Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Editorial Gustavo Gili, SL Rosselló 87-89, 08029 Barcelona, Espanha. Tel. (+34) 93 322 81 61 Editora G. Gili, Ltda Av. José Maria de Faria, 470, Sala 103, Lapa de Baixo, CEP: 05038-190, São Paulo-SP, Brasil. Tel. (+55) (11) 3611-2443 O beijo de Judas FOTOGRAFIA E VERDADE Joan Fontcuberta GG® Esta obra foi publicada com uma subvenção da Direção Geral do Livro, Arquivos e Bibliotecas do Ministério de Cultura da Espanha. Título original: El beso de Judas. Fotografía y verdad Tradução: Maria Alzira Brum Lemos Edição: Flavio Coddou Design: Pau Aguilar Produção do ePub: booqlab.com Ilustração da capa: Joan Fontcuberta, Flor miguera, 1984, da série Herbarium Qualquer forma de reprodução, distribuição, comunicação pública ou transformação desta obra só pode ser realizada com a autorização expressa de seus titulares, salvo exceção prevista pela lei. Caso seja necessário reproduzir algum trecho desta obra, seja por meio de fotocópia, digitalização ou transcrição, entrar em contato com a Editorial Gustavo Gili. A Editorial Gustavo Gili não se pronuncia, expressa ou implicitamente, a respeito da exatidão das informações contidas neste livro e não assume qualquer responsabilidade legal em caso de erros ou omissões. © da tradução: Maria Alzira Brum Lemos © do texto: Joan Fontcuberta, 1997 © Editorial Gustavo Gili, SL, Barcelona, 2010 ISBN: 978-85-8452-016-9 (epub) Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Fontcuberta, Joan O beijo de Judas : fotografia e verdade / Joan Fontcuberta ; [tradução Maria Alzira Brum Lemos]. -- São Paulo : Gustavo Gili, 2014. Título original: El beso de Judas : fotografía y verdad. Bibliografia. ISBN 978-85-8452-016-9 1. Arte e fotografia 2. Fotografia 3. Fotografia artística I. Título. 14-12909 CDD-770.1 Índices para catálogo sistemático: A Vilém Flusser in memoriam Índice geral Introdução Pecados originais Elogio do vampiro Vidência e evidência Os peixes de Enoshima A cidade fantasma A tribo que nunca existiu Verdades, ficções e dúvidas razoáveis A escritura das aparências Referências bibliográficas Índice onomástico Crédito das imagens Enfermeira anônima, Judit en la incubadora, Barcelona, 7/03/1988 Introdução “A verdade existe. Só se inventa a mentira”. GEORGE BRAQUE, Pensées sur l’art “Creia somente nesta verdade: ‘Tudo é mentira’”. HUMORADAS, LXXXI Paul Valéry dizia que no início de toda teoria há sempre elementos autobiográficos. Confesso compartilhar desse sábio preceito; o que eu possa dizer sobre a fotografia, de qualquer época e de qualquer tendência, vem marcado por minha própria prática criativa. As ideias que exponho a seguir, portanto, constituem, mais que propostas teóricas, a expressão de poéticas pessoais, textos de artista, às vezes encaminhados a justificar a própria obra. Mas de um artista, acrescentaria, curioso por tudo e amante de uma reflexão não isenta de toques de ironia. Nós, os criadores, costumamos ser monotemáticos. Podemos disfarçar com envoltórios de distintas cores, mas no fundo não fazemos mais que voltar obsessivamente à mesma questão. Para mim essa questão gira em torno da ambiguidade intersticial entre a realidade e a ficção ou do debate sobre situações perceptivas especiais, como no caso do trompel’oeil, ou sobre novas categorias do pensamento e da sensibilidade, como o vrai-faux… Mas, acima de tudo, meu tema fundamental é o da verdade: adequatio intellectus et rei. A história da fotografia pode ser contemplada como um diálogo entre a vontade de nos aproximarmos do real e as dificuldades para fazê-lo. Por isso, apesar das aparências, o domínio da fotografia se situa mais propriamente no campo da ontologia que no da estética. Mesmo fotógrafos particularmente voltados para uma busca formal foram clarividentes a esse respeito. Assim, Alfred Stieglitz, ponte entre as práticas pictorialistas e documentais do século XIX e a modernidade do XX, declarou: “A beleza é minha paixão; a verdade, minha obsessão”. E, apenas alguns anos mais tarde, radicalizaria essa máxima afirmando que “a função da fotografia não consiste em oferecer prazer estético, mas em proporcionar verdades visuais sobre o mundo”. As décadas seguintes serviriam para averiguar como deveriam ser entendidas essas “verdades visuais”, se é que podiam sê-lo de alguma maneira. Vejamos um caso real como a própria vida. Minha filha Judit veio ao mundo bastante prematura, depois de uma gravidez problemática de pouco mais de seis meses. Seu peso só chegava a 1,2 quilos e suas expectativas de vida eram tão precárias que teve que permanecer durante três meses em uma incubadora. Além disso, quando nasceu, em março de 1988, tivemos a infelicidade de sofrer os rigores de um sistema hospitalar escandalosamente retrógrado em assuntos de maternidade. Os bebês prematuros ficavam concentrados em uma sala especial, a cujo interior os pais não tinham acesso. Éramos obrigados a observar nossos filhos de longe, através de vários painéis de vidro e de um labirinto de incubadoras e entre a agitação apressada de médicos e enfermeiras correndo um lado para o outro. Além disso, no momento do parto, Marta, minha mulher, estava sob os efeitos da anestesia e, portanto, ainda não tivera a oportunidade de conhecer o rosto da filha. Sua ansiedade era totalmente compreensível. Imaginei então que era o momento de tirar proveito de meu ofício. Dei minha câmera a uma enfermeira e pedi-lhe que se aproximasse de Judit para tirar vários retratos. Depois de instruí-la brevemente no manejo do foco e do fotômetro, a enfermeira imprimiu oito negativos. Corri para o meu laboratório, revelei o filme, fiz uma cópia em contato e voltei correndo para o hospital, onde Marta continuava na cama devido ao processo pós-operatório. Era a primeira vez que via seu bebê de perto e é fácil imaginar sua excitação. Ela estava contente, eu estava contente, todos nós estávamos contentes. Mais uma vez a fotografia tinha posto à prova sua função histórica de dar informação visual precisa e fidedigna, viva! Apesar de tudo, não conseguia evitar que uma desconfiança rondasse minha cabeça. O que teria acontecido se a enfermeira tivesse confundido a incubadora e, por engano, fotografado outro bebê? Provavelmente teríamos ficado igualmente satisfeitos. Havia tanta necessidade, tanta urgência, tantas emoções contidas, que qualquer reticência teria equivalido à impertinência de um desmancha-prazeres. No filme La vie est un long fleuve tranquille (A vida é um longo rio tranquilo, 1987), primeiro longa-metragem de Étienne Chatiliez, é contada uma história parecida: uma parteira, para se vingar de um médico por quem está apaixonada, troca dois recém-nascidos. Um dos bebês procede de uma família modesta e o outro, de uma família burguesa. Doze anos mais tarde, a trama é descoberta, provocando situações cômicas. Mas quando Judit nasceu eu não conhecia este argumento. No meu caso, as fotos mostravam indiscutivelmente um bebê no interior de uma incubadora, todo mundo o reconheceria como tal. Mas para nós o importante é que se tratava do nosso bebê, um ser sobre o qual estávamos ansiosos para derramar viscerais sentimentos paternais, mesmo sem termos visto seu rosto. Contudo, nada nas fotografias podia nos garantir o mais importante: que fosse o nosso. Nada na imagem garantia o que para nós era o mais vital. Para Roland Barthes “o punctum de uma fotografia é esta contingência que, nela, nos afeta (mas que também nos resulta tocante, fere)”. O punctum nasce de uma situação pessoal, é a projeção de uma série de valores que procedem de nós, que não estão originariamente contidos na imagem. O potencial expressivo de qualquer fotografia se estratificaem diferentes graus de pertinência informativa. É o salto arbitrário, aleatório, contingente, de um grau a outro que atribui o sentido e dá valor de mensagem à imagem. Grau A: é-um-bebê; grau B: é-nosso-bebê. Passar frivolamente de A para B implica um salto muito simples, mas que modifica substancialmente a vinculação da imagem com seu referente e, por conseguinte, seu valor de uso (lembremo-nos da máxima de Ludwig Wittgenstein: “o sentido é o uso”). E se trata apenas de um tipo de intervenção, entre muitos outros que, em conjunto, fazem cambalear a solidez do realismo fotográfico, mostrando a fragilidade da verdade e da verossimilhança. Ao longo da década de 1980 fomos afetados por novas atitudes e formas de pensamento. Nas artes visuais acentuou-se a problematização do real em uma dinâmica que nos arrasta efetivamente a uma profunda crise da verdade. É possível, como sustenta Jeffrey Deitch, que “o fim da modernidade seja também o fim da verdade”. O que ocorre na prática é que a verdade se tornou uma categoria pouco operativa; de alguma forma, só conseguimos mentir. O velho debate entre o verdadeiro e o falso foi substituído por outro: entre “mentir bem” e “mentir mal”. Joan Fontcuberta, El nacimiento de Venus, 1992. Fotograma de Judit sobre uma reprodução de Botticelli. Toda fotografia é uma ficção que se apresenta como verdadeira. Contra o que nos inculcaram, contra o que costumamos pensar, a fotografia mente sempre, mente por instinto, mente porque sua natureza não lhe permite fazer outra coisa. Contudo, o importante não é essa mentira inevitável, mas como o fotógrafo a utiliza, a que propósitos serve. O importante, em suma, é o controle exercido pelo fotógrafo para impor um sentido ético à sua mentira. O bom fotógrafo é o que mente bem a verdade. É uma proposição cínica? Talvez. Outra forma de apresentá-la consistiria em dizer que a humanidade se divide em céticos e fanáticos. Os fanáticos são os crentes. Fanatismo deriva do latim fanum, que significa templo, ou seja, o espaço para o culto, a fé e o dogma. Os céticos, por outro lado, são os que desconfiam criticamente. O objetivo destes escritos é ganhar adeptos para a causa dos céticos. E esse é um trabalho árduo, especialmente quando continuamos vivendo em um estado de confusão que requer a estabilidade que a crença proporciona. Ainda hoje, tanto no âmbito cotidiano quanto no contexto estrito da criação artística, a fotografia aparece como uma tecnologia a serviço da verdade. A câmera testemunha aquilo que aconteceu; o filme fotossensível está destinado a ser um suporte de evidências. No entanto, isso é só aparência; é uma convenção que, à força de ser aceita sem paliativos, acaba por se fixar em nossa consciência. A fotografia atua como o beijo de Judas: o falso afeto vendido por trinta moedas. Um gesto hipócrita e desleal que esconde uma terrível traição: a denúncia de quem justamente diz personificar a Verdade e a Vida. A veracidade da fotografia se impõe com ingenuidade semelhante. Contudo, por trás da beatífica sensação de certeza, camuflam-se mecanismos culturais e ideológicos que afetam nossas hipóteses sobre o real. O signo inocente encobre um artifício carregado de propósitos e de história. Como um lobo em pele de cordeiro, a autoridade do realismo fotográfico pretende trair igualmente nossa inteligência. Judas se enforca arrasado pelo remorso. A fotografia reagirá a tempo de escapar de seu suicídio anunciado? Joan Fontcuberta, Alegoría de la fotografía, 1994. Foto-objeto: pilha voltaica construída com uma placa de cobre e outra de zinco que reproduz a vista de Gras tirada por Niépce, a primeira imagem fotográfica conservada. A fotografia, obtida pela ação da luz, gera aqui a luz que justamente a faz visível. Pecados originais “Há religiões nas quais a representação do mundo é proibida (‘usurpação do poder de um Deus criador de todas as coisas’). Pensando bem, é muito possível que fotografar seja artimanha do diabo e cada disparo, um pecado”. GÉRARD CASTELLO LOPES, Perto de Vista, 1984 Toda mensagem tem uma tripla leitura: fala do objeto, fala do sujeito e nos fala do próprio meio. Para a fotografia, essas três facetas foram denominadas graficamente por Joan Costa como olho, objeto e objetiva. A existência desses três aspectos não implica necessariamente um equilíbrio entre eles, mas, como se de três coordenadas se tratasse, toda mensagem se posicionaria em um ponto determinado por proximidade ou afastamento dessas três referências. Seja porque sua própria natureza tecnológica impeliu a isso —como pensam alguns— ou simplesmente porque determinados usos históricos assim o propiciaram —como pensamos outros—, a fotografia viveu sob a tirania do tema: o objeto exerceu uma hegemonia quase absoluta. Tanto que critérios relativos ao tema não apenas determinaram o uso e a circulação dos diversos materiais fotográficos nos âmbitos mais cotidianos (por exemplo, em um álbum familiar) ou mais especializados (no banco de imagens de um arquivo ou agência fotográfica), bem como em proposições artísticas e críticas. Por esse motivo, não é estranho que um curador e teórico como John Szarkowski pense que “a história da fotografia é a história do fotografável” (leia-se: o desenvolvimento criativo da fotografia se apoia na busca incessante de novos motivos e as características desse mundo visual são as que determinarão a estética de sua representação fotográfica); ou que, mais recentemente, os responsáveis pelo projeto fotográfico da DATAR1, François Hers e Jean-François Chévrier, falassem indiscriminadamente que “a fotografia de reportagem morreu porque já não resta nada por fotografar” (leia-se: o predomínio do objeto gera uma fotografia de gênero de escasso valor criativo e intelectual porque só gira em torno do mesmo modelo estético). Sem entrar na pertinência desses rac iocínios, também é verdade que houve um esforço, que talvez tenha passado despercebido entre o público não especializado, por parte de artistas que utilizaram o meio fotográfico para enfocá-lo para questões de ordem poética ou metalinguística. Quando em literatura se fala da morte do autor como fórmula de renovação à qual se vê orientada a escritura, em fotografia poderíamos falar da morte do objeto. Tendências atuais como as de molde generativista (o dispositivo tecnológico como sistema configurador autossuficiente), pós-conceitual (o predomínio da ideia) e abstrato (o formalismo sobre a ocultação do sujeito) seriam prova disso. Em 1993 participei de uma exposição coletiva organizada em torno de um eixo temático: o telefone. Resulta incrível que com critérios tão peregrinos seja possível hoje articular uma exposição artística, e, mais ainda, uma coleção. A explicação é que a exposição era organizada pela Companhia Telefônica Nacional da Espanha e todas as peças foram adquiridas para os seus fundos de arte. Paisagens urbanas com cabines telefônicas em luzes crepusculares, estradas sem fim salpicadas de postes e fios, personagens públicos ocupadíssimos atrás de uma bateria de telefones em cima das mesas de seus escritórios, interiores domésticos com aparelhos telefônicos como totens em meio à decoração… Sem muito esforço, podemos lembrar de numerosas obras de autores conhecidos, onde o telefone aparece de uma forma ou de outra. De qualquer forma, essa iniciativa me fez lembrar uma anedota. No final de 1992, os meios de comunicação difundiram uma notícia curiosa e simpática: em Israel, uma empresa vinculada à companhia telefônica oferecia o singular serviço de comunicação com Deus. O processo consistia no seguinte: o crente podia telefonar para que transcrevessem suas mensagens ou enviardiretamente um fax com suas orações, que seriam depositadas diligentemente pelo pessoal da empresa nas frestas do muro das Lamentações, em Jerusalém, que, como se sabe, atua como antena para as comunicações com o Altíssimo. Pouco depois, minha própria experiência do lugar veio propiciada por essa notícia e a visita que realizei desencadearia as considerações que seguem. Durante a celebração judaica do Sukkot, eu me encontrava diante do muro das Lamentações como um mero turista. Ao ver minha câmera pendurada no pescoço, um guarda se apressou em avisar-me que não era permitido tirar fotografias. A verdade é que eu nem tinha cogitado tirá-las, pois não gosto de fazer concorrência aos colegas que ganham a vida comercializando postais de lugares pitorescos. No entanto, senti curiosidade diante de tal proibição. Digamos que coleciono motivos pelos quais se proíbe fotografar. Iniciei, então, uma conversa com o guarda e ele precisou que não era permitido fazer fotografias nem anotações. Cada vez mais intrigado com a consideração da fotografia como pecado, continuei questionando até compreender que a proibição não estava relacionada ao lugar, considerado santo, e sim à impossibilidade de realizar qualquer trabalho durante o transcurso da festividade religiosa. O aparecimento das três primeiras estrelas no céu do entardecer seria o sinal que poria formalmente fim à celebração e restabeleceria a normalidade: todos poderiam então voltar a utilizar câmeras e canetas, se assim desejassem. Por trás de uma regulamentação extremamente poética se camuflavam duas ideias muito interessantes para reflexão: a fotografia como “trabalho” e a fotografia como “pecado”. Não proscreviam a imagem por motivos sagrados do lugar nem por eventuais transtornos ocasionados aos fiéis concentrados na prece. Isso acontece em outros cultos religiosos e já não surpreende, excetuando talvez alguma curiosa singularidade. A Igreja Católica, por exemplo, não autoriza, provavelmente para evitar tentações sacrílegas, que fotografem livremente suas relíquias zelosamente preservadas aqui e ali: braços incorruptos de santos, lascas da cruz, plumas de asa de anjo etc.; e é uma pena: imagino o que alguém como Joel-Peter Witkin poderia fazer com elas. Naquela ocasião, a questão estava no fato de que o judaísmo ortodoxo proíbe a realização de qualquer trabalho durante as festas de guarda. E, ao que parece, fotografar e escrever implicam o uso de ferramentas e, portanto, são considerados trabalho. Posteriormente, alguns amigos israelenses enriqueceram meus conhecimentos com dados cada vez mais paradoxais. Por exemplo, durante as festividades religiosas é permitido utilizar um elevador para descer, mas não para subir. É curioso, pois é muito mais cansativo subir do que descer, mas a lei de Deus é a lei de Deus e ponto. Na realidade, o que acontece é que, para descer, simplesmente se considera que deixamos agir a lei da gravidade, isto é, uma força da natureza; por outro lado, para subir requerem-se um motor e o consumo de certa quantidade de energia. Embora da estrita perspectiva da mecânica essa consideração seja falsa, tem sua pequena dose de lógica. Joel-Peter Witkin, Cabeza de muerto, México, 1990 A fotografia foi entendida durante muito tempo como forma da natureza representar a si mesma. O fascínio que sua descoberta produziu apontava para essa ilusão de automatismo natural. Um slogan publicitário de material daguerreotípico rezava: “Deixe que a Natureza plasme o que a Natureza fez”. Essa declaração ontológica sobre a essência da imagem fotográfica pressupõe a ausência de intervenção e, portanto, a ausência de interpretação. Trata-se de copiar a natureza com a máxima precisão e fidelidade sem depender das habilidades de quem a realiza. A consequência aparente era a obtenção direta, sem paliativos, da verdade. Em 1853, Albert Bisbee escreveu em seu manual sobre a daguerreotipia: “Uma das principais vantagens do daguerreótipo é que atua com tamanha capacidade de certeza e magnitude que as faculdades humanas resultam, ao seu lado, absolutamente incompetentes… Daí que cenas do maior interesse possam ser transcritas e legadas à posteridade exatamente tal como são, e não como poderiam parecer segundo a imaginação do poeta ou do pintor… Os próprios objetos se delineiam e o resultado é verdade e exatidão”. “Os próprios objetos se delineiam”. A noção de objetividade em que se fundamentou a implantação social da fotografia se origina nessa crença, mais assentada do que supomos, de que “os próprios objetos se delineiam”. Não é preciso um operador, pois é “o lápis da natureza” que faz todo o trabalho para nós. A etapa seguinte na história da fotografia se iniciou quando certos críticos começaram a questionar esse princípio. Em 1861, Cornelius Jabez Hughes indagou: “até agora a fotografia se contentou representando a Verdade. Não pode ampliar seu horizonte? Não pode aspirar também plasmar a Beleza?” Responder essa questão requereria separar um enfoque popular e majoritário, estabelecido sobre a contingência do operador, de outro enfoque minoritário, que reclama a subjetividade, a “autoria” e, definitivamente, o “trabalho” do ato fotográfico. O primeiro enfoque guiou a produção e o consumo maciço de imagens fotográficas; o segundo ficou relegado aos círculos elitistas de connaisseurs. Mas eis então que, da doutrina infalível das Sagradas Escrituras, faz-se uma contribuição crucial à teoria fotográfica e se põe fim ao dilema: a fotografia certamente é um trabalho, portanto é pecado praticá-la durante os dias consagrados a Deus. E, por exclusão, devemos enterrar a falácia de que o procedimento fotográfico é “natural”, “automático”, “espontâneo”, carente de filtros culturais ou ideológicos. Talvez o que aconteça seja justamente o contrário e que detrás dessa suposta transparência se esconda o complexo dispositivo que inculque um determinado état d’esprit diante de uma imagem reconhecida como “fotográfica”. E, voltando à fotografia como transgressão da Lei, se as dificuldades linguísticas não tivessem impedido, adoraria ter refutado meu amável interlocutor, o guarda, diante do muro das Lamentações, sobre o caráter profano que ele atribuía, tão levianamente, à fotografia. Em outras latitudes e situações culturais, o ato fotográfico foi considerado uma manifestação da Luz, uma revelação do sobrenatural. A consequência de tudo isso poderia ser, por exemplo, Robert Leverant, autor de Zen in the Art of Photography (1969), que na máxima 11, das 162 que constituem seu breviário, diz que “a fotografia também é uma busca de Deus”. Certamente esse argumento teria causado pouco impacto nas férreas crenças de um fundamentalista. Mas a verdade é que, longe de ser uma simples boutade, ele regeu a alma dos seguidores de Minor White e da escola californiana que, durante as duas décadas seguintes à Segunda Guerra Mundial, conceberam a fotografia como uma expressão tão mística quanto podem ser as orações dos fiéis e os rituais que têm lugar ao pé dos supostos restos do templo de Salomão. Fotógrafos de renome e livres de qualquer suspeita de afinidades com gurus e seitas, como Henri Cartier-Bresson, interpretaram o ato fotográfico como um instante decisivo, sobrenatural, epifânico, de comunhão entre o mundo e o espírito. Mas Deus ou, ao menos, seus exegetas na terra não olharam sempre com bons olhos a fotografia. Algo de diabólico deve ter se infiltrado na alquimia da luz. Em Pequena História da Fotografia (1931), Walter Benjamin utilizou uma entrevista que saiu, aparentemente, no jornal Der Leipziger Stadtanzeiger em 1841 e que tratava das reticências com que setoresreacionários alemães poderiam ter acolhido o aparecimento de um invento maligno e, além disso, francês: “A vontade de fixar os reflexos evanescentes não apenas é impossível, como demonstraram as pesquisas alemãs realizadas rigorosamente, como o mero desejo de conseguir isto já é uma blasfêmia. O homem foi criado à imagem e semelhança de Deus e nenhuma máquina construída pelos homens poderá fixar esta imagem divina”. Cabe dizer que uma das coisas mais fantásticas dessa entrevista é que é falsa: esse jornal nunca existiu. Numerosos tratados de história da fotografia (como os de Helmut Gersheim e Gisèle Freund) reproduziram-na sem ter comprovado as fontes originais e, na ausência de verificação, o texto acabou ficando historicamente legitimado. Benjamin tirou essa entrevista da biografia que Karl Dauthendey fez de seu pai, o fotógrafo Max Dauthendey, e, portanto, era a entrevista de uma entrevista. Provavelmente Dauthendey filho a inventou para reforçar o tom hagiográfico de sua obra. O que não está claro é se Benjamin estava ou não consciente do engano; certamente sim, mas servia tão bem à sua argumentação que não renunciou a esta provocação aos leitores. O conteúdo dessa citação e a credibilidade que tacitamente lhe foi outorgada, por outro lado, coincidem com o horror à câmera e o repúdio generalizado a se deixar fotografar, tão habitual em povos primitivos (e não tão primitivos) conforme reconhecem os antropólogos. O medo de que a imagem nos roube a alma está enormemente estendido, inclusive além da superstição e da magia negra, e pode adotar múltiplas variáveis, das estatuetas de vodu aos espelhos como objetos maléficos. No Congo, por exemplo, algumas tribos de língua banto utilizam amuletos antropomórficos com um pequeno espelho na área do umbigo, cuja função consiste justamente em arrancar e aprisionar a alma do inimigo invocado. Contudo, a imagem de um espelho é fugaz e o reflexo não fica retido. A fotografia, ao contrário, “espelho com memória”, como foi chamado o daguerreótipo, imobiliza nossa imagem para sempre, com toda minúcia de detalhes e a verdade como pátina. Uma imobilização e um aprisionamento que nos aproximarão inelutavelmente à ideia da morte. Em outros casos, e não convém confundir os motivos, o que se condenava na fotografia não eram tanto seus hipotéticos poderes nigromânticos, mas seu caráter de carranca de proa de uma fragata irrefreável: a de uma civilização tecnologista que durante o século XIX tentaria se impor no mundo inteiro. John Stathatos conta que Tasunke Witco —traduzido como Cavalo Louco em nossos telefilmes— foi um chefe dos sioux oglala que sempre negou permissão para ser retratado, inclusive depois de sua rendição às tropas. Em uma época em que ainda não existiam as potentes teleobjetivas atuais, a ação de algum paparazzo precursor teria resultado suicida. Surpreendentemente, mesmo depois de seu assassinato pelo exército federal dos Estados Unidos, ninguém ousou fotografar seu cadáver, desprovendo a história de um retrato mortuário como o que fariam mais tarde de Che Guevara. O gesto de Cavalo Louco foi incomum e, na verdade, abundam retratos de outros chefes indígenas das pradarias, inclusive de Touro Sentado e Nuvem Vermelha. Mas Tasunke Witco “nunca se reuniu com o presidente; …nunca viajou de trem, nem dormiu em uma estalagem ou comeu em uma mesa; …nunca ostentou uma medalha, um chapéu ou qualquer outra coisa que os homens brancos pudessem ter-lhe devotado”. Tampouco nunca quis posar para a caixa de memória dos homens brancos. Muito provavelmente o repúdio à fotografia fosse também o repúdio a se inscrever em uma memória que não reconhecia como própria. O repúdio a se inscrever em uma memória beligerante. Para Tasunke Witco, a fotografia representava uma agressão. Frequentemente falou-se sobre o desconforto psicológico que provoca a presença de um fotógrafo, um outsider, um estranho, um intruso. Mas da agressão psicológica passa-se facilmente à agressão física. A proibição parece perfeitamente coerente quando se aduz a possibilidade de causar danos ou transtornos. Em alguns casos se trata do ruído, como quando em certos teatros não é tolerado o uso de câmeras cujo disparo ultrapasse determinados níveis auditivos. Em outros casos é o uso do flash o que está restringido em alguns museus, para evitar que o brilho danifique o pigmento das pinturas antigas, ou em aquários, pois o clarão cegaria peixes habituados à penumbra das profundidades. No entanto, descendendo a razões estatisticamente mais representativas e mais prosaicas, ainda há um vasto repertório de ocasiões em que a fotografia é considerada uma transgressão das normas. Nesse caso, a transgressão, de fato, se fundamenta na própria proibição do tema. Frequentemente, talvez na maioria dos casos, a única intenção é proteger o copyright. A precisão na obtenção de cópias e a possibilidade de uma tiragem de cópias lesam o negócio de numerosas instituições apoiado na exploração dos direitos de reprodução ou, simplesmente, ameaçam o controle sobre a “correta” difusão de determinado material. Em outros casos, a fotografia representa uma ameaça em assuntos de espionagem e segurança: instalações militares e centros de comunicação costumam estar vedados às câmeras. Em situações de menor domínio público, a fotografia pode representar um risco para a intimidade das pessoas e a imprensa sensacionalista dá conta convincentemente deste aspecto. Em todos esses casos preocupa aquilo que Jean Baudrillard denomina “o caráter pornográfico da exposição”, ou seja, a capacidade de mostrar um objeto sem ocultações, esfregando toda a realidade diante de nossos olhos, sem reparos, e, para isso, o meio fotográfico, graças à sua precisão descritiva, tem todas as cartas a seu favor. “Diga-me com quem andas e te direi quem és”. No período de perseguição política e censura, os estudantes espanhóis trocaram esse provérbio por “Diga-me por que te proíbem e te direi quem és”. Não deixa de ser paradoxal que a provisão de razões pelas quais proíbem em algumas circunstâncias tirar fotos oferece-nos de gorjeta a melhor lição sobre os valores estéticos, semióticos, psicológicos e antropológicos da fotografia. Controle da memória, difusão de informação, seriação… “Extraordinária densidade de pequenos detalhes, visão mais além do olho nu, exatidão, clareza de definição, delineação perfeita, imparcialidade, fidelidade tonal, sensação tangível de realidade, verdade”. Quando James Borcoman se propõe a enumerar os signos de identidade do estatuto icônico da imagem fotográfica, na verdade também enumera os motivos de sua proibição. Se a fotografia infunde temor, se pode lesar certos interesses, constituir-se em uma transgressão de determinada normativa, é justamente porque detém esses signos de identidade. Muito mais que um “inconsciente tecnológico”, eles configuram uma espécie de “pecado original” da fotografia, o estigma de uma alma que não nasce inocente. Os fotógrafos, portanto, nascem duplamente pecadores. Estabelecidas as diretrizes desse estatuto, o próximo passo consiste em elucidar até que ponto esses signos de identidade são inerentes ao substrato do fotográfico ou se são atributos históricos, valores gerados por sua dimensão social ou simplesmente convenções relativamente aceitas e, portanto, tão perfeitamente arraigadas quanto dispensáveis. Todo fotógrafo que queira viver em paz consigo mesmo tem dois caminhos: aceitar essa natureza pecadora e procurar a redenção na água batismal ou simplesmente abraçar outra religião. 1. A Mission Photographique da DATAR, lançada em 1984, foi uma encomenda pública a um grupo de fotógrafosque retomava o precedente da Mission Héliographique e pretendia criar uma vasta documentação do território francês e das diversas facetas da sua paisagem. Nancy Burson, sem título, 1989. O retrato foi obtido por meio da mistura de um rosto humano com a ilustração de um alienígena. Elogio do vampiro Pertenço à categoria dos céticos: se eu fosse são Tomé, não só teria a necessidade de tocar as chagas de Cristo para acreditar em sua ressurreição como também teria proposto tirar suas impressões digitais, fazer estudos odontológicos e exames de DNA, tal como prescreve hoje a metodologia forense para identificar rigorosamente os cadáveres duvidosos, sejam cadáveres ressusc itados ou cadáveres definitivamente mortos. Por isso me encontro entre aqueles que, apesar dos três retrovisores do carro, em uma ultrapassagem ou mudança de pista, não evito o gesto espontâneo de virar a cabeça para me assegurar de que nenhum outro veículo se encontra traiçoeiramente às minhas costas. E com certeza não é só pela existência daquilo que nas autoescolas chamam de ângulo cego. Preciso me certificar com meus próprios olhos. Quando se trata de uma coisa importante para mim, como é minha integridade física, qualquer artefato entre o perigo e eu me provoca desconfiança, mesmo que seja um espelho inócuo. Necessito da garantia que a visão direta me proporciona. Meu receio com o espelho se aguça diante de artefatos ainda mais complexos, como a câmera fotográfica, da qual o espelho atuou frequentemente como metáfora. Já foi mencionada no capítulo anterior a figura da fotografia como “espelho com memória”. Essa expressão foi proposta por Oliver Wendell Holmes, em 1861, para qualificar o daguerreótipo e pegou com tanta força que foi utilizada mais tarde como título genérico de vários tratados sobre fotografia. De fato é verdade que introduz os dois eixos temáticos mais proveitosos para discutir certo estatuto do fotográfico. Deixemos a memória para mais adiante e falemos do espelho. De fato, é comum que as imagens que a câmera proporciona sejam identificadas com as refletidas por um espelho. Do espelho dizemos que nos “devolve” a imagem, como se a imagem já fosse nossa, como se entre a imagem e o rosto existissem laços de correspondência infinitesimal, ou como se o reflexo houvesse duplicado fisicamente o objeto. No fundo, é a mesma sensação que esperamos da imagem fotográfica ou, pelo menos, aquela que supomos que deve ter infundido em sua origem. Essa similitude se origina no fato de que o espelho, como superfície refletiva, é o suporte de uma carga simbólica extremamente rica na ordem do conhecimento. Então, o que o espelho reflete? A verdade, a sinceridade, o conteúdo do coração e da consciência. Em um espelho chinês conservado no museu de Hanói lê-se a seguinte inscrição: “Como o Sol, como a Lua, como a água, como o ouro, seja claro e brilhante e reflita o que há no fundo de seu coração”. Assim, qualquer que seja sua significação profunda, o espelho nos oferece não apenas a pura verdade, mas também a revelação e a sabedoria. Desse ponto resulta previsível o salto para a magia e a adivinhação. Em muitas situações, os espelhos atuaram como verdadeiros objetos mágicos, capazes de refletir o futuro. Segundo uma lenda, Pitágoras possuía um espelho mágico voltado para a Lua que lhe permitia a visão do que ia acontecer, tal como faziam as feiticeiras de Tessália. O sistema é o inverso da necromancia, ou simples evocação dos mortos, já que permite fazer aparecer pessoas que ainda não existem ou presenciar uma ação que só será executada mais adiante. No âmbito mais popular dos contos infantis, o espelho da madrasta da Branca de Neve, no clássico dos irmãos Grimm, é obrigado igualmente a dizer a verdade —quem é a mais bela—inclusive à custa de enfurecer sua proprietária e acabar despedaçado. No entanto, se atendermos à etimologia de espelho em português, espejo em castelhano, espill em catalão, ou specchio em italiano, chegamos a speculum, que também deu origem ao termo especulação. Originariamente, especular significava observar o céu e os movimentos relativos das estrelas com a ajuda de um espelho. O termo latino sidus (estrela) derivou igualmente em consideração, que significa etimologicamente olhar o conjunto das estrelas. Essas duas palavras abstratas, que designam hoje operações altamente intelectuais, estão enraizadas no estudo dos astros refletidos em espelhos. Dessa forma, introduz-se um belo paradoxo: o reflexo asséptico do espelho se sobrepõe a outro reflexo especulativo. A natureza do especular contém igualmente as duas visões e se alguma ficava ofuscada pela outra se devia unicamente a uma tomada de posição apriorística; em outras palavras, a uma rotina cultural e não a um imperativo ontológico. De fato, conforme aponta Nathan Lyons, um exame mais minucioso dos espelhos aprofunda nessa direção e ressalta claramente a ambivalência. Ambivalência que a etimologia reconduz a outra palavra da mesma família: miragem. Embora o paralelismo entre o objeto e seu reflexo nos confunda à primeira vista, os espelhos eliminam a tridimensionalidade e invertem a imagem; alguns a diminuem ou a aumentam; outros, como os que produzem grotescas distorções em feiras e parques de diversões, deformam-na. Alguns espelhos são semitransparentes e servem para espiar; outros são côncavos e ampliam a porosidade de nossa pele para comprovarmos a perfeição ao se fazer as sobrancelhas ou a barba. Há inclusive espelhos cujo prodígio não é a verdade, mas a fantasia, a miragem: na continuação de Alice, Lewis Carroll mostra que por trás das aparências de um mundo simétrico escondem-se insuspeitadas quimeras. Os espelhos, portanto, assim como as câmeras fotográficas, regem-se por intenções de uso e seu repertório de experiências abrange da constatação científica à fabulação poética. Nesse sentido, é necessário destacar dois personagens do universo dos mitos que por sua especial vinculação com os espelhos mantêm uma ambivalência similar à que analisamos: por um lado, Narciso e, por outro, o vampiro. Narciso encarna o ser apaixonado por sua própria imagem, sujeitado obsessivamente ao seu reflexo. O vampiro comporta diversas peculiaridades exóticas, como sua dieta de sangue fresco e sua aversão à luz, aos símbolos sagrados e ao alho, mas a que me parece mais relevante aqui é que carece de reflexo, ou seja, os espelhos não refletem sua imagem. Drácula e sua corte imortal se tornam invisíveis diante do espelho. Por extensão, “narcisistas” e “vampiros” designariam também categorias contrapostas no mundo da representação. Em uns, prevalece a sedução do real; em outros, a frustração do desejo, a presença escondida, o desaparecimento. É fácil imaginar o paradoxo —o suplício!— de um narcisista-vampiro: alguém que persegue o reflexo de que carece; narcisistas e vampiros são metafisicamente contrários. De alguma forma, um diagnóstico possível sobre a fotografia contemporânea poderia ser o anúncio da abrupta irrupção dos vampiros, sua proliferação, sua coexistência com os narcisistas e, frequentemente, a progressiva metamorfose de uns em outros. A década de 1970 viu, em seu início e em seu final, essas duas formas opostas de afrontar a imagem. Consideremos, por exemplo, a passagem de Diane Arbus a Cindy Sherman. Apenas oito anos separam o suicídio de Arbus, ocorrido em 1971, da publicação dos primeiros trabalhos de Sherman, então jovem e desconhecida. Assistimos com elas a uma substituição geracional, na qual evidentemente, mais do que a cronologia das idades, importao desajuste programático que manifestam. O estilo de Diane Arbus criara escola. Seus retratos se caracterizavam por um marco formal perfeitamente identificável (formato quadrado, frontalidade do modelo, luz direta de flash etc.), mas também, e sobretudo, pela escolha de um repertório de indivíduos à margem da sociedade. Arbus explorava a sordidez de certa subcultura urbana com uma acidez não isenta de compaixão e, de algum modo, marcando uma corrente humanista de grande peso na história da fotografia. Testemunhar o mundo dos freaks e dos inadaptados equivalia a erigir-se em consciência de uma problemática social para a qual se reclamava atenção e remédio. Com os Film Stills de Cindy Sherman, muda tanto a posição estética quanto moral. As composições passam a proceder da ficção cinematográfica e a mensagem inerente a essa coleção de falsos autorretratos é muito mais cética. Nos anos 1980, o desencanto malogrou qualquer vestígio de messianismo e as poéticas do compromisso político ficaram desacreditadas. Sherman já não vai ao encontro dos arquétipos e dos monstros: contenta-se com suas projeções na tela. De fato nem sequer vai ao encontro de um mundo feito de coisas, contenta-se com um mundo feito de imagens. Não interessa a experiência direta da realidade, mas justamente seu sedimento. São imagens que aludem a outras imagens; imagens cuja origem primitiva se perde em uma distância remota. Cindy Sherman se questiona sobre a identidade feminina e conclui que a mulher não passa de um amontoado de clichês gerados pelos telefilmes e pela publicidade. Suas fantasias evocam, portanto, a despersonalização e a noção de identidade como encenação. Sua obra constitui uma celebração do grande teatro de marionetes da cultura regida pelos mass media. Esse deslocamento do objeto à imagem implica também posições distintas com relação à consciência artística. Para a corrente narcisista que se atribui a Arbus, a imagem fotográfica tem uma dupla natureza: como documento e como arte. Como arte consiste na exploração das qualidades únicas do meio; a fotografia transcende a imagem como estrito suporte de informação para chegar a ser obra, ou seja, um objeto dotado de uma riqueza de valores genuínos de forma e de conteúdo. Para Sherman, a fotografia supõe simplesmente um registro contingente da experiência artística, desprovida em princípio de um valor autônomo e significante em troca enquanto ilustração de um discurso artístico. Cindy Sherman, Untitled Film Still 35, 1979 Daniel Canogar, Mirada, 1991 No entanto, o fundo epistemológico das duas atitudes separa as modalidades de diálogo com o espelho e acentua o rompimento entre dois modelos do fotografável e, por extensão, do real. Para Arbus, a câmera é um instrumento de análise e crítica, fundamentando-se em um esquema que pressupõe a dupla existência: de um lado, de um sujeito que observa e, de outro, de uma alteridade —a sociedade— que é observada. A linguagem —a fotografia— estabelece a ponte entre objeto e sujeito. Para Sherman, por outro lado, tal distinção não pode ocorrer: somos aquilo que a mídia determina, somos um produto cultural, somos linguagem. Para Arbus, o real são os fatos e as coisas tangíveis, o mundo físico que interage com nosso eu, mas do qual se é totalmente independente. Em contraposição, para a lógica cínica do vampiro, a realidade é apenas um efeito de construção cultural e ideológica que não preexiste à nossa experiência. Fotografar, em suma, constitui uma forma de reinventar o real, de extrair o invisível do espelho e de revelá-lo. Dois autores que posteriormente aprofundaram essa dissolução da identidade foram Daniel Canogar e Keith Cottingham. Em suas instalações, Canogar propõe uma leitura metafórica do corpo fragmentado. Trata-se de ampliações sobre filme transparente de seus olhos, lábios, mãos, braços e pernas, colocadas frontalmente em relação ao espectador, de maneira que ficam semi-invisíveis. Só quando recebe a luz direta de um refletor, a imagem fica projetada por um lado e, pelo outro, se reflete na parede. A peça simboliza uma realidade corpórea da qual só podemos perceber as sombras e os reflexos imateriais. O corpo é apresentado como uma entidade intangível à qual só podemos acessar por seu rastro. Só a ilusão virtual de suas sombras nos revela sua presença. Cottingham persegue o mesmo propósito com um resultado extremamente sutil que até pode passar despercebido para o espectador desavisado. Fotografa retratos de jovens que personificam o ideal de perfeição da alta sociedade dos Estados Unidos. Seus corpos e suas poses denotam a aura de sucesso que todo norte-americano sonha ter. As imagens estão concebidas segundo cânones compositivos da tradição pictórica em que todos os códigos nos resultam familiares: expressão facial, postura estática, disposição maneirista etc. Contudo, algo estranho e inquietante aparece, pois os rostos são muito perfeitos e excessivamente parecidos entre si. São fotografias de pessoas que não existem, fantasmas resgatados do vazio, a inversão do reflexo absorvido do vampiro. Keith Cottingham, Fictitious Portraits, 1993 (esboços e detalhe) Nancy Burson, Mankind, 1983-1985 Cottingham produziu identidades fictícias de adolescentes clonados, não por engenharia genética, mas por manipulação digital; ou seja, não intervindo na memória biológica do organismo, mas na informação que configura a imagem. O artista os hibridou com outros, criou traços fisionômicos a partir de modelos de argila, desenhos anatômicos e numerosas fotografias tiradas de revistas ilustradas; acrescentou textura de pele, cabelos, olhos e outros elementos faciais até obter uma recriação artificial, porém absolutamente realista, uma montagem sem costuras, uma colagem mais mental do que física. Criando um retrato como a soma de múltiplas pessoas, a identidade do eu se dissolve para aparecer como um produto de interação social. Nancy Burson, no início dos anos 1980, já havia realizado incursões no mesmo campo, apoiando-se também nas possibilidades da imagem digital. Em sua obra intitulada Mankind, Burson apresenta um rosto com componentes de origens distintas (oriental, caucasiano e negro); a proporção dos traços étnicos foi feita segundo as estatísticas de população no momento de realizar a imagem. Trata-se, portanto, de um verdadeiro retrato-robô ou, melhor dizendo, de um retrato-médio de um habitante do planeta: o paradigma do ser humano, a antítese dos ensaios visuais que pretendiam isolar a essência de uma etnia ou de um povo. Talvez haja mais realidade nos retratos de Burson, como personificação de toda a humanidade, ou nos de Cottingham, como plasma de estereótipos, do que em qualquer vã fotografia instantânea. Como no caso de Sherman, são construções intelectuais que se mostram como tais. Cottingham declara: “tento evidenciar a fragmentação e o rompimento entre a imagem e a matéria, entre a alma e o corpo”. O falso realismo em seu trabalho atua como um espelho que já não revela a nós mesmos, mas nossas invenções, provocando simultaneamente fascínio e repulsa. Rompe-se o cordão umbilical entre a imagem e o objeto. O mito modernista do espelho acaba por desvanecer. O sentido se instala na fragilidade porque essas “imagens frágeis”, às quais alude Marta Gili no catálogo da exposição com o mesmo título (1994), acabaram por perder seu apoio na estabilidade de nossas crenças. Tornam-se então “aparência ou rastro, ficção ou indício, mas justamente graças a essas qualidades convirão para transmitir os valores mais intangíveis e frágeis do ser humano”. Enquanto isso, continuará sendo mais prudente virar a cabeça de vez emquando na autoestrada: o motorista do outro carro pode ser um vampiro transparente. Pedro Meyer, da série I photograph to remember, 1991 Vidência e evidência “Esquecer é uma função tão importante da memória quanto lembrar”. VILÉM FLUSSER, Sobre la memória (electrónica o cualquier otra) A arte da amnésia Para os egípcios, a linguagem escrita significava literalmente “a língua dos deuses”. Em uma passagem da antiga mitologia egípcia, o deus Toth, advogado da sabedoria e patrono dos escribas, defendia perante Amon, o deus-rei, sua invenção da escrita. Amon lamentava o invento de Toth com as seguintes palavras: “Sua descoberta fomentará o descuido no ânimo dos que estudam, pois não se servirão de sua memória, mas confiarão totalmente na aparência dos caracteres escritos e se esquecerão de si mesmos. O que descobriste não é uma ajuda para a memóri a, mas para a rememoração e o que oferece aos seus discípulos não é a verdade, e sim seu reflexo. Ouvirão muitas coisas e não terão aprendido nada; serão oniscientes e em geral ignorarão tudo; sua companhia será entediante, pois terão a aparência de homens sábios sem realmente sê-lo”. É justo considerar a fotografia como um tipo semelhante de escritura, ou seja, de linguagem escrita. Entretanto, sua aparição se deu quando os deuses já haviam abandonado os homens e o espírito positivista revelava-se sobre o mundo moderno. No entanto, os anátemas que recebeu ainda procediam do conflito entre uma tradição oral (entendida como o supostamente natural) e uma tradição “literária” (entendida como tudo o que está filtrado pelas convenções culturais e pela tecnologia). Finalmente, como sempre, o pragmatismo acabou se impondo sobre as objeções dos fundamentalistas: a fotografia era muito valiosa para a memória. Que tipo de experiência a fotografia proporciona ou, mais diretamente, para que serve? Como se desse uma resposta que não admitia paliativos, em 1992, Pedro Meyer intitulava I photograph to remember (Fotografo para lembrar) um de seus trabalhos. Meyer evitava o que subjaz no procedimento comum dos fotógrafos, uma prótese tecnológica que culmina o velho desejo de ampliar nossa capacidade mental de armazenar informação e que, ao longo da história, deu lugar a tratados e a métodos nada desprezíveis, como o conhecido Teatro da memória de Giordano Bruno. A importância da memória foi, de fato, mais urgente para os homens do que para os deuses. Norberto Bobbio conclui em seu ensaio De senectute (1996): “Você é o que lembra”. Tanto a nossa noção do real quanto a essência de nossa identidade individual dependem da memória. Não somos nada além de memória. A fotografia, portanto, é uma atividade fundamental para nos definir, que abre uma dupla via de ascese para a autoafirmação e para o conhecimento. Na série I photograph to remember, que foi apresentada em formato de CD-ROM, permitindo certa interação com o espectador, Meyer combinava narração e música com uma centena de fotografias de seus pais, Liesel e Ernesto, ambos falecidos em um breve intervalo de tempo devido ao câncer. Por meio de imagens de estilo documental que transpiravam uma emotividade visceral, Meyer oferecia uma reflexão poética sobre o amor e a ternura, a união familiar e as atitudes para enfrentar a morte. Experiente testemunha gráfica de diversas situações dramáticas do barril de pólvora latino- americano, onde a morte era moeda corrente e a desgraça depositária (como a revolução sandinista, para citar um único exemplo), o fotógrafo tinha, nesse caso, que expressar sua própria tragédia sem distanciamentos profissionais. Imagens extraídas do álbum familiar à maneira de flashback se mesclavam com outras, que foram feitas expressamente para esse trabalho a partir do momento em que souberam o diagnóstico. Impressiona-me a atitude de uns e de outros, fotógrafos e modelos, ao aceitar esse jogo para que o filme retivesse aquilo que poderia desaparecer de uma memória traída pelas emoções. A fotografia em que Pedro segura o pai com o braço esquerdo enquanto com o outro empunha a câmera e faz um retrato em que inevitavelmente ficará plasmada essa demonstração de afeto me deixa arrepiado. Pensando bem, não se trata tanto de um retrato quanto de tornar patente o contato, a proximidade, o apoio, o amor. Esse trabalho suscita grande variedade de comentários, tanto de ordem estética quanto moral. Por exemplo, surpreende —possivelmente por falta de costume— a brusca disjunção entre o calor dos sentimentos e a “frieza” do meio empregado, a tela glacial do monitor. Mas, sobretudo, surpreende um título que se manifesta como declaração ontológica e não como mero formalismo descritivo mais ou menos evocador, como costuma ocorrer com frequência. Fotografo para lembrar, diz Pedro Meyer, e, por menos que pensemos, a obviedade parece se transformar em tautologia. Porque é sempre assim. Porque sempre fotografamos para lembrar aquilo que fotografamos, para proteger a experiência da precária fiabilidade da memória. Ou não? Quando a dúvida se instala na implacabilidade desses raciocínios, estamos em condições de abrir- nos para uma nova dimensão de análise. Lembrar significa selecionar certos capítulos de nossa experiência e esquecer o resto. Não há nada tão doloroso quanto a lembrança exaustiva e indiscriminada de cada um dos detalhes de nossa vida. Em seu conto Funes o memorioso, Jorge Luis Borges fala sobre a infelicidade que nos precipita uma memória excessivamente prodigiosa. Mas é sobretudo no romance The man who never forgot (1957), do prolífico autor de ficção científica Robert Silverberg, em que talvez mais certeiramente se põe o dedo na ferida. Nela, conta-se a história de Tom Niles, personagem dotado de uma memória sobre-humana capaz de se lembrar de cada acontecimento, por mais insignificante que fosse, de qualquer história vivida. No entanto, o que em princípio parece ser o dom de um cérebro privilegiado é, na verdade, uma grave doença, mais perniciosa até do que a amnésia absoluta, uma verdadeira monstruosidade mnemotécnica: a incapacidade de esquecer o que quer que seja. Tom Niles tem sempre presente em sua mente os maus momentos, é incapaz de perdoar ofensas ou de superar traumas; a adversidade lhe pesa como uma cruz. Definitivamente, a impossibilidade de superar os aspectos negativos da vida acaba transformando sua relação com o próximo em uma catástrofe. Silverberg insinuava que, de fato, é a discriminação da lembrança e, finalmente, o esquecimento, o que nos permite querermos ser felizes. Mas deixemos a ficção literária e nos ocupemos de nossa própria situação: tomemos uma coleção de fotografias pessoais. Aparentemente só se incluem situações agradáveis entendidas como exceções da cotidianidade: ritos, celebrações, viagens, férias etc. Fotografamos para reforçar a felicidade desses momentos. Para afirmar aquilo que nos agrada, para cobrir ausências, para deter o tempo e, pelo menos ilusoriamente, adiar a inevitabilidade da morte. Fotografamos para preservar a estrutura de nossa mitologia pessoal. O louvável esforço de alguns fotógrafos contemporâneos, como Nan Goldin, consiste precisamente em ampliar o protocolo do fotografável. Nan Goldin, por exemplo, estende o âmbito do álbum familiar, acolhendo não só casamentos como também funerais, não só velinhas de aniversário, mas também surras e hematomas, não só amigos e amantes quando fazem caras engraçadas ou elogios carinhosos, mas também quando se drogam, urinam ou fazem sexo. Levada ao limite, essa atuação conduziria a um paradoxo de natureza borgeana: ter que fotografar sem concessões cada instante da existência para que absolutamente nada escape da voracidade da câmera. O trabalho de Friedl Kubelka-Bondi, quando fotografaa si mesma sistematicamente todos os dias de sua vida em diferentes situações, sempre as mesmas, ao se levantar, no asseio, no café da manhã, no trabalho etc., se aproxima dessa tarefa. Ao longo dos anos sua perseverança lhe permite recobrir as paredes de galerias ou museus com milhares e milhares de pequenas fotos instantâneas não transcendentes que sistematizam a disposição de um eu projetado ao infinito. Ainda assim, o gesto da artista austríaca, além da acumulação desenfreada e obsessivamente patológica, permanece na esfera do simbólico e do testemunhal que não chega a alcançar o absoluto borgeano. E, enquanto não se dê este absoluto, continuamos condenados a fotografar para esquecer: ressaltamos alguns fatos para adiar os intervalos anódinos e tediosos que fatigam o espírito. I photograph to forget. Eu fotografo para esquecer. Na verdade, o enfrentamento dialético entre duas figuras fundamentais da prática fotográfica dos anos 1950 já esboçava coordenadas teóricas similares ao enfatizar essa dupla polaridade funcional lembrança/esquecimento. Henri Cartier-Bresson preconizava o ato epifânico, capturar o momento decisivo que reunia a tensão de uma cena e sintetizava a essência com a máxima contundência. Robert Frank contestava que, tanto existencial quanto estatisticamente, a verdadeira fotocópia da realidade deveria ser feita não no clímax, mas no lapso que separa sucessivos instantes decisivos. Contudo, a distância entre as duas posturas não conseguia negar um ponto de consenso: a fotografia como constatação da experiência, a fotografia como evidência. Friedl Kubelka–Bondi, 2nd Year Portrait, 1977-1978 (25/04/1977-29/05/1977) Mike Mandel e Larry Sultan, do livro Evidence, 1977 Duas décadas mais tarde, em 1977, os artistas californianos Mike Mandel e Larry Sultan publicaram um livro intitulado simplesmente Evidence. Carente de qualquer tipo de texto, ao virar as páginas, o leitor só encontra fotografias documentais de angustiante trivialidade. Trata-se de imagens assépticas e obedientes às convenções do documentalismo puro e simples, isto é, sem maior aspiração além de transmitir informação visual da forma mais clara e concisa, desprovida de qualquer tipo de traço de “autor”. Provavelmente o tipo de material gráfico servil às necessidades do mundo da indústria ou da ciência. No entanto, ao perscrutar o significado dessas fotografias, o mais profundo surrealismo emerge de sua banalidade radical. Na extremidade (?) semipeluda de um símio (?) alguém injetava um soro (?); um astronauta (?) se arrastava (?) no carpete (?); uma densa fumaça (?) indicava a detonação controlada (?) de um novo explosivo (?). São algumas interpretações que dou e, depois de quinze anos de ter adquirido o livro, continuo fascinado pela incerteza e desassossego que me provoca. Mandel e Sultan haviam obtido as imagens em diferentes laboratórios de pesquisa, departamentos de veterinária e criminologia, arquivos de bombeiros e de diversos hospitais, institutos aeronáuticos e de estudos agrícolas. No âmbito dos respectivos lugares de procedência, essas fotografias eram tanto aborrecidamente compreensíveis quanto perfeitamente úteis; limitavam-se a cumprir o papel característico de transmitir uma informação precisa e ninguém teria dificuldade em decifrá-las. Isso ocorria por uma simples razão: o espaço cultural e funcional no qual estavam inseridas ancorava a eventual disseminação de seus significados. O que demarcava esse significado, para dizer em outros termos, era o laço entre o quadro da imagem e o “extraquadro” que o envolvia. De fato, para transgredir esse laço e constatar assim a fragilidade do sentido, a dupla de artistas se limitou a pôr em prática a técnica dadaísta do estranhamento do objeto: do arquivo no laboratório de pesquisa ao papel cuchê do livro de arte; da finalidade descritiva à especulação estética; uma mesma coisa via fundamentalmente transtornado seu conteúdo e, portanto, sua relação com o usuário. A descontextualização não apenas modificava um valor de uso, mas também, principalmente, pulverizava a própria noção de que a fotografia é a prova de alguma coisa, o suporte de uma evidência. Devemos nos perguntar: evidência do quê? Provavelmente, evidência apenas de sua própria ambiguidade. O que resta, então, do documento? A bola de cristal “Filosoficamente, a memória não é menos prodigiosa do que a adivinhação do futuro”. JORGE LUIS BORGES, O informe de Brodie No filme Eyes of Laura Mars (Os olhos de Laura Mars), um suspense medíocre dirigido por Irvin Kershner (um especialista em cinema de ação que realizou títulos como O império contra-ataca e Robocop II) em 1978 e interpretado por Faye Dunaway, aventura-se uma resposta que, apesar das aparências, ultrapassa o simples golpe de efeito do roteirista ou qualquer outra tentativa de boutade. O argumento relata as peripécias de uma famosa fotógrafa nova-iorquina que, assim como Thomas de Blow-up, doze anos antes e em Londres, une publicidade e moda com obra pessoal de criação. Em todos esses âmbitos, suas composições impactam pela grande dose de erotismo e violência (se as fotografias de reportagem que Thomas apresentava a seu editor foram cedidas por Don McCullin, aqui haveriam de sê-lo por Helmut Newton). Em Blow-up, uma simples foto instantânea dava o indício de um fato inadvertido, a consumação de um crime, e as fotografias de Laura Mars, à sua maneira, também são indícios de crimes. Até aqui a estrutura argumental corre paralela, mas em seguida aparece uma engenhosa diferença: enquanto Blow-up usa um conceito tradicional de documento que implica a relação temporal com o passado, Eyes of Laura Mars inverte essa relação e a orienta para o futuro. Laura Mars encena com modelos em seu estúdio simulações de assassinatos que não economizam luxo, sexo, nem agressividade. O que em princípio é apenas fruto da fantasia se transforma em um amontoado de visões premonitórias. Horrorizada, Laura Mars constata que sua imaginação está acompanhando de forma simultânea, ou até antecipando, nos mínimos detalhes, alguns acontecimentos reais: uma sucessão de crimes violentos. Naturalmente, o protagonista masculino do filme, um inspetor de polícia, reticente de ofício aos prodígios e obcecado por uma racionalidade elementar, considera que a fotógrafa está ligada ao que está acontecendo. No entanto, o interessante não é a intriga tola do argumento, mas o fato de que de forma oculta presenciamos a passagem da fotografia como evidência à fotografia como vidência. Esse trânsito reveste o ato fotográfico de poderes mânticos que transtornam a percepção empírica do tempo e, por extensão, o próprio papel da memória. Talvez Kershner pensasse em Joseph Conrad quando este escreveu que “a mente do homem é capaz de tudo, porque tudo está contido nela, tanto o passado quanto o futuro”. Um ânimo razoavelmente cético nos impele a deduzir que acreditar que a fotografia testemunha algo implica, em primeiro lugar, precisamente isso, acreditar, ter fé. O realismo fotográfico e seus valores subjacentes são uma questão de fé. Porque não há nenhum indício racional convincente que garanta que a fotografia, por sua própria natureza, tenha mais valor como índice do que o laço feito em um dedo ou a relíquia. A mensagem de Michelangelo Antonioni em Blow-up, além de nos dizer que as formas familiares do mundo encobrem outra realidade, reduz-se a que tudo —inclusive a certeza fotográfica— é pura ilusão: na sequência final do filme, um grupo de mímicos joga tênis com uma bola inexistente até que esta cai para fora da cerca da quadra e é um desconcertado Thomas, convertido em cúmplice na causa da ilusão, quem devolve a bola invisível para que a partida possa continuar. É possívelque esse afastamento da memória estigmatize o posicionamento da fotografia na arte contemporânea. A alternativa entre descobrir e inventar, que sob diferentes formalizações categorizou até agora as práticas artísticas (por exemplo, fotografia “direta” versus fotografia “construída”), deixa de ter sentido. Tudo é descoberta e invenção. Entre as extravagâncias “achadas” de Cristina García Rodero e as “recriadas” por Joel-Peter Witkin varia o modus operandi, mas as mensagens sobre a religião e a dor são muito próximas. Com sua Señora de las iguanas (México, 1979), Graciela Iturbide nos apresenta uma mulher com a cabeça coberta por esses répteis; se desconhecermos as razões etnológicas dessa peculiar situação, a imagem poderia pertencer à série Peluquerías de Ouka Leele, em que os modelos igualmente decoram seus penteados com diversos animais, como tartarugas ou polvos. Ouka Leele, da série Peluquerías, 1979 Graciela Iturbide, Señora de las iguanas, México, 1979 Nossa perspectiva dilui as condições de trabalho e as intenções de todos esses fotógrafos e, na passagem do tempo, só restam imagens, imagens que se parecem. Os discursos que as justificavam se convertem em espectros que, como a alma, abandonam o corpo. A fotografia estetiza e coisifica tudo por igual, transforma a natureza em troféu, como um caçador que recolhe uma presa. No entanto, como aponta Celeste Olalquiaga, ao contrário do caçador, o fotógrafo não mata o corpo, mas a vida das coisas. Só deixa a carcaça, o envoltório, o contorno morfológico: através do visor, qualquer parte de mundo se transfigura necessariamente em uma natureza-morta, um retalho de natureza inquietantemente parada, inerte. Não é possível para a fotografia outro gênero que não a naturezamorta. Porque o princípio básico tanto da memória quanto da fotografia é que as coisas têm que morrer em ordem para viver para sempre. E na eternidade não conta o tempo; o passado e o futuro se confundem, da mesma forma que a lembrança e a premonição não são mais que um único e mesmo ato, se procedem do que conviemos em chamar historiadores ou profetas. Sim, a lente da câmera parece conservar algumas das propriedades divinatórias da bola de cristal utilizada pelas pitonisas, da qual certamente foi extraída. Além das metáforas, resta apenas certificar-nos de que a sensibilidade contemporânea nos predispõe paradoxalmente à profecia e não à história. Vivemos em um mundo de imagens que precedem a realidade. As paisagens alpinas suíças nos parecem simples réplicas das maquetes dos trens elétricos de quando éramos crianças. O guia do safári fotográfico detém o jipe no local exato onde os turistas melhor reconhecerão o diorama do museu de história natural. Em nossas primeiras viagens nos sentimos inquietos quando em nossa descoberta da torre Eiffel, do Big Ben ou da estátua da Liberdade percebemos diferenças com as imagens que tínhamos prefigurado através de postais e filmes. Na verdade não procuramos a visão, mas o déjà-vu. Nesse sentido, assim como Laura Mars, hoje todos somos um pouco videntes e a verdade é que a fotografia contribuiu intensamente para essa hegemonia da vidência. Na ficção do filme, Laura Mars pressentia e visualizava a morte; na realidade de nossas vidas, o que antecipamos é o cadáver de muitas das presunções de nossa cultura visual. Enoshima, Japão, 1992 Os peixes de Enoshima Em Enoshima, pequena localidade pesqueira perto de Tóquio, os barcos saem toda tarde para o mar. Ao retornar, os pescadores selecionam algumas das peças obtidas, ensopam-nas com tinta e, com elas, imprimem seus próprios cartazes. Os peixes substituem as nossas pranchas de gravura: a pressão sobre o papel permite transferir sua própria imagem. Seu tamanho, sua silhueta, a textura de suas escamas, a transparência de suas guelras… Os pescadores só se permitem o retoque dos olhos, uma licença que eu gostaria de acreditar mais aparentada com a magia e a brincadeira do que com a obsessão realista de fidelidade ao modelo. Em seguida, com uma caligrafia delicada anotam o tipo, o peso e o preço do peixe. Penduram o cartaz no interior de seu estabelecimento ao lado de outros que anunciam os peixes que estão à venda no dia e que vão desaparecendo conforme os clientes os compram. Esse procedimento tradicional, que recebe o nome de gyotaku, não chama a atenção de ninguém no Japão; faz parte das formas populares de comércio implantadas há muitos séculos. Mas resulta chocante para os ocidentais, sobretudo se nos aprofundamos mais além da qualidade pitoresca que nosso olhar de turista tenderá espontaneamente a projetar. Da mesma forma será preciso esforço para prescindir provisoriamente das inegáveis qualidades estéticas nas quais a deformação profissional inevitavelmente nos lança. É difícil não ficarmos admirados diante da elegância de imagens que equilibram forma e função com tanta eficácia. Eu gostaria, contudo, de destacar duas coisas. Em primeiro lugar, um determinado estilo de comunicação publicitária. A publicidade ocidental, que se autodefine como informação mais persuasão, fundamenta-se no superlativo e na hipérbole. Ora filtrada por notáveis doses de criatividade, ora com argumentos destinados a atrair amplas parcelas da população, parece, no entanto, que diante da saturação de mensagens só vale o exagero, isto é, a verdade duvidosa, a verdade como ponto de vista. E, para legitimar esse discurso e lavar a consciência, construímos um verdadeiro aparato filosófico: a verdade, esforcemo-nos em convir, não passa de uma opinião institucionalizada a partir de determinadas posições de poder. A sabedoria popular dos pescadores de Enoshima torna inúteis esses estratagemas. Embora o objetivo final seja o mesmo (vender, no caso peixe), a proposta ao cliente é forçosamente justa e não admite o excesso. O próprio procedimento escolhido o impede: esse é o segundo fator que quero enfatizar. O contato do peixe no papel só permite fixar sua própria silhueta, com seu tamanho real: trata-se de seu rastro direto, a analogia pura, a natureza que fala por si mesma. Não há espaço para excessos e floreios. Diante de tal ostentação de “objetividade”, devemos, pois, perguntar-nos se a impressão não constitui o tipo de imagem que mais nos aproxima do real, a que mais obstinadamente dificulta a tergiversação. Diversos teóricos —e considero especialmente Philippe Dubois— analisaram a natureza da imagem fotográfica para concluir destacando seu valor como índice, como rastro. A fotografia é um signo que, efetivamente, requer para sua consecução uma relação de causalidade física com o objeto. O objeto representa a si próprio, mediante a luz que reflete. A imagem não é mais que o rastro do impacto dessa luz sobre a superfície fotossensível: um rastro armazenado, um rastro–memória. Mas hoje sabemos que a fotografia é tão maleável e tão falível quanto a memória. A fotografia publicitária nos oferece exemplos constantes. Pensemos nas ilustrações de comida ou bebida que exalam o que no jargão especializado dos profissionais se denomina appetite appeal. O appetite appeal é um amontoado de signos imperceptíveis, uma retórica dirigida à sedução: as gotículas de condensação nos copos de bebidas refrescantes, a fumaça cheirosa exalada por um assado, o corte que revela uma carne tenramente rosada… São elementos resultantes do retoque ou de uma simulação artificial que incitam o desejo e fomentam uma exigência de perfeição que não existe na realidade. Será também esse hiper-realismo fotográfico resultado de um rastro? Sim, mas de uma categoria diferente de rastro. Por enquanto, convenhamosque os rastros podem ser diretos ou diferidos. Se os peixes de Enoshima exemplificam o “rastro direto”, esses anúncios hipotéticos corresponderiam à noção de “rastro diferido”. São rastros na medida em que foram produzidos a partir da incidência dos raios luminosos sobre o filme fotográfico, mas entre o modelo e o suporte interveio uma série de dispositivos operativos e tecnológicos que seguem preceitos culturais e ideológicos. Dispositivos que mitigam a nitidez do rastro original e permitem sua osmose. Para alguns teóricos, como Roland Barthes, a origem da dimensão alucinatória da imagem fotográfica radica nesses dispositivos, uma vez que permitem que o que é falso no nível de percepção possa ser verdadeiro no nível de tempo. A natureza estrutural do meio possibilita que a veracidade histórica (a presença real dos manjares do anúncio frente à objetiva) não necessariamente corresponda com a veracidade perceptiva (nossas sensações). Enoshima, Japão, 1992 Poderíamos dizer que as fotos convencionais são rastros filtrados, rastros codificados que mostram o desajuste entre imagem e experiência. A tecnologia que intervém na produção da fotografia não é mais que um saber acumulado. Todas as ferramentas (uma esferográfica, uma câmera ou um computador) e o conhecimento de seu manejo não constituem senão memória aplicada. Seria possível, portanto, concluir que os rastros são as unidades da memória, sua matéria-prima, e que a memória, por sua vez, é uma intrincadíssima estratificação de rastros. Toda imagem é fisicamente um rastro, o resultado de uma transposição ou de uma troca (um depósito de tinta, um efeito de carga elétrica ou magnética, uma reação química). Em síntese, uma diferente modulação de informação armazenada, de “memória”. Somente a consciência histórica nos permitirá distinguir entre rastros diretos e diferidos, matizar os infinitos graus intermediários. Reduzir essa exuberância de matizes aos seus limites, restringir-se a “índices” e “símbolos”, como propõem os semioticistas seguindo Charles S. Peirce ao classificar o mundo dos signos icônicos, é uma simplificação excessiva e superficial. Por exemplo, um desenho figurativo, se atendermos à gênese de seu procedimento, também é um rastro, marcado pelo atrito do grafite no papel. Nesse caso, o que nos interessa não é o traço, mas a configuração codificada de traços que aspira a adquirir um sentido para nós. O traço seria uma unidade linguística cuja articulação nos permitiria criar estruturas de ordem muito mais complexa, mas que careceria de intenção de representação por si mesma. O frottage de Max Ernst, por outro lado, seria uma modalidade de desenho (o desenho automático dos surrealistas, a aplicação do conceito de escritura automática nas artes plásticas) muito mais próxima do rastro direto. Mediante essa técnica, colocamos um papel sobre um objeto de superfície rugosa, esfregamos com um lápis exercendo certa pressão e obtemos a transferência da textura do objeto ao papel. A vida e a arte apresentam diversos episódios em que se manifesta o conflito dos signos. As impressões digitais dos documentos de identificação policial supõem um exemplo de rastro direto em que a ponta do dedo atua como uma prancha de gravura. No entanto, o sentido dessa estampa pode variar no aspecto estético e semântico. Segundo a tradição, no século IX o conde de Barcelona, Wifredo o Cabeludo, foi ferido de morte no campo de batalha. Pressentindo seu fim iminente, molhou os dedos de uma mão no sangue da ferida e traçou quatro linhas vermelhas sobre seu escudo de ouro. A densidade épica desse gesto valeu à Catalunha seu emblema nacional e a história se encarregou de impregnar esse brasão do conteúdo simbólico e grandiloquente próprio desses casos (honra, bravura, esforço, generosidade, sacrifício…). Uma metassignificação que nada se relaciona com o traçado abstrato dessas quatro linhas vermelhas sobre fundo amarelo. Por outro lado, quando os artistas do acionismo vienense ou a artista cubana Ana Mendieta encharcam o corpo ou parte do corpo com sangue para deixar sua marca no chão ou em um papel, como Yves Klein fez com suas modelos pintadas de azul, desejam que a impressão anatômica fique perfeitamente reconhecível. Embora os artistas queiram sublimar poeticamente esse gesto ou dotá- lo de uma significação política, os espectadores devem reconhecer a mão como mão e o rosto como rosto. Não se trata de manchas de sangue, mas de impressões feitas com sangue. Percebemos, em um primeiro momento, o corpo ensanguentado e só depois pensamos em repressão, tortura e morte. A produção artística contemporânea constata frequentemente os distintos graus de escalonamento dos rastros e sua tradução em diferentes referências à memória. Podemos nos referir como ilustração pertinente à série Sconosciuti de Paolo Gioli (Art&, Udine, 1995). Gioli tomou uma coleção de retratos de personagens desconhecidos, imagens que correspondem a antigos negativos em grandes placas de vidro e que, em sua época, foram objeto de um consciencioso retoque embelezador. Até os anos 1960, o retoque foi uma prática comum nos estúdios de retratistas: dissimular rugas, marcar sobrancelhas, ressaltar lábios… O retoque devia solucionar o que a maquiagem e a iluminação não eram capazes de corrigir. Durante décadas, pictorialistas e puristas se envolveram em violentos debates sobre a legitimidade do retoque, mas o comércio, que não entende nada além da satisfação do cliente traduzida em benefício econômico, não via problemas em valer-se de um recurso híbrido que procedia do desenho ou da pintura. O paradoxal —e também o mais interessante— era a absoluta necessidade de sua camuflagem, resumida na máxima de que “um bom retoque é aquele que não se nota”, pois, em vez de suavizar os defeitos de um rosto, um retoque malfeito atraía a atenção para eles e, portanto, os aumentava. É compreensível, em consequência, que esse tipo de prática fosse tão condenado pelos puristas, por significar a incursão poluente de um recurso estranho ao meio, quanto pelos pictorialistas, pois se tratava de uma intervenção pictórica não assumida, bastarda, que se envergonhava de si própria. Paolo Gioli, da série Sconosciuti, 1995 Tecnicamente esses retoques eram efetuados na face da emulsão do negativo com um lápis gorduroso que ia sedimentando camadas ou traços para aumentar a densidade, ou com um buril para raspar e rebaixar a densidade já existente. Às vezes, a emulsão era recoberta com verniz para facilitar o trabalho e obter um resultado permanente. Obviamente, o retoque podia estender-se ao positivo, o que aumentava a lista de materiais e utensílios empregados (diferentes tipos de tintas e pigmentos, pincéis e, inclusive, aerógrafos). Nos dois casos, o sedimento físico do retoque (a fina camada de carvão ou de pigmento) a longo prazo resultava muito mais duradouro do que a instável imagem de prata, atacada pelos resíduos ácidos do fixador e pelos raios ultravioleta. Nas placas encontradas por Gioli, portanto, interagiam dois tipos de rastros —a impressão lumínica e o traço do retoque— fundidos de forma deliberadamente desequilibrada: o retoque se sujeitava à imagem fotográfica. A intervenção de Gioli consistiu em degradar controladamente a imagem fotográfica (processo que acelerava o desaparecimento gradual das fotografias antigas) para restabelecer o equilíbrio ou mesmo invertê-lo, isto é, para conceder a supremacia ao retoque. O artista desvela assim o escondido, torna visível o invisível, glorifica o supérfluo. Os garranchos e os riscos se erigem em figura sobre o fundo de uma fisionomia transformada em fantasma, quase imperceptível. A subversão
Compartilhar