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beijo de Judas FOTOGRAFIA E VERDADE Joan Fontcubertabeijo de Judas FOTOGRAFIA E VERDADE Joan Fontcuberta Editorial Gustavo Gili, SL 87-89, 08029 Tel. 93 322 81 61 Valle de Bravo 21, 53050 Naucalpan, México. Tel. 55 60 60 11 Praceta Noticias da Amadora 4-B, 2700-606 Amadora, Portugal. Tel. 21 491 09 36 GGEsta obra foi com uma subvenção da Direção Geral do Livro, MINISTERIO Bibliotecas do DE ESPAÑA de Cultura da Espanha. A Vilém Flusser in memoriam Titulo original: El beso de Judas. Fotografia y verdad Tradução: Maria Alzira Brum Lemos Edição: Flavio Coddou Design: Pau Aguilar Ilustração da capa: Joan Foncuberta Qualquer forma de reprodução, distribuição, comunicação ou transformação desta obra somente pode ser com a autorização expressa dos titulares da intelectual, exceto nos casos previstos em lei. Contacter (Centro Espanhol de Direitos Reprográficos) para a reprografia de qualquer fragmento da obra, A editora não se pronuncia não se expressa, nem implicitamente, quanto à exatidão da informação contide neste livro, razão qual não assume nenhum tipo de responsabilidade em de erro ou omissão. da tradução: Maria Brum Lemos do texto: Joan Fontcuberta, 1997 Editorial Gili, SL, Barcelona, 2010 Impresso em Espanha Printed in ISBN: 978-84-252-2369-3 Impressão: Graficas 92, SA, Rubi (Barcelona)Índice geral Introdução 9 Pecados originais I 15 Elogio do vampiro I 25 Vidência e evidência I 37 Os peixes de Enoshima I 51 A cidade fantasma I 65 A tribo que nunca existiu 77 Verdades, ficções e dúvidas razoáveis 95 A escritura das aparências 111 Referências bibliográficas I 127 Índice onomástico I 129 Crédito das imagens I 132Introdução "A verdade existe. Só se inventa a mentira". GEORGE BRAQUE, Pensées sur l'art "Creia somente nesta verdade: 'Tudo é mentira". HUMORADAS, LXXXI KODAK TMY 5053 14 15 Paul Valery dizia que no início de toda teoria há sempre elementos autobio- gráficos. Confesso compartilhar desse sábio preceito; o que eu possa dizer sobre a fotografia, de qualquer época e de qualquer tendência, vem marcado por minha prática criativa. As ideias que exponho a seguir, portanto, constituem, mais que propostas teóricas, a expressão de poéticas pessoais, textos de artista, às vezes encaminhados a justificar a própria obra. Mas de um artista, acrescentaria, curioso por tudo e amante de uma reflexão não isenta de toques de ironia. Nós, OS criadores, costumamos ser monotemáticos. Podemos dis- farçar com envoltórios de distintas cores, mas no fundo não fazemos mais que voltar obsessivamente à mesma questão. Para mim essa questão gira em torno da ambiguidade intersticial entre a realidade e a ficção ou do debate sobre situações perceptivas especiais, como no caso do trompe- l'oeil, ou sobre novas categorias do pensamento e da sensibilidade, como vrai-faux... Mas, acima de tudo, meu tema fundamental é da verdade: Enfermeira Judit en to incubadora, adequatio intellectus et rei. Barcelona, 7/03/1988 A história da fotografia pode ser contemplada como um diálogo entre a vontade de nos aproximarmos do real e as dificuldades para fazê-lo. Por isso, apesar das aparências, domínio da fotografia se situa mais propriamente no campo da ontologia que no da estética. Mesmo fotógrafos particular- mente voltados para uma busca formal foram clarividentes a esse respeito.10 0 BEIJO DE JUDAS INTRODUÇÃO 11 0 BEIJO DE JUDAS INTRODUÇÃO Assim, Alfred Stieglitz, ponte entre as práticas pictorialistas e documentais de um desmancha-prazeres. No filme La vie est un long fleuve tranquille (A do século XIX e a modernidade do XX, declarou: "A beleza é minha paixão; a vida é um longo rio tranquilo, 1987), primeiro longa-metragem de Étienne verdade, minha obsessão". E, apenas alguns anos mais tarde, radicalizaria Chatiliez, é contada uma história parecida: uma parteira, para se vingar de essa máxima afirmando que "a função da fotografia não consiste em oferecer um médico por quem está apaixonada, troca dois recém-nascidos. Um dos prazer estético, mas em proporcionar verdades visuais sobre mundo". As bebês procede de uma família modesta e outro, de uma família burguesa. décadas seguintes serviriam para averiguar como deveriam ser entendidas Doze anos mais tarde, a trama é descoberta, provocando situações cômicas. essas "verdades visuais", se é que podiam sê-lo de alguma maneira. Mas quando Judit nasceu eu não conhecia este argumento. Vejamos um caso real como a própria vida. Minha filha Judit veio ao No meu caso, as fotos mostravam indiscutivelmente um bebê no mundo bastante prematura, depois de uma gravidez problemática de pouco interior de uma incubadora, todo mundo reconheceria como tal. Mas para mais de seis meses. Seu peso só chegava a 1,2 quilos e suas expectativas nós importante é que se tratava do nosso bebê, um ser sobre qual está- de vida eram tão precárias que teve que permanecer durante três meses em vamos ansiosos para derramar viscerais sentimentos paternais, mesmo sem uma incubadora. Além disso, quando nasceu, em março de 1988, tivemos a termos visto seu rosto. Contudo, nada nas fotografias podia nos garantir infelicidade de sofrer rigores de um sistema hospitalar escandalosamente mais importante: que fosse nosso. Nada na imagem garantia que para retrógrado em assuntos de maternidade. Os bebês prematuros ficavam nós era mais vital. Para Roland Barthes "o punctum de uma fotografia concentrados em uma sala especial, a cujo interior OS pais não tinham é esta contingência que, nela, nos afeta (mas que também nos resulta Éramos obrigados a observar nossos filhos de longe, através de tocante, fere)". 0 punctum nasce de uma situação pessoal, é a projeção de vários painéis de vidro e de um labirinto de incubadoras e entre a agitação uma de valores que procedem de nós, que não estão originariamente apressada de médicos e enfermeiras correndo um lado para outro. Além contidos na imagem. disso, no momento do parto, Marta, minha estava sob OS efeitos da 0 potencial expressivo de qualquer fotografia se estratifica em anestesia e, portanto, ainda não tivera a oportunidade de conhecer rosto diferentes graus de pertinência informativa. É salto aleatório, Imaginei então que era momento de tirar proveito de meu Dei à imagem. Grau A: é-um-bebê; grau B: Passar frivolamente de minha câmera a uma enfermeira e pedi-lhe que se aproximasse de Judit para A para B implica um salto muito simples, mas que modifica substancialmente tirar vários retratos. Depois de brevemente no manejo do foco e do a vinculação da imagem com seu referente e, por conseguinte, seu valor de fotômetro, a enfermeira imprimiu oito negativos. Corri para meu laboratório, uso (lembremo-nos da máxima de Ludwig Wittgenstein: sentido é 0 uso"). revelei filme, fiz uma cópia em contato e voltei correndo para hospital, E se trata apenas de um tipo de intervenção, entre muitos outros que, em onde Marta continuava na cama devido ao processo pós-operatório. Era a conjunto, fazem cambalear a solidez do realismo fotográfico, mostrando a primeira vez que via seu bebê de perto e é fácil imaginar sua excitação. Ela fragilidade da verdade e da verossimilhança. estava contente, eu estava contente, todos nós estávamos contentes. Mais Ao longo da década de 1980 fomos afetados por novas atitudes e uma vez a fotografia tinha posto à prova sua função histórica de dar infor- formas de pensamento. Nas artes visuais acentuou-se a problematização do mação visual precisa e fidedigna, viva! real em uma dinâmica que nos arrasta efetivamente a uma profunda crise da Apesar de tudo, não conseguia evitar que uma desconfiança rondasse verdade. É possível, como sustenta Jeffrey Deitch, que "o fim da modernidade minha cabeça. que teria acontecido se a enfermeira tivesse confundido a seja também fim da verdade". 0 que ocorre na prática é que a verdade se incubadora e, por engano, fotografado outro bebê? Provavelmente teríamos tornou uma categoria pouco operativa; de alguma forma, só conseguimos ficado igualmente satisfeitos. Havia tanta necessidade, tanta urgência, tantas mentir. velho debate entre 0 verdadeiro e o falso foi substituído por outro: emoções contidas, que qualquer reticência teria equivalido à impertinência entre "mentir bem" e "mentir mal".12 BEIJO DE JUDAS INTRODUÇÃO 13 BEIJO DE JUDAS INTRODUÇÃO Toda fotografia é uma ficção que se apresenta como verdadeira. Contra que nos inculcaram, contra que costumamos pensar, a fotografia mente sempre, mente por instinto, mente porque sua natureza não the permite fazer outra coisa. Contudo, importante não é essa mentira inevitável, mas como fotógrafo a utiliza, a que propósitos serve. 0 importante, em suma, é 0 controle exercido pelo fotógrafo para impor um sentido ético à sua mentira. 0 bom fotógrafo é 0 que mente bem a verdade. É uma proposição cínica? Talvez. Outra forma de apresentá-la consis- tiria em dizer que a humanidade se divide em céticos e fanáticos. Os fanáticos são crentes. Fanatismo deriva do latim fanum, que significa templo, ou seja, espaço para culto, a fé e dogma. Os céticos, por outro lado, são que desconfiam criticamente. 0 objetivo destes escritos é ganhar adeptos para a causa dos céticos. E esse é um trabalho árduo, especialmente quando continuamos vivendo em um estado de confusão que requer a estabilidade que a crença proporciona. Ainda hoje, tanto no âmbito cotidiano quanto no contexto estrito da criação artística, a fotografia aparece como uma tecnologia a serviço da verdade. A câmera testemunha aquilo que aconteceu; filme fotossensível está destinado a ser um suporte de evidências. No entanto, isso é só apa- rência; é uma convenção que, à força de ser aceita sem paliativos, acaba por se fixar em nossa consciência. A fotografia atua como beijo de Judas: falso afeto vendido por trinta moedas. Um gesto hipócrita e desleal que esconde uma terrivel traição: a denúncia de quem justamente diz personi- ficar a Verdade e a Vida. A veracidade da fotografia se impõe com ingenuidade semelhante. Contudo, por trás da beatifica sensação de certeza, mecanismos culturais e ideológicos que afetam nossas hipóteses sobre real. 0 signo inocente encobre um artifício carregado de propósitos e de história. Como um lobo em pele de cordeiro, a autoridade do realismo fotográfico pretende trair igualmente nossa inteligência. Judas se enforca arrasado pelo remorso. Joan Fontcuberta, El nacimiento de Venus, 1992. A fotografia reagirá a tempo de escapar de seu suicídio anunciado? Fotograma de Judit sobre uma reprodução de Botticelli.Pecados originais "Há religiões nas quais a representação do mundo é proibida ('usurpação do poder de um Deus criador de todas as coisas'). Pensando bem, é muito possível que fotografar seja artimanha do diabo e cada disparo, um pecado". GÉRARD CASTELLO Perto de Vista, 1984 Toda mensagem tem uma tripla leitura: fala do objeto, fala do sujeito e nos fala do próprio meio. Para a fotografia, essas três facetas foram denominadas graficamente por Joan Costa como olho, objeto e objetiva. A existência desses três aspectos não implica necessariamente um equilíbrio entre eles, mas, como se de três coordenadas se tratasse, toda mensagem se posicionaria em um ponto determinado por proximidade ou afastamento dessas três refe- rências. Seja porque sua própria natureza tecnológica impeliu a isso -como pensam ou simplesmente porque determinados usos históricos assim propiciaram -como pensamos a fotografia viveu sob a tirania do tema: o objeto exerceu uma hegemonia quase absoluta. Tanto que critérios relativos ao tema não apenas determinaram uso e a circulação dos diversos materiais fotográficos nos âmbitos mais cotidianos (por exemplo, em um álbum familiar) ou mais especializados (no banco de imagens de um arquivo ou agência fotográfica), bem como em proposições e Por esse motivo, não é estranho que um curador e teórico Joan Fontcuberta, de 1994. como John Szarkowski pense que "a história da fotografia é a história do Foto-objeto: pilha voltaica construída com uma fotografável" (leia-se: desenvolvimento criativo da fotografia se apoia na placa de cobre e outra de zinco que reproduz busca incessante de novos motivos e as características desse mundo visual a vista de Gras tirada por Niepce, a primeira são as que determinarão a estética de sua representação fotográfica); ou imagem fotográfica conservada. A fotografia, obtida pela ação da luz, gera aqui a luz que justamente que, mais recentemente, responsáveis pelo projeto fotográfico da a faz visivel. François Hers e Jean-François Chévrier, falassem indiscriminadamente que16 0 BEIJO DE JUDAS PECADOS ORIGINAIS 17 0 BEIJO DE JUDAS PECADOS ORIGINAIS "a fotografia de reportagem morreu porque já não resta nada por fotografar" Durante a celebração judaica do Sukkot, eu me encontrava diante do (leia-se:o predomínio do objeto gera uma fotografia de gênero de escasso valor muro das Lamentações como um mero turista. Ao ver minha câmera pendurada criativo e intelectual porque só gira em torno do mesmo modelo estético). no pescoço, um guarda se apressou em avisar-me que não era permitido tirar Sem entrar na pertinência desses raciocínios, também é verdade que fotografias. A verdade é que eu nem tinha cogitado tirá-las, pois não gosto de houve um esforço, que talvez tenha passado despercebido entre público fazer concorrência aos colegas que ganham a vida comercializando postais não especializado, por parte de artistas que utilizaram 0 meio fotográfico de lugares pitorescos. No entanto, senti curiosidade diante de tal proibição. para enfocá-lo para questões de ordem poética ou Quando Digamos que coleciono motivos pelos quais se proíbe fotografar. em literatura se fala da morte do autor como fórmula de renovação à qual Iniciei, então, uma conversa com guarda e ele precisou que não se vê orientada a escritura, em fotografia poderíamos falar da morte do era permitido fazer fotografias nem anotações. Cada vez mais intrigado objeto. Tendências atuais como as de molde generativista (o dispositivo com a consideração da fotografia como pecado, continuei questionando tecnológico como sistema configurador autossuficiente), pós-conceitual (o até compreender que a proibição não estava relacionada ao lugar, conside- predomínio da ideia) e abstrato (o formalismo sobre a ocultação do sujeito) rado santo, e sim à impossibilidade de realizar qualquer trabalho durante seriam prova disso. transcurso da festividade religiosa. aparecimento das três primeiras Em 1993 participei de uma exposição coletiva organizada em torno estrelas no céu do entardecer seria sinal que poria formalmente fim à de um eixo temático: telefone. Resulta incrivel que com critérios tão pere- celebração e restabeleceria a normalidade: todos poderiam então vol- grinos seja possível hoje articular uma exposição artística, e, mais ainda, tar a utilizar câmeras e canetas, se assim desejassem. Por trás de uma uma coleção. A explicação é que a exposição era organizada pela Companhia regulamentação extremamente poética se camuflavam duas ideias muito Telefônica Nacional da Espanha e todas as peças foram adquiridas para OS interessantes para reflexão: a fotografia como "trabalho" e a fotografia seus fundos de arte. Paisagens urbanas com cabines telefônicas em luzes como "pecado". crepusculares, estradas sem fim salpicadas de postes e fios, personagens Não proscreviam a imagem por motivos sagrados do lugar nem públicos ocupadíssimos atrás de uma bateria de telefones em cima das por eventuais transtornos ocasionados aos fiéis concentrados na prece. mesas de seus escritórios, interiores domésticos com aparelhos telefônicos Isso acontece em outros cultos religiosos e já não surpreende, excetuando como totens em meio à decoração... Sem muito esforço, podemos lembrar talvez alguma curiosa singularidade. A Igreja Católica, por exemplo, não de numerosas obras de autores conhecidos, onde telefone aparece de uma autoriza, provavelmente para evitar tentações sacrílegas, que fotografem forma ou de outra. livremente suas relíquias zelosamente preservadas aqui e ali: braços De qualquer forma, essa iniciativa me fez lembrar uma anedota. No incorruptos de santos, lascas da cruz, plumas de asa de anjo etc.; e é final de 1992, meios de comunicação difundiram uma notícia curiosa e uma pena: imagino que alguém como Joel-Peter Witkin poderia fazer simpática: em Israel, uma empresa vinculada à companhia telefônica ofe- com elas. Naquela ocasião, a questão estava no fato de que judaísmo recia singular serviço de comunicação com Deus. processo consistia ortodoxo proíbe a realização de qualquer trabalho durante as festas de no seguinte: crente podia telefonar para que transcrevessem suas men- guarda. E, ao que parece, fotografar e escrever implicam uso de ferra- sagens ou enviar diretamente um fax com suas orações, que seriam depo- mentas e, portanto, são considerados trabalho. sitadas diligentemente pelo pessoal da empresa nas frestas do muro das Posteriormente, alguns amigos israelenses enriqueceram meus Lamentações, em Jerusalém, que, como se sabe, atua como antena para as conhecimentos com dados cada vez mais paradoxais. Por exemplo, durante comunicações com Altíssimo. Pouco depois, minha própria experiência do as festividades religiosas é permitido utilizar um elevador para descer, mas lugar veio propiciada por essa notícia e a visita que realizei desencadearia não para subir. É curioso, pois é muito mais cansativo subir do que descer, as considerações que seguem. mas a lei de Deus é a lei de Deus e ponto. Na realidade, que acontece é que,18 0 BEIJO DE JUDAS PECADOS ORIGINAIS 19 0 BEIJO DE JUDAS PECADOS ORIGINAIS para descer, simplesmente se considera que deixamos agir a lei da gravi- dade, isto é, uma força da natureza; por outro lado, para subir requerem-se um motor e o consumo de certa quantidade de energia. Embora da estrita perspectiva da mecânica essa consideração seja falsa, tem sua pequena dose de lógica. A fotografia foi entendida durante muito tempo como forma da natureza representar a si mesma. O fascínio que sua descoberta produziu apontava para essa ilusão de automatismo natural. Um slogan publicitário de material daguerreotípico rezava: "Deixe que a Natureza plasme o que a Natureza fez". Essa declaração ontológica sobre a essência da imagem fotográfica pressupõe a ausência de intervenção e, portanto, a ausência de interpretação. Trata-se de copiar a natureza com a máxima precisão e fidelidade sem depender das habilidades de quem a realiza. A consequên- cia aparente era a obtenção direta, sem paliativos, da verdade. Em 1853, Albert Bisbee escreveu em seu manual sobre a daguerreotipia: "Uma das principais vantagens do daguerreótipo é que atua com tamanha capacidade de certeza e magnitude que as faculdades humanas resultam, ao seu lado, absolutamente incompetentes... Daí que cenas do maior interesse possam ser transcritas e legadas à posteridade exatamente tal como são, e não como poderiam parecer segundo a imaginação do poeta ou do pintor... Os próprios objetos se delineiam e resultado é verdade e exatidão". "Os próprios objetos se delineiam". A noção de objetividade em que se fundamentou a implantação social da fotografia se origina nessa crença, mais assentada do que supomos, de que "os próprios objetos se delineiam". Não é preciso um operador, pois é"o lápis da natureza" que faz todo o trabalho para nós. A etapa seguinte na história da fotografia se iniciou quando certos críticos começaram a questionar esse princípio. Em 1861, Cornelius Jabez Hughes indagou: "até agora a fotografia se contentou representando a Verdade. Não pode ampliar seu horizonte? Não pode aspirar também plasmar a Beleza?" Responder essa questão requereria separar um enfoque popular e majoritário, Joel-Peter Witkin, de muerto, 1990 estabelecido sobre a contingência do operador, de outro enfoque minoritário, que reclama a subjetividade, a "autoria" e, definitivamente, o "trabalho" do ato fotográfico. primeiro enfoque guiou a produção e consumo maciço de imagens fotográficas; segundo ficou relegado aos círculos elitistas de connaisseurs. Mas eis então que, da doutrina infalivel das Sagradas Escrituras, faz-se uma contribuição crucial à teoria fotográfica e se põe fim ao dilema: a20 0 BEIJO DE JUDAS PECADOS ORIGINAIS 21 BEIJO DE JUDAS PECADOS ORIGINAIS fotografia certamente é um trabalho, portanto é pecado praticá-la durante OS dias consagrados a Deus. E, por exclusão, devemos enterrar a falácia de que pelos homens poderá fixar esta imagem divina". Cabe dizer que uma das procedimento fotográfico é "natural", "automático", "espontâneo", carente coisas mais fantásticas dessa entrevista é que é falsa: esse jornal nunca de filtros culturais ou ideológicos. Talvez o que aconteça seja justamente existiu. Numerosos tratados de história da fotografia (como de Helmut contrário e que detrás dessa suposta transparência se esconda complexo Gersheim e Gisèle Freund) reproduziram-na sem ter comprovado as fontes dispositivo que inculque um determinado état d'esprit diante de uma imagem originais e, na ausência de verificação, texto acabou ficando historicamente reconhecida como "fotográfica". legitimado. Benjamin tirou essa entrevista da biografia que Karl Dauthendey E, voltando à fotografia como transgressão da Lei, se as dificulda- fez de seu pai, fotógrafo Max Dauthendey, e, portanto, era a entrevista de des linguísticas não tivessem impedido, adoraria ter refutado meu amável uma entrevista. Provavelmente Dauthendey filho a inventou para reforçar interlocutor, guarda, diante do muro das Lamentações, sobre caráter tom hagiográfico de sua obra. que não está claro é se Benjamin estava ou profano que ele atribuía, tão levianamente, à fotografia. Em outras latitudes não consciente do engano; certamente sim, mas servia tão bem à sua argu- e situações culturais, ato fotográfico foi considerado uma manifestação da mentação que não renunciou a esta provocação aos leitores. Luz, uma revelação do sobrenatural. A consequência de tudo isso poderia 0 conteúdo dessa citação e a credibilidade que tacitamente the ser, por exemplo, Robert Leverant, autor de Zen in the Art of Photography foi outorgada, por outro lado, coincidem com horror à câmera e repúdio (1969), que na máxima 11, das 162 que constituem seu breviário, diz que "a generalizado a se deixar fotografar, tão habitual em povos primitivos (e não fotografia também é uma busca de Deus". tão primitivos) conforme reconhecem antropólogos. 0 medo de que a Certamente esse argumento teria causado pouco impacto nas fér- imagem nos roube a alma está enormemente estendido, inclusive além da reas crenças de um fundamentalista. Mas a verdade é que, longe de ser uma superstição e da magia negra, e pode adotar múltiplas variáveis, das esta- simples boutade, ele regeu a alma dos seguidores de Minor White e da escola tuetas de vodu aos espelhos como objetos maléficos. No Congo, por exemplo, californiana que, durante as duas décadas seguintes à Segunda Guerra algumas tribos de língua banto utilizam amuletos antropomórficos com um Mundial, conceberam a fotografia como uma expressão tão mística quanto pequeno espelho na área do umbigo, cuja função consiste justamente em podem ser as orações dos fiéis e OS rituais que têm lugar ao pé dos supostos arrancar e aprisionar a alma do inimigo invocado. Contudo, a imagem de um restos do templo de Salomão. Fotógrafos de renome e livres de qualquer é fugaz e reflexo não fica retido. A fotografia, ao contrário, "espelho suspeita de afinidades com gurus e seitas, como Henri Cartier-Bresson, com memória", como foi chamado imobiliza nossa imagem interpretaram ato fotográfico como um instante decisivo, sobrenatural, para sempre, com toda minúcia de detalhes e a verdade como pátina. Uma epifânico, de comunhão entre mundo e espírito. imobilização e um aprisionamento que nos aproximarão inelutavelmente à Mas Deus ou, ao menos, seus exegetas na terra não olharam sempre ideia da morte. com bons olhos a fotografia. Algo de diabólico deve ter se infiltrado na alquimia Em outros casos, e não convém confundir OS motivos, que se con- da Em Pequena História da Fotografia (1931), Walter Benjamin utilizou denava na fotografia não eram tanto seus hipotéticos poderes nigromânticos, uma entrevista que saiu, aparentemente, no jornal Der Leipziger Stadtanzeiger mas seu caráter de carranca de proa de uma fragata irrefreável: a de uma em 1841 e que tratava das reticências com que setores reacionários ale- civilização tecnologista que durante 0 século XIX tentaria se impor no mundo mães poderiam ter acolhido aparecimento de um invento maligno e, além inteiro. John Stathatos conta que Tasunke Witco -traduzido como disso, francês: "A vontade de fixar OS reflexos evanescentes não apenas é Louco em nossos foi um chefe dos sioux oglala que sempre negou impossível, como demonstraram as pesquisas alemãs realizadas rigorosa- permissão para ser retratado, inclusive depois de sua rendição às tropas. Em mente, como mero desejo de conseguir isto já é uma blasfêmia. 0 homem uma época em que ainda não existiam as potentes teleobjetivas atuais, a ação foi criado à imagem e semelhança de Deus e nenhuma máquina construída de algum paparazzo precursor teria resultado suicida. Surpreendentemente, mesmo depois de seu assassinato pelo exército federal dos Estados Unidos,23 0 BEIJO DE JUDAS PECADOS ORIGINAIS 22 BEIJO DE JUDAS PECADOS ORIGINAIS ninguém ousou fotografar seu cadáver, desprovendo a história de um retrato todos esses casos preocupa aquilo que Jean Baudrillard denomina "o caráter mortuário como que fariam mais tarde de Che Guevara. 0 gesto de Cavalo pornográfico da exposição", ou seja, a capacidade de mostrar um objeto Louco foi incomum e, na verdade, abundam retratos de outros chefes indí- sem ocultações, esfregando toda a realidade diante de nossos olhos, sem genas das pradarias, inclusive de Touro Sentado e Nuvem Vermelha. Mas reparos, e, para isso, o meio fotográfico, à sua precisão descritiva, Tasunke Witco "nunca se reuniu com 0 presidente; ...nunca viajou de trem, tem todas as cartas a seu favor. nem dormiu em uma estalagem ou comeu em uma mesa; ...nunca ostentou "Diga-me com quem andas e te direi quem és". No período de per- uma medalha, um chapéu ou qualquer outra coisa que homens brancos seguição política e censura, estudantes espanhóis trocaram esse pro- pudessem ter-the devotado". Tampouco nunca quis posar para a caixa de vérbio por "Diga-me por que te proíbem e te direi quem és". Não deixa de memória dos homens brancos. Muito provavelmente repúdio à fotografia ser paradoxal que a provisão de razões pelas quais em algumas fosse também repúdio a se inscrever em uma memória que não reconhecia circunstâncias tirar fotos oferece-nos de gorjeta a melhor lição sobre OS como própria. 0 repúdio a se inscrever em uma memória beligerante. valores estéticos, semióticos, psicológicos e antropológicos da fotografia. Para Tasunke Witco, a fotografia representava uma agressão. Controle da memória, difusão de informação, seriação... "Extraordinária Frequentemente falou-se sobre desconforto psicológico que provoca a densidade de pequenos detalhes, visão mais além do olho nu, exatidão, presença de um fotógrafo, um outsider, um estranho, um intruso. Mas da clareza de definição, delineação perfeita, imparcialidade, fidelidade tonal, agressão psicológica passa-se facilmente à agressão física. A proibição sensação tangível de realidade, verdade". Quando James Borcoman se parece perfeitamente coerente quando se aduz a possibilidade de causar propõe a enumerar signos de identidade do estatuto icônico da imagem danos ou transtornos. Em alguns casos se trata do ruído, como quando em fotográfica, na verdade também enumera motivos de sua proibição. Se certos teatros não é tolerado uso de câmeras cujo disparo ultrapasse a fotografia infunde temor, se pode lesar certos interesses, constituir-se em determinados níveis auditivos. Em outros casos é uso do flash que está uma transgressão de determinada normativa, é justamente porque detém restringido em alguns museus, para evitar que brilho danifique 0 pigmento esses signos de identidade. Muito mais que um "inconsciente tecnológico", das pinturas antigas, ou em aquários, pois clarão cegaria peixes habituados eles configuram uma espécie de "pecado original" da fotografia, 0 estigma à penumbra das profundidades. de uma alma que não nasce inocente. Os fotógrafos, portanto, nascem du- No entanto, descendendo a razões estatisticamente mais repre- plamente pecadores. sentativas e mais prosaicas, ainda há um vasto repertório de ocasiões Estabelecidas as diretrizes desse estatuto, o próximo passo con- em que a fotografia é considerada uma transgressão das normas. Nesse siste em elucidar até que ponto esses signos de identidade são inerentes ao caso, a transgressão, de fato, se fundamenta na própria proibição do tema. substrato do fotográfico ou se são atributos históricos, valores gerados por Frequentemente, talvez na maioria dos casos, a única intenção é proteger sua dimensão social ou simplesmente convenções relativamente aceitas e, copyright. A precisão na obtenção de cópias e a possibilidade de uma portanto, tão perfeitamente arraigadas quanto dispensáveis. Todo fotógrafo tiragem de cópias lesam negócio de numerosas instituições apoiado que queira viver em paz consigo mesmo tem dois caminhos: aceitar essa na exploração dos direitos de reprodução ou, simplesmente, ameaçam natureza pecadora e procurar a redenção na água batismal ou simplesmente controle sobre a "correta" difusão de determinado material. Em outros abraçar outra religião. casos, a fotografia representa uma ameaça em assuntos de espiona- gem e segurança: instalações militares e centros de comunicação costu- 1. A Mission Photographique da DATAR, lançada em 1984, foi uma encomenda pública a um mam estar vedados às câmeras. Em situações de menor domínio público, grupo de fotógrafos que retomava precedente da Mission Héliographique e pretendia criar a fotografia pode representar um risco para a intimidade das pessoas e a uma vasta documentação do território francês e das diversas facetas da sua paisagem. imprensa sensacionalista dá conta convincentemente deste aspecto. EmElogio do vampiro Pertenço à categoria dos céticos: se eu fosse são Tomé, não só teria a neces- sidade de tocar as chagas de Cristo para acreditar em sua ressurreição como também teria proposto tirar suas impressões digitais, fazer estudos odon- tológicos e exames de DNA, tal como prescreve hoje a metodologia forense para identificar rigorosamente cadáveres duvidosos, sejam cadáveres ressuscitados ou cadáveres definitivamente mortos. Por isso me encontro entre aqueles que, apesar dos três retrovisores do carro, em uma ultrapassagem ou mudança de pista, não evito gesto espontâneo de virar a cabeça para me assegurar de que nenhum outro veículo se encontra traiçoeiramente às minhas costas. E com certeza não é só pela existência daquilo que nas autoescolas chamam de ângulo cego. Preciso me certificar com meus próprios olhos. Quando se trata de uma coisa importante para mim, como é minha integridade física, qualquer artefato entre perigo e eu me provoca desconfiança, mesmo que seja um espelho Necessito da garantia que a visão direta me proporciona. Meu receio com espelho se aguça diante de artefatos ainda mais complexos, como a câmera fotográfica, da qual espelho atuou frequente- mente como metáfora. Já foi mencionada no capítulo anterior a figura da fotografia como "espelho com memória". Essa expressão foi proposta por Oliver Wendell Holmes, em 1861, para qualificar daguerreótipo e pegou com tanta força que foi utilizada mais tarde como título genérico de vários tratados sobre fotografia. De fato é verdade que introduz OS dois eixos temá- ticos mais proveitosos para discutir certo estatuto do fotográfico. Deixemos a memória para mais adiante e falemos do espelho. Nancy Burson, sem título, 1989. De fato, é comum que as imagens que a câmera proporciona sejam 0 retrato foi obtido por meio da mistura identificadas com as refletidas por um espelho. Do espelho dizemos que de um rosto humano com a ilustração de nos "devolve" a imagem, como se a imagem já fosse nossa, como se entre um alienígena. a imagem e rosto existissem laços de correspondência infinitesimal, ou como se 0 reflexo houvesse duplicado fisicamente objeto. No fundo, é a mesma sensação que esperamos da imagem fotográfica ou, pelo menos,26 0 BEIJO DE JUDAS ELOGIO DO VAMPIRO 27 0 BEIJO DE JUDAS ELOGIO VAMPIRO aquela que supomos que deve ter infundido em sua origem. Essa similitude primeira vista, OS espelhos eliminam a tridimensionalidade e invertem a imagem; se origina no fato de que espelho, como refletiva, é suporte de alguns a diminuem ou a aumentam; outros, como OS que produzem grotescas uma carga simbólica extremamente rica na ordem do conhecimento. Então, distorções em feiras e parques de diversões, deformam-na. Alguns espelhos que espelho reflete? A verdade, a sinceridade, conteúdo do coração e da são semitransparentes e servem para espiar; outros são côncavos e ampliam consciência. Em um espelho chinês conservado no museu de Hanói lê-se a a porosidade de nossa pele para comprovarmos a perfeição ao se fazer as seguinte inscrição: "Como Sol, como a Lua, como a água, como ouro, seja sobrancelhas ou a barba. Há inclusive espelhos cujo prodígio não é a verdade, claro e brilhante e reflita que há no fundo de seu coração". mas a fantasia, a miragem: na continuação de Alice, Lewis Carroll mostra que Assim, qualquer que seja sua significação profunda, 0 nos oferece por trás das aparências de um mundo simétrico escondem-se insuspeitadas não apenas a pura verdade, mas também a revelação e a sabedoria. Desse ponto quimeras. Os espelhos, portanto, assim como as câmeras fotográficas, regem-se resulta previsível salto para a magia e a adivinhação. Em muitas situações, por intenções de uso e seu repertório de experiências abrange da constatação espelhos atuaram como verdadeiros objetos mágicos, capazes de refletir científica à fabulação poética. futuro. Segundo uma lenda, Pitágoras possuía um espelho mágico voltado para Nesse sentido, é necessário destacar dois personagens do universo a Lua que the permitia a visão do que ia acontecer, tal como faziam as feiticeiras dos mitos que por sua especial vinculação com espelhos mantêm uma de Tessália. 0 sistema é inverso da necromancia, ou simples evocação dos ambivalência similar à que analisamos: por um lado, Narciso e, por outro, mortos, já que permite fazer aparecer pessoas que ainda não existem ou pre- vampiro. Narciso encarna ser apaixonado por sua própria imagem, sujeitado senciar uma ação que só será executada mais adiante. No âmbito mais popular obsessivamente ao seu reflexo. 0 vampiro comporta diversas peculiaridades dos contos infantis, espelho da madrasta da Branca de Neve, no clássico dos exóticas, como sua dieta de sangue fresco e sua aversão à luz, aos símbolos irmãos Grimm, é obrigado igualmente a dizer a verdade quem é a mais sagrados e ao alho, mas a que me parece mais relevante aqui é que carece de inclusive à custa de enfurecer sua proprietária e acabar despedaçado. reflexo, ou seja, espelhos não refletem sua imagem. Drácula e sua corte No entanto, se atendermos à etimologia de espelho em português, imortal se tornam invisíveis diante do espelho. Por extensão, "narcisistas" espejo em castelhano, espill em catalão, ou specchio em italiano, chegamos e "vampiros" designariam também categorias contrapostas no mundo da a speculum, que também deu origem ao termo especulação. Originariamente, representação. Em uns, prevalece a sedução do real; em outros, a frustração especular significava observar céu e OS movimentos relativos das estrelas do desejo, a presença escondida, desaparecimento. com a ajuda de um espelho. 0 termo latino sidus (estrela) derivou igualmente É fácil imaginar 0 paradoxo de um narcisista-vampiro: em consideração, que significa etimologicamente olhar conjunto das alguém que persegue reflexo de que carece; narcisistas e vampiros são estrelas. Essas duas palavras abstratas, que designam hoje operações metafisicamente contrários. De alguma forma, um diagnóstico possível sobre altamente intelectuais, estão enraizadas no estudo dos astros refletidos em a fotografia contemporânea poderia ser o anúncio da abrupta irrupção dos espelhos. Dessa forma, introduz-se um belo paradoxo: 0 reflexo asséptico vampiros, sua proliferação, sua coexistência com os narcisistas e, frequen- do espelho se sobrepõe a outro reflexo especulativo. A natureza do especular temente, a progressiva metamorfose de uns em outros. contém igualmente as duas visões e se alguma ficava ofuscada pela outra se A década de 1970 viu, em seu início e em seu final, essas duas formas devia unicamente a uma tomada de posição apriorística; em outras palavras, opostas de afrontar a imagem. Consideremos, por exemplo, a passagem de a uma rotina cultural e não a um imperativo ontológico. Diane Arbus a Cindy Sherman. Apenas oito anos separam suicídio de Arbus, De fato, conforme aponta Nathan Lyons, um exame mais minucioso ocorrido em 1971, da publicação dos primeiros trabalhos de Sherman, então dos espelhos aprofunda nessa direção e ressalta claramente a jovem e desconhecida. Assistimos com elas a uma substituição geracional, Ambivalência que a etimologia reconduz a outra palavra da mesma família: na qual evidentemente, mais do que a cronologia das idades, importa miragem. Embora 0 paralelismo entre objeto e seu reflexo nos confunda à desajuste programático que manifestam.29 BEIJO DE JUDAS ELOGIO DO VAMPIRO 28 I BEIJO DE JUDAS ELOGIO 00 VAMPIRO 0 estilo de Diane Arbus criara escola. Seus retratos se caracteriza- vam por um marco formal perfeitamente identificável (formato quadrado, frontalidade do modelo, luz direta de flash etc.), mas também, e sobretudo, pela escolha de um repertório de indivíduos à margem da sociedade. Arbus explorava a sordidez de certa subcultura urbana com uma acidez não isenta de compaixão e, de algum modo, marcando uma corrente humanista de grande peso na história da fotografia. Testemunhar mundo dos freaks e dos inadaptados equivalia a erigir-se em consciência de uma problemática social para a qual se recla- mava atenção e remédio. Com OS Film Stills de Cindy Sherman, muda tanto a posição estética quanto moral. As composições passam a proceder da ficção cinematográfica e a mensagem inerente a essa coleção de falsos autorretratos é muito mais cética. Nos anos 1980, desencanto malogrou qualquer de mes- sianismo e as poéticas do compromisso político ficaram desacreditadas. Sherman já não vai ao encontro dos arquétipos e dos monstros: contenta-se com suas projeções na tela. De fato nem sequer vai ao encontro de um mundo feito de coisas, contenta-se com um mundo feito de imagens. Não interessa a experiência direta da realidade, mas justamente seu sedimento. São imagens que aludem a outras imagens; imagens cuja origem primitiva se perde em uma distância remota. Cindy Sherman se questiona sobre a identidade feminina e conclui que a mulher não passa de um amontoado de clichês gerados pelos telefilmes e pela publicidade. Suas fantasias evocam, portanto, a despersonalização e a noção de identidade como encenação. Sua obra constitui uma celebração do grande teatro de marionetes da cultura regida pelos mass media. Esse deslocamento do objeto à imagem implica também posições distintas com relação à consciência artística. Para a corrente narcisista que se atribui a Arbus, a imagem fotográfica tem uma dupla natureza: como documento e como arte. Como arte consiste na exploração das qualidades únicas do meio; a fotografia transcende a imagem como estrito suporte de Cindy Sherman, Untitled Film Still 35, 1979 informação para chegar a ser obra, ou seja, um objeto dotado de uma riqueza de valores genuínos de forma e de conteúdo. Para Sherman, a fotografia supõe simplesmente um registro contingente da experiência artística, des- provida em princípio de um valor autônomo e significante em troca enquanto ilustração de um discurso artístico.EIJO DE JUDAS ELOGIO VAMPIRO 31 BEIJO DE JUDAS ELOGIO DO VAMPIRO No entanto, fundo epistemológico das duas atitudes separa as modalidades de diálogo com espelho e acentua rompimento entre dois modelos do fotografável e, por extensão, do real. Para Arbus, a câmera é um instrumento de análise e fundamentando-se em um esquema que pressupõe a dupla existência: de um lado, de um sujeito que observa e, de outro, de uma alteridade -a sociedade- que é observada. A linguagem -a fotografia- estabelece a ponte entre objeto e sujeito. Para Sherman, por outro lado, tal distinção não pode ocorrer: somos aquilo que a mídia determina, somos um produto cultural, somos linguagem. Para Arbus, real são fatos e as coisas tangíveis, mundo físico que interage com nosso eu, mas do qual se é totalmente independente. Em contraposição, para a lógica cínica do vampiro, a realidade é apenas um efeito de construção cultural e ideológica que não preexiste à nossa experiência. Fotografar, em suma, constitui uma forma de reinventar 0 real, de extrair do espelho e de revelá-lo. Dois autores que posteriormente aprofundaram essa dissolução da identidade foram Daniel Canogar e Keith Cottingham. Em suas instalações, Canogar propõe uma leitura metafórica do corpo fragmentado. Trata-se de ampliações sobre filme transparente de seus olhos, lábios, mãos, braços e pernas, colocadas frontalmente em relação ao espectador, de maneira que ficam semi-invisíveis. Só quando recebe a luz direta de um refletor, a imagem fica projetada por um lado e, pelo outro, se reflete na parede. A peça simbo- liza uma realidade corpórea da qual só podemos perceber as sombras e OS reflexos imateriais. corpo é apresentado como uma entidade à qual só podemos acessar por seu rastro. Só a ilusão virtual de suas sombras nos revela sua presença. Cottingham persegue mesmo propósito com um resultado extre- mamente sutil que até pode passar despercebido para espectador desa- visado. Fotografa retratos de jovens que personificam O ideal de perfeição da alta sociedade dos Estados Unidos. Seus corpos e suas poses denotam a aura de sucesso que todo norte-americano sonha ter. As imagens estão Daniel Canogar, Mirada, 1991 concebidas segundo cânones compositivos da tradição pictórica em que todos códigos nos resultam familiares: expressão facial, postura estática, disposição maneirista etc. Contudo, algo estranho e inquietante aparece, pois OS rostos são muito perfeitos e excessivamente parecidos entre si. São fotografias de pessoas que não existem, fantasmas resgatados do vazio, a inversão do reflexo absorvido do vampiro.32 I 0 BEIJO DE JUDAS I ELOGIO 00 VAMPIRO 33 I 0 BEIJO DE JUDAS I ELOGIO DO VAMPIRO Keith Cottingham, Fictitious Portraits, 1993 (esboços e detalhe)34 BEIJO DE JUDAS I ELOGIO DO VAMPIRO 35 0 BEIJO DE JUDAS ELOGIO DO VAMPIRO Cottingham produziu identidades fictícias de adolescentes clonados, não por engenharia genética, mas por manipulação digital; ou seja, não intervindo na memória biológica do organismo, mas na informação que configura a imagem. artista OS hibridou com outros, criou traços fisionômicos a partir de modelos de argila, desenhos anatômicos e numerosas fotografias tiradas de revistas ilustradas; acrescentou textura de pele, cabelos, olhos e outros elementos faciais até obter uma recriação artificial, porém absolutamente realista, uma montagem sem costuras, uma colagem mais mental do que física. Criando um retrato como a soma de múltiplas pessoas, a identidade do eu se dissolve para aparecer como um produto de interação social. Nancy Burson, no início dos anos 1980, já havia realizado incursões no mesmo campo, apoiando-se também nas possibilidades da imagem digital. Em sua obra intitulada Mankind, Burson apresenta um rosto com componentes de origens distintas (oriental, caucasiano e negro); a proporção dos traços étni- COS foi feita segundo as estatísticas de população no momento de realizar a imagem. Trata-se, portanto, de um verdadeiro retrato-robô ou, melhor dizendo, de um retrato-médio de um habitante do planeta: paradigma do ser humano, a antitese dos ensaios visuais que pretendiam isolar a essência de uma etnia ou de um povo. Talvez haja mais realidade nos retratos de Burson, como personificação de toda a humanidade, ou nos de Cottingham, como plasma de estereótipos, do que em qualquer fotografia instantânea. Como no caso de Sherman, são construções intelectuais que se mostram como tais. Cottingham declara: "tento evidenciar a fragmentação e rompimento entre a imagem e a matéria, entre a alma e corpo". 0 falso realismo em seu trabalho atua como um espelho que já não revela a nós mesmos, mas nossas invenções, provocando simul- taneamente fascínio e repulsa. Rompe-se 0 cordão umbilical entre a imagem e objeto. 0 mito modernista do espelho acaba por desvanecer. 0 sentido se instala na fragilidade porque essas "imagens frágeis", às quais alude Marta Gili no catálogo da exposição com 0 mesmo (1994), acabaram por perder Nancy Burson, Mankind, 1983-1985 seu apoio na estabilidade de nossas Tornam-se então "aparência ou rastro, ficção ou indício, mas justamente graças a essas qualidades convirão para transmitir valores mais intangíveis e frágeis do ser humano". Enquanto isso, continuará sendo mais prudente virar a cabeça de vez em quando na autoestrada: 0 motorista do outro carro pode ser um vampiro transparente.Vidência e evidência "Esquecer é uma função tão importante da memória quanto lembrar". FLUSSER, Sobre la memória (electrónica cualquier otra) A arte da amnésia Para OS egípcios, a linguagem escrita significava literalmente "a língua dos deuses". Em uma passagem da antiga mitologia egípcia, deus Toth, advogado da sabedoria e patrono dos escribas, defendia perante Amon, deus-rei, sua invenção da escrita. Amon lamentava invento de Toth com as seguintes palavras: "Sua descoberta fomentará o descuido no ânimo dos que estudam, pois não se servirão de sua memória, mas confiarão totalmente na aparência dos caracteres escritos e se esquecerão de si mesmos. que descobriste não é uma ajuda para a memória, mas para a rememoração e que oferece aos seus não é a verdade, e sim seu reflexo. Ouvirão muitas coisas e não terão aprendido nada; serão oniscientes e em geral ignorarão tudo; sua companhia será entediante, pois terão a aparência de homens sábios sem realmente sê-lo". É justo considerar a fotografia como um tipo semelhante de escritura, ou seja, de linguagem escrita. Entretanto, sua aparição se deu quando OS deuses já haviam abandonado homens e espírito positivista revelava-se Pedro Meyer, da / photograph to remember, 1991 sobre 0 mundo moderno. No entanto, OS anátemas que recebeu ainda proce- diam do conflito entre uma tradição oral (entendida como supostamente natural) e uma tradição "literária" (entendida como tudo que está filtrado pelas convenções culturais e pela tecnologia). Finalmente, como sempre, o pragmatismo acabou se impondo sobre as objeções dos fundamenta- listas: a fotografia era muito valiosa para a memória.38 0 BEIJO DE JUDAS E EVIDÊNCIA 39 0 BEIJO DE JUDAS VIDÊNCIA E EVIDÊNCIA Que tipo de experiência a fotografia proporciona ou, mais dire- Esse trabalho suscita grande variedade de comentários, tanto de tamente, para que serve? Como se desse uma resposta que não admitia ordem estética quanto moral. Por exemplo, surpreende -possivelmente paliativos, em 1992, Pedro Meyer intitulava / photograph to remember por falta de a brusca disjunção entre 0 calor dos sentimentos (Fotografo para lembrar) um de seus trabalhos. Meyer evitava que e a "frieza" do meio empregado, a tela glacial do monitor. Mas, sobretudo, subjaz no procedimento comum dos fotógrafos, uma prótese tecnoló- surpreende um título que se manifesta como declaração ontológica e não gica que culmina 0 velho desejo de ampliar nossa capacidade mental de como mero formalismo descritivo mais ou menos evocador, como costuma armazenar informação e que, ao longo da história, deu lugar a tratados ocorrer com frequência. Fotografo para lembrar, diz Pedro Meyer, e, por e a métodos nada desprezíveis, como conhecido Teatro da memória de menos que pensemos, a obviedade parece se transformar em tautologia. Giordano Bruno. A importância da memória foi, de fato, mais urgente para Porque é sempre assim. Porque sempre fotografamos para lembrar aquilo OS homens do que para OS deuses. Norberto Bobbio conclui em seu ensaio que fotografamos, para proteger a experiência da precária fiabilidade da De senectute (1996): "Você é que lembra". Tanto a nossa noção do real memória. Ou não? quanto a essência de nossa identidade individual dependem da memória. Quando a dúvida se instala na implacabilidade desses raciocinios, Não somos nada além de memória. A fotografia, portanto, é uma atividade estamos em condições de abrir-nos para uma nova dimensão de análise. fundamental para nos definir, que abre uma dupla via de ascese para a Lembrar significa selecionar certos capítulos de nossa experiência e autoafirmação e para 0 conhecimento. esquecer resto. Não há nada tão doloroso quanto a lembrança exaustiva Na série photograph to remember, que foi apresentada em formato e indiscriminada de cada um dos detalhes de nossa vida. Em seu conto de CD-ROM, permitindo certa interação com espectador, Meyer com- Funes memorioso, Jorge Luis Borges fala sobre a infelicidade que nos binava narração e música com uma centena de fotografias de seus pais, precipita uma memória excessivamente prodigiosa. Mas é sobretudo no Liesel e Ernesto, ambos falecidos em um breve intervalo de tempo devido romance The man who never forgot (1957), do autor de ficção ao câncer. Por meio de imagens de estilo documental que transpiravam científica Robert Silverberg, em que talvez mais certeiramente se põe uma emotividade visceral, Meyer oferecia uma reflexão poética sobre dedo na ferida. Nela, conta-se a história de Tom Niles, personagem dotado a a união familiar e as atitudes para enfrentar a morte. de uma memória sobre-humana capaz de se lembrar de cada aconteci- Experiente testemunha gráfica de diversas situações dramáticas mento, por mais insignificante que fosse, de qualquer história vivida. No do barril de pólvora latino-americano, onde a morte era moeda corrente e entanto, que em princípio parece ser dom de um cérebro privilegiado a desgraça depositária (como a revolução sandinista, para citar um único é, na verdade, uma grave doença, mais perniciosa até do que a amnésia exemplo), fotógrafo tinha, nesse caso, que expressar sua própria tragédia absoluta, uma verdadeira monstruosidade mnemotécnica: a incapacidade sem distanciamentos profissionais. Imagens extraídas do álbum familiar à de esquecer que quer que seja. Tom Niles tem sempre presente em sua maneira de flashback se mesclavam com outras, que foram feitas expressa- mente maus momentos, é incapaz de perdoar ofensas ou de superar mente para esse trabalho a partir do momento em que souberam diagnós- traumas; a adversidade pesa como uma cruz. Definitivamente, a impos- tico. Impressiona-me a atitude de uns e de outros, fotógrafos e modelos, ao sibilidade de superar aspectos negativos da vida acaba transformando aceitar esse jogo para que filme retivesse aquilo que poderia desaparecer sua relação com próximo em uma catástrofe. Silverberg insinuava que, de uma memória traída pelas emoções. A fotografia em que Pedro segura de fato, é a discriminação da lembrança e, finalmente, esquecimento, pai com 0 braço esquerdo enquanto com outro empunha a câmera e faz que nos permite querermos ser felizes. um retrato em que inevitavelmente ficará plasmada essa demonstração de Mas deixemos a ficção literária e nos ocupemos de nossa própria afeto me deixa arrepiado. Pensando bem, não se trata tanto de um retrato situação: tomemos uma coleção de fotografias pessoais. Aparentemente quanto de tornar patente 0 contato, a proximidade, apoio, amor. só se incluem situações agradáveis entendidas como exceções da40 0 BEIJO DE JUDAS VIDÊNCIA E EVIDÊNCIA 41 ! 0 BEIJO DE JUDAS VIDÊNCIA E EVIDÊNCIA cotidianidade: ritos, celebrações, viagens, férias etc. Fotografamos para reforçar a felicidade desses momentos. Para afirmar aquilo que nos agrada, para cobrir ausências, para deter tempo e, pelo menos ilusoriamente, adiar a inevitabilidade da morte. Fotografamos para preservar a estrutura de nossa mitologia pessoal. 0 louvável esforço de alguns fotógrafos contemporâneos, como Nan Goldin, consiste precisamente em ampliar O protocolo do fotogra- fável. Nan Goldin, por exemplo, estende âmbito do álbum familiar, acolhendo não só casamentos como também funerais, não só velinhas de aniversário, mas também surras e hematomas, não só amigos e aman- tes quando fazem caras engraçadas ou elogios carinhosos, mas também quando se drogam, urinam ou fazem sexo. Levada ao limite, essa atuação conduziria a um paradoxo de natureza borgeana: ter que fotografar sem concessões cada instante da existência para que absolutamente nada escape da voracidade da câmera. 0 trabalho de Friedl Kubelka-Bondi, quando fotografa a si mesma sistematicamente todos OS dias de sua vida em diferentes situações, sempre as mesmas, ao se levantar, no asseio, no café da manhã, no trabalho etc., se aproxima dessa tarefa. Ao longo dos anos sua perseverança the permite recobrir as paredes de galerias ou museus com milhares e milhares de pequenas fotos instantâneas não transcendentes que sistematizam a disposição de um eu projetado ao infinito. Ainda assim, gesto da artista austríaca, além da acumu- lação desenfreada e obsessivamente patológica, permanece na esfera do simbólico e do testemunhal que não chega a alcançar absoluto borgeano. E, enquanto não se dê este absoluto, continuamos condena- dos a fotografar para esquecer: ressaltamos alguns fatos para adiar os intervalos anódinos e tediosos que fatigam espírito. / photograph to forget. Eu fotografo para esquecer. Na verdade, enfrentamento dialético entre duas figuras funda- mentais da prática fotográfica dos anos 1950 já esboçava coordenadas teóricas similares ao enfatizar essa dupla polaridade funcional lembrança/ Friedl Kubelka-Bondi, 2nd Year Portrait, 1977-1978 esquecimento. Henri Cartier-Bresson preconizava ato epifânico, captu- (25/04/1977-29/05/1977) rar momento decisivo que reunia a tensão de uma cena e sintetizava a essência com a máxima contundência. Robert Frank contestava que, tanto existencial quanto estatisticamente, a verdadeira fotocópia da realidade deveria ser feita não no climax, mas no lapso que separa sucessivos42 0 DE JUDAS VIDÊNCIA E EVIDÊNCIA 43 0 BEIJO DE JUDAS VIDÊNCIA E instantes decisivos. Contudo, a distância entre as duas posturas não conseguia negar um ponto de consenso: a fotografia como constatação da experiência, a fotografia como evidência. Duas décadas mais tarde, em 1977, artistas californianos Mike Mandel e Larry Sultan publicaram um livro intitulado simplesmente Evidence. Carente de qualquer tipo de texto, ao virar as páginas, leitor só encontra fotografias documentais de angustiante trivialidade. Trata-se de imagens assépticas e obedientes às convenções do documentalismo puro e simples, isto é, sem maior aspiração além de transmitir informação visual da forma mais clara e concisa, desprovida de qualquer tipo de traço de "autor". Provavelmente tipo de material gráfico servil às necessi- dades do mundo da indústria ou da ciência. No entanto, ao perscrutar significado dessas fotografias, mais profundo surrealismo emerge de sua banalidade radical. Na extremidade (?) semipeluda de um símio (?) alguém injetava um soro (?); um astronauta (?) se arrastava (?) no car- pete (?); uma densa fumaça (?) indicava a detonação controlada (?) de um novo explosivo (?). São algumas interpretações que dou e, depois de quinze anos de ter adquirido 0 livro, continuo fascinado pela incerteza e desassossego que me provoca. Mandel e Sultan haviam obtido as imagens em diferentes labora- tórios de pesquisa, departamentos de veterinária e criminologia, arquivos de bombeiros e de diversos hospitais, institutos aeronáuticos e de estu- dos agrícolas. No âmbito dos respectivos lugares de procedência, essas fotografias eram tanto aborrecidamente compreensíveis quanto perfeita- mente úteis; limitavam-se a cumprir 0 papel característico de transmitir uma informação precisa e ninguém teria dificuldade em decifrá-las. Isso ocorria por uma simples razão: espaço cultural e funcional no qual esta- vam inseridas ancorava a eventual disseminação de seus significados. 0 que demarcava esse significado, para dizer em outros termos, era laço entre quadro da imagem e "extraquadro" que envolvia. De fato, para Mike Mandel e Larry Sultan, do livro Evidence, 1977 transgredir esse laço e constatar assim a fragilidade do sentido, a dupla de artistas se limitou a pôr em prática a técnica dadaísta do estranha- mento do objeto: do arquivo no laboratório de pesquisa ao papel cuchê do livro de arte; da finalidade descritiva à especulação estética; uma mes- ma coisa via fundamentalmente transtornado seu conteúdo e, portanto, sua relação com 0 usuário. A descontextualização não apenas modifi-44 0 BEIJO DE JUDAS VIDÊNCIA E EVIDÊNCIA 45 BEIJO DE JUDAS VIDÊNCIA E EVIDÊNCIA cava um valor de uso, mas também, principalmente, pulverizava a própria de visões premonitórias. Horrorizada, Laura Mars constata que sua ima- noção de que a fotografia é a prova de alguma coisa, suporte de uma ginação está acompanhando de forma simultânea, ou até antecipando, evidência. Devemos nos perguntar: evidência do quê? Provavelmen- nos mínimos detalhes, alguns acontecimentos reais: uma sucessão de te, evidência apenas de sua própria ambiguidade. 0 que resta, então, crimes violentos. Naturalmente, protagonista masculino do filme, um do documento? inspetor de polícia, reticente de ofício aos prodígios e obcecado por uma racionalidade elementar, considera que a fotógrafa está ligada ao que está acontecendo. No entanto, interessante não é a intriga tola do argumento, mas A bola de cristal 0 fato de que de forma oculta presenciamos a passagem da fotografia como evidência à fotografia como vidência. Esse trânsito reveste ato "Filosoficamente, a memória não é menos prodigiosa fotográfico de poderes mânticos que transtornam a percepção empírica do que a adivinhação do futuro". do tempo e, por extensão, O próprio papel da memória. Talvez Kershner JORGE LUIS BORGES, informe de Brodie pensasse em Joseph Conrad quando este escreveu que "a mente do homem é capaz de tudo, porque tudo está contido nela, tanto passado No filme Eyes of Laura Mars (Os olhos de Laura Mars), um suspense quanto futuro". mediocre dirigido por Irvin Kershner (um especialista em de ação Um ânimo razoavelmente cético nos impele a deduzir que acreditar que realizou títulos como império contra-ataca e Robocop II) em 1978 que a fotografia testemunha algo implica, em primeiro lugar, precisamente e interpretado por Faye Dunaway, aventura-se uma resposta que, apesar isso, acreditar, ter fé. realismo fotográfico e seus valores subjacentes das aparências, ultrapassa simples golpe de efeito do roteirista ou são uma questão de Porque não há nenhum indício racional convin- qualquer outra tentativa de boutade. 0 argumento relata as peripécias cente que garanta que a fotografia, por sua própria natureza, tenha mais de uma famosa fotógrafa nova-iorquina que, assim como Thomas de valor como do que laço feito em um dedo ou a relíquia. A men- Blow-up, doze anos antes e em Londres, une publicidade e moda com sagem de Michelangelo Antonioni em Blow-up, além de nos dizer que as obra pessoal de criação. Em todos esses âmbitos, suas composições formas familiares do mundo encobrem outra realidade, reduz-se a que impactam pela grande dose de erotismo e violência (se as fotografias tudo -inclusive a certeza fotográfica- é pura ilusão: na sequência final de reportagem que Thomas apresentava a seu editor foram cedidas por do filme, um grupo de mímicos joga tênis com uma bola inexistente até Don McCullin, aqui haveriam de sê-lo por Helmut Newton). Em Blow-up, que esta cai para fora da cerca da quadra e é um desconcertado Thomas, uma simples foto instantânea dava de um fato inadvertido, a convertido em cúmplice na causa da ilusão, quem devolve a bola consumação de um crime, e as fotografias de Laura Mars, à sua maneira, para que a partida possa continuar. também são indícios de crimes. Até aqui a estrutura argumental corre É possível que esse afastamento da memória estigmatize posi- paralela, mas em seguida aparece uma engenhosa diferença: enquanto cionamento da fotografia na arte contemporânea. A alternativa entre des- Blow-up usa um conceito tradicional de documento que implica a rela- cobrir e inventar, que sob diferentes formalizações categorizou até agora ção temporal com passado, Eyes of Laura Mars inverte essa relação e as práticas artísticas (por exemplo, fotografia "direta" versus fotografia "construída"), deixa de ter sentido. Tudo é descoberta e invenção. Entre a orienta para futuro. Laura Mars encena com modelos em seu estúdio simulações de as extravagâncias "achadas" de Cristina García Rodero e as "recriadas" assassinatos que não economizam luxo, sexo, nem agressividade. que por Joel-Peter Witkin varia 0 modus operandi, mas as mensagens sobre em princípio é apenas fruto da fantasia se transforma em um amontoado a religião e a dor são muito próximas. Com sua Señora de las iguanasI 0 BEIJO DE JUDAS VIDÊNCIA E EVIDÊNCIA 47 I BEIJO DE JUDAS VIDÊNCIA E EVIDÊNCIA Ouka Leele, da série 1979 Graciela Iturbide, Señora de las iguanas, Mexico, 197948 0 BEIJO DE JUDAS VIDÊNCIA E EVIDÊNCIA 49 0 BEIJO DE JUDAS VIDÊNCIA E EVIDÊNCIA (México, 1979), Graciela Iturbide nos apresenta uma mulher com a cabeça contribuiu intensamente para essa hegemonia da vidência. Na ficção coberta por esses répteis; se desconhecermos as razões etnológicas do filme, Laura Mars pressentia e visualizava a morte; na realidade de dessa peculiar situação, a imagem poderia pertencer à série Peluquerías nossas vidas, que antecipamos é 0 cadáver de muitas das presunções de Ouka Leele, em que modelos igualmente decoram seus penteados de cultura visual. com diversos animais, como tartarugas ou polvos. Nossa perspectiva dilui as condições de trabalho e as intenções de todos esses fotógrafos e, na passagem do tempo, só restam imagens, imagens que se parecem. Os discursos que as justificavam se convertem em espectros que, como a alma, abandonam 0 corpo. A fotografia estetiza e coisifica tudo por igual, transforma a natureza em troféu, como um caça- dor que recolhe uma presa. No entanto, como aponta Celeste Olalquiaga, ao contrário do caçador, fotógrafo não mata corpo, mas a vida das coisas. Só deixa a carcaça, envoltório, contorno morfológico: através do visor, qualquer parte de mundo se transfigura necessariamente em uma natureza-morta, um retalho de natureza inquietantemente parada, inerte. Não é possível para a fotografia outro gênero que não a natureza- morta. Porque princípio básico tanto da memória quanto da fotografia é que as coisas têm que morrer em ordem para viver para sempre. E na eternidade não conta tempo; passado e futuro se confundem, da mesma forma que a lembrança e a premonição não são mais que um único e mesmo ato, se procedem do que conviemos em chamar historia- dores ou profetas. Sim, a lente da câmera parece conservar algumas das propriedades divinatórias da bola de cristal utilizada pelas pitonisas, da qual certamente foi extraída. Além das metáforas, resta apenas certificar-nos de que a sensi- bilidade contemporânea nos predispõe paradoxalmente à profecia e não à história. Vivemos em um mundo de imagens que precedem a realidade. As paisagens alpinas nos parecem simples réplicas das maquetes dos trens elétricos de quando éramos crianças. 0 guia do safári fotográ- fico detém jipe no local exato onde OS turistas reconhecerão diorama do museu de história natural. Em nossas primeiras viagens nos sentimos inquietos quando em nossa descoberta da torre Eiffel, do Big Ben ou da estátua da Liberdade percebemos diferenças com as imagens que tínhamos prefigurado através de postais e filmes. Na verdade não procuramos a visão, mas déjà-vu. Nesse sentido, assim como Laura Mars, hoje todos somos um pouco videntes e a verdade é que a fotografiaOs peixes de Enoshima Em Enoshima, pequena localidade pesqueira perto de Tóquio, barcos saem toda tarde para mar. Ao retornar, OS pescadores selecionam algumas das peças obtidas, ensopam-nas com tinta e, com elas, imprimem seus próprios cartazes. Os peixes substituem as nossas pranchas de gravura: a pressão sobre 0 papel permite transferir sua própria imagem. Seu tamanho, sua silhueta, a textura de suas escamas, a transparência de suas guelras... Os pescadores só se permitem o retoque dos olhos, uma licença que eu gostaria de acreditar mais aparentada com a magia e a brincadeira do que com a obsessão realista de fidelidade ao modelo. Em seguida, com uma caligrafia delicada anotam o tipo, peso e preço do peixe. Penduram cartaz no interior de seu estabelecimento ao lado de outros que anunciam os peixes que estão à venda no dia e que vão desaparecendo conforme os clientes compram. Esse procedimento tradicional, que recebe o nome de gyotaku, não chama a atenção de ninguém no Japão; faz parte das formas populares de comércio implantadas há muitos séculos. Mas resulta chocante para oci- dentais, sobretudo se nos aprofundamos mais além da qualidade pitoresca que nosso de turista tenderá espontaneamente a projetar. Da mesma forma será preciso esforço para prescindir provisoriamente das inegáveis qualidades estéticas nas quais a deformação profissional inevitavelmente nos É difícil não ficarmos admirados diante da elegância de imagens que equilibram forma e função com tanta Eu gostaria, contudo, de destacar duas coisas. Em primeiro lugar, um determinado estilo de comunicação publicitária. A publicidade ocidental, que se autodefine como informação mais persuasão, fundamenta-se no Enoshima, Japão, 1992 superlativo e na hipérbole. Ora filtrada por notáveis doses de criatividade, ora com argumentos destinados a atrair amplas parcelas da população, parece, no entanto, que diante da saturação de mensagens só vale o exagero, isto é, a verdade duvidosa, a verdade como ponto de vista. E, para legitimar esse discurso e lavar a consciência, construímos um verdadeiro aparato52 0 BEIJO DE JUDAS PEIXES DE ENOSHIMA 53 BEIJO DE JUDAS PEIXES DE ENOSHIMA filosófico: a verdade, esforcemo-nos em convir, não passa de uma opinião institucionalizada a partir de determinadas posições de poder. A sabedoria popular dos pescadores de Enoshima torna inúteis esses estratagemas. Embora 0 objetivo final seja mesmo (vender, no caso peixe), a proposta ao cliente é forçosamente justa e não admite excesso. 0 próprio procedimento escolhido 0 impede: esse é segundo fator que quero enfa- tizar. 0 contato do peixe no papel só permite fixar sua própria silhueta, com seu tamanho real: trata-se de seu rastro direto, a analogia pura, a natureza que fala por si mesma. Não há espaço para excessos e floreios. Diante de tal ostentação de "objetividade", devemos, pois, perguntar-nos se a impressão não constitui tipo de imagem que mais nos aproxima do real, a que mais obstinadamente dificulta a tergiversação. Diversos teóricos considero especialmente Philippe Dubois- analisaram a natureza da imagem fotográfica para concluir destacando seu valor como como rastro. A fotografia é um signo que, efetivamente, requer para sua consecução uma relação de causalidade física com 0 objeto. 0 objeto representa a si próprio, mediante a luz que reflete. A imagem não é mais que 0 rastro do impacto dessa luz sobre a superfície fotossensível: um rastro armazenado, um rastro-memória. Mas hoje sabemos que a fotografia é tão maleável e tão falivel quanto a memória. A fotografia publicitária nos oferece exemplos constantes. Pensemos nas ilustrações de comida ou bebida que exalam que no jargão especializado dos profissionais se denomina appetite appeal. 0 appetite appeal é um amontoado de signos imperceptíveis, uma dirigida à sedução: as gotículas de condensação nos copos de bebidas refrescantes, a fumaça cheirosa exalada por um assado, corte que revela uma carne tenra- mente rosada... São elementos resultantes do retoque ou de uma simulação artificial que incitam desejo e fomentam uma exigência de perfeição que não existe na realidade. Será também esse hiper-realismo fotográfico resultado de um rastro? Sim, mas de uma categoria diferente de rastro. Por enquanto, Enoshima, Japão, 1992 convenhamos que OS rastros podem ser diretos ou diferidos. Se peixes de Enoshima exemplificam "rastro direto", esses anúncios hipotéticos corresponderiam à noção de "rastro diferido". São rastros na medida em que foram produzidos a partir da incidência dos raios luminosos sobre 0 filme fotográfico, mas entre modelo e suporte interveio uma série de55 0 BEIJO DE JUDAS PEIXES DE ENOSHIMA 54 0 BEIJO DE JUDAS PEIXES DE ENOSHIMA dispositivos operativos e tecnológicos que seguem preceitos culturais e de superfície rugosa, esfregamos com um lápis exercendo certa pressão e ideológicos. Dispositivos que mitigam a nitidez do rastro original e permi- obtemos a transferência da textura do objeto ao papel. tem sua osmose. Para alguns teóricos, como Roland Barthes, a origem da A vida e a arte apresentam diversos episódios em que se manifesta dimensão alucinatória da imagem fotográfica radica nesses dispositivos, 0 conflito dos signos. As impressões digitais dos documentos de identificação uma vez que permitem que que é falso no nível de percepção possa ser policial supõem um exemplo de rastro direto em que a ponta do dedo atua verdadeiro no nível de tempo. A natureza estrutural do meio possibilita que como uma prancha de gravura. No entanto, sentido dessa estampa pode a veracidade histórica (a presença real dos manjares do anúncio frente à variar no aspecto estético e semântico. Segundo a tradição, no século IX o objetiva) não necessariamente corresponda com a veracidade perceptiva conde de Barcelona, Wifredo Cabeludo, foi ferido de morte no campo de batalha. Pressentindo seu fim iminente, molhou dedos de uma mão no (nossas sensações). Poderíamos dizer que as fotos convencionais são rastros filtrados, sangue da ferida e traçou quatro linhas vermelhas sobre seu escudo de ouro. rastros codificados que mostram desajuste entre imagem e experiência. A densidade épica desse gesto valeu à Catalunha seu emblema nacional e A tecnologia que intervém na produção da fotografia não é mais que um a história se encarregou de impregnar esse brasão do conteúdo simbólico saber acumulado. Todas as ferramentas (uma esferográfica, uma câmera e grandiloquente próprio desses casos (honra, bravura, esforço, generosidade, ou um computador) e 0 conhecimento de seu manejo não constituem senão sacrifício...). Uma metassignificação que nada se relaciona com traçado memória aplicada. Seria possível, portanto, concluir que OS rastros são as abstrato dessas quatro linhas vermelhas sobre fundo amarelo. Por outro lado, unidades da memória, sua matéria-prima, e que a memória, por sua vez, é quando artistas do acionismo vienense ou a artista cubana Ana Mendieta uma estratificação de rastros. encharcam 0 corpo ou parte do corpo com sangue para deixar sua marca no Toda imagem é fisicamente um rastro, resultado de uma transpo- chão ou em um papel, como Yves Klein fez com suas modelos pintadas de sição ou de uma troca (um depósito de tinta, um efeito de carga elétrica ou azul, desejam que a impressão anatômica fique perfeitamente reconhecível. magnética, uma reação química). Em síntese, uma diferente modulação de Embora artistas queiram sublimar poeticamente esse gesto ou dotá-lo informação armazenada, de "memória". Somente a consciência histórica de uma significação política, OS espectadores devem reconhecer a mão nos permitirá distinguir entre rastros diretos e diferidos, matizar OS infinitos como mão e rosto como rosto. Não se trata de manchas de sangue, mas de graus intermediários. Reduzir essa exuberância de matizes aos seus limi- impressões feitas com sangue. Percebemos, em um primeiro momento, corpo tes, restringir-se a "indices" e "símbolos", como propõem OS semioticistas ensanguentado e só depois pensamos em repressão, tortura e morte. seguindo Charles S. Peirce ao classificar mundo dos signos icônicos, é uma A produção artística contemporânea constata frequentemente distintos graus de escalonamento dos rastros e sua tradução em diferentes simplificação excessiva e superficial. Por exemplo, um desenho figurativo, se atendermos à gênese de seu referências à memória. Podemos nos referir como ilustração pertinente à procedimento, também é um rastro, marcado pelo atrito do grafite no papel. série Sconosciuti de Paolo Gioli (Art&, Udine, 1995). Gioli tomou uma coleção Nesse caso, que nos interessa não é traço mas a configuração codifi- de retratos de personagens desconhecidos, imagens que correspondem a cada de traços que aspira a adquirir um sentido para nós. 0 traço seria uma antigos negativos em grandes placas de vidro e que, em sua época, foram unidade linguística cuja articulação nos permitiria criar estruturas de ordem objeto de um consciencioso retoque embelezador. Até OS anos 1960, reto- muito mais complexa, mas que careceria de intenção de representação por que foi uma prática comum nos estúdios de retratistas: dissimular rugas, si mesma. 0 frottage de Max Ernst, por outro lado, seria uma modalidade marcar sobrancelhas, ressaltar lábios... 0 retoque devia solucionar que a de desenho (o desenho automático dos surrealistas, a aplicação do con- maquiagem e a iluminação não eram capazes de corrigir. ceito de escritura automática nas artes plásticas) muito mais próxima do Durante décadas, pictorialistas e puristas se envolveram em rastro direto. Mediante essa técnica, colocamos um papel sobre um objeto violentos debates sobre a legitimidade do retoque, mas comércio, que57 BEIJO DE JUDAS PEIXES DE ENOSHIMA 56 0 BEIJO DE JUDAS OS PEIXES DE ENOSHIMA não entende nada além da satisfação do cliente traduzida em benefício econômico, não via problemas em valer-se de um recurso híbrido que procedia do desenho ou da pintura. 0 paradoxal também mais inte- era a absoluta necessidade de sua camuflagem, resumida na máxima de que "um bom retoque é aquele que não se nota", pois, em vez de suavizar defeitos de um rosto, um retoque malfeito atraía a atenção para eles e, portanto, aumentava. É compreensível, em consequência, que esse tipo de prática fosse tão condenado pelos puristas, por signi- ficar a incursão poluente de um recurso estranho ao meio, quanto pelos pictorialistas, pois se tratava de uma intervenção pictórica não assumida, bastarda, que se envergonhava de si própria. Tecnicamente esses retoques eram efetuados na face da emulsão do negativo com um lápis gorduroso que ia sedimentando camadas ou traços para aumentar a densidade, ou com um buril para raspar e rebaixar a densi- dade já existente. Às vezes, a emulsão era recoberta com verniz para facilitar trabalho e obter um resultado permanente. Obviamente, retoque podia estender-se ao positivo, que aumentava a lista de materiais e utensílios empregados (diferentes tipos de tintas e pigmentos, pincéis e, inclusive, aerógrafos). Nos dois casos, sedimento físico do retoque (a fina camada de carvão ou de pigmento) a longo prazo resultava muito mais duradouro do que a instável imagem de prata, atacada pelos residuos ácidos do fixador e pelos raios ultravioleta. Nas placas encontradas por Gioli, portanto, interagiam dois tipos de rastros -a impressão lumínica e traço do retoque- fundidos de forma deliberadamente desequilibrada: retoque se sujeitava à imagem fotográ- fica. A intervenção de Gioli consistiu em degradar controladamente a imagem fotográfica (processo que acelerava 0 desaparecimento gradual das fotogra- fias antigas) para restabelecer ou mesmo invertê-lo, isto é, para conceder a supremacia ao retoque. 0 artista desvela assim escondido, torna visível glorifica supérfluo. Os garranchos e riscos se erigem em figura sobre fundo de uma fisionomia transformada em fantasma, quase Paolo Gioli, da Sconosciuti, 1995 A subversão do status quo dessas imagens evidencia a dialé- tica das duas marcas, a quirográfica e a óptica, mas, sobretudo, evidencia a sobreposição de camadas, descobre palimpsesto, revela a estratificação da memória. Gioli desmascara a verdade da imagem e liberta uma memória prisioneira de outra memória. Esse é valor metafórico de sua proposta.58 0 BEIJO DE JUDAS PEIXES DE ENOSHIMA 59 I 0 BEIJO DE JUDAS OS PEIXES DE ENOSHIMA Com toda modéstia de intenções, mas compartilhando com Gioli simi- lar proposição epistemológica, boa parte de meu trabalho artístico recente, principalmente depois da descoberta dos peixes de Enoshima, centrou-se também na confrontação de rastros e de memórias. Na série Frottogramas, iniciada em 1987, tentei integrar procedi- mento de Max Ernst ao acervo criativo da fotografia e processo propunha igualmente encaixe de rastros ópticos com rastros quirográficos. Os frottogramas são imagens que mostram as aparências visuais do objeto (um animal, uma planta, corpo), mas que também aludem às qualidades físicas ou táteis desse objeto. 0 processo consiste em esfregar a emulsão do clichê, quando está ainda úmida, no modelo, imprimindo assim algu- mas marcas. Se objeto tiver uma textura áspera ou cantos pontiagudos, negativo é arranhado, furado ou, inclusive, rasgado, ou seja, negativo funciona como uma matriz que recolhe as diferentes camadas de rastros: as cicatrizes de uma vida real, física, dessas imagens. 0 clichê então não é apenas testemunho da luz, mas também da matéria. E, se algumas vezes riscos conferem um aspecto abstrato ao resultado, deve-se notar que, paradoxalmente, OS frottogramas proporcionam mais informação (são mais realistas) do que uma fotografia convencional. De fato, falam em termos visuais, mas também se referem a outros dois fatores não visuais: por um lado, à fisicalidade do objeto, e por outro, à intensidade e sensualidade do encontro físico entre fotógrafo e seu sujeito. 0 frottograma cede protagonismo à pulsão do gesto e ao acidental, de forma que propicia a emergência da própria matéria fotográfica, que tendia a ficar transparente e preservada. Desta forma, OS "ruídos" do próprio sistema fotográfico, a exal- tação de suas vísceras até agora proscritas (as arranhaduras, defeitos, a espessura do filme). convidam-nos a medir também as visceras do mundo natural, limites comumente ved ados à experiência. A equivalência do frottage em relação ao desenho é ocupada pelo fotograma com relação à foto convencional (dificil de definir, mas que, por aproximação, como produto midiatizado pela câmera Joan Fontcuberta, Autorretrato, da orientada segundo determinadas rotinas de seu programa). Em toda fotogra- 1987 fia, um conglomerado desorden ado de manchas de distintas densidades e cores, obtidas segundo a intens dade e comprimento de onda da radiação luminosa, é igualmente a adequação a um código para alcançar seu sentido. 0 fotograma é regi stro da pura sombra, a inscrição automática60 0 BEIJO DE JUDAS OS PEIXES DE ENOSHIMA 61 BEIJO DE JUDAS OS PEIXES DE ENOSHIMA do contorno do objeto. Representaria, portanto, ponto de partida. Seria possível afirmar que sua leitura é mais imediata e direta? Os rastros dire- tos são mais fáceis de interpretar do que OS diferidos? Em percepção não cabe contrapor processos naturais versus processos culturais. Todo ato de percepção requer uma aprendizagem e está sujeito a diversos fatores adquiridos, não naturais. Contudo, a verdade que o aspecto bruto inicial do fotograma pro- porciona uma sensação de verdade primitiva. Uma sensação que se origina na renúncia por parte do operador à intervenção, a deixar que a imagem flua de um modo "espontâneo". Em fotograma implica a redução do repertório de recursos configuradores da fotografia a sua mínima expres- são, que é também sua essência: a estampa da luz sobre sais de prata. Cabe, no entanto, destacar que, assim como a fotocópia, fotograma como procedimento de trabalho, por mais simples e austero que se defina, possi- bilita progressivos graus de refinamento e sofisticação. A história do meio nos oferece exemplos que abrangem de projetos documentais (as séries de algas de Anna Atkins) a outros extremamente abstratos, puros efeitos de luz sem objetos identificáveis (os luminogramas de László Moholy-Nagy, OS ziclogramas de Andreas Müller-Pohle). Ou seja, a escala que separa OS rastros diretos dos diferidos só pode ser disposta como um continuum gradual de valores médios, que não podem indicar patamares prefixados, mas valores comparativos. Esse continuum constitui justamente objeto de outro trabalho meu, sobre a paisagem industrial entendida como depósito de arqueologias culturais, históricas, humanas, físicas e materiais. A morfologia da fábrica e o mundo da tecnologia que fascinaram os artistas das vanguardas aparecem no fim de século como lastro de uma revolução remota cujo eco nos fala de força e dramatismo humanos de outros tempos. 0 capitalismo tardio condenou essa paisagem ensimesmada a renovar-se ou a morrer e, melancolicamente, assistimos à metamorfose do monumento em Andreas Müller-Pohle, Zyklogramm III, 1991 0 projeto consiste tecnicamente em realizar fotogramas sobre foto- grafias. Para OS fotogramas, recolhia materiais de refugo, encontrados ao acaso (peças mecânicas estragadas, partes de motores, sucata) ao longo de passeios por zonas portuárias, arredores de fábricas ou outros entornos industriais. As fotografias sobre as quais fiz OS fotogramas são as que des- crevem precisamente lugares onde esses materiais foram encontrados.62 BEIJO DE JUDAS I PEIXES DE ENOSHIMA 63 0 BEIJO DE JUDAS PEIXES DE ENOSHIMA Os elementos selecionados para efetuar os fotogramas constituíam restos de uma paisagem interpretada como lieu de mémoire segundo a deno- minação de Pierre Nora: rastros do coração e da musculatura que tinham contribuído para configurar a realidade econômica, cultural e política de um território. Não se tratava de uma simples documentação da superfície das coisas, de suas aparências, mas de esquadrinhar território como pla- taforma histórica, cenário de conflitos e como configuração de identidade; provocar a interação do antes e do depois, do ainda funcional com já inútil; constatar assombro pela vitalidade industrial com a melancolia por sua decadência, contraste de seus monumentos esplendorosos com seus vestigios mais modestos. Dessa forma, são produzidas duas imagens em tensão, marcas em estágios distintos de sua relação com real. Uma ocultando a outra em suces- sivos sedimentos. Uma contendo a outra como ocorre com OS reflexos entre dois espelhos confrontados. Definitivamente, um othar collage que leva ao trompe-l'oeil e ao palimpsesto, à escritura em diálogo com outra escritura, a uma floresta de signos que fazem sinais entre si. Joan Fontcuberta, Altos Hornos de Vizcaya, 1994, da série de Bilboo: Vulkanoren Sutegiacidade fantasma Uma certa cor sépia Para público leigo, algumas das sequências de Gone with the Wind (E vento levou) ou do anterior The Birth of a Nation (0 nascimento de uma nação) plasmam 0 clichê do que deve ter sido a Guerra de Secessão Americana. Para um público mais culto, a fabulação hollywoodiana é complementada com documentos gráficos legados por repórteres pioneiros que, como George N. Barnard, acompanharam desenrolar da luta. As imagens de Barnard sobre a destruição de Atlanta, assim como outras anônimas das ruínas de Richmond ou Gettysburg, unem dramatismo documental com certo romantismo nostálgico e wagneriano. Qualidades semelhantes aparecem nos trabalhos de Martí Llorens, fotógrafo natural de Barcelona que documentou com afinco, do verão de 1987 à primavera de 1992, a demolição de uma vasta zona industrial desti- nada a converter-se na futura sede da Vila Olímpica. Suas imagens também possuem a qualidade trágica da cosmologia wagneriana. Embora não falem da devastação ocasionada pela colisão entre dois exércitos, referem-se ao choque de ideologias e interesses econômicos, ao pretexto justificador do "progresso", e a uma conflitante relação com a história. Mais de uma centena de edifícios industriais foi derrubada, assim como as residências de cerca de 500 de famílias humildes, que foram obrigadas a se mudar para outras áreas. E tudo devido ao empenho devastador e visionário de uma versão atualizada de despotismo ilustrado. Poble Nou (Povoado Novo) é hoje um bairro do litoral de Barcelona, Marti Llorens, Demoliciones en to avenida Icaria 100, mas, em meados do século XIX, era considerado suficientemente afastado Barcelona, 1987 do núcleo urbano para que ali fossem erguidas grandes fábricas, armazéns, depósitos e tudo aquilo que não convinha deixar perto do centro da cidade, como eventuais manifestações operárias, poluição ou simplesmente por necessidade de expansão. 0 bairro abrigava, em consequência, OS vestígios da revolução industrial, edificações outrora geradoras de riqueza, que foram66 BEIJO DE JUDAS A CIDADE FANTASMA 67 BEIJO DE JUDAS A CIDADE FANTASMA pouco a pouco ficando abandonadas e desprovidas de outra função além de nossa geração nem pelas futuras". Dos Estados Unidos ouviram-se vozes testemunhar a pujança econômica de outra época e deleitar os amantes da sobretudo a partir da exposição intitulada New Topographics, arqueologia industrial. curada por William Jenkins em 1975 na George Eastman House de Martí Llorens vivia nessa área e, como a maioria de seus moradores, Bevan Davis falava do "esforço feito para que a câmera veja quase que por ela lamentava o súbito rompimento da identidade topográfica de seu entorno. Um mesma", Lewis Baltz: "Quero que meu trabalho seja neutro e livre de qualquer lamento popular e coletivo rebatido por designers, arquitetos e urbanistas, postura estética ou ideológica". Joe Deal: "As preferências pessoais e as con- profetas da modernidade, mas mercenários da cegueira triunfalista que a siderações éticas atuam como uma interferência na imagem". Espanha viveu em 1992. A paisagem, em qualquer caso, para bem ou para Em pouco tempo, essas crenças desembocaram em um cul-de-sac mal, nunca mais seria a mesma e muitos fotógrafos se aplicaram na tarefa e muitos outros matizes e categorias alternativas irromperam. Frente a um de mostrar como era tudo antes e depois dos tratores e escavadeiras. documentalismo que determinava para fotógrafo uma atitude neutra, de não Walter Benjamim atribui a Bertolt Brecht uma entrevista em que de obediência estrita a estreitas convenções de representação, este diz que a câmera está limitada a mostrar as aparências superficiais muitos fotógrafos se sentiram desconfortáveis e reagiram utilizando maiores das coisas; suas razões profundas estão vedadas. "Uma fotografia das licenças de interpretação. Assim, deslocaram seu objetivo de um interesse Indústrias Krupp nos mostrará paredes e pessoas, mas não nos dirá nada pela realidade asséptica para um interesse por sua própria experiência dessa sobre as relações de exploração que ali se dão". É verdade que as fotografias realidade. universo do visível se transformou na tela sobre a qual esses de Martí Llorens não falam da luta de classes, obviamente, nem dos desejos fotógrafos projetavam suas próprias vivências, suas maneiras de ver e de ou injustiças que aquelas paredes encobriram. Talvez a fotografia nua não sentir. Começaram a falar de "documentalismo subjetivo", um oximoro que esteja apta a descrever segundo tais questões abstratas, das quais somente resultava, ao mesmo tempo, satisfatório e inquietante: reivindicava-se o eu um uso evocativo da linguagem visual nos aproximaria. Mas, de qualquer sem renunciar à estética do documental. Era possível na prática? maneira, tampouco era esse propósito que impulsionava as imagens de Martí 0 "documentalismo subjetivo" representava um frágil compromisso Llorens: só desejavam falar do apego a um território sentido como próprio entre a lealdade ao que se supunha que deviam ser as respostas instintivas que iminentemente deixaria de sê-lo; tratavam da proximidade com que era e espontâneas do meio e a exigência da própria individualidade. Seu campo vivido um cataclismo ambiental e humano; tratavam, enfim, do sentimento de ação prioritário foi a paisagem urbana: cada autor escolhia microcosmos de espanto e pesar de toda uma comunidade. com OS Quais Um um gruno uma sub- Durante a década de 1970, documentalismo como atitude progra- cultura etc. eram vistos desde dentro, por alguém que, em muitos casos, se mática obteve surpreendente hegemonia entre OS que utilizavam a fotografia considerava membro da comunidade. resultado era que cada vez mais como meio de criação. Marcava assim uma tradição que tinha sido inicialmente subjetivo prevalecia sobre documental, abstrato sobre descritivo, até teorizada pelos surrealistas ao recuperar a obra de Eugène Atget: não é que que próprio termo "documentação" caísse em Inclusive traba- a fotografia tivesse uma dupla natureza arte e e sim que posteriores de alguns de seus profetas exemplificam amplamente essa documento era necessariamente artístico. Intenções provocadoras à parte, a mudança de rumo, como a série Die Mauer muro) de Schmidt: imagens tensão descritiva/expressiva pareceu desaparecer quando muitos fotógrafos desfocadas, áreas de pretos empastelados, composições desequilibradas etc. e outros artistas ideologicamente herdeiros do 68 começaram a questionar não passam de recursos retóricos, expressionistas, para enfatizar a recusa conceito de expressão individual. Michael Schmidt, líder de um proeminente às cercas de arame farpado e aos graffiti do muro da vergonha. 0 mesmo grupo fotográfico berlinense, exaltava a "autenticidade" do conteúdo da foto- aconteceu com a evolução de autores americanos que tinham participado do grafia e ditava em um manifesto publicado na revista suíça Camera (março, mencionado movimento New Topographics. Um tempo apaixonante, repleto 1979) que "é preciso que documento não seja nunca questionado, nem por de cismas e hereges.69 0 BEIJO DE JUDAS A CIDADE FANTASMA 68 BEIJO DE JUDAS A CIDADE FANTASMA Os anos 1980 implicaram rupturas de outra natureza, sem dúvida de planos. Dessa forma, as paredes ficavam semitransparentes, fantas- induzidas pela materialização de grandes ameaças: é a era Reagan, a era magóricas. A arquitetura virava espectro. A substância corpórea se tornava Chernobil, a era aids. Do político ao doméstico e do doméstico ao íntimo, mancha translúcida. 0 presente devinha imaterial. tudo parece se agravar, voltado a um frenesi de medo e radicalização. Esse Sobre OS escombros se levantava uma cidade fantasma, uma arqui- estigma da época é também refletido pela fotografia: as imagens de Marti tetura cuja fisicalidade desmoronava. Jean-François Lyotard também havia Llorens constituem ponto final do "documentalismo subjetivo". Já não resta usado a imaterialidade como metáfora para caracterizar elementos essenciais documento a não ser como alusão ao que se considerava um documento. Já da cultura e da arte contemporâneas. Em sua polêmica exposição apresentada não restam mais que metadocumentos. em 1985 no Centro Pompidou, Les immatériaux, apontava que progresso e Para plasmar a metamorfose urbana que Poble Nou sofria, Llorens as novas tecnologias haviam "desmaterializado" não apenas a matéria, mas traçou um novo marco estético que remetesse ao tom apocalíptico das ima- também espírito que the tinha dado luz: OS valores políticos, morais, cul- gens de Barnard. Dominada pela arquitetura funcional de tijolo avermelhado turais, estéticos etc. originados na modernidade. Llorens também negava a e embaçada pelas muitas chaminés, a paisagem já evocava clima do matéria, mas fazia para antepor espírito. Com isso parecia querer lembrar- século XIX da Revolução Industrial vitoriana. Além disso, Llorens deci- nos que a realidade é um efeito do espírito e que espírito é um efeito do diu obter suas imagens por calotipia, ou seja, com negativos de papel cujo tempo. Tempo como duração, mas também tempo como referência ao passado positivado conferiria ao original resultante texturas próprias desse processo formalizado em memória. Apropriando-se talvez de um sentir traduzido por vigente entre 1840 e 1860. Os positivos seriam revertidos a tonalidades sépia Jorge Luis Borges: "O tempo é a substância da qual estou feito. 0 tempo é ou pardas que igualmente rememoravam tom das fotografias antigas. um rio que me arrebata, mas eu sou rio; é um tigre que me destroça, mas Todos esses fatores de apropriação das aparências da fotografia do eu sou o tigre; é um fogo que me consome, mas eu sou fogo". século XIX sublinhavam a atmosfera nostálgica dominante. No entanto, A cidade está em ruínas, mas também sua imagem a acompanha no artista não se contentava em recriar OS tons de uma época pretérita. 0 que apocalipse. Com a fragilidade e a erosão de sua firmeza, a imagem se torna realmente fundamentaria seu projeto seria a "luta com tempo" no sentido necessariamente trompe-l'oeil. Outro autor contemporâneo que ilustra magistral- dado por Pierre de Fenoyl ao apropriar-se e reformular termo "cronofoto- mente essa ideia é Hiroshi Sugimoto. Em sua série recente de teatros reciclados grafia" ("a fotografia não é uma arte e sim uma luta com o tempo"). A máquina em cinemas e de antigas salas de projeção, Sugimoto fotografa interiores do tempo não era artefato infernal que nos transportava de uma época a frontalmente à tela. A sala permanece às escuras; só a própria projeção de um outra, tal como sonhou H. G. Wells, nem mesmo mecanismo misterioso do filme a ilumina. A luz refletida na tela vai extraindo da penumbra detalhes relógio, mas pura e simplesmente a câmera fotográfica. Uma câmera, além das molduras e das texturas das poltronas em uma exposição prolongadíssima disso, reduzida a sua quintessência: uma câmera estenopeica, uma simples que dura mesmo que a projeção do filme. 0 obturador da câmera se abre com caixa de papelão opaco com um orifício feito com uma agulha no centro de OS primeiros dos créditos e só se fecha quando aparece letreiro final sua face frontal. fotógrafo construiu um modelo básico: não estava desti- The End. Durante esse intervalo de tempo, uma sucessão de 24 fotogramas por nado a alterar perspectivas, nem a brincar com a profundidade de campo. segundo se impressionam sobre negativo de Sugimoto, que, ao final, conterá minúsculo orifício e a baixa sensibilidade do papel utilizado como negativo em sua memória fotoquímica a soma de todas as imagens. 0 paradoxo é que forçariam exposições excessivamente prolongadas. Durante algumas horas, essa projeção superposta, que devia ser compêndio de tudo, finalmente não a câmera caseira de Martí Llorens permanecia imóvel em frente a um edifício nos deixa ver nada: uma simples tela branca irradiando uma luz vaporosa. enquanto as fachadas desmoronavam; impressionavam 0 negativo, mas ao A condensação de todos planos nos lança ao vazio, a uma memória em desaparecerem permitiam que aquilo que sua opacidade antes ocultava branco em que aparentemente tudo se apagou, embora pressintamos que também se impressionasse, resultando em uma inquietante sobreposição em alguma parte do inconsciente sobreviva armazenada sua história profunda.71 0 BEIJO DE JUDAS A CIDADE FANTASMA 70 BEIJO DE JUDAS A CIDADE FANTASMA 0 tempo passa a ser simbolicamente eternidade, a simultânea e lúcida posse de todos instantes do tempo. Com sua proposta, Llorens e Sugimoto assentam contraponto teórico à noção modernista do "instante decisivo". Um recicla ironicamente uma estética pretérita e seu material de trabalho é a história; O flerte com passado se impõe como tábua de sal- vação intelectual. 0 outro reflete sobre a memória; basta qualquer instante de todos instantes para saber a história do universo. A memória não é mais do que a "lembrança" de um passado ilusório. Em Llorens, mundo de ontem se projeta e se desvanece no mundo de hoje; em Sugimoto, não há ontem nem hoje nem amanhã. Poética dos erros As imagens de uma perfeição glacial de Sugimoto contrastam com as de Martí Llorens, que, obtidas com sua câmera de papelão, convidam a outra leitura na ordem da estética fotográfica. Esse tipo de trabalho nos permite assistir a uma volta à simplicidade das origens do processo fotográfico em diversas formas de criação artística. Por um lado, constitui indício de uma contestação ao espírito fetichista que envolve desenvolvimento tecnológico; por outro, traduz a vontade de aprofundar sobre procedimentos que se consideravam superados e obsoletos. Fica latente a certeza de que não pode haver supera- ção; Ernst Gombrich sentenciava que "em arte não há progresso, mas simples mudanças de propósitos". A recuperação de meios e de uma estética já "superada" se legitima com um novo uso crítico que ironiza precisamente objetivos programáticos que guiaram esses meios e essa estética. 0 que antes era um acidente, agora é um efeito voluntário. Os defeitos se transformarem em signos intencionais faz parte da evolução da consciência. Trata-se, sem dúvida, da saída para um processo de esgotamento e saturação paulatina. Isto, que é aplicável a todos âmbitos da criação, nos permite comprovar, se nos atermos à fotografia, Hiroshi Sugimoto, Cinerama Dome, Hollywood, 1993 que as vias consolidadas com as vanguardas históricas sofreram enorme desgaste. 0 afã por imergir na verdadeira substância do fotográfico conduziu pensemos no corpus iniciado por Eugène Atget e Alfred Stieglitz e prosse- guido por Albert Renger-Patzsch e Edward à sobrevalorização de uma série de qualidades: máxima resolução, fiel tradução da escala tonal,72 0 BEIJO DE JUDAS A CIDADE FANTASMA 73 0 BEIJO DE JUDAS A CIDADE FANTASMA instantaneidade etc. Definitivamente, um repertório programático segundo Davison empregava a câmera estenopeica para suavizar 0 detalhe exces- 0 qual OS fotógrafos teriam assumido a origem óptico-mecânica de seu meio. sivo da lente, cuja precisão superava tanto a do olho que tirava "naturalidade" A câmera estenopeica foi, nos últimos anos, a bandeira de boa parte da imagem. Punham-se assim em prática as ordens de Henry Peter Emerson, da discussão desse repertório. 0 modelo da fotografia foi guiado por uma que em seu Naturalistic Photography (1889) recomendava aos fotógrafos que obsessão de perfeição e exatidão que só se compreende no contexto histórico colocassem a lente da câmera ligeiramente fora de foco. Dessa forma, segundo do positivismo. Um de seus formuladores, Hippolyte Taine, que era professor Emerson, as fotografias resultantes se aproximariam mais da nossa visão, na da escola de Belas-Artes, defendia que "todos OS sentimentos, todas as qual a área central fica claramente definida, mas as margens parecem mais ou ideias, todos OS estados de ânimo são resultados, têm suas causas e suas menos difusas. A pitada de imprecisão que 0 estênopo produzia devido à difração leis; todo futuro da história consiste na busca dessas causas e dessas leis. da luz, longe de ser considerada um defeito, constituía um signo icônico que Minha proposta concreta consiste na assimilação das pesquisas históricas respondia a uma ideologia de representação apoiada em certa interpretação e psicológicas às pesquisas fisiológicas e químicas". Nessa atmosfera filo- da percepção humana. Trata-se de um caso historicamente bem paradoxal: sófica, fundamentada na "evidência da objetividade" fotográfica, a estética provocar um defeito para corrigir um excesso de "realismo" e assim conseguir realista e a ideologia positivista fariam sua inserção nas artes. grau de "realismo" justo segundo determinados códigos de representação. Já no fim do século XIX, com movimento Arts & Crafts de William Contudo, as ordens de Emerson foram aplicadas como exceção. Morris e, sobretudo, mais tarde com maquinismo e a eclosão das vanguardas, Em geral essa teoria do erro e do defeito, de trabalhar "contra" OS a fotografia se aprofundaria sobre a noção de instrumento intensificador de materiais e suas regras, que regeu muitos âmbitos da vanguarda, mais que uma visão "natural" e científica. László Moholy-Nagy, autor de A nova visão aperfeiçoar um código de representação, que normalmente fazia era (1928), apontava que desenvolvimento dos meios técnicos surgidos com a questioná-lo. Os dadaístas começaram a brincar com acaso e acidental; Revolução Industrial contribuiu enormemente para a gênese de novas formas seguiram-se OS tachistas e expressionistas abstratos com a técnica do da criação artística". 0 tecnicismo, considerado até então impedimento para dripping; em seguida, a cibernética introduziu a noção de "ruído", que foi a criação artística, transformava-se em uma das marcas da modernidade. rapidamente aproveitada por muitos artistas. No âmbito da fotografia temos a A Neue Sachlichkeit (nova objetividade), concretamente, nasceu como um escola generativa desenvolvida em Bielefeld a partir de 1967: quimigramas de movimento que propunha a mera descrição da realidade contra sentimen- Pierre Cordier mostram o conflito entre controle e imprevisibilidade, da mesma talismo da "arte burguesa". Segundo esses princípios, artista devia trabalhar forma que os luminogramas de Karl Martin Holzhäuser ou as Pinhole Structures para restituir de forma clara e precisa as coisas, as pessoas e a natureza. A um (estruturas estenopeicas) de Gottfried Jäger. 0 método não se apoiava em uma mundo novo singularizado pela assunção do progresso técnico e científico devia pré-visualização que antecipasse resultados, mas no trial and error, em corresponder uma arte igualmente tecnológica. 0 fotógrafo -e, por extensão, um processo de experimentações sucessivas, alterando as circunstâncias no aparecia necessariamente como o "artista" por momento, para selecionar finalmente resultados valiosos. Essas crenças comuns e clichês em torno do realismo e da perfeição Andreas Müller-Pohle escreveu em 1985: fotógrafo (e de fato qual- técnica continuam impondo entre OS leigos e entre os néscios modos como quer criador de imagens técnicas) transformou-se em mero usuário dos meios deve parecer uma fotografia. Todo afastamento é considerado um defeito. técnicos postos à sua disposição. Essa relação pode ser descrita como um pro- Não obstante, uso da câmera estenopeica teve precedentes e nem sempre cesso de mútuo feedback entre a fotográfica e fotógrafo: a câmera perseguiu "defeitos". 0 fotógrafo inglês George Davison, por exemplo, utilizou é programada para produzir OS tipos de imagens que correspondem a certas uma câmera sem lente para obter muitas de suas mais conhecidas obras, convenções gerais. Em outras palavras, estas constituem código. Posto que entre elas The onion field (0 campo de cebolas), datada de 1889-90 e que OS resultados errôneos (aqueles que se desviam do código) são quase sempre seria publicada em Camerawork em 1907. ocasionados por um uso errôneo do aparelho (desvio de seu programa), a margem74 0 BEIJO DE JUDAS A CIDADE FANTASMA 75 0 BEIJO DE JUDAS I A CIDADE FANTASMA de manipulação tem que ser reduzida ao máximo, por exemplo, substituída por um automatismo. Assim, aparelho 'perfeito' é aquele através do qual a decodi- ficação é absolutamente regulada por um programa automático e que, portanto, já não requer instruções de manuseio. (A extensão do manual de instruções é inversamente proporcional ao grau de automatismo do aparelho)". A obra de Martí Llorens, e por extensão a busca de alternativas ao re- gime fotográfico convencional, inscreve-se nesse marco de resposta ao aparelho "perfeito", destinado a gerar uma produção gráfica unidimensio- nal. Segundo Vilém Flusser, O fotógrafo confronta um grave dilema em um conflito simbólico: reconhecer-se funcionário do aparelho e submeter-se a suas rotinas ou rebelar-se e defender sua liberdade. Importa mais, portanto, gesto beligerante do repúdio, a dignidade contraposta ao programa, do que qualquer resultado, por mais plasticamente potente que pareça. Epílogo Llorens continuou insistindo nos temas da Vila Olímpica até a inau- guração desta em 1992. Das primeiras às últimas fotografias estenopeicas desse projeto pode-se apreciar uma evolução presumível e lógica. As ima- gens mais recentes parecem bem mais elaboradas e elegantes, mas talvez careçam do vigor das primeiras, produto de maior sentido experimentador e de um espanto ainda balbuciante. A profunda rudeza foi se convertendo em uma rudeza virtuosa, um preciosismo fruto do crescente domínio de um sistema nascido com vocação de imprevisibilidade. Além disso, durante a realização dessa série, as imagens foram adqui- rindo vida própria até impor uma nova aliança com as coisas. Martí Llorens chegou a se tornar familiar entre OS operários que realizavam as demolições: por expor cotidianamente sua estranha caixa preta, esta deixou de intrigar ou surpreender. A tal ponto que, antes de iniciarem uma nova demolição, Pierre Cordier, La suma, quimigrama 14/06/1991 operários avisavam fotógrafo e, inclusive, aguardavam que tripé e a câmera a partir do poema suma de Jorge Luis Borges fossem posicionados no local adequado. Chegaram até a derrubar paredes nos intervalos de tempo convenientes à exposição fotográfica. De mero espectador, fotógrafo passava a presidir a ação e a tornar-se diretor de cena. Culmina assim um ciclo trágico para uns, libertador para outros: a câmera impõe suas próprias regras à vida, fotógrafo nunca poderá ser um outsider.A tribo que nunca existiu VOL. AUGUST 1972 Da antropologia espúria GEOGRA PHIC Em 1966 um caçador nômade da tribo dos Manubo Blit chamado Dafal estava colocando armadilhas para cervos no coração da selva virgem que recobria as escarpadas montanhas de South Cotabato, ao sul de Mindanao, a ilha mais meridional do arquipélago das Filipinas. De repente, caçador avistou três indivíduos de uma tribo que desconhecia, quais fugiram assustados ao perceber sua presença. Correu atrás deles enquanto tentava aos gritos fazê-los entender que não deviam temer nada. Finalmente, os THE três homens se detiveram e balbuciaram algumas palavras em uma língua não muito diferente da dele. Dafal tinha descoberto OS tasaday, "homens da selva", nativos que viviam em um nível de desenvolvimento tão primitivo quanto 0 da Idade de Pedra. A notícia chegou logo aos ouvidos do antropólogo Manuel Elizalde Jr., que começou um trabalho de aproximação e observação discreta, até conse- guir localizar habitat dos tasaday. Tratava-se de uma pequena comunidade composta por pouco mais de 20 indivíduos que viviam no interior de grutas cercadas pela selva fechada e inacessível, com árvores de até 60 metros de altura. Totalmente endogâmicos, OS tasaday não tinham nenhum contato com OS povos vizinhos, embora sua origem provavelmente fosse resultado OFFICIAL OF THE NATIONAL GEOGRAPHIC SOCIETY de uma cisão dessas tribos circundantes ocorrida quatro ou cinco séculos antes. Os tasaday não conheciam OS metais, tampouco caçavam ou cultivavam a terra; sua dieta se limitava a raízes e frutos, rãs, caranguejos e apetitosas larvas gigantes que aninhavam dentro de troncos podres. Acendiam fogo Capa da National Geographic, agosto 1972 esfregando um galho dentro de uma madeira furada. Não produziam cerâmica nem qualquer tipo de artesanato; seus únicos utensílios eram confeccionados com bambu. Desconheciam sentido das palavras arma e guerra. Careciam de cantos e não praticavam nenhuma religião. Eram monógamos, embora só houvesse cinco mulheres na tribo, e, como única vestimenta, tapavam pudicamente a genitália com folhas de bananeira.79 BEIJO DE JUDAS A TRIBO QUE NUNCA EXISTIU 78 0 BEIJO DE JUDAS A TRIBO QUE NUNCA EXISTIU A primeira menção pública da existência dos tasaday apareceu no Daily Mirror em 8 de julho de 1971. No entanto, grande impacto se daria com a publicação de uma extensa reportagem na National Geographic de agosto de 1972; um pouco antes, em dezembro de 1971, grupo editorial dessa mesma revista já tinha produzido um documentário, que fora trans- mitido por televisão. A comoção que se produziu na comunidade científica foi imensa e meios de comunicação se encarregaram de contagiar entusiasmo ao grande público. Nesse caso, não se tratava de soldados japoneses, grandes mentecaptos ou grandes heróis, que, ignorando a rendição de seu país, passaram três décadas escondidos na selva e um belo dia, no limite de sua resistência ou por casualidade, abandonaram seu esconderijo, transformando-se em curiosidades midiáticas. A des- coberta dos tasaday era muito mais espetacular: era como se tivessem sido encontrados aborigenes equivalentes ao homem de Cromagnon. Os historiadores, antropólogos, sociólogos etc. esfregavam as mãos de satisfação: já não seria necessário interpretar e aventu- rar explicações especulativas sobre a vida de nossos ancestrais; bastava visitar tasaday, observar e eventualmente perguntar. Sob a ameaça de uma previsível avalanche de pesquisadores e com a missão de preservar aquela riqueza etnográfica vivente, criou-se Panamin, uma agência governamental dedicada ao amparo das minorias étnicas, cuja direção foi assumida por Elizalde. Além disso, presidente do país, Ferdinand Marcos, decretou uma área de cerca de 20 mil hecta- res como reserva protegida para uso exclusivo dos tasaday. acesso ao parque natural era absolutamente restrito e a entrada só era permitida em raras exceções a pequenos grupos de jornalistas e estudiosos, que tinham que ser transportados em helicópteros e desembarcados em mas plataformas construídas sobre as copas das árvores. Pouco a pouco, as redes de televisão e as revistas ilustradas foram difundindo imagens da idílica vida dos tasaday. mundo ocidental, em plena efervescência dos hippies e do alvorecer dos movimentos ecológicos, cristalizava nos John Launois, The miracle of fire. Da reportagem publicada na National Geographic em agosto 1972. tasaday a utopia do retorno à natureza e de harmonia com 0 meio ambiente que tanto tinham alardeado Ralph Waldo Emerson, Henry David Thoreau e Walt Whitman, dos quais a National Geographic se considerava herdeira espiritual. Nas sucessivas reportagens oferecidas pela publicação, vemos imagens repletas dessa exaltação romântica da natureza selvagem; a capa81 0 BEIJO DE JUDAS A TRIBO QUE NUNCA EXISTIU 80 BEIJO DE JUDAS A TRIBO QUE NUNCA do mês de agosto de 1972 mostrava um rapaz que subia por um cipó como Teorema do pato um macaco: uma imagem genuína de 0 livro da selva, jovem Mowgli em uma demonstração de destreza... A chave de toda essa farsa não estava em alguns bons atores. Na verdade, Os tasaday se transformaram em uma atração em escala planetária, nem sequer eram "atores", mas indígenas de uma tribo próxima que tinham e as peregrinações às suas grutas começaram a incluir pessoas famosas trocado sua vestimenta habitual por uma convincente "tanga" de folhas. atiçadas pela curiosidade, como a atriz Gina Lollobrigida. Contudo, cedo 0 êxito se apoiava na imagem. As fotografias e filmagens permitiam difundir as ou tarde, todas as atrações perdem sua atualidade e, ao longo dos anos, excelências dos tasaday como compensação à impossibilidade da experiência as pessoas também foram se esquecendo da existência daqueles homens direta, mas faziam isso facilitando um controle absoluto da informação e, das cavernas. A perda de vigência do assunto, assim como as tensões sobretudo, dotando-a de toda credibilidade. Talvez essa seja a principal qua- políticas que país vivia -em fevereiro de 1986, Cory Aquino, viúva do lidade da imagem tecnológica na ordem da epistemologia: impor um sentido. assassinado democrata Ninoy Aquino, tomava O poder, e Marcos se Quando a imagem tem uma origem tecnológica, como a fotografia e cinema, via forçado ao fizeram com que Panamin baixasse a guarda. tende a vencer muitos preconceitos e muita reticência por parte do espectador Assim, em março de 1986, jornalista filipino Joey Lozano e antropólogo em geral e do espectador desconfiado em particular. A tecnologia passa uma Dr. Oswald Iten conseguiram penetrar na reserva sem a permissão garantia de objetividade. de praxe. E 0 que encontraram? Depararam-se com OS membros da tribo Como exemplo do pragmatismo empírico dos norte-americanos, há vivendo tranquilamente em uma casa afastada apenas um quilômetro uma máxima que foi muito celebrada e que tende a emudecer as vozes dis- das grutas, vestindo camisas e calças convencionais. Sorrio maliciosa- cordantes dos que procuram pelo em Diz seguinte: se nos deparamos mente pensando que teria sido fantástico "pescá-los" in fraganti bebendo com um animal que parece um pato, que tem penas como um pato, que nada Coca-cola e ouvindo último hit de Michael Jackson. Recuperados da como um pato e faz "quac-quac" como um páto, então mais provável é que surpresa da visita ilegal e imprevista, falsos reconheceram estejamos diante de um pato. Esse princípio legitimador da evidência nas que tudo tinha sido uma montagem e que fora Elizalde quem OS obrigara aparências fundamenta boa parte da prática da vida cotidiana e, de fato, a fotografia tende a ratificá-lo generosamente. Contudo, se conviermos que é Que razões impulsionaram essa extraordinária impostura? um princípio que estatisticamente funciona e justamente por isso contribui Provavelmente se tratava de uma operação de propaganda dirigida à para criar uma rotina de leitura da realidade, ou, pelo menos, um espírito opinião pública internacional. Em um momento de repressão à liber- ingênuo e despreparado, também concordaremos que mais interessante dade e de perseguição à oposição democrática, Marcos se deu conta do são as exceções, ou seja, casos em que as expectativas apoiadas nas impacto positivo que significaria desviar a atenção para a salvaguarda aparências foram frustradas. Por exemplo, falamos de Jacques Vaucanson, de uma minoria étnica em perigo de extinção. Não apenas constituía um dos mais famosos construtores de autômatos, que criou engenhos mecâ- uma inteligente cortina de fumaça atrás da qual se escondia a face nicos autônomos que serviam como criados, punham a mesa e serviam suja da tirania, como também, invertendo OS termos, regime passava manjares em bandejas e as bebidas em delicados cristais aos convidados. Em a se apresentar como 0 grande protetor dos direitos das minorias. Dessa 1738, Vaucanson exibiu todos os seus autômatos em um grande ato público; forma, os estrategistas do marketing presidencial lançavam uma mensa- entre todos se sobressaiu Canard, um pato que imitava a vida orgânica, os gem paternalista à população do interior: se tamanha era a preocupação batimentos do coração e os movimentos das asas. As crônicas explicam que por duas dúzias de perdidos na selva, que não seria feito pelos efeito ilusório era tão grande que a certa distância 0 público, resistente a cidadãos que pagam impostos e graças aos quais se mantém tão esplen- aceitar que estava diante da presença de um simulacro de pato, tinha que dorosamente a classe dirigente no poder? se beliscar para certificar-se de estar bem acordado.82 BEIJO DE JUDAS A TRIBO QUE NUNCA EXISTIU 83 0 BEIJO DE JUDAS A TRIBO QUE NUNCA EXISTIU Obviamente, 0 episódio dos tasaday deve ser entendido como um caso "documentais" e as práticas "artísticas", termos extremamente equívocos que de flagrante manipulação. Mas que significa exatamente "manipular", além no fundo dirimiam estritas questões de estilo. do sentido etimológico de "operar com as mãos"? 0 dicionário dá diversas Cabe acrescentar que, embora essas oposições convieram em algum acepções e a que nos interessa aparece somente na última posição: "Obrar momento por seu caráter clarificador e pedagógico, são conceitos cuja sobre alguém ou alguma coisa com manejos fraudulentos, sub-reptícios ambiguidade impossibilita uma classificação rigorosa. A "fotografia direta" etc." Essa acepção do termo adquiriu vigência a partir dos anos 1960, com a se fundamenta em um modelo de imagem fotográfica que se apoia no cum- irrupção dos movimentos estudantis e de resposta ao poder. Tanto OS velhos primento de um código semiótico realista. Seus limites são imprecisos e nos marxistas quanto da nova esquerda, assim como OS filósofos e OS levam a um território totalmente vago. De acordo com essa interpretação, a estudiosos da comunicação de massas, desenvolveram um discurso crítico essencialidade da fotografia dependeria de critérios ideológicos e teorias que continha um novo repertório de conceitos fundamentais e de manipu- de representação, portanto, contingentes e em constante questionamento. lação ocupava um lugar privilegiado. Mas é evidente que nos movemos no Do à câmera digital, meio fotográfico evoluiu de forma con- campo da ética, da avaliação de propósitos que consideramos tundente. No entanto, além da gênese tecnológica de um produto ao qual A ação de manipular carrega conotações pejorativas: consistiria em atuar continuamos chamando "fotográfico", também mudaram as funções sociais, em benefício próprio e em prejuízo de outros e, além disso, em fazê-lo com inclinando-se a definição para um ou outro lugar. Os fotogramas abstratos deliberação e traição. de László Moholy-Nagy se encaixavam quando foram realizados no âmbito da "fotografia manipulada"; hoje, ao contrário, nos parecem paradigma da "fotografia direta", a quintessência da criação fotográfica mais pura: só A manipulação como estilo um objeto, luz e papel fotográfico, nada no meio, nada que se interponha "manipuladoramente". Por outro lado, a fotografia manipulada se converte Mais além do parâmetro de sanção moral, ao longo da história da fotografia em "manipulada" depois de quantas "manipulações"? a ideia de manipulação foi utilizada de uma maneira mais relacionada com a estética. Frequentemente, a crítica especializada contrapôs as categorias de "fotografia direta" versus "fotografia manipulada". Na verdade se referia a A manipulação como criação programas operativos que davam respostas práticas às duas doutrinas da antiga divergência histórica purismo/pictorialismo. A "fotografia direta" impli- Em um dos capítulos do livro Foto-Diseño, escrito em coautoria com Joan cava a aceitação de regras de jogo dentro dos limites do que era considerada Costa, nos ocupamos de indexar as opções que repertório da criação em a técnica fotográfica ortodoxa, conjunto de procedimentos conceituados fotografia oferece. A hipótese propunha que ato de criação de uma imagem como genuinamente fotográficos. Por exemplo, sair à rua, encontrar um tema fosse entendido como uma sequência de decisões, afetando a configuração interessante, enquadrar e disparar. Implicava, portanto, por um lado, a espon- do resultado gráfico final (designação do tema, iluminação, objetiva, filtro, taneidade e a imprevisibilidade da ação e, por outro, respeito à visão óptico- enfoque, diafragma, obturação...). 0 esquema procedia de um texto clás- mecânica do meio. Por outro lado, a "fotografia manipulada" supunha a inclusão sico, publicado em 1965, Sobre as possibilidades da criação fotográfica, do de efeitos plásticos praticados por outras disciplinas (o desenho, a pintura, teórico, fotógrafo e pedagogo alemão Otto Steinert. Nesse ensaio, Steinert as técnicas de gravação etc.) e legitimava qualquer recurso que fotógrafo propõe designar como "elementos da criação fotográfica" recursos que quisesse introduzir. Onde uma privilegiava fortuito e a intuição a outra fazia fotógrafos têm ao alcance para a elaboração de imagens. No processo com planejamento e controle do resultado. As duas categorias represariam, de formação dessas imagens, "elementos de criação" condicionam-se e além disso, duas correntes fotográficas geralmente confrontadas, as práticas interagem constantemente. Em uma tentativa de sintetizar, sempre segundo84 0 BEIJO DE JUDAS A TRIBO QUE NUNCA 85 0 BEIJO DE JUDAS A TRIBO QUE NUNCA EXISTIU Steinert, poderiam ser agrupados cerca de cinco grandes eixos: a escolha uma série de intervenções no negativo ou no positivo dirigidas a modificar do objeto (ou motivo) e ato de isolá-lo da natureza; a visão em perspectiva pequenos detalhes (traços cosméticos de um rosto, elementos inconvenientes fotográfica; a visão dentro da representação foto-óptica; a transposição na de uma paisagem etc.). Reenquadrar significa cortar ou delimitar espaço escala de tons fotográficos (e na escala de cores fotográficas); e isolamento visual que damos ao espectador. Segundo ponto de vista e a composição, da temporalidade devido à exposição fotográfica. podemos fazer com que um auditório pareça vazio ou cheio ou, dependendo No livro mencionado, tratávamos de detalhar de maneira bastante do ângulo em que nos situemos, podemos transmitir solidariedade com os exaustiva a distinção possível de cada uma dessas opções. Em seguida, ana- policiais ou com OS manifestantes. A tensão entre campo (o que vemos) e lisávamos tipo de escolha a fazer, frequentemente aberta a uma infinidade contracampo (o que nos foi vetado) é uma forma primária, mas eficaz, de de respostas e com a necessidade de combinar entre elas a totalidade das controlar a informação. Por seu lado, a fotomontagem constituiu uma das opções. Em consequência, a combinatória resulta realmente infinita. Realizar práticas inerentes às vanguardas históricas, embora, a rigor, caiba atribuir sua uma fotografia requer adotar todas essas decisões e dotá-las de um con- descoberta e implantação estética à fotografia artística vitoriana. Segundo a teúdo expressivo, ou seja, construir uma retórica. Mas, no limite, a escolha pauta utilizada, a fotomontagem pode ser de muitos tipos: sobreimpressões, de uma entre as diversas possibilidades representa uma pequena dose de sanduíche de negativos, collage etc., até chegar à incorporação da tecnologia "manipulação": enquadrar é uma manipulação, enfocar é uma manipulação, digital, que não inventa nada, mas que torna tudo mais fácil e mais rápido. selecionar momento do disparo é uma manipulação... A soma de todos Conceitualmente, há duas grandes linhas: a fotomontagem narrativa e a esses passos se concretiza na imagem resultante, uma "manipulação" sem simbólica. A narrativa explica uma história, como as composições alegóricas paliativos. Criar equivale a manipular e 0 próprio termo "fotografia manipu- de Henry Peach Robinson ou Oscar Gustave Rejlander; a simbólica contrapõe lada" constitui uma flagrante tautologia. A noção de "manipulação" ficava dialeticamente enunciados icônicos com forte carga significativa, como os assim reabilitada, desprovida de intenção perversa, passava a adotar um de John Heartfield ou Josep Renau. tom ostensivamente neutro. Definitivamente, a manipulação se apresentava Conviria fazer um adendo para deixar claro que a fotomontagem não como uma condição sine qua non da criação. é necessariamente uma ferramenta de tergiversação como frequentemente se crê. Manuel Sendón, conhecedor da história da fotografia galega, cita caso dos retratos de grupos familiares tradicionalmente colocados em um lugar de Genealogia da manipulação destaque, como a cornija da lareira. Como na Galícia muitos parentes tinham emigrado e era impossível reunir todos diante da câmera, costumava-se Até agora me referi exclusivamente à fotografia como imagem autônoma, recorrer à fotomontagem. 0 fotógrafo fazia retrato coletivo do conjunto como unidade expressiva. Uma unidade que pode se encadear a outras dos membros da família disponíveis e OS demais enviavam separadamente para articular estruturas significativas mais complexas. Seria conveniente seus, que eram integrados à composição do grupo. A imagem já tinha observar 0 fato fotográfico de uma perspectiva mais ampla, que abranja todo sido concebida deixando OS espaços vazios ad hoc. A fotografia resultante processo de comunicação no qual a fotografia intervém. Tentemos aqui (fotomontagem ou não, que importava?) reafirmava laços e a unidade elucidar tipos de ações manipuladoras mais gerais. simbólica da familia, eludindo a pequena vicissitude de que alguns vivessem Em primeiro lugar, temos a própria manipulação da mensagem, ou em Lugo e outros em Buenos Aires ou Caracas. Constituíam uma família seja, do suporte físico da imagem fotográfica, sobre a qual já falamos. Em como Deus manda e ali estava retrato de todos juntos como uma orgu- todo caso, quando entendemos a manipulação no sentido de tentar variar 0 lhosa certificação de existência e como um legado para descendentes. conteúdo original da imagem, procedimentos clássicos por antonomásia Parodiando Jorge Luis Borges no conto Emma Zunz, a situação era falsa, mas são retoque, 0 reenquadramento e a fotomontagem. 0 retoque compreende se impunha facilmente porque substancialmente era verdadeira: autênticos87 0 BEIJO DE JUDAS A TRIBO QUE NUNCA EXISTIU 86 0 BEIJO DE JUDAS A TRIBO QUE NUNCA experimento: publicaram no jornal Libération duas fotografias quase idênticas, eram protagonistas, autêntica era a família, autênticos laços entre uns uma ao lado da outra. Uma das imagens pertencia a uma reportagem sobre e outros; da fotografia apenas eram falsas as circunstâncias. a batalha de Verdun durante a Primeira Guerra Mundial e a outra realmente segundo tipo de ação corresponde à manipulação do objeto. tinha sido tirada no transcurso da guerra entre dois países islâmicos. Representa um modus operandi mais sutil, que transcende a simples bri- As trincheiras, aspecto dos pobres soldados, desalinhados e barbados, colagem da fotomontagem. Aqui pode se tratar da construção de profundamente esgotados, a estrutura icônica das duas imagens era quase ou seja, de simulacros que suplantam outros objetos (como dublês cine- idêntica, ambas respondiam fidedignamente às expectativas dos leitores, matográficos, que são a substituição de uma substituição), ou de cenas que não perceberam nenhuma anomalia. Não era necessário, portanto, enviar mais sofisticadas, como as "reconstruções" que fazem muitos programas repórteres; bastava mandar alguém desempoeirar OS arquivos. Não precisa- televisivos e têm sido objeto de fortes polêmicas. Em italiano se diria: "Se mos de fotojornalismo de atualidade; bastam estereótipos gráficos que non è vero, è ben trovato". 0 cinema e a fotografia foram que verdadeira- respondam a um de modelos de notícias. mente fertilizaram campo. Maquetes de paisagens, de cidades, de naves espaciais ou do que quer que seja economizam muitas horas de trucagem de laboratório e permitem obter maior qualidade gráfica. Em minha série As ciências da falsificação Herbarium (1982-85), apresentei uma coleção de pseudoplantas, espécies botânicas inexistentes, fruto da imaginação e não da biologia. Os híbridos Gostaria de ilustrar também esse terceiro tipo de manipulação, relativa expostos não eram a consequência de uma manipulação na transmissão da ao contexto das imagens, com um projeto pessoal que se inscreve no que informação genética, e sim da informação fotográfica: OS elementos frente à poderíamos denominar estratégias artísticas de contrainformação. Como objetiva eram pequenas esculturas efêmeras construídas à base de detritos indicava no início, minha obra gira em torno da representação da natureza, industriais; não havia nada de orgânico nelas e, apesar disso, esta teria sido da ciência, da veracidade e da ambiguidade. Reunindo esses ingredientes, a convicção dos leigos. parece lógico que trabalhos que realizo tenham suporte eminentemente 0 terceiro tipo de manipulação diz respeito ao contexto, à plataforma fotográfico: a câmera se impõe como um dispositivo gerador de evidências. institucional em que a imagem adquire seu sentido. Lembremos Marshall projeto em questão mantém certo paralelismo com caso tasaday e ironiza McLuhan: meio é a mensagem. Nesse caso, tratar-se-ia de incidir no a metodologia da antropologia; foi concebido e apresentado pela primeira vez contexto, à maneira dos ready-made dos dadaístas, para alterar a natureza em Rochester, em julho de 1993, no marco do festival Montage, dedicado às da mensagem. Os mass media oferecem uma infinidade de exemplos. Na artes e às novas tecnologias, com uma atenção especial às manifestações guerra do Golfo quase todas as cadeias de televisão mostraram as ima- que refletiam sobre as noções de conhecimento, memória e história. gens de uma ave, um corvo-marinho, com a plumagem coberta de petróleo. Durante últimos anos, a parte mais significativa de meu trabalho Saddam Hussein tinha mandado incendiar OS petroliferos do Kuwait consistiu em fabricar diferentes mostras que parodiam a retórica expositiva e essa imagem simbolizava a tragédia mais do que qualquer outra. Contudo, dos museus e instituições em torno de disciplinas como a botânica, aquele corvo-marinho tinha sido filmado por ocasião da catástrofe ecológica a zoologia, a história, a antropologia ou a astronomia. Fundamentalmente provocada pelo petroleiro Exxon Valdez nas costas do Alasca e não tinha se trata, por um lado, de falsificar "documentos" e, portanto, de incidir nos nenhuma relação com O conflito do Oriente Médio. Pouco importa, pois se processos culturais que ungem de verdade determinados objetos e nos ajustava às necessidades informativas e funcionava para lá de bem, se non è mecanismos legitimadores de que se utilizam (por exemplo, 0 referido ante- vero, è ben trovato. Outro caso: durante a guerra Irã-Iraque, conflito também riormente sobre a fotografia como prova supostamente objetiva); e, por outro caracterizado pela falta de imagens e pelo reaparecimento da censura militar, lado, incidir criticamente sobre a suposta autoridade institucional do museu, dois jornalistas franceses, Serge Daney e Christian Caujolle, realizaram um88 BEIJO DE JUDAS A TRIBO QUE NUNCA EXISTIU 89 0 BEIJO DE JUDAS A TRIBO QUE NUNCA EXISTIU que em sua condição de santuário do saber chega a se atribuir ministério do animal, diferentes painéis explicativos, um video e um expositor com exclusivo da verdade. amostras de artesanato retseh-cor. 0 vídeo ilustrava a busca do Dr. Ducroquet 0 episódio dos tasaday me deu muito que pensar. Era óbvio que se e mostrava, durante alguns breves instantes, cocatrix em ação, resolvido montou um grande circo, mas, não há na origem de toda ciência princípios com uma elementar animação digital que pretendia fazer uma homenagem (históricos, culturais, ideológicos etc.) que condicionam os resultados poste- a Georges Méliès. Os utensílios que enchiam expositor eram, na verdade, riores? A apresentação das premissas institucionais de qualquer disciplina pequenos objetos encontrados na rua, suvenires comprados nas próprias como absolutas e imutáveis não constitui também uma fraude? A antropo- lojas dos museus locais ou artigos diversos obtidos nas feiras de antigui- logia, por exemplo, não é mais do que a busca do outro para encontrar-se dades e lojas de segunda mão dos subúrbios de Rochester. a si mesmo; ou estudo de povos "selvagens" para poder afirmar nossa A instalação foi apresentada no amplo espaço interno de um grande própria civilização. Com algumas dessas ideias rondando na cabeça, quis centro comercial, que, paradoxalmente, estava presidido por um totem preparar em Rochester um projeto que envolvesse diferentes aspectos monumental (encomendado pela direção do centro a um artista nativo para históricos da região e das crenças de seus antigos habitantes. Para isso, determinada comemoração). Como apropriação adicional do entorno, um inventei seguinte fio argumental: OS retseh-cor (que equivale a Rochester cartaz indicava: "devido à nossa limitação de espaço, totem retseh-cor lido ao contrário) eram um povo instalado ao sul do Grande Lago até que, foi colocado no outro lado da sala". Também havia perto uma loja de quin- em meados do século XVII, desapareceu aniquilado nas guerras contra as quilharias kitsch e falso artesanato e, também nesse caso, outro cartaz tribos vizinhas e pelos exércitos coloniais. Os retseh-cor desenvolveram um indicava: "Não deixe de visitar a loja do RIPA situada..." refinado nivel de civilização como demonstram as pinturas e petróglifos Para dar mais verossimilhança à montagem, meu nome não aparecia encontrados nas escavações de Smashed Toe Creek. De sua rica mitologia em nenhum lugar como autor da instalação. Aparentemente, organizador se destaca a figura de Frishkin-Gargamel-Cor, um estranho monstro que da "mostra" era próprio RIPA, além disso foi colocada uma placa com a lista vagava pelas áreas pantanosas. No entanto, as pesquisas posteriores de um de patronos e mantenedores, tal como costumam fazer essas instituições, veterinário francês, 0 Dr. Gaston Ducroquet, confirmaram que, efetivamente, bem como uma lista de agradecimentos a pessoas e entidades colabora- existia um animal híbrido, chamado popularmente cocatrix (ou Porcatrix doras (esse era único lugar, ao lado de alguns nomes inventados, onde Autosite em sua denominação científica), que correspondia com exatidão aparecia meu nome, assim como OS das pessoas que realmente tinham me à morfologia descrita pelos retseh-cor. Com OS materials que ilustravam dado algum tipo de apoio). essa história, 0 RIPA (Rochester Institute of Prospective Anthropology) Para fortalecer convencimento geral sobre a autoria do RIPA, também assumia a autoria de uma exposição publiquei um folheto sobre OS retseh-cor, que era distribuído gratuitamente monográfica sobre tema. como programa da exposição e que, de fato, constituía um de seus elementos Essa exposição, portanto, não aparecia como uma iniciativa artís- primordiais. Meus primeiros passos em Rochester se destinaram justamente tica, mas como uma simples mostra de divulgação como tantas a visitar vários museus locais, observando com atenção suas publicações outras que visitante podia encontrar na cidade. Mas no fundo pretendia-se e guardando exemplos do estilo tanto de seu design gráfico quanto da confrontar espectador com seu próprio nível de credibilidade. A mostra redação dos enunciados. 0 folheto do RIPA tinha, assim, mesmo formato, incluía fotografias das escavações arqueológicas do lugar onde na época qualidade de impressão, estrutura gráfica etc. que material similar editado estiveram assentados retseh-cor, fotografias de restos pictóricos e pelos outros museus. Inclusive, seguindo essa imitação, incorporava um escultóricos, desenhos de artistas retseh-cor anônimos sobre couro ou cupom para permitir aos interessados se tornarem sócios e desfrutar de cascas de árvores, cartas manuscritas e desenhos de antigos exploradores, grandes vantagens (que alguns inocentes visitantes preencheram e me fotografias e radiografias do cocatrix, uma trilha sonora com OS bramidos enviaram).90 I 0 BEIJO DE JUDAS A TRIBO QUE NUNCA EXISTIU 91 I BEIJO DE JUDAS I A TRIBO QUE NUNCA Joan Fontcuberta, fotoinstalação Retseh-cor, Joan Fontcuberta, fotoinstalação Retseh-cor, Rochester, 1993 Rochester, 199392 BEIJO DE JUDAS A TRIBO QUE NUNCA 93 0 BEIJO DE JUDAS A QUE NUNCA EXISTIU A linguagem, tanto dos painéis de texto pendurados na instalação Evidencia também que no jogo da informação há estelionatários frente a um quanto do folheto e do catálogo geral, mereceu muita atenção, não apenas público crédulo. Inclusive, muitas vezes estelionatários nem são cons- na imitação do estilo institucional -com suas frases clichês e seu tom cientes de sê-lo; frequentemente se extorque com a melhor boa vontade em como também na ambiguidade deliberada em relação à his- diversos âmbitos pelos quais transcorre nossa vida: na família, na escola, na tória dos retseh-cor. Em nenhum lugar se mencionava Rochester, nem se igreja, no trabalho, no sindicato, na mídia... Porque extorquir significa decidir fazia referência a uma localização concreta; todos OS nomes próprios dos por outros, esconder a diversidade de opções de que se dispõe. "Governar personagens e dos topônimos eram inventados, mas sempre guardando significa fazer acreditar", escreve Régis Debray. Fazer acreditar consiste, certa similitude fonética com as denominações originais. Por outro lado, a portanto, em controlar mecanismos de manipulação (de criação). A cons- narração se aproveitava às vezes da estrutura argumental de algumas len- ciência adulta, madura e democrática deveria ser capaz de corresponder das verdadeiras, embora nunca se denominava retseh-cor de com mesmo nível de dialética. "nativos" ou outros termos convencionados e com fortes conotações políticas, como Native-American ou First Nations. Não me guiava tanto afã de fugir da carga ideológica inerente a esses termos linguísticos e aparentar um respeito "politicamente correto" para com uma minoria (com a qual, não é preciso dizer, sentia-me profundamente respeitoso), mas, sobretudo, propiciar que público projetasse sua bagagem cultural, seus próprios preconceitos em sua própria memória coletiva sobre uma tela que era um texto do qual emergiam estímulos fundamentais: pistas falsas. Definitivamente, todos OS elementos pretendiam confrontar espec- tador com suas rotinas e automatismos de interpretação da realidade e com pobre espírito crítico com que habitualmente têm lugar esses processos. 0 trabalho aspirava, em uma palavra, a instaurar a dúvida razoável. Portanto, objeto da prática artística resultava duplo: oferecer certa visão pessoal do mundo, ou seja, comunicar uma experiência de conhecimento, mas também alertar sobre as armadilhas em que se pode incorrer na aquisição e transmissão desse conhecimento. preciso que espectador chegue a compreender que fotografias, sons e textos são mensagens ambíguas, sentido final só depende da plataforma cultural, social, institucional ou política em que se encontram inseridos. Essa ambiguidade, essa indefinição do sentido, é justamente que possibilita jogo da manipulação. do espectador recria sempre a significação, mas esse pode ser orientado em qualquer direção. Por mais que nos pese, a objetividade não existe; mas é possível jogar 0 fato de uma grande parte do público que visitou a exposição dos retseh-cor ter deixado a sala confusa ou enganada não é alentador, mas jus- tifica esse tipo de ação artística, por mais testemunhal que possa parecer.Verdades, ficções e dúvidas razoáveis "A arte é uma mentira que nos permite dizer a verdade". PICASSO fantasma da verdade Em 26 de abril de 1937, Guernica era arrasada por um violento ataque aéreo nazista. A ação não tinha nenhuma importância estratégica para desen- volvimento da guerra: tratava-se de pura ostentação do poder destruidor do aparelho militar fascista contra uma população indefesa. Pouco depois, em 18 de julho, no primeiro aniversário do golpe que dera à Guerra Civil Espanhola, general Francisco Franco concedia uma entrevista ao jornal ABC de Sevilha. Ao finalizar, general disse ao jornalista: "Vou the mostrar algumas fotografias de jornalista as descreve como "imagens positivos sobre papel acetinado que reproduzem as de uma cidade totalmente destruída pela metralha e pela dinamite: casas derrubadas, avenidas inteiras destruídas, montes disformes de ferro, pedras e madeira". "É meu general", exclama entrevistador. "Horrível, sim -responde Às vezes, as necessidades de uma guerra ou de uma repressão podem conduzir a tais horrores. Essa consideração é uma das razões que me fizeram não utilizar essas fotos que me enviaram há alguns dias; porque Josep Renau, Peace is with them, 1956 veja só: não são de Em seguida, mostra as legendas das ima- gens que Franco tem na mão. Efetivamente, não correspondem a Guernica, mas a outra cidade situada a milhares de quilômetros da Espanha. Franco não acrescenta nenhum comentário: a demonstração terminou. 0 jornalista termina a entrevista aventurando: "como ficariam bem essas maravilhosas fotografias, por exemplo, na primeira página do Daily Express".96 BEIJO DE JUDAS VERDADES, FICÇÕES E DÚVIDAS RAZOÁVEIS 97 0 BEIJO DE JUDAS VERDADES, FICÇÕES E DÚVIDAS RAZOÁVEIS É fácil imaginar a expressão de perplexidade do jornalista e 0 sorriso fotografias -verdadeiras e ao mesmo tempo? Em um "documento", cínico do general. 0 mito da objetividade era conveniente e a fotografia importa propósito que 0 originou ou efeito exercido? Importa seu status não só permitiu 0 engano como também 0 facilitou. Franco não pretendia estético como evidência ou a função social que se atribui a ele? Erigido em contrapor a barbárie dos "outros" para justificar sua própria barbárie. Sua monumento contra esquecimento, Guernica resiste a ser apenas uma pintura. estratégia não se apoiava na demonstração (com provas, com fotografias) A história, dizia Michel Foucault, transforma monumento em documento; de que todos lados cometem atrocidades e que, portanto, suas próprias mas nem sempre é verdade: frequentemente monumento e documento se ações eram justificadas. Sua ação consistia justamente no contrário e, com situam em uma via de mão dupla. isso, elaborava uma particular contribuição à teoria fotográfica, em negar a possibilidade do documento: tudo é propaganda. A função das fotografias não é corroborar nossa verdade ou assentar nosso discurso, mas exclusi- Uma nova consciência documental vamente questionar as hipóteses em que outros possam fundamentar sua verdade. Aquelas magníficas fotografias em papel acetinado tão elogia- Essas questões em torno da ontologia do documento são precisamente das pelo jornalista diziam pouco sobre a situação original a que aludiam; as que suscitam certas práticas fotográficas que incorporam recursos carentes de uma ancoragem informativa mais precisa do que elas mesmas da tecnologia digital em sua metodologia de trabalho. Observemos a obra eram incapazes de gerar, delatavam dramaticamente a promiscuidade de Pedro Meyer intitulada Verdades y ficciones. No aspecto temático, de seus significados. A fotografia se limita a descrever envoltório e sua essa série de imagens mostra a contraposição de duas culturas, suas função é, portanto, a forma. Seduz-nos pela proximidade do real, infunde- contradições, conflito insolúvel entre Norte e Sul: por um lado, nos a sensação de colocar a verdade ao nosso alcance, mas acaba por nos Estados Unidos percebidos como paradigma da abundância e do bem- frustrar como se recebêssemos um balde de água fria... estar material; por outro, México, através do povo mixteco do estado de A sublevação franquista tinha surpreendido Picasso em uma fase Oaxaca, com suas carências não supridas por sua colorida espiritualidade de aproximação ao surrealismo. Com frequentes conteúdos simbólicos e suas exuberâncias ancestrais. tirados da mitologia mediterrânea, sua produção durante essa fase se No entanto, mais notável é que esse trabalho aponta alguns debatia entre sonho e a realidade. No entanto, a tragédia de Guernica dos sintomas que indicam uma nova consciência do documental. Uma impactou tão profundamente que se transformou no detonante moral que consciência que, apesar de se proclamar raivosamente documental, é haveria de the prover tema para a obra que muitos consideram a capaz, não obstante, de livrar-se da normativa deontológica e do modus pintura mais importante do século XX: mural para O pavilhão da República operandi que vieram definindo sucessivos modelos documentalistas. Espanhola na Exposição Internacional de Paris de 1937. Poucos dias depois 0 uso da tecnologia digital e suas extensas possibilidades de alterar a ima- do bombardeio, em de maio, Picasso começara a traçar OS primeiros gem (modificando a cor, acentuando contraste ou a textura, integrando esboços. A expressividade e a dramaticidade fariam dessa imagem fragmentos de diferentes procedências) escandalizarão fundamenta- símbolo da luta fratricida de um povo e universalizariam sofrimento da listas do documentalismo tradicional. Diante da trajetória de Meyer cabe pequena cidade mártir. certamente perguntar: por que um autor que professou durante mais de Picasso, não obstante, não foi testemunha presencial do 20 anos culto mais estrito à fotografia direta se converte de repente à Tomou conhecimento pela imprensa? Seus amigos the contaram? Recebeu religião oposta? Na história das ideias -sejam religiosas, ou uma informação veraz e imparcial? Talvez essas questões sejam agora deta- esse tipo de fenômeno não é estranho e costuma marcar um thes insignificantes. Por acaso quadro de Picasso não foi mais eficiente movimento Em geral, protagonistas da crise se defendem para divulgar e fixar na história holocausto de Guernica do que todas as apresentando-se como verdadeiros herdeiros da verdade e do dogma,98 0 BEIJO DE JUDAS VERDADES, E DÚVIDAS RAZOÁVEIS 99 0 BEIJO DE JUDAS VERDADES, FICÇÕES E DÚVIDAS RAZOÁVEIS seja este apoiado na fé ou na Eles permanecem fiéis às origens; é o mundo exterior que muda e os outros, apóstatas. A essência da doutrina permanece inalterável; simplesmente é preciso aplicar essa doutrina de um modo acorde às novas A fotografia se encontra imersa em sua própria revolução e seus artifices respondem de modo semelhante e previsível. Meyer afirma que continua se considerando um fotógrafo documental para quem a interpreta- ção da realidade continua representando objetivo prioritário. Só evoluíram suas ferramentas de trabalho, enriquecendo, em consequência, seu voca- bulário. Meyer insiste que suas intenções expressivas não mudaram e são coerentes com seus propósitos anteriores; simplesmente pode ter variado a estratégia. Talvez, no fundo, o que Meyer quer é escapar da contingência FREE LUXURY SERVICE inerente à fotografia que leva, como no caso das falsas imagens de Guernica, FROM YOUR MOTEL. à ambiguidade, quando não à tergiversação mais escandalosa. A conclusão é que, como na obra-prima de Picasso, para impedir equívoco e deixar um rastro indelével na memória dos homens, são lícitos todos OS recursos que uma tecnologia atual põe ao nosso alcance. Se que nos interessa é o conteúdo, não temos nada que condenar nesse Outra coisa seria questionar se a fotografia digital é ainda "fotografia". Se a fotografia em movimento é chamada de "cinema", a fotografia cuja estrutura formativa mais foi substituída por um suporte digital bem poderia ser chamada de outro modo, embora, por enquanto, ainda não nos tenha ocorrido termo apropriado. Poderíamos pensar que essa questão remete à velha alternativa entre meios e fins, mas a verdade é que vai muito além, chegando mesmo a afetar OS alicerces ontológicos. 0 que no fundo estamos de fato debatendo é como definir a natureza de um determinado meio, a que critérios se ater. Tradicionalmente nos apoiamos em seu processo tecnológico, um pacote de procedimentos que conduzem a um determinado estatuto icônico. Mas a função também contribui para moldar essa natureza. A fotografia nasceu como consequência de uma Pedro Meyer, Trabajadores mexicanos emigrados, determinada cultura visual à qual ela mesma contribuiu para fortalecer e em uma autoestrada da California, 1986-90 impor. Afinal a história terminou por transformar essa cultura fotográfica em um marco no qual o meio fotográfico original ocupa apenas uma pequena parcela. Poderíamos convir, portanto, que todos os produtos dessa cultura fotográfica são "fotográficos", são facetas, às vezes complementares e às vezes contraditórias, daquilo que antes denominávamos tranquilamente