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A MULHER FEMININA EM SARAMAGO

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II Seminário Nacional em Estudos da Linguagem: 06 a 08 de outubro de 2010 
Diversidade, Ensino e Linguagem UNIOESTE - Cascavel / PR 
 
ISSN 2178-8200 
A PERSONAGEM FEMININA EM SARAMAGO 
 
 
SILVA, Luís Cláudio Ferreira (PG-UEM) 
SILVA, Marisa Corrêa (UEM) 
 
RESUMO: Durante séculos a mulher foi vista como ―o outro‖, contra o qual o homem 
impunha seu poder, devendo ser subserviente nas sociedades patriarcais e falocêntricas, 
o que descreve a nossa e as sociedades de modelo eurocêntrico em geral. Simone de 
Beauvoir, em Segundo Sexo, teoriza sobre as origens desse fenômeno, numa 
obra fundamental para entender a situação feminina. E sua estereotipação se transfere 
também para o campo literário, onde podemos ver personagens femininas que são 
dominadas pelas prerrogativas masculinas. Far-se-á uma pequena explanação dessas 
representações femininas no campo literário. Em seguida, focaremos três romances de 
José Saramago, Ensaio Sobre a Cegueira, Jangada de Pedra e Memorial do Convento, 
centrando o foco em personagens que, no universo desse autor, são representadas de 
forma pouco convencional em seus fazeres e poderes e saber se elas mantém a imagem 
cristalizada de mulher ou se, ao contrário, elas rompem com tais estereótipos. 
 
 PALAVRAS-CHAVE: Crítica Feminista, Personagem Feminina, Gênero, José 
Saramago. 
 
 
1 - A condição feminina e crítica feminista 
 
 
É comum mesmo em uma época que se auto-intitula moderna ouvir frases como 
― lugar de mulher é na cozinha‖, ―ser mãe é padecer no paraíso‖, ―tem coisas que só os 
homens podem fazer‖ etc. O rompimento de muitas barreiras nos campos econômico, 
tecnológico e medicinal – só para citar alguns – parece não ter tido muito reflexo no que 
tange à condição feminina. 
Claro está que nos tempos atuais as mulheres conseguiram uma certa 
independência financeira: hoje podem trabalhar, serem bem remuneradas e serem as 
responsáveis por manter financeiramente um lar. Contudo, há um eco que não cessa de 
incomodar os ouvidos, herança de um legado patriarcal que assolou as mulheres durante 
séculos. A mulher sempre foi tida como ―o outro‖ e ainda o é. 
Há tempos que a mulher luta pela melhoria de suas condições, e por muito tempo não 
conseguiram muito avanço. De fato, a questão feminista passou a ter uma voz - talvez 
―rouca‖, no entanto uma voz - nos últimos dois séculos. Vem em busca do direito de 
igualdade de remuneração salarial, direto a voto, entre outros. na segunda metade do 
século XIX o feminismo político começou a se organizar como movimento, mais 
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especificamente na Inglaterra e nos Estados Unidos. Através de documentos e petições, 
esse movimento foi em busca da igualdade legislativa, ou seja, do voto, já que o mesmo 
significava a maior bandeira feminista, pois, a partir dele, outros objetivos poderiam ser 
alcançados. Contudo, foi exatamente nesta época que, na Inglaterra, durante a Era 
Vitoriana, a mulher foi majoritariamente discriminada, como se vê nas palavras de 
Zolin: 
 
A mulher que tentasse usar seu intelecto, ao invés de explorar sua 
delicadeza, compreensão, submissão, afeição ao lar, inocência e 
ausência de ambição, estaria violando a ordem natural das coisas, 
bem como a tradição religiosa [...] a condição de subjugada da 
mulher deve ser tomada como sendo de vontade divina (ZOLIN in 
BONICCI & ZOLIN, p. 164). 
 
 Vê-se que se utilizou ao longo da história, e porque não dizer, utiliza-se até os 
dias de hoje, vários meios para manter a mulher como submissa, e um dos mais fortes é 
a tradição religiosa, que ―obriga‖ a mulher a manter-se como subjugada em relação ao 
sexo masculino dominante. Segundo Pierre Bourdieu, o estado e o clero seriam os 
responsáveis pela perpetuação desses valores, como ele diz em seu livro A Dominação 
Masculina (2005): 
 
Teríamos que levar em consideração o papel do estado, que veio 
ratificar e reforçar as prescrições e proscrições do patriarcado privado 
[...] Sem falar no caso extremo dos estados paternalistas, realizações 
acabadas da visão ultraconservadora que faz da família patriarcal o 
principio e o modelo da ordem social como moral, fundamentada na 
preeminência absoluta dos homens em relação às mulheres [...] 
(BOURDIEU, 2005, p. 105). 
 
 A perpetuação de todos esses valores foi feita por meio de fortes estruturas, que, 
por conta de seus próprios interesses fixaram a mulher como submissa e inferior. Tanto 
a sociedade quanto a igreja, fixavam suas justificavas em um ponto principal: família. 
Segundo o autor, essas instituições pregavam a ―pureza‖ feminina em prol da 
constituição da família. Uma mulher revolucionária, que fugisse aos padrões, tanto de 
esposa fiel quanto na utilização de trajes mais ousados atingiria a moral e os bons 
costumes, não sendo apta, assim, a constituir família. 
 
É, sem dúvida, à família que cabe o papel principal na reprodução da 
dominação e da visão masculinas; é na família que se impõe a 
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experiência precoce da divisão sexual do trabalho e da representação 
legítima dessa divisão [...] Quanto à Igreja, marcada pelo 
antifeminismo profundo de um clero pronto a condenar todas as faltas 
femininas à decência, sobretudo em matéria de trajes, e a reproduzir, 
do alto de sua sabedoria, uma visão pessimista das mulheres e da 
feminilidade (BOURDIEU, 2005, p. 103). 
 
 Em outras palavras, perpetuando a família baseada na religião, perpetuava-se, 
então, a submissão feminina. Inclusive criam-se mitos. Vê-se o exemplo da gênese 
bíblica judaico/cristã que conta o nascimento de Eva, a primeira mulher, a partir de uma 
parte da costela de Adão, seu homem. Ela não foi criada juntamente com Adão, foi 
moldada a partir de uma parte do seu corpo. Deus não a criou por sua vontade 
simplesmente, mas por ver Adão solitário e triste, ou seja, criou-a com um único 
propósito: destiná-la ao homem. 
 Nem só sua criação é um mito de subserviência, mas também sua atitude que 
causou a expulsão do paraíso é também um mito que a enquadra como a megera, algo 
que vêm das trevas para afastar o homem de seu contato com Deus. Ao comer a maçã e 
a ―ludibriar‖ o homem para que esse também comesse do fruto, Eva passa a ser a 
culpada do desligamento com o divino. Além de serva, ela é aquela que também não se 
pode confiar, que tem pensamentos divergentes, que leva o homem para longe do seu 
verdadeiro caminho. 
Simone de Beauvoir, grande referência na crítica feminista diz que nas 
sociedades mais primitivas, o homem tinha que sair à caça, visto que a mulher tinha que 
cuidar da prole. Sua inferioridade física em relação aos homens, que tinham que 
empenhar pedras e armas, pode até ter ajudado na construção da dicotomia de gênero, 
mas não foi um dos principais fatores, já que suas tarefas domésticas – fabricação de 
vasilhames, tecelagem, jardinagem e colheita – eram de fundamental importância na 
vida econômica dessas sociedades. 
 Porém, quando um povo passou a conquistar outro, a fazer escravos, a se impor 
em relação a outras tribos é que a mulher sucumbe. Ao menos é o que afirma Beauvoir 
em seus estudos: 
 
Um trabalho intensivo é exigido para desbravar florestas, tornar os 
campos produtivos. O homem recorre, então, ao serviço de outros 
homens que reduz à escravidão. A propriedade privada aparece:senhor dos escravos e da terra, o homem torna-se também 
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proprietário da mulher. Nisso consiste a grande derrota do sexo 
feminino (BEAUVOIR, 1949, pg. 74). 
 
 Sua submissão, segundo Beauvoir, se inicia, então, com o advento da posse e da 
propriedade privada. Ela já não é mais aquela com quem se divide igualmente o 
trabalho. Mas se torna também posse do conquistador, escrava do dominador. 
Anteriormente, o outro, o ser contra o qual o homem de sua tribo se impunha era um 
mero animal que serviria de alimento ou os outros homens de outras tribos quando essas 
se punham em batalha. A partir do momento em que o conceito de posse emerge, ela 
passa a ser o outro contra o qual o homem se impõe. Lá fora do lar, ele se impõe na 
guerra para suas conquistas, e essa imposição reflete dentro do lar, relegando a mulher 
ao seu papel de objeto-posse. A partir daí o homem reivindica a colheita, bem como os 
filhos: é o aparecimento da sociedade patriarcal e falocêntrica baseada na propriedade 
privada. Quando casada, liberta-se do pai, mas passa então a ser propriedade do marido, 
não tem voz, não faz suas leis, não impõe seus pensamentos. 
Diz-se que a mulher acaba por tornar-se inconscientemente submissa por várias 
razões. Uma delas é sua passividade na relação sexual. Ela espera, passiva, a entrada 
―triunfante‖ do homem, o ser ativo na relação. Logo, pode-se entender que possuir um 
pênis é possuir o poder dentro das relações. Se o homem impõe-se socialmente, 
intimamente o instrumento que o leva a permanecer com esse poder é o falo. Lê-se 
Beauvoir ―O homem exalta o falo na medida em que o apreende como transcendência e 
atividade, como modo de apropriação do outro‖ (IBIDEM, 205). 
 
 
2 - A mulher na literatura 
 
 
 A mulher também ficou, por longas décadas e séculos, com um papel secundário 
nas obras literárias. Aos homens eram dedicadas as principais personagens, as 
discussões, aventuras e reflexões. Lucia Zolin discute a respeito do estereótipo feminino 
nas obras literárias. Segundo ela, nas narrativas de autores masculinos, tudo tem uma 
perspectiva e um direcionamento totalmente masculinos, como se todos os seus leitores 
também o fossem. Logo, as personagens femininas ficam deixadas em um segundo 
plano, seguindo paradigmas de estereótipos e papéis. 
 
Fernando
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[...] as críticas feministas mostram como é recorrente o fato de as 
obras literárias canônicas representarem a mulher a partir de 
repetições de estereótipos culturais, como, por exemplo, o da mulher 
sedutora, perigosa e imoral, o da mulher como megera, o da mulher 
indefesa e incapaz, e entre outros, o da mulher como anjo capaz de se 
sacrificar pelos que a cercam. (ZOLIN, p. 170). 
 
 Podemos enquadrar, segundo as definições dadas acima, algumas das 
personagens mais importantes das Literaturas Brasileira e Portuguesa. A mulher descrita 
somente como corpo, feita para o sexo, aquela dedicada aos delírios da carne, sedutora e 
perigosa pode ser representada pela personagem. Lúcia do romance Lucíola de José de 
Alencar. 
Lúcia saltava sobre a mesa. Arrancando uma palma de um dos jarros 
de flores, trançou–a nos cabelos, coroando–se de verbena, como as 
virgens gregas. Depois agitando as longas tranças negras, que se 
enroscaram quais serpes vivas, retraiu os rins num requebro sensual, 
arqueou os braços e começou a imitar uma a uma as lascivas pinturas; 
mas a imitar com a posição, com o gesto, com a sensação do gozo 
voluptuoso que lhe estremecia o corpo (ALENCAR, 1985, p. 42-43). 
 
 Vemos também muito fortemente na literatura o estereótipo de mulher pura, 
incapaz de maldade, sendo sempre representada com adjetivos alvos, elevada ao estado 
de anjo ou divindade: 
 
Descansar nesses teus braços 
Fora angélica ventura: 
Fora morrer — nos teus lábios 
Aspirar tua alma pura! 
Fora ser Deus dar-te um beijo 
Na divina formosura! (AZEVEDO, 1996, p. 51) 
 
Como a mulher que vive para o trabalho, servindo o homem, podemos ver 
Bertoleza, de O Cortiço. Sofrida, sem ter a quem recorrer, vê como único caminho 
trabalhar sol a sol para João Romão, português que lhe mandava e desmandava. 
 
Como sempre, era a primeira a erguer-se e a ultima a deitar-se; de 
manhã escamando peixe, à noite vendendo-o à porta, para descansar 
da trabalheira grossa das horas de sol; sempre sem domingo nem dia 
santo, sem tempo para cuidar de si, feia, gasta, imunda, repugnante, 
com o coração eternamente emprenhado de desgostos que nunca 
vinham à luz. Afinal, convencendo-se de que ela, sem ter ainda 
morrido, já não vivia para ninguém, nem tampouco para si, desabou 
num fundo entorpecimento apático, estagnado como um charco podre 
que causa nojo (AZEVEDO, 1997, p. 133). 
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 Resumidamente, a mulher ou é vista como angelical, submissa e fiel ou é 
megera, objeto de sexo e semeadora da discórdia. É claro no exemplo a seguir, retirado 
da obra Inocência, de Visconde de Taunay: 
 
Esta obrigação de casar as mulheres é o diabo!.. Se não tomam 
estado, ficam juradas e fanadinhas...; se casam podem cair nas mãos 
de algum marido malvado... E depois, as histórias! Ih meu Deus, 
mulheres numa casa, é coisa de meter medo... (TAUNAY, 1998, p. 
27). 
 
 Ou seja, há certo modelo de mulher e ―feminilidade‖, que se traduz quase como 
―passividade‖, ou mesmo ―sexualidade‖ ou é demonizada como no trecho acima. São 
dois pólos opostos que as representam, estereotipando-se nos dois, petrificando-a em 
uma imagem inautêntica. 
 
A mulher representada na literatura, entrando num circuito, 
produzindo efeitos de leitura, muitas vezes acaba por se tornar um 
estereótipo que circula como verdade feminina. Presa de 
representações confunde significante e significado e busca 
estabelecer uma continuidade do signo com a realidade (BRANDÃO, 
2006, p. 33). 
 
 
3 - A mulher em Saramago 
 
 
As narrativas não foram escolhidas por acaso. Há nelas personagens femininas 
que são marcantes por sua força de atuação. Mulher do Médico, de Ensaio sobre a 
Cegueira, sacrifica-se, logo no início da obra, em prol do marido. Ela o acompanha até 
ao manicômio onde os cegos estão sendo alojados, fingindo estar também cega para, 
assim, estar junto dele. A partir dessa atitude, outros fatos importantes se desencadeiam 
e tornam sua participação na fábula de extrema importância. A sua imunidade acaba se 
tornando um peso para ela mesma. Enquanto os outros estão cegos e jogados à barbárie, 
ela, com os seus olhos literalmente abertos, acaba por testemunhar toda a decadência 
humana, física e moral. No entanto, ela não se entrega, sacrifica-se novamente, desta 
vez em prol dos cegos de sua camarata: reivindica medicamentos para os feridos, 
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demanda mais comida para a ala que passa fome, dá banho nas outras mulheres e ajuda 
os feridos. 
 Sua pureza, ou se preferirmos, sua não altivez, faz com que ela sequer considerea hipótese de tirar proveito da visão intacta, por exemplo, pegando mais comida para si. 
Ela compartilha os horrores da situação, seguindo com outras mulheres voluntárias até a 
ala vizinha para servirem, com seus corpos, como moeda de troca por comida para os 
habitantes da sua ala. E essa ―superioridade‖ que ela tem sobre os outros, ou seja, o fato 
de enxergar em meio a cegos, ao invés de trazer vantagens, leva-a ao perigo. Após 
assassinar com uma tesourada o líder da camarata que fazia das mulheres objeto de 
estupro e/ou prostituição, ela correu o risco de ser entregue por sua própria ala ao covil 
dos lobos da camarata três. Correu o risco, também, de se tornar escrava dos próprios 
cegos, guiando-os aos banheiros, lavando suas roupas, etc. Portanto, sua imunidade, ao 
mesmo tempo em que fortalece sua condição de mulher-sujeito, que se coloca como 
uma líder, também a coloca em perigo. 
Sua força de tutora dos cegos leva-a ao encontro do abuso, recordando-nos de 
uma figura da mitologia celta: o rei casado com a terra, soberano cuja vida seria 
oferecida em sacrifício na eventualidade de seca e fome. O ditado ―em terra de cego, 
quem tem um olho é rei‖ é assumido por ela, mas não no sentido que normalmente se 
imagina: ser rei nesse contexto significa responsabilidade, cumplicidade e sacrifício, em 
vez de vantagens, imunidade e ócio. 
 Tentando fazer uma leitura e tentando encaixá-la nos estereótipos femininos 
encontrados na literatura escrita por homens, ela bem se aproxima daquela cuja função é 
se anular perante aos outros, sendo pura e compreensiva (mesmo diante da traição do 
marido com a amiga), já que ela realmente se sacrifica pelos outros. Porém, ela é uma 
personagem que foge desses estereótipos. A Mulher do Médico age, faz com que as 
coisas aconteçam, fortalece-se e lidera todos em meio a uma sociedade patriarcal e 
imunda. Ela se rebela, enfrenta o perigo ao entrar na camarata dos bandidos para 
assassinar seu líder. Vê-se que sua imunidade não é a razão que a faz líder, apenas 
reforça sua liderança dentro do manicômio e fora dele. Desde o início da obra, pode-se 
perceber sua determinação e convicção, ao se proclamar cega, mesmo não estando cega 
verdadeiramente, para acompanhar o marido até o manicômio. 
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 Blimunda, protagonista de Memorial do Convento é filha de uma condenada à 
fogueira, ela conhece Baltazar justamente durante a execução de sua mãe. A sua 
primeira manifestação de independência ocorre aí: sem conhecê-lo, leva-o para morar 
consigo. 
Nota-se, também, que no casal Baltazar/Blimunda há uma igualdade de papéis. 
Não há, entre eles, dominador e dominado. Ao contrário, no casal da nobreza, ou seja, 
na relação entre o Rei e a Rainha, fica evidente a condição da mulher em relação ao 
patriarca: a soberana serve apenas para a reprodução; em outras palavras, para dar um 
herdeiro varão ao trono. A esterilidade da soberana pode desgraçá-la, uma vez que 
transferiria a coroa para um parente próximo do rei. Em meio à nobreza, a relação de 
poder existente na esfera social se transfere para a esfera matrimonial. Na pobreza, 
percebe-se, como dito acima, que o casal se coloca no mesmo nível hierárquico: outro 
ponto importante na leitura de Blimunda. Vê-se que nas classes populares a mulher tem 
maior liberdade e nem mesmo a virgindade, dentro dessas classes, é considerada um 
bem tão precioso. Essa liberdade de ação é bem explorada por Saramago, em 
contraposição à mulher anulada socialmente e sem força de ação, ou seja, a Rainha. 
Enquanto uma leva um homem para morar consigo e estabelece dentro do seu 
relacionamento uma igualdade hierárquica de papéis, a outra é anulada pela 
configuração de poder existente dentro do casamento entre nobres. 
 Por força de sua ―estranheza‖, ou seja, seu poder de visão (Blimunda podia ver 
as pessoas por dentro, tanto seu interior físico quanto suas vontades, se estivesse em 
jejum) ela se torna imprescindível para o vôo da Passarola. . Ora, se o vôo pode ser lido, 
no romance, como metáfora da liberdade, o papel de Blimunda como a única 
personagem que pode reunir os elementos (vontades) imponderáveis, etéreos, que serão 
necessários na engenharia renascentista dessa liberdade, ganha um significado 
inequívoco. 
 Depois do sumiço de seu companheiro, que fez um vôo com a Passarola e nunca 
mais foi visto, Blimunda peregrina todo o chão de Portugal em busca de seu amado. 
Procura-o por nove anos, indo de terra em terra, povoado em povoado, cidade em 
cidade. Tal atitude poderia ser considerada, por um lado, como uma atitude de 
submissão e fidelidade ao seu marido; por outro, pode-se considerar essa posição de 
Blimunda como força de mulher-sujeito, por ser fiel a si, ao seu amor, aos seus 
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princípios, enfrentando as convenções sociais de sua época, recebendo o rótulo de louca 
que vem não se sabe de onde e vai não se sabe para onde. Chega até mesmo a enfrentar 
um apedrejamento nessa sua peregrinação. Contudo, ela não esmorece, vai até o fim, e 
encontra seu amado a arder na fogueira da Santa Inquisição. 
 Para finalizar a respeito de Blimunda, ela também não se encaixa nos 
paradigmas preconceituosos enraizados na literatura. De indefesa Blimunda nada tem. 
Como classificar como indefesa alguém que, ao sofrer tentativa de estupro por um 
frade, tem força para matá-lo e fugir. Megera ela é tampouco. Sabe-se que Blimunda, na 
busca por Baltazar, é perseguida por esse frade, e só comete o crime em legítima defesa. 
Sua busca incansável por seu amor e a resistência ao apedrejamento mostram sua força, 
a de uma mulher que consegue se destacar em um universo falocêntrico e patriarcal, 
fugindo aos padrões de representação feminina. 
 Para ambas as personagens, os efeitos e acontecimentos inexplicáveis ajudam no 
fortalecimento de suas personalidades. Porém, tais fenômenos apenas acrescentam força 
à já firme personalidade dessas mulheres, são apenas uma força que as leva emergirem 
de um mar dominado pelo masculino. Tanto a Mulher do Médico quanto Blimunda 
fogem dos estereótipos femininos arraigados na Literatura. Em se tratando da primeira, 
desde o início da obra ela toma sua posição de líder e enfrenta todos os problemas que 
lhe atravessam o caminho. Quando a situação está se encaminhando para uma 
dominação total, tanto moral e física, por parte dos bandidos da ala três, ela toma uma 
decisão: assassinar seu líder. E o faz apesar de sua consciência acusá-la de que acabara 
de matar um homem. Sua ―não altivez‖ em não se aproveitar da sua imunidade para 
tornar-se uma tirana também reforça seu caráter. É mulher que atua em meio a uma 
sociedade onde os homens ditam as regras. 
Em Jangada de Pedra, livro do mesmo escritor, Joana Carda, que acabara de 
perder do marido, encontra quatro pessoas com as quais se passaram fenômenos 
inexplicáveis durante o desprendimento da Península Ibérica do resto da Europa. Joana 
Carda é única figura feminina em meio a três homens, e mesmo assim ela se sobressai 
tomando atitudes, dizendo coisas que só uma mulher de forte caráter pode fazer. Ao se 
apaixonar por José Anaiço, Carda (que curiosamente significa ―um tipo de máquina que 
desembaraça as fibras têxteis‖ e ao mesmo tempo ―máquina que dilacera carnes‖) não 
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hesita, toma a atitude de beijá-lo, mesmo correndo o risco de ser considerada fútil 
perante aos outros: 
 
Disse Joana adeus até amanhã, e no último instante, quando já tinha 
um pé no chão, virou-se para trás e beijou José Anaiço, na boca, pois 
então, não esse disfarce de face ou comissura, foram dois relâmpagos, 
um de rapidez, outro de choque, mas deste prolongaram-se o efeito, o 
que não seria o contato dos lábios, tão doce, se tivesse prolongado 
(SARAMAGO, 2006: 134 - 135). 
 
 Se a atitude de Joana Carda fosse atribuída a um homem, este estaria seguindo a 
ordem natural das coisas. Entretanto, atribuída a uma mulher, essa atitude poderia ser 
vista com ―maus olhos‖. Mas Carda não teme tais preconceitos, sua vida já estava 
desintegrada com a perda do casamento, ela arrisca amar e não se arrepende. Toma 
outras iniciativas como aquela que quando se estava por decidir quem dormiria aqui ou 
ali na casa de Joaquim Sassa, tendo apenas uma cama de casal, Joana Carda decide e 
põe fim ao impasse: 
 
Mas dois minutos ainda não tinha passado e aí estava Joana Carda a 
dizer em voz clara, Nós ficamos juntos, em verdade está o mundo 
perdido se as mulheres tomam iniciativas deste alcance, antigamente 
havia regras [..] mas nunca por nunca ser este despautério, esta falta 
de respeito diante de um homem de idade, e ainda dizem que as 
andaluzas têm o sangue quente, vejam esta portuguesa, a Pedro Orce 
que aqui vai nunca nenhuma disse assim cara a cara, Nós ficamos 
juntos (SARAMAGO, 2006: 148, 149). 
 
Este irônico comentário do narrador só reafirma sua posição de mulher-sujeito, 
definição dada pela crítica feminista àquela personagem que age e toma decisões no 
universo patriarcal e falocêntrico. Joana Carda decide passar a noite com José Anaiço. 
Isto não a torna vulgar, e em muitos pontos da obra vê-se em Joana Carda uma mulher 
que, apesar do sofrimento, é decidida e se mostra, por vezes, caridosa e de bom coração. 
O próprio narrador afirma seu brio, vê que Joana Carda é uma mulher que decide reagir, 
que não espera pelos outros. Vê-se o que ele pensa da personagem no trecho em que os 
quatro amigos estão ficando sem dinheiro e se preocupam em como consegui- lo: 
 
Mas talvez não venha a ser preciso chegar a tais extremos de 
ilegalidade, aqui no Porto irá também José Anaiço à agência do 
banco onde guarda as economias, Pedro Orce trouxe todas as suas 
pesetas, de Joana Carda é que nada sabemos quanto ao particular dos 
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recursos, pelo menos já vimos que não parece mulher para viver de 
caridades ou expensas de macho (SARAMAGO, 2006: 152). 
 
 Joana Carda é daquelas pessoas que não esperam, já sendo redundante, agem. 
No trecho em que o cão aparece, é ela que entende que o cão quer que eles o sigam. E 
nas indefinições de ir ou não com ele, ela decreta: Estou pronta a ir para onde ele nos 
levar, se foi para isso que veio, quando chegarmos ao destino saberemos (Ibidem: 133). 
Ela torna-se, pode-se assim interpretar, um ícone a ser seguido. Sua liberdade e 
determinação a levam ao encontro dos três amigos, e a fazem decidir seguir viagem com 
eles, atitude de extremo enfrentamento em se tratando de uma sociedade patriarcal e 
falocêntrica. Isso se torna claro quando, ao regressar a casa dos parentes para passar a 
noite, Joana Carda, no entrar da noite, conta que decidira ir viajar com os três homens: 
 
[...] Quando todos já dormirem na Figueira da Foz, ainda duas 
mulheres estarão a conversar numa casa de Ereira, no segredo da 
noite, Quem me dera ir contigo, diz a prima de Joana, casada e mal-
maridada (SARAMAGO, 2006: 135). 
 
 A prima, que tem como impedimento para uma viagem deste tipo o mau 
casamento, e que provavelmente não se separa devido aos valores da sociedade 
patriarcal, lança em Joana, desquitada e valente, seus anseios, eis a razão do: ―Quem me 
dera ir contigo‖. 
 
 
4 - Considerações finais 
 
 
Em guisa de conclusão, todas as personagens analisadas contribuem, através de 
suas atitudes, para uma desconstrução dos estereótipos femininos mais conhecidos (a 
megera, a santa e sedutora/perigosa), contribuindo também para uma desconstrução da 
ideologia de diferença de gêneros: a dicotomia homem/mulher, em que um sempre é 
dominante e o outro dominado. É importante, ao fim, frisar que não há um ―super-
heroísmo‖ nas mesmas, e nem esse é o norte da crítica feminista. Elas sofrem, passam 
por tribulações, e são pessoas absolutamente comuns, mas com uma diferença: agem. O 
que se quer é mostrar mulheres normais que podem, sim, ser ativas, tomarem decisões e 
Fernando
Realce
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ter um nível de igualdade em relação aos homens. Nota-se nas três personagens que elas 
dividem os papéis com seus companheiros, tomando decisões, participando ativamente 
da fábula. 
Quanto à Blimunda, seus poderes a fortalecem como mulher que atua, porém, 
mesmo sem eles, ela continua sendo agente, tomando iniciativas sempre que mudanças 
sejam necessárias, tomando decisões quando os outros não fazem. Ela também não se 
submete à dominação masculina e falocêntrica, adota uma postura, juntamente com 
Baltazar, de igualdade dentro de um ―casamento‖. Vê-se uma nítida diferença de valores 
em comparação com o casal da nobreza, em que se tem o Rei como centro e dominador 
e a Rainha como mero objeto para reprodução e com vontades e atuações praticamente 
nulos. Em se tratando de Blimunda, sua independência contribui para sua força de ação 
e realização de suas vontades. 
Entende-se, por fim, que a Mulher do Médico contém muito dos aspectos que 
tanto a crítica feminista reivindica: uma igualdade de papéis entre homem/mulher, uma 
mulher com características fortes e força de mudança, que seja determinada, espirituosa 
e líder e mesmo assim continue sendo uma mulher, com todas as suas peculiaridades 
femininas. Ela não pode ser julgada como indefesa ou pacífica só porque ―entende‖ a 
traição do marido, bem como não há nada de mulher megera ou perigosa só pelo 
assassinato que ela cometeu. Outras características dizem justamente o contrário: a força 
de lutar por pessoas que não conhece, enfrentando situações perigosas, entrando no 
covil do inimigo e assassinando o líder rival. Pode-se dizer que a personagem Mulher 
do Médico é um exemplo para a desconstrução da dicotomia que tanto a crítica 
feminista luta para desfazer. 
 E sobre Joana Carda, coloca-se aqui a fala do narrador relatando o espanto dos 
homens em relação à inteligência e força desta personagem: ―Vê-se na cara de José 
Anaiço e de Joaquim Sassa que vão desorientados, a mulher que desceu à cidade de pau 
a proclamar impossíveis actos de agrimensora saiu-lhes filósofa nos campos do 
Mondego‖ (SARAMAGO, 2006: 127). 
 
 
Referências bibliográficas 
 
Fernando
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Teoria Literária: Abordagens Histórias e Tendências Contemporâneas. Maringá, EDUEM, 
2004.

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