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1 ATIVIDADE AVALIATIVA I — LET053 ESTUDOS DO DISCURSO DATA: 15/06/2025 DOCENTE: Paulo Henrique Aguiar Mendes DISCENTE: João Gabriel Ribeiro Passos • De antemão — isto é, antes de nos enveredarmos nas estradas longas, sinuosas e bifurcadas do discurso —, parece justo e necessário a rememoração do fértil solo cultural e filosófico que enseja toda e qualquer leitura crítico-discursiva contemporânea: se trata do solo francês. A imaginação teórica gálica da segunda metade do século XX — imediatamente sucedânea ao crepúsculo da filosofia sartreana — radicou toda uma sorte de pensadores que abalaram indelevelmente o pensamento ocidental em suas múltiplas áreas, de modo não só a formar verdadeiros cenáculos universitários, mas, como diria Paulo Arantes, departamentos franceses de ultramar. Quer seja Claude Lévi-Strauss e sua antropologia estrutural; quer seja a psicanálise lacaniana; o marxismo heterodoxo de Louis Althusser e Nicos Poulantzas; a esquizoanálise de Deleuze e Guattari; o desconstrutivismo de Derrida; o situacionismo de Guy Debord, a semiótica de Barthes ou a historiografia foucaultiana, todas estas emblemáticas abordagens epistemológicas tem um ponto em comum: a preocupação inequívoca com o problema do signo. Embora imprecisa historicamente, a convencional categorização destes autores na clivagem de uma virada linguística dá testemunho de que essa geração de autores, por diferentes vias, estavam implicados num amplo projeto de reavaliação dos méritos da teoria sausserana clássica que permitiu a vivência de um “momento de glória, como se a fé do prosélito lhe houvesse, de repente, permitido resgatar quase um século de atraso num átimo de segundo” (Compagnon, 2001, p. 11). Contudo, para parafrasearmos o mesmo Compagnon, a pergunta incessante a se fazer no contemporâneo é, decisivamente, o que restou destes amores? Uma área que ganhou especial preponderância neste rol de experimentações teóricas — e, neste sentido, segue como herdeira desta difusa tradição — é a assim chamada análise do discurso, representante de uma tendência de solucionar o grande ocaso da linguística geral, qual seja, a inarticulação entre a matéria linguística e o seu substrato, em última instância, social. Este esforço precípuo de deslocar a língua de uma artificialidade abstrata — como se a linguagem repousasse incólume num espaço soberano — para uma materialidade objetiva, rastreável e historicamente postulada 2 permitiu um inédito agenciamento das categorias linguísticas: poderíamos enfim dizer, sem temores, que elementos linguístico-textuais como fonemas, morfemas e sintagmas importam, mas desde que atravessados pelo paradigma da enunciação, da interação verbal e, por suposto, da ideologia. Numa espécie de nó borromeano — ou seja, enquanto fatores covariantes incapazes de serem desprezados ou enfocados separadamente, sob o prejuízo de colapsar todo o circuito analítico — entre estas três determinações nasceu, precisamente, a ideia de discurso, “o ponto de articulação dos processos ideológicos e dos fenômenos linguísticos” (Brandão, 2004, p. 11). Evidentemente, tratativas de conciliação entre a realidade social e a linguagem já haviam sido aventadas desde os prolegômenos do século XX — especialmente por Mikhail Bakhtin e os pensadores que lhe orbitavam, como Pavel Medvdev e Valentin Volóchinov, quase que protoanalistas do discurso. A pertinência hermenêutica do estudo do discurso — que, levado às últimas consequências, é de ordem política —, diria, pode ser sintetizada no célebre apotegma foucaultiano: “o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo pelo que se luta, o poder de que queremos nos apoderar” (Foucault, 2014, p. 10). Entretanto, como todo arcabouço teórico só revela sua força e dignidade axiológica pela sua capacidade descritiva — uma teoria incapaz de ser operacionalizada de nada serve —, tomemos um caso qualquer — a saber, a nota da diretoria da ADUFOP (Associação dos Docentes da UFOP) sobre o racismo na UFOP (Universidade Federal de Ouro Preto), em especial frente ao caso de blackface ocasionado no Centro Acadêmico da Escola de Minas — e nos dediquemos a estudá-lo sob o olhar privilegiado dos estudos do discurso, manejando passo a passo certas categorias nodais da área. • Diálogo, no conjunto lexical da língua portuguesa, possui um significado e uma etimologia decisiva: é a “fala entre duas pessoas” ou a “conversação entre muitas pessoas”, do latim dialogus (Cunha, 1986, p. 261, 262). Mas, no vocabulário bakhtiniano, a ideia de diálogo implica mais coisas entre o céu e a terra do que sonha nossa vã gramática. E por isto desemboca numa ideia fundamental, que a análise do discurso toma de empréstimo, que não é outra senão a de dialogismo. Mikhail Bakhtin, enquanto se dedicava a estudar certas peculiaridades genéricas, narrativas e composicionais dos romances dostoievskianos, se deparou com duas características nevrálgicas que, no seu entender, representavam o átomo irredutível de sua poética: por um lado, seus emblemáticos personagens — Ivan Karamázov, Raskólnikov, o príncipe Míchkin, 3 Stravróguin etc. — operavam como verdadeiras ideias ambulantes — o intelectualismo ateu, o bonapartismo, a inocência, o niilismo aristocrático etc. —; mas por outro, e isto é ainda mais decisivo, em cada um deles se dava uma “multiplicidade de vozes e consciências independentes e imiscíveis e a autêntica polifonia de vozes plenivalentes” (Bakhtin, 1997, p. 4). Ou seja, os romances e contos de Dostoiévski possuíam uma formalização textual que irradiava personagens cuja consciência jamais se dava de forma indivisível, estável e única, mas numa conformação múltipla típica de um sujeito seccionado, cindido: diversas consciências, respeitadas as suas disposições isonômicas e plenivalentes, que interagem e dialogam entre si. É esta premissa, ou seja, de que a vida social, em franco processo formativo, se dá como a unidade da diversidade, como o devir sempre inconcluso de vozes em diálogo, que permitiu o parto da ideia de dialogismo. A categoria expõe, em suma, que toda e qualquer comunicação humana é apenas um elo de uma gigantesca corrente comunicativa-verbal sem interrupção. Se trata, em última instância, da ideia de que todo enunciado pressupõe outrem, que toda enunciação aparentemente oclusa em si mesma está, em verdade, em franca remissão a outra — seja este diálogo consciente ou não. A dialogicidade representa este ponto definitivo que determina não só que todo novo dito se orienta para algo já dito — ou seja, de que toda enunciação é responsiva, sendo sempre réplica —, como igualmente condiciona que este dito espere uma resposta futura. Se trata da negação de um discurso adâmico, isto é, que pensa o discurso monologicamente sob o prisma de um subjetivismo individualista: todo texto, ao contrário, seria heterogêneo, comportando diversas vozes sociais, por vezes antitéticas, num mesmo objeto: “em sua essência, a palavra é um ato bilateral. Ela é determinada tanto por aquele de quem ela procede quanto por aquele para quem se dirige. Enquanto palavra, ela é justamente o produto das inter-relações do falante com o ouvinte” (Volóchinov, 2017, p. 205). No texto da ADUFOP vemos esta permeabilidade de discursos heteróclitos em diversas enunciações, em inúmeras marcas textuais. Um exemplo óbvio é a nominal citação do Coletivo Negro Braima Mané, uma organização de estudantes negros da UFOP, com quem eles francamente entram em interlocução ao citar a carta-denúncia emitida por eles. Mas existem, não obstante, exemplos mais sutis. Quando eles escrevem da “vida dos filhos e filhas da classe trabalhadora” ouve-se claramente os ecos de um glossário tipicamente socialista, afinal a própria ideia de um proletariado tem seu índice na ideia, em último grau marxiana, de queos trabalhadores despossuídos dos meios de produção só possuem, efetivamente, sua força de trabalho e sua prole, isto é, seus filhos. 4 Igualmente, uma afirmativa como “o racismo, que é estruturante da sociabilidade capitalista” tem lastro em toda uma produção crítico-bibliográfica da tradição do movimento negro nacional e internacional — poderíamos falar em Clóvis Moura, Solano Trindade e Lélia Gonzalez, para citar o caso brasileiro; mas também Frantz Fanon, Aimé Césaire e Fred Hampton, em nível internacional. “Suas raízes são seculares e estão nas senzalas”, não obstante, diz evidente respeito à própria história municipal de Ouro Preto, Mariana e a Região dos Inconfidentes como um todo, fortemente marcada pela extração aurífera e a exploração da mão-de-obra escravizada africana — representada, em mais um processo dialógico, na polaridade freyreana entre a casa-grande e a senzala, a branquitude e a negritude. Poderíamos citar, a título de exemplo de uma atividade inerentemente responsiva da linguagem, a menção à fatídica e pretérita visita da assim chamada família real — qual seja, a descendência ainda viva dos Orleans e Bragança do Brasil imperial, hoje sem efetivamente nenhum poder político — à cidade de Ouro Preto; bem como a frase — propositalmente alocada entre aspas como símbolo de um distanciamento ideológico — “‘aclamado ato de bondade de uma princesa’ comemorado no dia 13 de maio, que se avizinha”, referência evidente a abolição da escravatura operada pela então princesa Isabel. Todos estes exemplos dão testemunho de uma imaginação iminentemente polifônica em atuação no texto: se, em matéria de música, a polifonia diz respeito à sobreposição de diferentes texturas e sons — instrumentais ou vocais —, ainda que sob diferentes ritmos, a se confluir numa mesma harmonia ou armadura melódica1; em matéria do discurso a polifonia nada mais é do que os registros lexicais e sintáticos que dão prova, como primeiramente anteviu Bakhtin — e depois fora formalizado por Ducrot — de que existem inúmeras instâncias ideológicas e linguísticas, quer seja em aliança ou antagonismo, dentro de um mesmo texto. No texto da ADUFOP conseguimos vislumbrar os rastros linguísticos que remetem tanto a apóstolos da democracia racial, bem como de socialistas ortodoxos, marxistas negros nacionais e internacionais, monarcas decadentes e toda a historiografia do Brasil setecentista: vozes aparentemente inconciliáveis que, sob o manto do discurso, sintetizam suas múltiplas determinações. Em função desta condição é que se pode perceber uma heterogeneidade discursiva latente no texto em questão: a composição quase orquestral do discurso impede a localização imediata e definitiva de um verdadeiro sujeito — assim como, na escuta de uma sinfonia, é especialmente difícil 1 Talvez a música noise seja o melhor exemplo contemporâneo deste tipo de operação. 5 para um leigo diferenciar um concertino de um segundo violino, por exemplo. A noção de uma subjetividade autocentrada está efetivamente posta a prova, pois ela é “relativizada no par EU-TU, incorporando o outro como constitutivo do sujeito” (Brandão, 2004, p. 59). Se abre alas, deste modo, para uma exploração da semântica textual muito mais afeita à alteridade, à dimensão intersubjetiva que solapa qualquer solipsismo tacanho, que depreende o quanto o ser humano é inconcebível sem sua relação com o Outro. O texto da ADUFOP, ao se utilizar de formas marcadas de conotação autonímica — o já citado exemplo do “‘aclamado ato de bondade de uma princesa’” — está deliberadamente acusando o uso de palavras que, embora não sejam suas, fazem parte da construção discursivo-identitária do texto — ainda que por uma antítese concreta. • Um conceito muito caro aos estudos do discurso — em especial os balizados por Dominique Maingueneau ou um tanto quanto mais pragmático — diz respeito à assim chamada cena enunciativa ou cena de enunciação. O termo por vezes é empregando em sinonímia — ou concorrência — à ideia das efetivas situações comunicacionais, mas a ideia de uma cena engendra, por natureza, uma metáfora de ordem teatral, dramatúrgica, que não é irrelevante: em última instância ela remete à noção — popularizada pela decidida frase de Shakespeare, “o mundo inteiro é um palco”, e o teatro elisabetano — de theatrum mundi, qual seja, de que toda a ordem cosmológica, todo o mundo, se equivale metaforicamente a um teatro, sendo reservado a cada indivíduo um papel: “A vida é sombra passageira. Um mísero ator que chega, agita a cena inteira, diz sua fala e sai. E ninguém mais o nota. É uma história narrada aí por um idiota, cheio de sons, de ímpeto e não dizendo nada (Shakespeare, 2007, p. 103). Contudo, como as máscaras, as personas, tradicionalmente indicam, o teatro é consagrado por sua diferenciação genérica — a saber, a tragédia e comédia. A metáfora teatral é determinante pois revela como as cenas enunciativas dizem respeito acentuado à enunciação não só dada num espaço instituído, mas efetivamente definida pelo gênero textual em questão — que, como diria Bakhtin, é relativamente estável. O próprio Maingueneau assevera que “em lugar de elaborar uma lista impossível de gêneros do discurso, é melhor nos questionarmos sobre a maneira de conhecer as próprias coerções genéricas” (Maingueneau, 1997, p. 35): noutras palavras, é muito mais produtivo nos desviarmos de tentar organizar certo número de padrões formais e procedimentais a fim de catalogar gêneros e, ao contrário, pensarmos em sua instância decisivamente institucional: sua forma de transmissão, meio de circulação, circuitos de 6 difusão, modo de destinação, elementos paratextuais etc., que afirmam como “a cada gênero associam-se momentos e lugares de enunciação específicos e um ritual apropriado” (Maingueneau, 1997, p. 36). Se tratando do texto em análise, é nítido em primeiro lugar que ele foi elaborado para vetor da escrita — o que nos permite intuir uma certa expectativa de leitura individual — e foi peremptoriamente circulado no ambiente virtual-cibernético2 — o texto em si foi vinculado ao site da associação, mas foi também propagandeado em mídias sociais como o Instagram, o X, o Linkedln, o Facebook e o Whatsapp. O seu circuito de difusão é bem definido: embora se enderece de forma virtualmente infinita a qualquer leitor que porventura acesse o texto, ele circula em especial entre os membros da comunidade acadêmica da UFOP, sobretudo o grupo professoral que é associado da organização. Mesmo com o tom contundente, o texto parece destinado a ser reproduzido em massa e numa leitura passageira, rápida, sucinta, afinal seu propósito é ser muito mais uma chamativa a um ato público futuro — uma manifestação em frente ao restaurante universitário do campus do Morro do Cruzeiro às 11h30min do dia 11 de maio de 2022 — do que um discurso meticuloso e engenhoso. Como o texto fora publicado num site, evidentemente existem toda sorte de recursos visuais a povoar o olhar do leitor — desde a logo da associação até os hiperlinks de outras matérias jornalísticas do site. Para uma taxonomia textual clássica, se trata decisivamente — como o próprio título assegura — de uma nota jornalística, um gênero objetivo, curto e incisivo no nível das suas ideias e das suas demandas. Por isto é igualmente produtivo pensarmos esta mesma nota nos termos de uma formação discursiva. O termo é um tanto quanto instável, mas cuja formalização clássica feita por Michel Foucault — no seu emblemático trabalho arqueológico do saber — e por Pêcheux, diz respeito ora a um conjunto de enunciados que se associam um outro sob a égide de um mesmo sistema de regras historicamente determinadas, ora às formas ideológicas que interpelam os sujeitos e lhes implicam o que pode e deve ser dito: ou seja, demostrando toda uma gama de posicionamentos políticos e ideológicosque não são propriamente individuais, mas organizados formativamente em intricadas relações de antagonismo ou aliança. Ora, a formação discursiva representada pelo texto da ADUFOP tem certas características discursivas latentes: primeiramente, seus autores se inserem como representantes de duas vias institucionais claras: de um lado, o funcionalismo público docente no ensino superior; do outro, as organizações sindicais e os movimentos 2 Originalmente se encontra disponível em: . Acesso em: 14 de junho de 2025. https://www.adufop.org.br/post/nota-da-diretoria-da-adufop-sobre-racismo-na-ufop-caso-de-blackface https://www.adufop.org.br/post/nota-da-diretoria-da-adufop-sobre-racismo-na-ufop-caso-de-blackface 7 sociais de esquerda. Presumivelmente, os destinatários imediatos deste texto são também professores universitários ou sujeitos minimamente ligados à base militante da esquerda brasileira nas cidades históricas de Ouro Preto e Mariana. É esta qualidade enunciativa que torna a separação entre forma e conteúdo absolutamente insípida: o texto mobiliza todo um jargão e um conjunto subreptício de ideias que são compartilhadas entre sujeitos alinhados à esquerda — em sua categorial defesa da igualdade radical e da soberania popular. Por isto o texto não precisa se aprofundar com prolixidade a definir certos conceitos manejados — o de racismo estrutural, por exemplo, desenvolvido no Brasil pelo jurista e ex-ministro Silvio Almeida — ou a explicar fatos jornalísticos — o assassinato policial do jovem negro Igor Mendes em 2017, por exemplo — afinal está implicado que estes conhecimentos já são produzidos e reproduzidos no interior desta formação discursiva. A forma, portanto, é conteúdo, e “a eficácia da enunciação resulta necessariamente do jogo entre as condições genéricas, o ritual que elas implicam a priori e o que é tecido pela enunciação efetivamente realizada” (Maingueneau, 1997, p. 40). • Entrando nos aspectos propriamente cenográficos do discurso, um elemento fundamental de se observar é a noção de dêixis, em suma, “as coordenadas espaço- temporais implicadas em um ato de enunciação” (Maingueneau, 1997, p. 41) que formatam uma triangulação equilátera entre o eu, o outro e o aqui/agora. Toda e qualquer expressão dêitica remete, portanto, à referentes de ordem espacial — topográfica, neste sentido — e temporal — cronográfica, no mesmo sentido — afinal todo ato de linguagem não se inscreve num vazio asséptico e indeterminado, mas numa contingência concreta de lugares e temporalidades, no nível “do universo de sentido que uma formação discursiva constrói através de sua enunciação” (Maingueneau, 1997, p. 41). Ora, no discurso da ADUFOP marcações de tal natureza espaço-temporal são recorrentes, aliás, o texto se inicia com uma — “no fim do mês de abril, na UFOP” — e se encerra com outra — “todos e todas no dia 11 de maio às 11h30min em frente ao RU do campus Morro do Cruzeiro em Ouro Preto”. Todo o texto demarca que a enunciação está espacialmente pressuposta na cidade história de Ouro Preto e que os eventos a serem discutidos se deram nela: nos centros de sociabilidade como o restaurante universitário ou o Centro Acadêmico da Escola de Minas; o campus do Morro do Cruzeiro que abriga, majoritariamente, os cursos de ciências exatas e da natureza; as repúblicas federais estudantis etc. Igualmente, inúmeras dimensões temporais são discutidas no texto: desde o fatídico evento festivo quando os estudantes realizaram o blackface — ocorrido nos 8 estertores de Maio de 2021 —, as cinco décadas de existência da UFOP, a data da manifestação antirracista, o dia de comemoração da abolição da escravatura etc. Mas para além desta dêixis discursiva manifesta, há também uma dêixis fundadora — qual seja, “a(s) situação(ões) de enunciação anterior(es) que a dêixis atual utiliza para a repetição e da qual retira boa parte de sua legitimidade” (Maingueneau, 1997, p. 42). Penso ser possível depreender múltiplas dêixis fundadoras no texto: se considerarmos o próprio gesto performático do blackface como um acontecimento discursivo, é nítido que o discurso predecessor e catapultor do atual é ele. A carta-denúncia do Coletivo Negro Braima Mané, a Portaria Prace nº 62 e a manifestação institucional da UFOP, igualmente, são três documentos/discurso anteriores cuja citação é estratégica com fins de legitimação: uma maneira de demonstrar que a nota, em si mesma, se encadeia a mais uma série de discursos realizados recentemente na cidade em torno do problema do racismo na comunidade estudantil. Contudo, penso haver toda uma dêixis fundadora muito mais sútil e implica: se trata do discurso historiográfico em torno da cidade de Ouro Preto, isto é, da antiga Vila Rica, o espaço físico mais representativo de todo o zeitgeist colonial: o símbolo representativo dos esplendores e misérias do Brasil setecentista, marcado por uma produção cultural profícua — os árcades mineiros, Aleijadinho, Athayde etc. — pari passu a uma exploração violenta e bárbara sem precedentes: esta dêixis originária parece se confirmar na frase “suas raízes são seculares e estão nas senzalas, no tráfico e relação de compra e venda de seres humanos, marcas da escravização do povo negro no passado colonial”. Estes múltiplos mecanismos textuais derivam, por suposto, um ethos discursivo e retórico, que nada mais é do que a imagem identitária que o locutor constrói de si mesmo ao elaborar seu discurso, ao se autoatribuir uma posição institucional, ao marcar seu relacionamento com um saber: se trata, portanto, do enquadramento do enunciador numa persona, numa representação ética coletiva que condiciona a eficácia do discurso: “não o que diziam a propósito deles mesmos, mas o que revelavam pelo próprio modo de se expressarem” (Maingueneau, 1997, p. 45). No texto em análise isto se procede limpidamente: o tom e o caráter do discurso não deixam dúvidas de que o enunciador — a saber, a ADUFOP enquanto instituição — se apresenta como veementemente antirracista, antiburguesa e antimachista, se afirmando como uma organização orientada ao campo político da esquerda histórica e herdeira das suas tradições ideológicas e militantes — o socialismo, o anarquismo, o republicanismo etc. Quando os elementos do ethos — poderíamos citar, a título de exemplo, o uso da crítica sardônica, a recorrência 9 da exclamação para se pontuar de forma belicosa, expressões emblemáticas como “classe trabalhadora”, “luta sindical” etc. — são de alguma forma acoplados à discursividade, o próprio discursa se transforma substancialmente, ele “é, a partir daí, indissociável da forma pela qual ‘toma corpo’” (Maingueneau, 1997, p. 48). Isto é o que, em análise do discurso, chamamos de incorporação: por um primeiro lado, o discurso corporifica o enunciador, permite que o destinatário dinamicamente crie uma representação dele — não se trata mais da ADUFOP como uma entidade abstrata e amorfa, mas de uma imagem da mesma numa encarnação quase física, ainda que estereotípica —; por outro, quando o destinatário do discurso incorpora e assimila os esquemas característicos deste enunciador, ele mesmo descobre uma maneira de se corporificar e se mover no mundo. Nesta dialética, o ganho fundamental é a possibilidade do destinatário se incorporar imaginariamente à determinadas comunidades discursivas: ele agora, ao reconhecer a ética do enunciador, pode se reconhecer ou não nela e assim participar ativamente do ciclo dos que aderem ao ethos discursivo agenciado. • À guisa de encerramento, é necessário enfim trabalharmos com o elemento contratual que integra o circuito do fazer-situacional — isto é, a dinâmica múltipla entre os sujeitos comunicante, enunciador, destinatário e interpretante. Ao falarmos de umcontrato de comunicação estamos pensando — quer seja em nível semiótico, psicossociológico ou analisante — qual é a condição última de possibilidade semântica de um discurso, isto é, qual seria o fator a permitir que os envolvidos num ato de linguagem reconheçam, simultaneamente, a validade e legitimidade do mesmo sob a ótica da construção do sentido. Envolve, portanto, uma expectativa discursiva e performática típica do gênero em ação que, se violada, interpõe a efetividade da comunicação: “ela depende do ‘desafio’ construído no e pelo ato de linguagem, desafio este que contém uma expectativa” (Charaudeau, 2001, p. 30). Se, por exemplo, um parlamentar brasileiro, numa votação qualquer do Congresso, usa seu espaço de fala para realizar piadas esdrúxulas e laudar torturadores, o contrato comunicacional entre ele — enquanto sujeito comunicante — e seus ouvintes — enquanto sujeitos interpretantes — é imediatamente dissolvido: se espera que o ambiente político-parlamentar seja solene, sóbrio e respeitoso, e por isto atitudes de natureza vexatória, infantil e virulenta são, via de regras, lidas como quebra de decoro — que, por sinal, pode implicar na deposição do cargo —, indignas de sequer serem interpretadas. Neste sentido, “a relação contratual depende, portanto de 10 componentes mais ou menos objetivos, tornados pertinentes pelo de jogo de expectativas que envolvo o ato linguageiro” (Charaudeau, 2001, p. 30). Estes componentes a rigor são o comunicacional — o quadro físico da situação interacional —, o psicossocial — os estatutos que os parceiros reconhecem entre si — e o intencional — o conhecimento a apriorístico que os parceiros possuem ou constroem sobre o outro e que apelam para saberes compartilhados. Se trata, na verdade, de componentes que permitam o ato de linguagem sob o prisma da identidade — o que define os sujeitos em ação —, da finalidade — qual seria o telos, o objetivo daquele ato —, das circunstâncias — quais as coerções materiais que regem este ato — e do propósito — qual é o objeto temático em jogo na interação. Na nota da ADUFOP vemos estes elementos firmarem o contrato de comunicação: o enquadramento físico é decisivamente virtual e se dá por um canal gráfico-escrito, não havendo simultaneidade de presença entre os sujeitos — que são múltiplos, afinal existe uma gama virtualmente infinita de interpretantes, a saber, todos os que travarem contato com a nota. Paralelamente, há um claro pendor psicossocial e identitário no ganho de reconhecimento dos sujeitos: se espera que ambos os polos do ato de linguagem sejam pessoas de esquerda, comprometidas com pautas sociais, membros da UFOP — quer sejam discentes, docentes, técnicos ou terceirizados —, preocupados com o problema da opressão racial etc. É este nível identitário que mais parece garantir a estabilidade do contrato em tempos de tamanha polarização ideológica: toda a possibilidade de significação e construção de sentido do texto ruiria se ele fosse destinado a pessoas de direita, bolsonaristas, liberais etc. E o nível intencional é evidente: o que está sendo decisivamente colocado em questão é a crítica ao racismo recreativo dos estudantes universitários republicanos da UFOP e o chamamento ao protesto público; e está veiculado de uma maneira convicta, assertiva, forte etc., para demonstrar uma firmeza inquebrantável de posicionamentos. Para o contrato se realizar plenamente é exigido, para além disto, um arsenal de procedimentos que se valem de determinadas categorias linguísticas com vistas de uma finalidade discursiva no ato comunicacional. Isto é o que comumente se chama de modos de organização do discurso, que a rigor são quatro — enunciativo, descritivo, narrativo e argumentativo — embora, o primeiro comande os demais por ter como vocação principal dar conta da posição do locutor com relação ao interlocutor. A nota da ADUFOP parece se enquadrar como um modo de organização veementemente argumentativa — ou seja, por realizar a exposição e comprovação de uma série de casualidades, racionalmente organizadas, que influenciam seu interlocutor. A nota, resumidamente, isola um 11 acontecimento — o caso de blackface — e parte dele para elencar inúmeros argumentos capazes de comprovar o racismo como elemento sine qua non da sociabilidade capitalista no Brasil — exemplos são a privação de direitos de moradia adequada e empregos dignos para a população ouropretana que é majoritariamente negra, o passado histórico escravagista, o homicídio de Igor Mendes, a recepção ostensiva da família Orleans e Bragança etc. Ou seja, a nota tem como princípio motor a organização da lógica argumentativa e a encenação argumentativa. O modo de organização se integra a um quadro mais amplo de estratégias discursivas, ou seja, de ações coordenadas com vistas de atingir um objetivo. Na acepção charaudeauniana clássica, as estratégias discursivas passam por etapas de legitimação — a posição de autoridade do sujeito —, credibilidade — a posição de verdade do sujeito — e captação — de entrada no quadro de pensamento do sujeito enunciativo. Nos parece que, no texto da ADUFOP, o grande elemento legitimador é extrínseco ao discurso — embora lhe seja constitutivo — e envolve a posição institucional da própria ADUFOP: se trata de uma associação de docentes universitários, isto é, de figuras que num geral passaram por uma formação acadêmica completa — graduação, mestrado e doutorado — , ativamente publicam artigos em periódicos científicos, estão comprometidos com pesquisa, ensina e extensão, falam mais de uma língua e, é claro, entraram no magistério superior por meio de concursos disputados. Todos estes elementos declinam que a organização possui um capital cultural muito rico e que, por isto, está investida de uma autoridade intelectual que é legítima e pertinente. No que tange a credibilidade, a nota se afastar ao máximo possível da coloquialidade, do humorístico e do familiar lhe loureia um tom decoroso, responsável e sério, que parece respaldar o estatuto de verdade do discurso: o assunto em questão é examinado com uma dignidade elocutória que não nos permite julgar as posições do sujeitos como falsas, mentirosas, ignorantes ou manipuladas. Se tratando da captação, a decisão de mencionar elementos do universo cultural da urbe — o CAEM, o RU, a Escola de Minas, o Coletivo Negro Braima Mané etc. — parecem contribuir para uma progressiva e facilitada entrada do leitor no mundo semântico do enunciador; igualmente, o já citado uso recorrente do ponto de exclamação é uma tática retórica que nos prede a uma frase decisiva e impactante e, assim, nos faz ser capturados pelo discurso. Por fim, para completar a análise discursiva da nota da ADUFOP, resta delimitarmos a encenação do ato de linguagem, isto é, a “totalidade da encenação linguageira com seus dois circuitos, externo — o da relação contratual entre parceiros — 12 e interno — o da encenação do dizer, com seus dois protagonistas” (Charaudeau, 2001, p. 36). Neste quadro conceitual do fazer-situacional, observamos a existência de quatro subjetividades: no circuito interno, o sujeito enunciador (EUe) e o sujeito destinatário (TUd); no circuito externo, o sujeito comunicante (EUc) e o sujeito interpretante (TUi). No caso da nota, o interpretante pode ser qualquer leitor que, por desejo próprio ou involuntariamente, se depare e leia o texto; ao passo que o comunicante é a ADUFOP enquanto instituição. O destinatário parecem ser as pessoas antirracistas da UFOP — mesmo que a expressão “todos e todas” possa passar uma impressão de universalidade — e o enunciador é propriamente a diretoria da ADUFOP — a saber, Kathiuça Bertollo, Gabriela de Lima Gomes, Tays Torres Ribeiro das Chagas, Rodrigo Fernandes Ribeiro, Paulo Ernesto Antonelli e Pedro Henrique Barbosa de Abreu. O espaço do dizer é a nota, enquanto oespaço do fazer é o site onde o texto se encontra. Desta forma, se completa a encenação do ato linguageiro e nossa análise discursiva. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997. BRANDÃO, Helena Hathsue Nagamine. Introdução à análise do discurso. Campinas: Editora da UNICAMP, 2004. CHARAUDEAU, Patrick. Uma teoria dos sujeitos da linguagem. In: MARI, Hugo et al. Análise do discurso: fundamentos e práticas. Belo Horizonte: Núcleo de Análise do Discurso-FALE/UFMG, 2001. COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001. CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico Nova Fronteira da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. São Paulo: Edições Loyola, 2014. MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em análise do discurso. Campinas: Pontes, Editora da UNICAMP, 1997. SHAKEASPEARE, William. Macbeth. São Paulo: Martin Claret, 2007. VOLÓCHINOV, Valentin. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. São Paulo: Editora 34, 2017.