunidade. No entanto, como salientou Uzzi (1997), o fato de estar altamente imersa também acarreta efeitos nega- tivos na ação econômica. Assim, as convenções em torno dos empresários luso-brasileiros provavelmente fizeram com que bons negócios deixassem de ocorrer. A seguir serão abordadas as transformações tanto no sentido material quanto no social que construíram uma nova configuração social do setor não somente pela entrada de novos atores, mas também pela nova estru- turação social que se estabeleceu entre os atores que já faziam parte do setor e da comunidade. De 1960 a 1980: uma nova configuração social no setor calçadista O crescimento durante os anos 1950 e 1960 fez com que as organizações produtoras de calçados se conso- lidassem financeiramente e pequenas indústrias se fir- maram como fabricantes de máquinas para calçado (Klein, 1991). Esse período é caracterizado por um aumento expressivo da produção e atraiu instituições oficiais de crédito que substituíram as antigas Caixas Rurais, surgindo as estruturas de crédito cooperativo. Nesse sentido, para se formarem empresas, o acesso a créditos bancários se tornou mais importante. Conse- qüentemente, ficou comprometido o equilíbrio de po- der que até então existia entre os detentores do co- nhecimento da produção e os detentores de capital (Bazan, 1997). O empresário passou a ser uma categoria econômi- ca e socialmente diferenciada, ocorrendo uma justa- posição entre a identidade teuto-brasileira e uma nova identidade denominada por Bazan (1997) corporati- vo-empresarial, que congregava os empresários de todo o setor calçadista. Contudo, a identidade teuto-brasi- leira permaneceu mediando e facilitando as relações de troca. A mudança na importância das redes de reci- procidade firmadas com base nos princípios étnicos ou corporativos se alterou a partir do início de 1970, quando a produção se voltou para o mercado externo. A especificidade da entrada dos calçados brasileiros no mercado americano merece uma atenção especial porque sua trajetória tem importantes efeitos. O sur- gimento de um novo ator é fundamental na transfor- mação do setor brasileiro: o agente intermediário. Como salienta Schmitz (1995), o significativo perío- do da ação coletiva e institucionalizadora cedeu lugar a uma fase que, comparativamente, pode ser conside- rada desintegradora. Bazan (1997) considera que três processos altera- ram o padrão produtivo local: a necessidade de incor- poração de um número maior de trabalhadores, não mais restritos à comunidade local; a descentralização das plantas industriais, que se transferiram para áreas adjacentes e para o interior dos municípios do Vale; e a intensificação da subcontratação de serviços de ter- ceiros para realizar tarefas que exigiam intenso traba- lho manual, desencadeando a origem de grande nú- mero de micro e pequenas empresas. O corporativismo etno-setorial e a orientação coo- peração–competição sofreram importantes modifica- ções quando o setor começou a exportar. Se, por um lado, houve o reforço da identidade corporativo-seto- rial, por outro, houve o recrudescimento das diferen- ciações entre os diversos segmentos, invertendo-se o padrão de competitivo–cooperativo para competitivo– conflitivo nos anos 1980 (Bazan, 1997). Corroborando Klein (1991), os dados primários re- velaram que a importância dos agentes está associada 016-027 11.07.06, 18:0721 FÓRUM • CALÇADO DO VALE: IMERSÃO SOCIAL E REDES INTERORGANIZACIONAIS 22 • ©RAE • VOL. 46 • Nº3 à peculiaridade das exportações ao mercado america- no, isto é, o próprio produtor, com sua rede de distri- buição varejista, se tornou um importador em função de que não é mais capaz de produzir a preços compe- titivos. Os agentes passaram a preparar as coleções, negociar preço, colocar os pedidos e controlar a quali- dade. Os primeiros agentes que surgiram no Brasil eram norte-americanos, ex-fabricantes de calçados. Para os varejistas, é indiferente a procedência do calçado, contanto que tenham uma margem de lucro atrativa. São os agentes que se encarregam de obter as melhores margens com os canais de comercialização (Klein, 1991). Para Schmitz (1995), o papel dos agen- tes é bastante controverso, pois existe um sentimento de que os lucros dos produtores são alcançados com muito esforço, em contraste com os deles, que não somente são mais “fáceis” como também excessivamen- te altos. Outro fator de descontentamento é a desconsideração das responsabilidades que os produ- tores demonstraram em contratos prévios, não dando importância à continuidade do relacionamento comer- cial. Nesse sentido, o preço é que passa a determinar a continuidade ou não da relação. Apesar do importante papel que os agentes possu- em na desestruturação da base étnica de sociabilida- de, não são eles os únicos que contribuíram para isso. Como os anos 1970 e 1980 foram de crescimento eco- nômico, vários empresários de outras regiões foram atraídos, rompendo a homogeneidade étnica. Entre- tanto, a etnicidade ainda aparece como justificativa ideológica do sucesso empresarial em função da disci- plina, da seriedade e do espírito empreendedor. Con- tudo, não é mais a base que sustenta a identidade cor- porativa e setorial (Bazan, 1997). Permanece atuando também na relação empregador–operário e na relação operário antigo (local e de origem germânica) e ope- rário de fora. O fator que os diferencia não é a posição distinta no processo produtivo, mas “a simbologia do que significa ser bom trabalhador” (Schneider, 2004, p. 39). Ou seja, disciplina, organização, zelo e capri- cho estão associados ao trabalhador teuto-brasileiro ou ao operário antigo. Na relação entre o operário an- tigo e o empresário, a convivência nos mesmos espa- ços sociais e o longo tempo como empregado fomen- tam a cumplicidade, a reciprocidade e, fundamental- mente, a fidelidade desse trabalhador. Para o empresário, essa situação é fundamental para o bom andamento da produção, que é por ela estimu- lada. Por terem um prestígio maior, os operários anti- gos são convidados a ocupar cargos de confiança e de chefia, a formar novas unidades fabris (ateliês), e são privilegiados no repasse das peças de calçado a serem confeccionados (Schneider, 2004). Nesse sentido, a força dos laços na estruturação do setor aparece como fundamental na compreensão do seu processo. Para relativizar o papel da etnicidade, salienta-se a sucessão nas empresas familiares, em que jovens em- presários assumiam o controle da empresa. Para eles, a etnicidade estava associada a um aspecto afetivo de afiliação, mas não era um elemento norteador. Para os antigos empresários, por sua vez, esses jovens eram encarados como aventureiros, de quem não se podia esperar lealdade (Bazan, 1997). Dessa forma, os jo- vens empresários não somente constituíram as bases para o enfraquecimento da etnicidade e de seus valo- res – tais como honra, reciprocidade e confiança –, mas também suas crenças e valores foram constituí- dos em uma época em que a etnicidade como base de sustentação já vinha se enfraquecendo. Por outro lado, os agentes possuíam valores bas- tante diferenciados dos da comunidade. Pode-se infe- rir que a capacidade desses agentes de transformação das práticas sociais está bastante relacionada com a posição que eles passaram a ocupar no setor, como um dos atores-chave. O agente representava também um fator de intensificação da competição e da rivali- dade entre empresas, pois poucas delas mantinham com ele relações mais ou menos estáveis. A impes- soalidade das relações de troca e os interessesvolta- dos ao mercado se fortaleceram com a presença do agente, que não compartilhava de uma história social comum aos demais membros da comunidade. Por outro lado, a identidade corporativa se fortale- cia na medida em que o próprio setor tinha um cresci- mento muito grande no período. Toda essa transfor- mação provocou diversas mudanças nas organizações e possibilitou grandes ganhos aos produtores brasilei- ros. A internacionalização acarretou a alteração do processo produtivo, conseqüência do tipo de calçado exportado: milhares de pares de um único modelo e cor. A produção passou a ser organizada por meio de esteiras, e o trabalho fragmentado permitiu o treina- mento rápido, a contratação de trabalhadores despre- parados e o pagamento de baixos salários. A separação entre o empresário e o funcionário era quase inexistente até a década de 1970, e as relações de trabalho eram amistosas. No entanto, com a entra- da do Brasil no mercado externo e a intensificação do sindicalismo a partir de 1978, as relações de trabalho se alteram. Nesse período também ocorrem mudanças 016-027 11.07.06, 18:0722 JUL./SET. 2006 • ©RAE • 23 MARIANA BALDI • MARCELO MILANO FALCÃO VIEIRA nas relações entre o empresariado. A troca de conhe- cimento, que era amistosa e mais disseminada, trans- forma-se. Outro aspecto importante é a concentração de po- der do produtor de calçados, que passou a influenciar a cadeia de acordo com seus interesses. Um exemplo é a interferência dos produtores no governo para que o couro sofresse restrições de exportação. Esse fato aca- bou gerando a criação da Aicsul (Associação das In- dústrias de Curtume do Rio Grande do Sul). Além de terem seu pleito atendido, os produtores passaram a importar da Argentina o couro semi-acabado, e cria- ram em suas próprias instalações o processo de acaba- mento, tornando-se mais independentes do setor de curtume brasileiro. Os empresários de curtume se res- sentiam de que os incentivos governamentais benefi- ciavam somente os fabricantes de calçados, apesar de sua tradição exportadora. Esses fatos refletiram-se na relação de poder e barganha entre o setor produtor de calçados e o setor de curtume, pois este último não possuía outros canais de comercialização a não ser o canal interno. Como conseqüência, os produtores de calçados concentraram grande poder na cadeia. Com o aumento das exportações, também se am- pliou o conflito de interesses entre produtores e for- necedores referente à facilitação na aquisição de ma- térias-primas e equipamentos no exterior. Entre os próprios produtores também existiam divergências, principalmente entre aqueles voltados para o mercado interno e os que atendiam ao mercado externo. Bazan (1997) afirma que os exportadores passaram a ser be- neficiados pelo governo, acirrando as diferenças entre o empresariado tanto em termos do tamanho das em- presas quanto do mercado que atingiam. A principal diferença hierárquica era entre as grandes e as peque- nas e médias empresas. A importância para a econo- mia estadual e nacional dos produtores de calçados fez com que os empresários se organizassem mais no âmbito político-institucional, assumindo prefeituras, tornando-se deputados estaduais e secretários, e insti- tuindo também os lobbies setoriais. Os dados revelam que a distribuição dos recursos pelo governo refletia tal hierarquia. Em conseqüência, se até meados de 1970 a ACI re- presentava os interesses de todas as organizações do setor, os interesses divergentes originaram diversas instituições, como a Assintecal Abrameq (Associação Brasileira das Indústrias de Máquinas e Equipamentos para os Setores do Couro, Calçados e Afins) e Abaex (Associação Brasileira dos Exportadores de Calçados e Afins). Para Schmitz (1995), a identidade sociocultural foi elemento de base para a reciprocida- de e a confiança até o início da década de 1970, en- quanto que os laços culturais se tornaram mais fracos e tiveram menor influência nos relacionamentos interfirmas na maior parte de 1970 e 1980. No entanto, essa fase de expansão se alterou a par- tir do final de 1980, quando a demanda dos países europeus e dos Estados Unidos começou a ocorrer em períodos mais esparsos. Ao mesmo tempo, observou- se a entrada no mercado de países asiáticos, cujos sa- lários eram menores. Os pedidos passaram a ser feitos cada vez mais próximos do momento da venda, em lotes menores e mais diversificados (Bazan, 1997). O final de 1980 e início de 1990 também se caracterizou por ser um período turbulento no Brasil. Essas mu- danças resultaram na falência de diversas empresas de grande porte, e os grandes departamentos de produ- ção deram lugar às minifábricas, que passaram a ter células de produção. Investiu-se em treinamento e buscou-se redução do turnover. Assim, a viabilidade das pequenas empresas aumen- tou como decorrência do aumento da subcontratação. E em função do aumento nas exigências de qualidade, o fato de as operações serem realizadas fora da organi- zação tornou mais difícil o alcance da qualidade, ba- seando a relação puramente num padrão de mercado. Portanto, se anteriormente a cooperação interfirmas era fortemente influenciada pela identidade teuto-bra- sileira, o retorno a esse espírito de cooperação se ba- seia principalmente nos custos de não cooperar (Schmitz, 1995). COMPREENDER A INSERÇÃO DO CLUSTER NO MERCADO MUNDIAL O calçado do Vale está vinculado à cadeia global de calçados, tendo diferentes destinos, como os Estados Unidos, a Europa, a América Latina e o mercado do- méstico. Compreender essa inserção e seus efeitos pas- sa tanto pela posição na rede e sua arquitetura quanto pelos efeitos disso decorrentes. Como salientam Bazan e Navas-Alemán (2001), as implicações da governan- ça vão muito além de organizar atividades dispersas. Ser o governador da cadeia implica decidir quem vai desempenhar as atividades mais bem remuneradas. O Vale tem como principal mercado exportador os Esta- dos Unidos, país que tem certo controle da cadeia mundial. 016-027 11.07.06, 18:0723 FÓRUM • CALÇADO DO VALE: IMERSÃO SOCIAL E REDES INTERORGANIZACIONAIS 24 • ©RAE • VOL. 46 • Nº3 Para as autoras, o padrão de governança que preva- lece na cadeia americana é o quase-hierárquico e as razões são: (a) as firmas que lideram detêm o conhe- cimento essencial das atividades de valor, tais como design e marca; (b) se a liderança dessas organizações não for aceita, os compradores possuem diversas al- ternativas, não ocorre isso com os produtores, pois eles não possuem marca e design próprio; (c) para assegu- rar que os fornecedores vão produzir de acordo com a sua demanda, relações hierárquicas são desenvolvidas para perpetuar o controle sobre todo o processo pro- dutivo; e (d) os compradores barganham preço com os produtores para mantê-los baixo e, por serem orga- nizações de grande porte, exercem poder sobre os pro- dutores e agentes. Os produtores calçadistas brasileiros não tinham conhecimento da logística de comércio global e, as- sim, aceitaram exportar seus calçados sob a orienta- ção dos compradores, abrindo mão de suas marcas e designs. Neste sentido, Bazan e Navas-Alemán (2001) salientam que, inicialmente, ocorreu um retrocesso funcional, pois eles se concentraram no processo pro- dutivo e abandonaram atividades mais sofisticadas que eles já operavam, pelo menos, no mercado interno. Embora a governança por meio da quase-hierarquia seja bastante limitante no que se refere ao upgrade fun- cional, as autoras concluíram que ela não ocorre no caso da indústria de suprimentos, pois não sofre as mesmas coações que os produtores, tendo em vista que diversas empresas dessa indústria exportam para ou- tros países considerados competidores da cadeia de calçados brasileira. Os dados primários revelaram que os exportadores da cadeia de suprimentos evitam a utilização de inter- mediários. Em alguns casos, contratam representan- tes de vendas ou agentes somente para a comercializa- ção, tendo eles um papel bem diferenciado dos que atuam na cadeia decalçados. Outro fator importante para a independência da cadeia de suprimentos é o fato de as indústrias operarem simultaneamente em várias cadeias globais de valor. No entanto, essa é uma realidade recente, tendo em vista que durante a déca- da de 1990 a cadeia de suprimentos sofreu com a crise do setor calçadista. Para o setor coureiro, as indústrias moveleira, automobilística e de vestuário surgiram como mercados alternativos porque a indústria de cal- çados vem aumentando o uso de materiais sintéticos. Observou-se também que as relações cooperativas que existiam anteriormente à internacionalização vêm sendo recuperadas desde meados da década de 1990. No entanto, o seu retorno não está mais alicerçado na base da etnicidade. Dentre as ações voltadas para a cooperação, pode ser citado o Programa Calçado do Brasil, lançado em 1994 pelos principais atores do se- tor. No entanto, a sua implementação não ocorreu, e o ano de 1995 é chamado por Schmitz (1998) do ano da não-ação coletiva. Para o autor, algumas das maiores empresas que haviam se integrado verticalmente não estavam mais interessadas na eficiência coletiva, pois tinham reduzido sua dependência do cluster. O Programa foi reativado apenas em 1996, tendo como líder a Assintecal, mas logo estava totalmente desarticulado. De acordo com Schmitz (1998), uma das razões foi a obstrução, declarada ou não, de cinco empresas que eram tanto temidas quanto admiradas pelas outras. Eram admiradas porque todas tinham iniciado como pequenas firmas havia duas ou três dé- cadas e agora estavam entre as maiores do mundo, exportando conjuntamente 410 milhões de dólares. O temor era decorrente do relacionamento que elas tinham com o principal comprador dos calçados bra- sileiros, a empresa norte-americana NW, responsável por 40% das exportações. Tornar-se um fornecedor da NW era o desejo de todo produtor. A posição que as cinco empresas ocupavam na cadeia mundial permitia que elas tivessem um maior acesso a dinheiro, equipa- mentos, tecnologias, e que angariassem legitimidade, poder e reconhecimento pelas demais organizações, que tanto disputavam o mercado externo como o in- terno. Em consonância com Gnyawali e Madhavan (2001), por ocuparem uma posição central se pressu- põe que possuem algo de valor, retendo poder de bar- ganha. Ressalta-se o fato de essa centralidade ocorrer apenas para o Vale, porque em relação à cadeia mun- dial eram atores sem capacidade de ação mais efetiva, em decorrência da maneira como estavam inseridos na cadeia global, que fazia com que acabassem agindo em prol dos interesses externos. CONCLUSÕES O mecanismo estrutural de imersão social possibilita a compreensão das relações entre os atores tanto no que se refere à rede social quanto à sua inter-relação com as redes interorganizacionais. No caso analisado, o mecanismo estrutural se mostrou fundamental para a compreensão das mudanças ocorridas ao longo da formação do setor e após o processo de internaciona- lização. Quanto ao processo de internacionalização, 016-027 11.07.06, 18:0824 JUL./SET. 2006 • ©RAE • 25 MARIANA BALDI • MARCELO MILANO FALCÃO VIEIRA diversos aspectos são importantes em torno do agen- te, quais sejam: sua origem, seus principais vínculos, o papel que exerce na cadeia mundial de calçados e de que forma se pode caracterizar a rede. Corroborando Powell e Smith-Doerr (1994), percebe-se também a importância da maneira como foi formada a rede, que tem muitas conseqüências para as ações dos atores. Em meados da década de 1970, o agente assume um papel estratégico na rede em relação às exporta- ções. As trocas econômicas do Vale passam a ocorrer num contexto social e culturalmente diferente daque- le da comunidade, caracterizando um processo de “desimersão” e reimersão. É importante salientar que não se pressupõe que num processo de “desimersão” ocorra uma substituição total de um modo de ver so- bre outro, mas que a assimilação de diferentes lógicas e formas de viver são reinventadas e reincorporadas nos padrões daquela comunidade. A certeza de que comportamentos oportunistas não ocorreriam em função dos códigos de conduta da co- munidade perde força na inserção do cluster no merca- do externo. Corroborando Gulati (1995), percebe-se que as possíveis conseqüências negativas de um comporta- mento oportunista são mais temidas quando os parcei- ros estão inseridos no mesmo contexto social. Os agentes passam a deter o controle sobre todo o processo produtivo e a competência, e a confiabilida- de do parceiro passa a se pautar não mais pela identi- dade étnica, mas pelos interesses econômicos de ato- res situados em um contexto diverso. Além disso, como salientam Gulati e Gargiulo (1999) e Hargadon e Sutton (1997), por ocuparem uma posição particular na cadeia, os agentes vão ser os primeiros a identificar tanto as oportunidades como as necessidades de gru- pos diversos, pois preenchem a lacuna no fluxo de informação existente entre o importador americano e o produtor brasileiro. A posição que o agente ocupa e que os atores brasileiros passam a ocupar na cadeia mundial de calçados determina as conseqüências e as oportunidades para a ação econômica. Baseando-se em Burt (1992), pode-se afirmar que anteriormente à entrada no mercado externo, os atores do Vale possuíam contatos redundantes, ou seja, eram dirigidos às mesmas pessoas que possibilitavam acesso às mesmas informações e aos mesmos benefícios. Des- sa forma, as redes em que os atores estavam ligados eram densas e coincidentes, caracterizando-se por uma re- dundância por coesão. No entanto, contatos não redun- dantes ampliam os benefícios da rede, pois garantem exposição às diferentes fontes de informação. O que ocorreu é que os agentes passam a ser os co- ordenadores da rede, ou seja, os atores centrais que ligam um cluster de contatos redundantes (o Vale) a contatos não redundantes (compradores estrangeiros, principalmente o norte-americano). Portanto, embora os benefícios da rede tenham sido ampliados, é o agen- te que se beneficia ou controla os benefícios, pois estes, de acordo com o conceito de efetividade de Burt (1992), proveram para si e para os compradores norte-america- nos o acesso a clusters de contatos, aumentando tanto o número como a diversidade de contatos incluídos. Além dessas mudanças estruturais, acrescentam-se os tipos de laços preponderantes. Se antes da interna- cionalização laços fortes ligavam os atores, após a en- trada no mercado externo laços típicos de mercado li- gam os atores do Vale aos seus compradores. Ou seja, o foco estava exclusivamente nas questões econômi- cas, e a “velha” crença de que o parceiro não agiria em função de seu auto-interesse chega muitas vezes a pre- judicar as trocas baseadas em uma outra lógica. Como se constatou, os atores não estavam acostumados à lógica norte-americana dos negócios, tendo como con- seqüência diversos negócios que foram desfavoráveis aos atores, pois até o final da década de 1960 a confian- ça era usada como um mecanismo de governança e as trocas não se pautavam pela necessidade de ter pro- cedimentos formais como contratos. Os agentes passam a se beneficiar da posição que ocupam na rede e canalizam efeitos positivos para si, pelo fato de terem acesso às oportunidades e soluções que são conhecidas por eles, mas que não são identifi- cadas, apesar de importantes, pelos atores do Vale. Ao manterem desconectados os compradores americanos e os fornecedores brasileiros, ainda perpetuam sua po- sição e importância na rede, concentrando o fluxo de informações e conhecimento. Essa situação explica o fato de que os agentes foram percebidos de maneira ne- gativa, embora se reconhecesse a importância deles. Por outro lado, pode-se inferir que a capacidade de transfor- mação das práticas correntes deve-se ao fato de este ser um ator central, ou seja, tanto a sua posição na rede quan- to a própria arquitetura da rede são fundamentais para a manutenção e a reafirmação de seu poder. Os dados confirmam que a posição, a arquitetura e o conteúdoda rede que flui por meio dos laços in- fluenciam o comportamento competitivo das organi- zações, e apontam para a lacuna indicada por Gnyawali e Madhavan (2001) como não estudada explicitamen- te pelos pesquisadores. Chama a atenção ainda a ma- neira como os recursos externos influenciam o com- 016-027 11.07.06, 18:0825 FÓRUM • CALÇADO DO VALE: IMERSÃO SOCIAL E REDES INTERORGANIZACIONAIS 26 • ©RAE • VOL. 46 • Nº3 portamento competitivo tanto positiva quanto negati- vamente. No caso específico do Vale, não se realizam atividades geradoras de maior agregação de valor. Os competidores, antes de serem atores atomizados, estão imersos em uma rede de relações sociais que abarca diferentes níveis e que influencia a sua capacidade com- petitiva e a sua habilidade de agir e responder à ação dos outros. Nesse sentido, sugere-se a realização de es- tudos que utilizem a análise de redes para uma melhor compreensão dos fenômenos organizacionais. Cabe destacar que algumas dificuldades foram en- contradas no decorrer da pesquisa empírica, dentre elas, a dificuldade de agendamento com a Abaex. En- tretanto, os dados primários revelaram que ela está “meio desativada”, o que pode justificar a impossibili- dade de entrevistar um de seus representantes, bem como o fato de que a entidade estava sem um líder que efetivamente a representasse. Embora este trabalho tenha possibilitado algumas conclusões acerca do relacionamento interorganizacio- nal e, principalmente, sobre redes sociais e organiza- cionais, outros estudos merecem atenção, dentre eles, destaca-se: estudos sobre os consórcios em andamen- to no setor, estudos exploratórios sobre o mecanismo cognitivo de imersão, o qual apresenta um menor ní- vel de conhecimento acumulado. NOTAS 1 “Embeddedness” é o termo original em inglês. Apesar de muitos autores brasileiros o traduzirem como imbricação, esse termo não demonstra com exatidão o sentido do construto. Assim, preferiu-se utilizar “imer- são social”. 2 A expressão “rede de relações” é entendida como um conjunto de atores que se relacionam direta ou indiretamente. Não se pressupõe que na rede todos os atores estejam horizontalmente posicionados. 3 O setor de calçados é constituído por empresas fornecedoras de compo- nentes para calçados, indústrias de máquinas para calçados, ateliês, agen- tes exportadores e indústrias fabricantes de calçados. 4 Para Burt (1992), redes densas ocorrem quando cada relacionamento coloca o indivíduo em contato com as mesmas pessoas com que ele já teria contato a partir de outros relacionamentos. 5 “Posição” refere-se à capacidade de definição do sistema social, conside- rando-se que ela se origina do papel e do status que uma organização possui, fruto de suas afiliações e seus padrões de interação (Gulati e Gragiulo, 1999). “Centralidade” refere-se à extensão das relações de um ator a muitos outros no sistema, e à extensão das relações desses a vários outros, tornando esse ator central. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARBER, B. All economies are “embedded”: the career of a concept, and beyond. 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Interesses de pesquisa nas áreas de Poder, Instituições e Estruturação de Organizações, Organizações Culturais, Cultura e Desenvolvimento. E-mail: mmfv@fgv.br Endereço: Praia de Botafogo, 190, 5º andar, sala 530, Botafogo, Rio de Janeiro – RJ, 22250-900. 016-027 11.07.06, 18:0827