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Joan Fontcuberta - O beijo de Judas (2015)

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Prévia do material em texto

Editorial	Gustavo	Gili,	SL
Rosselló	87-89,	08029	Barcelona,	Espanha.	Tel.	(+34)	93	322	81	61
Editora	G.	Gili,	Ltda
Av.	José	Maria	de	Faria,	470,	Sala	103,	Lapa	de	Baixo,
CEP:	05038-190,	São	Paulo-SP,	Brasil.	Tel.	(+55)	(11)	3611-2443
	
	O	beijo	de	Judas
FOTOGRAFIA	E	VERDADE		
	Joan	Fontcuberta		
GG®
	
	
Esta	obra	foi	publicada	com	uma	subvenção	da	Direção
Geral	do	Livro,	Arquivos	e	Bibliotecas	do	Ministério	de
Cultura	da	Espanha.
Título	original:	El	beso	de	Judas.	Fotografía	y	verdad
Tradução:	Maria	Alzira	Brum	Lemos
Edição:	Flavio	Coddou
Design:	Pau	Aguilar
Produção	do	ePub:	booqlab.com
Ilustração	da	capa:	Joan	Fontcuberta,	Flor	miguera,	1984,	da	série	Herbarium
Qualquer	forma	de	reprodução,	distribuição,	comunicação	pública	ou	transformação	desta	obra	só	pode	ser	realizada	com	a	autorização	expressa	de	seus
titulares,	salvo	exceção	prevista	pela	lei.	Caso	seja	necessário	reproduzir	algum	trecho	desta	obra,	seja	por	meio	de	fotocópia,	digitalização	ou	transcrição,
entrar	em	contato	com	a	Editorial	Gustavo	Gili.
A	Editorial	Gustavo	Gili	não	se	pronuncia,	expressa	ou	implicitamente,	a	respeito	da	exatidão	das	informações	contidas	neste	livro	e	não	assume	qualquer
responsabilidade	legal	em	caso	de	erros	ou	omissões.
©	da	tradução:	Maria	Alzira	Brum	Lemos
©	do	texto:	Joan	Fontcuberta,	1997
©	Editorial	Gustavo	Gili,	SL,	Barcelona,	2010
ISBN:	978-85-8452-016-9	(epub)
Dados	Internacionais	de	Catalogação	na	Publicação	(CIP)
(Câmara	Brasileira	do	Livro,	SP,	Brasil)
	
Fontcuberta,	Joan
O	beijo	de	Judas	:	fotografia	e	verdade	/	Joan	Fontcuberta	;	[tradução	Maria	Alzira	Brum	Lemos].	--	São	Paulo	:	Gustavo	Gili,	2014.
	
Título	original:	El	beso	de	Judas	:	fotografía	y	verdad.
Bibliografia.
ISBN	978-85-8452-016-9
	
1.	Arte	e	fotografia	2.	Fotografia
3.	Fotografia	artística	I.	Título.
	
14-12909 CDD-770.1
	
Índices	para	catálogo	sistemático:
A	Vilém	Flusser
in	memoriam
		Índice	geral		
Introdução
Pecados	originais
Elogio	do	vampiro
Vidência	e	evidência
Os	peixes	de	Enoshima
A	cidade	fantasma
A	tribo	que	nunca	existiu
Verdades,	ficções	e	dúvidas	razoáveis
A	escritura	das	aparências
Referências	bibliográficas
Índice	onomástico
Crédito	das	imagens
Enfermeira	anônima,	Judit	en	la	incubadora,
Barcelona,	7/03/1988
				Introdução
“A	verdade	existe.	Só	se	inventa	a	mentira”.
GEORGE	BRAQUE,	Pensées	sur	l’art
“Creia	somente	nesta	verdade:	‘Tudo	é	mentira’”.
HUMORADAS,	LXXXI
Paul	 Valéry	 dizia	 que	 no	 início	 de	 toda	 teoria	 há	 sempre	 elementos	 autobiográficos.	 Confesso
compartilhar	desse	sábio	preceito;	o	que	eu	possa	dizer	sobre	a	fotografia,	de	qualquer	época	e	de
qualquer	 tendência,	 vem	 marcado	 por	 minha	 própria	 prática	 criativa.	 As	 ideias	 que	 exponho	 a
seguir,	portanto,	constituem,	mais	que	propostas	teóricas,	a	expressão	de	poéticas	pessoais,	textos
de	 artista,	 às	 vezes	 encaminhados	 a	 justificar	 a	 própria	 obra.	Mas	 de	 um	 artista,	 acrescentaria,
curioso	por	tudo	e	amante	de	uma	reflexão	não	isenta	de	toques	de	ironia.
Nós,	os	criadores,	costumamos	ser	monotemáticos.	Podemos	disfarçar	com	envoltórios	de	distintas
cores,	mas	no	fundo	não	fazemos	mais	que	voltar	obsessivamente	à	mesma	questão.	Para	mim	essa
questão	gira	em	torno	da	ambiguidade	intersticial	entre	a	realidade	e	a	ficção	ou	do	debate	sobre
situações	 perceptivas	 especiais,	 como	 no	 caso	 do	 trompel’oeil,	 ou	 sobre	 novas	 categorias	 do
pensamento	e	da	sensibilidade,	como	o	vrai-faux…	Mas,	acima	de	tudo,	meu	tema	fundamental	é	o
da	verdade:	adequatio	intellectus	et	rei.
A	 história	 da	 fotografia	 pode	 ser	 contemplada	 como	 um	 diálogo	 entre	 a	 vontade	 de	 nos
aproximarmos	do	real	e	as	dificuldades	para	fazê-lo.	Por	isso,	apesar	das	aparências,	o	domínio	da
fotografia	se	situa	mais	propriamente	no	campo	da	ontologia	que	no	da	estética.	Mesmo	fotógrafos
particularmente	voltados	para	uma	busca	formal	foram	clarividentes	a	esse	respeito.	Assim,	Alfred
Stieglitz,	ponte	entre	as	práticas	pictorialistas	e	documentais	do	século	XIX	e	a	modernidade	do	XX,
declarou:	“A	beleza	é	minha	paixão;	a	verdade,	minha	obsessão”.	E,	apenas	alguns	anos	mais	tarde,
radicalizaria	essa	máxima	afirmando	que	“a	 função	da	 fotografia	não	consiste	em	oferecer	prazer
estético,	mas	 em	 proporcionar	 verdades	 visuais	 sobre	 o	mundo”.	 As	 décadas	 seguintes	 serviriam
para	averiguar	como	deveriam	ser	entendidas	essas	“verdades	visuais”,	 se	é	que	podiam	sê-lo	de
alguma	maneira.
Vejamos	um	caso	 real	 como	a	própria	 vida.	Minha	 filha	 Judit	 veio	 ao	mundo	bastante	prematura,
depois	de	uma	gravidez	problemática	de	pouco	mais	de	seis	meses.	Seu	peso	só	chegava	a	1,2	quilos
e	 suas	 expectativas	de	 vida	eram	 tão	precárias	que	 teve	que	permanecer	durante	 três	meses	 em
uma	incubadora.	Além	disso,	quando	nasceu,	em	março	de	1988,	tivemos	a	infelicidade	de	sofrer	os
rigores	 de	 um	 sistema	 hospitalar	 escandalosamente	 retrógrado	 em	 assuntos	 de	maternidade.	 Os
bebês	prematuros	 ficavam	concentrados	em	uma	sala	especial,	a	cujo	 interior	os	pais	não	 tinham
acesso.	Éramos	obrigados	a	observar	nossos	filhos	de	longe,	através	de	vários	painéis	de	vidro	e	de
um	labirinto	de	 incubadoras	e	entre	a	agitação	apressada	de	médicos	e	enfermeiras	correndo	um
lado	para	o	outro.	Além	disso,	no	momento	do	parto,	Marta,	minha	mulher,	estava	sob	os	efeitos	da
anestesia	e,	portanto,	ainda	não	tivera	a	oportunidade	de	conhecer	o	rosto	da	filha.	Sua	ansiedade
era	totalmente	compreensível.
Imaginei	 então	 que	 era	 o	 momento	 de	 tirar	 proveito	 de	 meu	 ofício.	 Dei	 minha	 câmera	 a	 uma
enfermeira	 e	 pedi-lhe	 que	 se	 aproximasse	 de	 Judit	 para	 tirar	 vários	 retratos.	Depois	 de	 instruí-la
brevemente	no	manejo	do	foco	e	do	fotômetro,	a	enfermeira	imprimiu	oito	negativos.	Corri	para	o
meu	laboratório,	revelei	o	 filme,	 fiz	uma	cópia	em	contato	e	voltei	correndo	para	o	hospital,	onde
Marta	continuava	na	cama	devido	ao	processo	pós-operatório.	Era	a	primeira	vez	que	via	seu	bebê
de	 perto	 e	 é	 fácil	 imaginar	 sua	 excitação.	 Ela	 estava	 contente,	 eu	 estava	 contente,	 todos	 nós
estávamos	 contentes.	Mais	 uma	 vez	 a	 fotografia	 tinha	 posto	 à	 prova	 sua	 função	 histórica	 de	 dar
informação	visual	precisa	e	fidedigna,	viva!
Apesar	de	 tudo,	 não	 conseguia	 evitar	que	uma	desconfiança	 rondasse	minha	 cabeça.	O	que	 teria
acontecido	se	a	enfermeira	tivesse	confundido	a	incubadora	e,	por	engano,	fotografado	outro	bebê?
Provavelmente	 teríamos	 ficado	 igualmente	 satisfeitos.	 Havia	 tanta	 necessidade,	 tanta	 urgência,
tantas	 emoções	 contidas,	 que	 qualquer	 reticência	 teria	 equivalido	 à	 impertinência	 de	 um
desmancha-prazeres.	No	filme	La	vie	est	un	long	fleuve	tranquille	(A	vida	é	um	longo	rio	tranquilo,
1987),	 primeiro	 longa-metragem	 de	 Étienne	 Chatiliez,	 é	 contada	 uma	 história	 parecida:	 uma
parteira,	para	se	vingar	de	um	médico	por	quem	está	apaixonada,	 troca	dois	recém-nascidos.	Um
dos	 bebês	 procede	 de	 uma	 família	modesta	 e	 o	 outro,	 de	 uma	 família	 burguesa.	Doze	 anos	mais
tarde,	 a	 trama	 é	 descoberta,	 provocando	 situações	 cômicas.	 Mas	 quando	 Judit	 nasceu	 eu	 não
conhecia	este	argumento.
No	meu	caso,	as	fotos	mostravam	indiscutivelmente	um	bebê	no	interior	de	uma	incubadora,	todo
mundo	o	reconheceria	como	tal.	Mas	para	nós	o	importante	é	que	se	tratava	do	nosso	bebê,	um	ser
sobre	o	qual	estávamos	ansiosos	para	derramar	viscerais	sentimentos	paternais,	mesmo	sem	termos
visto	 seu	 rosto.	Contudo,	 nada	nas	 fotografias	 podia	 nos	 garantir	 o	mais	 importante:	 que	 fosse	 o
nosso.	Nada	na	imagem	garantia	o	que	para	nós	era	o	mais	vital.	Para	Roland	Barthes	“o	punctum
de	uma	 fotografia	é	esta	contingência	que,	nela,	nos	afeta	 (mas	que	 também	nos	 resulta	 tocante,
fere)”.	 O	 punctum	 nasce	 de	 uma	 situação	 pessoal,	 é	 a	 projeção	 de	 uma	 série	 de	 valores	 que
procedem	de	nós,	que	não	estão	originariamente	contidos	na	imagem.
O	 potencial	 expressivo	 de	 qualquer	 fotografia	 se	 estratificaem	 diferentes	 graus	 de	 pertinência
informativa.	É	o	salto	arbitrário,	aleatório,	contingente,	de	um	grau	a	outro	que	atribui	o	sentido	e
dá	valor	de	mensagem	à	imagem.	Grau	A:	é-um-bebê;	grau	B:	é-nosso-bebê.	Passar	frivolamente	de
A	 para	 B	 implica	 um	 salto	 muito	 simples,	 mas	 que	 modifica	 substancialmente	 a	 vinculação	 da
imagem	 com	 seu	 referente	 e,	 por	 conseguinte,	 seu	 valor	 de	 uso	 (lembremo-nos	 da	 máxima	 de
Ludwig	 Wittgenstein:	 “o	 sentido	 é	 o	 uso”).	 E	 se	 trata	 apenas	 de	 um	 tipo	 de	 intervenção,	 entre
muitos	 outros	 que,	 em	 conjunto,	 fazem	cambalear	 a	 solidez	 do	 realismo	 fotográfico,	mostrando	 a
fragilidade	da	verdade	e	da	verossimilhança.
Ao	longo	da	década	de	1980	fomos	afetados	por	novas	atitudes	e	formas	de	pensamento.	Nas	artes
visuais	 acentuou-se	 a	 problematização	 do	 real	 em	 uma	 dinâmica	 que	 nos	 arrasta	 efetivamente	 a
uma	 profunda	 crise	 da	 verdade.	 É	 possível,	 como	 sustenta	 Jeffrey	 Deitch,	 que	 “o	 fim	 da
modernidade	seja	 também	o	 fim	da	verdade”.	O	que	ocorre	na	prática	é	que	a	verdade	se	 tornou
uma	categoria	pouco	operativa;	de	alguma	forma,	só	conseguimos	mentir.	O	velho	debate	entre	o
verdadeiro	e	o	falso	foi	substituído	por	outro:	entre	“mentir	bem”	e	“mentir	mal”.
Joan	Fontcuberta,	El	nacimiento	de	Venus,	1992.
Fotograma	de	Judit	sobre	uma	reprodução	de	Botticelli.
Toda	 fotografia	 é	 uma	 ficção	 que	 se	 apresenta	 como	 verdadeira.	 Contra	 o	 que	 nos	 inculcaram,
contra	o	que	costumamos	pensar,	a	fotografia	mente	sempre,	mente	por	instinto,	mente	porque	sua
natureza	não	 lhe	permite	 fazer	outra	 coisa.	Contudo,	 o	 importante	não	é	essa	mentira	 inevitável,
mas	 como	 o	 fotógrafo	 a	 utiliza,	 a	 que	 propósitos	 serve.	 O	 importante,	 em	 suma,	 é	 o	 controle
exercido	pelo	fotógrafo	para	impor	um	sentido	ético	à	sua	mentira.	O	bom	fotógrafo	é	o	que	mente
bem	a	verdade.
É	 uma	 proposição	 cínica?	 Talvez.	 Outra	 forma	 de	 apresentá-la	 consistiria	 em	 dizer	 que	 a
humanidade	se	divide	em	céticos	e	fanáticos.	Os	fanáticos	são	os	crentes.	Fanatismo	deriva	do	latim
fanum,	que	significa	templo,	ou	seja,	o	espaço	para	o	culto,	a	 fé	e	o	dogma.	Os	céticos,	por	outro
lado,	são	os	que	desconfiam	criticamente.	O	objetivo	destes	escritos	é	ganhar	adeptos	para	a	causa
dos	céticos.	E	esse	é	um	trabalho	árduo,	especialmente	quando	continuamos	vivendo	em	um	estado
de	confusão	que	requer	a	estabilidade	que	a	crença	proporciona.
Ainda	hoje,	 tanto	no	âmbito	cotidiano	quanto	no	contexto	estrito	da	criação	artística,	a	 fotografia
aparece	como	uma	tecnologia	a	serviço	da	verdade.	A	câmera	testemunha	aquilo	que	aconteceu;	o
filme	fotossensível	está	destinado	a	ser	um	suporte	de	evidências.	No	entanto,	isso	é	só	aparência;	é
uma	convenção	que,	à	força	de	ser	aceita	sem	paliativos,	acaba	por	se	fixar	em	nossa	consciência.	A
fotografia	atua	como	o	beijo	de	Judas:	o	falso	afeto	vendido	por	trinta	moedas.	Um	gesto	hipócrita	e
desleal	que	esconde	uma	terrível	traição:	a	denúncia	de	quem	justamente	diz	personificar	a	Verdade
e	a	Vida.
A	veracidade	da	 fotografia	 se	 impõe	com	 ingenuidade	 semelhante.	Contudo,	por	 trás	da	beatífica
sensação	de	certeza,	camuflam-se	mecanismos	culturais	e	ideológicos	que	afetam	nossas	hipóteses
sobre	o	real.	O	signo	inocente	encobre	um	artifício	carregado	de	propósitos	e	de	história.	Como	um
lobo	 em	 pele	 de	 cordeiro,	 a	 autoridade	 do	 realismo	 fotográfico	 pretende	 trair	 igualmente	 nossa
inteligência.	 Judas	 se	enforca	arrasado	pelo	 remorso.	A	 fotografia	 reagirá	a	 tempo	de	escapar	de
seu	suicídio	anunciado?
Joan	Fontcuberta,	Alegoría	de	la	fotografía,	1994.
Foto-objeto:	pilha	voltaica	construída	com	uma	placa	de	cobre	e	outra	de	zinco	que	reproduz		a	vista	de	Gras	tirada	por
Niépce,	a	primeira	imagem	fotográfica	conservada.	A	fotografia,	obtida	pela	ação	da	luz,	gera	aqui	a	luz	que	justamente	a
faz	visível.
			Pecados	originais
“Há	religiões	nas	quais	a	representação	do	mundo	é	proibida	(‘usurpação	do	poder	de	um	Deus	criador	de
todas	as	coisas’).	Pensando	bem,	é	muito	possível	que	fotografar	seja	artimanha	do	diabo	e	cada	disparo,	um
pecado”.
GÉRARD	CASTELLO	LOPES,	Perto	de	Vista,	1984
Toda	mensagem	tem	uma	 tripla	 leitura:	 fala	do	objeto,	 fala	do	sujeito	e	nos	 fala	do	próprio	meio.
Para	 a	 fotografia,	 essas	 três	 facetas	 foram	denominadas	 graficamente	 por	 Joan	Costa	 como	olho,
objeto	e	objetiva.	A	existência	desses	três	aspectos	não	implica	necessariamente	um	equilíbrio	entre
eles,	mas,	como	se	de	três	coordenadas	se	tratasse,	 toda	mensagem	se	posicionaria	em	um	ponto
determinado	 por	 proximidade	 ou	 afastamento	 dessas	 três	 referências.	 Seja	 porque	 sua	 própria
natureza	tecnológica	impeliu	a	isso	—como	pensam	alguns—	ou	simplesmente	porque	determinados
usos	históricos	assim	o	propiciaram	—como	pensamos	outros—,	a	fotografia	viveu	sob	a	tirania	do
tema:	o	objeto	exerceu	uma	hegemonia	quase	absoluta.
Tanto	que	critérios	 relativos	ao	 tema	não	apenas	determinaram	o	uso	e	a	circulação	dos	diversos
materiais	 fotográficos	nos	 âmbitos	mais	 cotidianos	 (por	 exemplo,	 em	um	álbum	 familiar)	 ou	mais
especializados	 (no	 banco	 de	 imagens	 de	 um	 arquivo	 ou	 agência	 fotográfica),	 bem	 como	 em
proposições	artísticas	e	 críticas.	Por	esse	motivo,	não	é	estranho	que	um	curador	e	 teórico	 como
John	 Szarkowski	 pense	 que	 “a	 história	 da	 fotografia	 é	 a	 história	 do	 fotografável”	 (leia-se:	 o
desenvolvimento	 criativo	 da	 fotografia	 se	 apoia	 na	 busca	 incessante	 de	 novos	 motivos	 e	 as
características	 desse	 mundo	 visual	 são	 as	 que	 determinarão	 a	 estética	 de	 sua	 representação
fotográfica);	 ou	 que,	 mais	 recentemente,	 os	 responsáveis	 pelo	 projeto	 fotográfico	 da	 DATAR1,
François	 Hers	 e	 Jean-François	 Chévrier,	 falassem	 indiscriminadamente	 que	 “a	 fotografia	 de
reportagem	morreu	porque	já	não	resta	nada	por	fotografar”	(leia-se:	o	predomínio	do	objeto	gera
uma	fotografia	de	gênero	de	escasso	valor	criativo	e	intelectual	porque	só	gira	em	torno	do	mesmo
modelo	estético).
Sem	entrar	na	pertinência	desses	rac	iocínios,	também	é	verdade	que	houve	um	esforço,	que	talvez
tenha	passado	despercebido	entre	o	público	não	especializado,	por	parte	de	artistas	que	utilizaram
o	meio	 fotográfico	para	enfocá-lo	para	questões	de	ordem	poética	ou	metalinguística.	Quando	em
literatura	se	fala	da	morte	do	autor	como	fórmula	de	renovação	à	qual	se	vê	orientada	a	escritura,
em	 fotografia	 poderíamos	 falar	 da	 morte	 do	 objeto.	 Tendências	 atuais	 como	 as	 de	 molde
generativista	(o	dispositivo	tecnológico	como	sistema	configurador	autossuficiente),	pós-conceitual
(o	predomínio	da	ideia)	e	abstrato	(o	formalismo	sobre	a	ocultação	do	sujeito)	seriam	prova	disso.
Em	1993	participei	de	uma	exposição	coletiva	organizada	em	torno	de	um	eixo	temático:	o	telefone.
Resulta	 incrível	 que	 com	 critérios	 tão	 peregrinos	 seja	 possível	 hoje	 articular	 uma	 exposição
artística,	 e,	 mais	 ainda,	 uma	 coleção.	 A	 explicação	 é	 que	 a	 exposição	 era	 organizada	 pela
Companhia	Telefônica	Nacional	da	Espanha	e	todas	as	peças	foram	adquiridas	para	os	seus	fundos
de	 arte.	 Paisagens	 urbanas	 com	 cabines	 telefônicas	 em	 luzes	 crepusculares,	 estradas	 sem	 fim
salpicadas	de	postes	e	fios,	personagens	públicos	ocupadíssimos	atrás	de	uma	bateria	de	telefones
em	 cima	 das	 mesas	 de	 seus	 escritórios,	 interiores	 domésticos	 com	 aparelhos	 telefônicos	 como
totens	em	meio	à	decoração…	Sem	muito	esforço,	podemos	lembrar	de	numerosas	obras	de	autores
conhecidos,	onde	o	telefone	aparece	de	uma	forma	ou	de	outra.
De	 qualquer	 forma,	 essa	 iniciativa	 me	 fez	 lembrar	 uma	 anedota.	 No	 final	 de	 1992,	 os	 meios	 de
comunicação	 difundiram	 uma	 notícia	 curiosa	 e	 simpática:	 em	 Israel,	 uma	 empresa	 vinculada	 à
companhia	telefônica	oferecia	o	singular	serviço	de	comunicação	com	Deus.	O	processo	consistia	no
seguinte:	o	crente	podia	telefonar	para	que	transcrevessem	suas	mensagens	ou	enviardiretamente
um	 fax	 com	 suas	 orações,	 que	 seriam	 depositadas	 diligentemente	 pelo	 pessoal	 da	 empresa	 nas
frestas	 do	muro	 das	 Lamentações,	 em	 Jerusalém,	 que,	 como	 se	 sabe,	 atua	 como	 antena	 para	 as
comunicações	com	o	Altíssimo.	Pouco	depois,	minha	própria	experiência	do	 lugar	 veio	propiciada
por	essa	notícia	e	a	visita	que	realizei	desencadearia	as	considerações	que	seguem.
Durante	a	celebração	judaica	do	Sukkot,	eu	me	encontrava	diante	do	muro	das	Lamentações	como
um	mero	turista.	Ao	ver	minha	câmera	pendurada	no	pescoço,	um	guarda	se	apressou	em	avisar-me
que	não	era	permitido	 tirar	 fotografias.	A	verdade	é	que	eu	nem	 tinha	cogitado	 tirá-las,	pois	não
gosto	 de	 fazer	 concorrência	 aos	 colegas	 que	 ganham	 a	 vida	 comercializando	 postais	 de	 lugares
pitorescos.	No	 entanto,	 senti	 curiosidade	 diante	 de	 tal	 proibição.	Digamos	 que	 coleciono	motivos
pelos	quais	se	proíbe	fotografar.
Iniciei,	então,	uma	conversa	com	o	guarda	e	ele	precisou	que	não	era	permitido	 fazer	 fotografias
nem	anotações.	Cada	vez	mais	intrigado	com	a	consideração	da	fotografia	como	pecado,	continuei
questionando	até	compreender	que	a	proibição	não	estava	relacionada	ao	lugar,	considerado	santo,
e	sim	à	impossibilidade	de	realizar	qualquer	trabalho	durante	o	transcurso	da	festividade	religiosa.
O	 aparecimento	 das	 três	 primeiras	 estrelas	 no	 céu	 do	 entardecer	 seria	 o	 sinal	 que	 poria
formalmente	fim	à	celebração	e	restabeleceria	a	normalidade:	todos	poderiam	então	voltar	a	utilizar
câmeras	e	canetas,	se	assim	desejassem.	Por	trás	de	uma	regulamentação	extremamente	poética	se
camuflavam	 duas	 ideias	 muito	 interessantes	 para	 reflexão:	 a	 fotografia	 como	 “trabalho”	 e	 a
fotografia	como	“pecado”.
Não	 proscreviam	 a	 imagem	 por	 motivos	 sagrados	 do	 lugar	 nem	 por	 eventuais	 transtornos
ocasionados	 aos	 fiéis	 concentrados	 na	 prece.	 Isso	 acontece	 em	 outros	 cultos	 religiosos	 e	 já	 não
surpreende,	 excetuando	 talvez	 alguma	 curiosa	 singularidade.	A	 Igreja	Católica,	 por	 exemplo,	 não
autoriza,	provavelmente	para	evitar	tentações	sacrílegas,	que	fotografem	livremente	suas	relíquias
zelosamente	preservadas	aqui	e	ali:	braços	incorruptos	de	santos,	lascas	da	cruz,	plumas	de	asa	de
anjo	 etc.;	 e	 é	 uma	 pena:	 imagino	 o	 que	 alguém	 como	 Joel-Peter	 Witkin	 poderia	 fazer	 com	 elas.
Naquela	 ocasião,	 a	 questão	 estava	 no	 fato	 de	 que	 o	 judaísmo	 ortodoxo	 proíbe	 a	 realização	 de
qualquer	trabalho	durante	as	festas	de	guarda.	E,	ao	que	parece,	fotografar	e	escrever	implicam	o
uso	de	ferramentas	e,	portanto,	são	considerados	trabalho.
Posteriormente,	alguns	amigos	israelenses	enriqueceram	meus	conhecimentos	com	dados	cada	vez
mais	paradoxais.	Por	exemplo,	durante	as	 festividades	 religiosas	é	permitido	utilizar	um	elevador
para	descer,	mas	não	para	subir.	É	curioso,	pois	é	muito	mais	cansativo	subir	do	que	descer,	mas	a
lei	de	Deus	é	a	lei	de	Deus	e	ponto.	Na	realidade,	o	que	acontece	é	que,	para	descer,	simplesmente
se	considera	que	deixamos	agir	a	 lei	da	gravidade,	 isto	é,	uma	força	da	natureza;	por	outro	 lado,
para	subir	requerem-se	um	motor	e	o	consumo	de	certa	quantidade	de	energia.	Embora	da	estrita
perspectiva	da	mecânica	essa	consideração	seja	falsa,	tem	sua	pequena	dose	de	lógica.
Joel-Peter	Witkin,	Cabeza	de	muerto,	México,	1990
A	fotografia	foi	entendida	durante	muito	tempo	como	forma	da	natureza	representar	a	si	mesma.	O
fascínio	que	sua	descoberta	produziu	apontava	para	essa	ilusão	de	automatismo	natural.	Um	slogan
publicitário	 de	material	 daguerreotípico	 rezava:	 “Deixe	 que	 a	Natureza	 plasme	o	 que	 a	Natureza
fez”.	Essa	declaração	ontológica	sobre	a	essência	da	 imagem	fotográfica	pressupõe	a	ausência	de
intervenção	e,	portanto,	a	ausência	de	interpretação.	Trata-se	de	copiar	a	natureza	com	a	máxima
precisão	e	fidelidade	sem	depender	das	habilidades	de	quem	a	realiza.	A	consequência	aparente	era
a	 obtenção	 direta,	 sem	 paliativos,	 da	 verdade.	 Em	 1853,	 Albert	 Bisbee	 escreveu	 em	 seu	manual
sobre	a	daguerreotipia:	“Uma	das	principais	vantagens	do	daguerreótipo	é	que	atua	com	tamanha
capacidade	 de	 certeza	 e	 magnitude	 que	 as	 faculdades	 humanas	 resultam,	 ao	 seu	 lado,
absolutamente	incompetentes…	Daí	que	cenas	do	maior	interesse	possam	ser	transcritas	e	legadas
à	 posteridade	 exatamente	 tal	 como	 são,	 e	 não	 como	 poderiam	parecer	 segundo	 a	 imaginação	 do
poeta	ou	do	pintor…	Os	próprios	objetos	se	delineiam	e	o	resultado	é	verdade	e	exatidão”.
“Os	próprios	objetos	se	delineiam”.	A	noção	de	objetividade	em	que	se	fundamentou	a	implantação
social	da	fotografia	se	origina	nessa	crença,	mais	assentada	do	que	supomos,	de	que	“os	próprios
objetos	 se	 delineiam”.	 Não	 é	 preciso	 um	 operador,	 pois	 é	 “o	 lápis	 da	 natureza”	 que	 faz	 todo	 o
trabalho	 para	 nós.	 A	 etapa	 seguinte	 na	 história	 da	 fotografia	 se	 iniciou	 quando	 certos	 críticos
começaram	a	questionar	 esse	 princípio.	Em	1861,	Cornelius	 Jabez	Hughes	 indagou:	 “até	 agora	 a
fotografia	 se	 contentou	 representando	 a	 Verdade.	 Não	 pode	 ampliar	 seu	 horizonte?	 Não	 pode
aspirar	também	plasmar	a	Beleza?”	Responder	essa	questão	requereria	separar	um	enfoque	popular
e	 majoritário,	 estabelecido	 sobre	 a	 contingência	 do	 operador,	 de	 outro	 enfoque	 minoritário,	 que
reclama	a	subjetividade,	a	“autoria”	e,	definitivamente,	o	“trabalho”	do	ato	fotográfico.	O	primeiro
enfoque	guiou	a	produção	e	o	consumo	maciço	de	imagens	fotográficas;	o	segundo	ficou	relegado
aos	 círculos	 elitistas	 de	 connaisseurs.	 Mas	 eis	 então	 que,	 da	 doutrina	 infalível	 das	 Sagradas
Escrituras,	faz-se	uma	contribuição	crucial	à	teoria	fotográfica	e	se	põe	fim	ao	dilema:	a	fotografia
certamente	é	um	trabalho,	portanto	é	pecado	praticá-la	durante	os	dias	consagrados	a	Deus.	E,	por
exclusão,	devemos	enterrar	a	falácia	de	que	o	procedimento	fotográfico	é	“natural”,	“automático”,
“espontâneo”,	carente	de	 filtros	culturais	ou	 ideológicos.	Talvez	o	que	aconteça	seja	 justamente	o
contrário	e	que	detrás	dessa	suposta	transparência	se	esconda	o	complexo	dispositivo	que	inculque
um	determinado	état	d’esprit	diante	de	uma	imagem	reconhecida	como	“fotográfica”.
E,	 voltando	 à	 fotografia	 como	 transgressão	 da	 Lei,	 se	 as	 dificuldades	 linguísticas	 não	 tivessem
impedido,	 adoraria	 ter	 refutado	 meu	 amável	 interlocutor,	 o	 guarda,	 diante	 do	 muro	 das
Lamentações,	 sobre	o	caráter	profano	que	ele	atribuía,	 tão	 levianamente,	à	 fotografia.	Em	outras
latitudes	 e	 situações	 culturais,	 o	 ato	 fotográfico	 foi	 considerado	 uma	 manifestação	 da	 Luz,	 uma
revelação	do	sobrenatural.	A	consequência	de	tudo	isso	poderia	ser,	por	exemplo,	Robert	Leverant,
autor	 de	Zen	 in	 the	 Art	 of	 Photography	 (1969),	 que	 na	máxima	 11,	 das	 162	 que	 constituem	 seu
breviário,	diz	que	“a	fotografia	também	é	uma	busca	de	Deus”.
Certamente	 esse	 argumento	 teria	 causado	 pouco	 impacto	 nas	 férreas	 crenças	 de	 um
fundamentalista.	Mas	 a	 verdade	 é	 que,	 longe	 de	 ser	 uma	 simples	boutade,	 ele	 regeu	 a	 alma	 dos
seguidores	 de	 Minor	 White	 e	 da	 escola	 californiana	 que,	 durante	 as	 duas	 décadas	 seguintes	 à
Segunda	Guerra	Mundial,	conceberam	a	fotografia	como	uma	expressão	tão	mística	quanto	podem
ser	as	orações	dos	fiéis	e	os	rituais	que	têm	lugar	ao	pé	dos	supostos	restos	do	templo	de	Salomão.
Fotógrafos	de	renome	e	livres	de	qualquer	suspeita	de	afinidades	com	gurus	e	seitas,	como	Henri
Cartier-Bresson,	interpretaram	o	ato	fotográfico	como	um	instante	decisivo,	sobrenatural,	epifânico,
de	comunhão	entre	o	mundo	e	o	espírito.
Mas	Deus	ou,	ao	menos,	seus	exegetas	na	terra	não	olharam	sempre	com	bons	olhos	a	fotografia.
Algo	 de	 diabólico	 deve	 ter	 se	 infiltrado	 na	 alquimia	 da	 luz.	 Em	 Pequena	 História	 da	 Fotografia
(1931),	Walter	Benjamin	utilizou	uma	entrevista	que	saiu,	aparentemente,	no	 jornal	Der	Leipziger
Stadtanzeiger	 em	 1841	 e	 que	 tratava	 das	 reticências	 com	 que	 setoresreacionários	 alemães
poderiam	ter	acolhido	o	aparecimento	de	um	invento	maligno	e,	além	disso,	francês:	“A	vontade	de
fixar	os	 reflexos	evanescentes	não	apenas	é	 impossível,	 como	demonstraram	as	pesquisas	alemãs
realizadas	rigorosamente,	como	o	mero	desejo	de	conseguir	 isto	já	é	uma	blasfêmia.	O	homem	foi
criado	à	imagem	e	semelhança	de	Deus	e	nenhuma	máquina	construída	pelos	homens	poderá	fixar
esta	imagem	divina”.	Cabe	dizer	que	uma	das	coisas	mais	fantásticas	dessa	entrevista	é	que	é	falsa:
esse	 jornal	 nunca	 existiu.	 Numerosos	 tratados	 de	 história	 da	 fotografia	 (como	 os	 de	 Helmut
Gersheim	e	Gisèle	Freund)	reproduziram-na	sem	ter	comprovado	as	fontes	originais	e,	na	ausência
de	verificação,	o	texto	acabou	ficando	historicamente	legitimado.	Benjamin	tirou	essa	entrevista	da
biografia	 que	 Karl	 Dauthendey	 fez	 de	 seu	 pai,	 o	 fotógrafo	 Max	 Dauthendey,	 e,	 portanto,	 era	 a
entrevista	 de	 uma	 entrevista.	 Provavelmente	 Dauthendey	 filho	 a	 inventou	 para	 reforçar	 o	 tom
hagiográfico	de	sua	obra.	O	que	não	está	claro	é	se	Benjamin	estava	ou	não	consciente	do	engano;
certamente	sim,	mas	servia	tão	bem	à	sua	argumentação	que	não	renunciou	a	esta	provocação	aos
leitores.
O	 conteúdo	 dessa	 citação	 e	 a	 credibilidade	 que	 tacitamente	 lhe	 foi	 outorgada,	 por	 outro	 lado,
coincidem	com	o	horror	à	câmera	e	o	repúdio	generalizado	a	se	deixar	fotografar,	tão	habitual	em
povos	 primitivos	 (e	 não	 tão	 primitivos)	 conforme	 reconhecem	 os	 antropólogos.	O	medo	 de	 que	 a
imagem	nos	roube	a	alma	está	enormemente	estendido,	 inclusive	além	da	superstição	e	da	magia
negra,	 e	 pode	 adotar	 múltiplas	 variáveis,	 das	 estatuetas	 de	 vodu	 aos	 espelhos	 como	 objetos
maléficos.	 No	 Congo,	 por	 exemplo,	 algumas	 tribos	 de	 língua	 banto	 utilizam	 amuletos
antropomórficos	com	um	pequeno	espelho	na	área	do	umbigo,	cuja	função	consiste	justamente	em
arrancar	e	aprisionar	a	alma	do	 inimigo	 invocado.	Contudo,	a	 imagem	de	um	espelho	é	 fugaz	e	o
reflexo	 não	 fica	 retido.	 A	 fotografia,	 ao	 contrário,	 “espelho	 com	memória”,	 como	 foi	 chamado	 o
daguerreótipo,	 imobiliza	 nossa	 imagem	 para	 sempre,	 com	 toda	minúcia	 de	 detalhes	 e	 a	 verdade
como	pátina.	Uma	imobilização	e	um	aprisionamento	que	nos	aproximarão	inelutavelmente	à	ideia
da	morte.
Em	outros	casos,	e	não	convém	confundir	os	motivos,	o	que	se	condenava	na	fotografia	não	eram
tanto	seus	hipotéticos	poderes	nigromânticos,	mas	seu	caráter	de	carranca	de	proa	de	uma	fragata
irrefreável:	a	de	uma	civilização	tecnologista	que	durante	o	século	XIX	tentaria	se	impor	no	mundo
inteiro.	 John	 Stathatos	 conta	 que	 Tasunke	 Witco	 —traduzido	 como	 Cavalo	 Louco	 em	 nossos
telefilmes—	foi	um	chefe	dos	sioux	oglala	que	sempre	negou	permissão	para	ser	retratado,	inclusive
depois	 de	 sua	 rendição	 às	 tropas.	 Em	 uma	 época	 em	 que	 ainda	 não	 existiam	 as	 potentes
teleobjetivas	 atuais,	 a	 ação	 de	 algum	 paparazzo	 precursor	 teria	 resultado	 suicida.
Surpreendentemente,	mesmo	depois	de	seu	assassinato	pelo	exército	 federal	dos	Estados	Unidos,
ninguém	ousou	fotografar	seu	cadáver,	desprovendo	a	história	de	um	retrato	mortuário	como	o	que
fariam	mais	tarde	de	Che	Guevara.	O	gesto	de	Cavalo	Louco	foi	incomum	e,	na	verdade,	abundam
retratos	de	outros	chefes	indígenas	das	pradarias,	 inclusive	de	Touro	Sentado	e	Nuvem	Vermelha.
Mas	Tasunke	Witco	 “nunca	 se	 reuniu	 com	o	presidente;	…nunca	 viajou	de	 trem,	nem	dormiu	 em
uma	estalagem	ou	comeu	em	uma	mesa;	…nunca	ostentou	uma	medalha,	um	chapéu	ou	qualquer
outra	coisa	que	os	homens	brancos	pudessem	ter-lhe	devotado”.	Tampouco	nunca	quis	posar	para	a
caixa	de	memória	dos	homens	brancos.	Muito	provavelmente	o	repúdio	à	fotografia	fosse	também	o
repúdio	a	se	inscrever	em	uma	memória	que	não	reconhecia	como	própria.	O	repúdio	a	se	inscrever
em	uma	memória	beligerante.
Para	 Tasunke	 Witco,	 a	 fotografia	 representava	 uma	 agressão.	 Frequentemente	 falou-se	 sobre	 o
desconforto	 psicológico	 que	 provoca	 a	 presença	 de	 um	 fotógrafo,	 um	 outsider,	 um	 estranho,	 um
intruso.	 Mas	 da	 agressão	 psicológica	 passa-se	 facilmente	 à	 agressão	 física.	 A	 proibição	 parece
perfeitamente	coerente	quando	se	aduz	a	possibilidade	de	causar	danos	ou	transtornos.	Em	alguns
casos	 se	 trata	 do	 ruído,	 como	 quando	 em	 certos	 teatros	 não	 é	 tolerado	 o	 uso	 de	 câmeras	 cujo
disparo	 ultrapasse	 determinados	 níveis	 auditivos.	 Em	 outros	 casos	 é	 o	 uso	 do	 flash	 o	 que	 está
restringido	em	alguns	museus,	para	evitar	que	o	brilho	danifique	o	pigmento	das	pinturas	antigas,
ou	em	aquários,	pois	o	clarão	cegaria	peixes	habituados	à	penumbra	das	profundidades.
No	entanto,	descendendo	a	razões	estatisticamente	mais	representativas	e	mais	prosaicas,	ainda	há
um	vasto	repertório	de	ocasiões	em	que	a	fotografia	é	considerada	uma	transgressão	das	normas.
Nesse	caso,	a	transgressão,	de	fato,	se	fundamenta	na	própria	proibição	do	tema.	Frequentemente,
talvez	 na	maioria	 dos	 casos,	 a	 única	 intenção	 é	 proteger	 o	copyright.	 A	 precisão	 na	 obtenção	 de
cópias	 e	 a	 possibilidade	 de	 uma	 tiragem	 de	 cópias	 lesam	 o	 negócio	 de	 numerosas	 instituições
apoiado	na	exploração	dos	direitos	de	reprodução	ou,	simplesmente,	ameaçam	o	controle	sobre	a
“correta”	difusão	de	determinado	material.	Em	outros	casos,	a	 fotografia	 representa	uma	ameaça
em	assuntos	de	espionagem	e	segurança:	instalações	militares	e	centros	de	comunicação	costumam
estar	vedados	às	câmeras.	Em	situações	de	menor	domínio	público,	a	 fotografia	pode	representar
um	 risco	para	 a	 intimidade	das	pessoas	 e	 a	 imprensa	 sensacionalista	dá	 conta	 convincentemente
deste	 aspecto.	 Em	 todos	 esses	 casos	 preocupa	 aquilo	 que	 Jean	 Baudrillard	 denomina	 “o	 caráter
pornográfico	da	exposição”,	ou	seja,	a	capacidade	de	mostrar	um	objeto	sem	ocultações,	esfregando
toda	a	realidade	diante	de	nossos	olhos,	sem	reparos,	e,	para	isso,	o	meio	fotográfico,	graças	à	sua
precisão	descritiva,	tem	todas	as	cartas	a	seu	favor.
“Diga-me	com	quem	andas	e	 te	direi	quem	és”.	No	período	de	perseguição	política	e	censura,	os
estudantes	espanhóis	trocaram	esse	provérbio	por	“Diga-me	por	que	te	proíbem	e	te	direi	quem	és”.
Não	 deixa	 de	 ser	 paradoxal	 que	 a	 provisão	 de	 razões	 pelas	 quais	 proíbem	 em	 algumas
circunstâncias	 tirar	 fotos	 oferece-nos	 de	 gorjeta	 a	 melhor	 lição	 sobre	 os	 valores	 estéticos,
semióticos,	 psicológicos	 e	 antropológicos	 da	 fotografia.	 Controle	 da	 memória,	 difusão	 de
informação,	 seriação…	 “Extraordinária	 densidade	de	 pequenos	 detalhes,	 visão	mais	 além	do	 olho
nu,	 exatidão,	 clareza	 de	 definição,	 delineação	 perfeita,	 imparcialidade,	 fidelidade	 tonal,	 sensação
tangível	 de	 realidade,	 verdade”.	 Quando	 James	 Borcoman	 se	 propõe	 a	 enumerar	 os	 signos	 de
identidade	do	estatuto	icônico	da	imagem	fotográfica,	na	verdade	também	enumera	os	motivos	de
sua	proibição.	Se	a	fotografia	infunde	temor,	se	pode	lesar	certos	interesses,	constituir-se	em	uma
transgressão	 de	 determinada	 normativa,	 é	 justamente	 porque	 detém	 esses	 signos	 de	 identidade.
Muito	mais	que	um	“inconsciente	tecnológico”,	eles	configuram	uma	espécie	de	“pecado	original”
da	 fotografia,	 o	 estigma	 de	 uma	 alma	 que	 não	 nasce	 inocente.	 Os	 fotógrafos,	 portanto,	 nascem
duplamente	pecadores.
Estabelecidas	 as	 diretrizes	 desse	 estatuto,	 o	 próximo	 passo	 consiste	 em	 elucidar	 até	 que	 ponto
esses	signos	de	identidade	são	inerentes	ao	substrato	do	fotográfico	ou	se	são	atributos	históricos,
valores	 gerados	 por	 sua	 dimensão	 social	 ou	 simplesmente	 convenções	 relativamente	 aceitas	 e,
portanto,	tão	perfeitamente	arraigadas	quanto	dispensáveis.	Todo	fotógrafo	que	queira	viver	em	paz
consigo	mesmo	tem	dois	caminhos:	aceitar	essa	natureza	pecadora	e	procurar	a	redenção	na	água
batismal	ou	simplesmente	abraçar	outra	religião.
1.	A	Mission	Photographique	da	DATAR,	lançada	em	1984,	foi	uma	encomenda	pública	a	um	grupo	de	fotógrafosque
retomava	o	precedente	da	Mission	Héliographique	e	pretendia	criar	uma	vasta	documentação	do	território	francês	e	das
diversas	facetas	da	sua	paisagem.
Nancy	Burson,	sem	título,	1989.
O	retrato	foi	obtido	por	meio	da	mistura	de	um	rosto	humano	com	a	ilustração	de	um	alienígena.
			Elogio	do	vampiro
	
Pertenço	 à	 categoria	 dos	 céticos:	 se	 eu	 fosse	 são	 Tomé,	 não	 só	 teria	 a	 necessidade	 de	 tocar	 as
chagas	 de	 Cristo	 para	 acreditar	 em	 sua	 ressurreição	 como	 também	 teria	 proposto	 tirar	 suas
impressões	 digitais,	 fazer	 estudos	 odontológicos	 e	 exames	 de	 DNA,	 tal	 como	 prescreve	 hoje	 a
metodologia	 forense	 para	 identificar	 rigorosamente	 os	 cadáveres	 duvidosos,	 sejam	 cadáveres
ressusc	itados	ou	cadáveres	definitivamente	mortos.
Por	 isso	 me	 encontro	 entre	 aqueles	 que,	 apesar	 dos	 três	 retrovisores	 do	 carro,	 em	 uma
ultrapassagem	 ou	 mudança	 de	 pista,	 não	 evito	 o	 gesto	 espontâneo	 de	 virar	 a	 cabeça	 para	 me
assegurar	 de	 que	 nenhum	 outro	 veículo	 se	 encontra	 traiçoeiramente	 às	 minhas	 costas.	 E	 com
certeza	não	é	só	pela	existência	daquilo	que	nas	autoescolas	chamam	de	ângulo	cego.	Preciso	me
certificar	 com	meus	 próprios	 olhos.	Quando	 se	 trata	 de	 uma	 coisa	 importante	 para	mim,	 como	 é
minha	 integridade	 física,	 qualquer	artefato	 entre	o	perigo	e	 eu	me	provoca	desconfiança,	mesmo
que	seja	um	espelho	inócuo.	Necessito	da	garantia	que	a	visão	direta	me	proporciona.
Meu	 receio	 com	 o	 espelho	 se	 aguça	 diante	 de	 artefatos	 ainda	 mais	 complexos,	 como	 a	 câmera
fotográfica,	da	qual	o	espelho	atuou	frequentemente	como	metáfora.	Já	foi	mencionada	no	capítulo
anterior	a	figura	da	fotografia	como	“espelho	com	memória”.	Essa	expressão	foi	proposta	por	Oliver
Wendell	Holmes,	em	1861,	para	qualificar	o	daguerreótipo	e	pegou	com	tanta	força	que	foi	utilizada
mais	tarde	como	título	genérico	de	vários	tratados	sobre	fotografia.	De	fato	é	verdade	que	introduz
os	 dois	 eixos	 temáticos	 mais	 proveitosos	 para	 discutir	 certo	 estatuto	 do	 fotográfico.	 Deixemos	 a
memória	para	mais	adiante	e	falemos	do	espelho.
De	fato,	é	comum	que	as	imagens	que	a	câmera	proporciona	sejam	identificadas	com	as	refletidas
por	um	espelho.	Do	espelho	dizemos	que	nos	“devolve”	a	imagem,	como	se	a	imagem	já	fosse	nossa,
como	se	entre	a	imagem	e	o	rosto	existissem	laços	de	correspondência	infinitesimal,	ou	como	se	o
reflexo	houvesse	duplicado	fisicamente	o	objeto.	No	fundo,	é	a	mesma	sensação	que	esperamos	da
imagem	 fotográfica	 ou,	 pelo	menos,	 aquela	 que	 supomos	 que	 deve	 ter	 infundido	 em	 sua	 origem.
Essa	similitude	se	origina	no	fato	de	que	o	espelho,	como	superfície	refletiva,	é	o	suporte	de	uma
carga	simbólica	extremamente	rica	na	ordem	do	conhecimento.	Então,	o	que	o	espelho	reflete?	A
verdade,	a	sinceridade,	o	conteúdo	do	coração	e	da	consciência.	Em	um	espelho	chinês	conservado
no	museu	de	Hanói	lê-se	a	seguinte	inscrição:	“Como	o	Sol,	como	a	Lua,	como	a	água,	como	o	ouro,
seja	claro	e	brilhante	e	reflita	o	que	há	no	fundo	de	seu	coração”.
Assim,	 qualquer	 que	 seja	 sua	 significação	 profunda,	 o	 espelho	 nos	 oferece	 não	 apenas	 a	 pura
verdade,	mas	também	a	revelação	e	a	sabedoria.	Desse	ponto	resulta	previsível	o	salto	para	a	magia
e	 a	 adivinhação.	 Em	 muitas	 situações,	 os	 espelhos	 atuaram	 como	 verdadeiros	 objetos	 mágicos,
capazes	de	refletir	o	futuro.	Segundo	uma	lenda,	Pitágoras	possuía	um	espelho	mágico	voltado	para
a	Lua	que	 lhe	 permitia	 a	 visão	 do	 que	 ia	 acontecer,	 tal	 como	 faziam	as	 feiticeiras	 de	Tessália.	O
sistema	é	o	inverso	da	necromancia,	ou	simples	evocação	dos	mortos,	já	que	permite	fazer	aparecer
pessoas	 que	 ainda	 não	 existem	 ou	 presenciar	 uma	 ação	 que	 só	 será	 executada	mais	 adiante.	No
âmbito	mais	popular	dos	contos	infantis,	o	espelho	da	madrasta	da	Branca	de	Neve,	no	clássico	dos
irmãos	Grimm,	é	obrigado	igualmente	a	dizer	a	verdade	—quem	é	a	mais	bela—inclusive	à	custa	de
enfurecer	sua	proprietária	e	acabar	despedaçado.
No	entanto,	se	atendermos	à	etimologia	de	espelho	em	português,	espejo	em	castelhano,	espill	em
catalão,	 ou	 specchio	 em	 italiano,	 chegamos	 a	 speculum,	 que	 também	 deu	 origem	 ao	 termo
especulação.	Originariamente,	especular	 significava	observar	o	céu	e	os	movimentos	relativos	das
estrelas	 com	 a	 ajuda	 de	 um	 espelho.	 O	 termo	 latino	 sidus	 (estrela)	 derivou	 igualmente	 em
consideração,	 que	 significa	 etimologicamente	 olhar	 o	 conjunto	 das	 estrelas.	 Essas	 duas	 palavras
abstratas,	 que	 designam	 hoje	 operações	 altamente	 intelectuais,	 estão	 enraizadas	 no	 estudo	 dos
astros	 refletidos	 em	espelhos.	Dessa	 forma,	 introduz-se	um	belo	paradoxo:	 o	 reflexo	 asséptico	do
espelho	 se	 sobrepõe	 a	 outro	 reflexo	 especulativo.	A	 natureza	 do	 especular	 contém	 igualmente	 as
duas	visões	e	se	alguma	ficava	ofuscada	pela	outra	se	devia	unicamente	a	uma	tomada	de	posição
apriorística;	em	outras	palavras,	a	uma	rotina	cultural	e	não	a	um	imperativo	ontológico.
De	fato,	conforme	aponta	Nathan	Lyons,	um	exame	mais	minucioso	dos	espelhos	aprofunda	nessa
direção	 e	 ressalta	 claramente	 a	 ambivalência.	 Ambivalência	 que	 a	 etimologia	 reconduz	 a	 outra
palavra	 da	 mesma	 família:	 miragem.	 Embora	 o	 paralelismo	 entre	 o	 objeto	 e	 seu	 reflexo	 nos
confunda	à	primeira	vista,	os	espelhos	eliminam	a	tridimensionalidade	e	invertem	a	imagem;	alguns
a	 diminuem	 ou	 a	 aumentam;	 outros,	 como	 os	 que	 produzem	 grotescas	 distorções	 em	 feiras	 e
parques	de	diversões,	deformam-na.	Alguns	espelhos	são	semitransparentes	e	servem	para	espiar;
outros	são	côncavos	e	ampliam	a	porosidade	de	nossa	pele	para	comprovarmos	a	perfeição	ao	se
fazer	 as	 sobrancelhas	 ou	 a	 barba.	 Há	 inclusive	 espelhos	 cujo	 prodígio	 não	 é	 a	 verdade,	 mas	 a
fantasia,	a	miragem:	na	continuação	de	Alice,	Lewis	Carroll	mostra	que	por	trás	das	aparências	de
um	mundo	 simétrico	 escondem-se	 insuspeitadas	 quimeras.	 Os	 espelhos,	 portanto,	 assim	 como	 as
câmeras	 fotográficas,	 regem-se	por	 intenções	de	uso	e	seu	repertório	de	experiências	abrange	da
constatação	científica	à	fabulação	poética.
Nesse	sentido,	é	necessário	destacar	dois	personagens	do	universo	dos	mitos	que	por	sua	especial
vinculação	 com	 os	 espelhos	 mantêm	 uma	 ambivalência	 similar	 à	 que	 analisamos:	 por	 um	 lado,
Narciso	 e,	 por	 outro,	 o	 vampiro.	 Narciso	 encarna	 o	 ser	 apaixonado	 por	 sua	 própria	 imagem,
sujeitado	 obsessivamente	 ao	 seu	 reflexo.	 O	 vampiro	 comporta	 diversas	 peculiaridades	 exóticas,
como	sua	dieta	de	sangue	fresco	e	sua	aversão	à	luz,	aos	símbolos	sagrados	e	ao	alho,	mas	a	que	me
parece	mais	relevante	aqui	é	que	carece	de	reflexo,	ou	seja,	os	espelhos	não	refletem	sua	imagem.
Drácula	 e	 sua	 corte	 imortal	 se	 tornam	 invisíveis	 diante	 do	 espelho.	 Por	 extensão,	 “narcisistas”	 e
“vampiros”	 designariam	 também	 categorias	 contrapostas	 no	 mundo	 da	 representação.	 Em	 uns,
prevalece	 a	 sedução	 do	 real;	 em	 outros,	 a	 frustração	 do	 desejo,	 a	 presença	 escondida,	 o
desaparecimento.
É	fácil	imaginar	o	paradoxo	—o	suplício!—	de	um	narcisista-vampiro:	alguém	que	persegue	o	reflexo
de	 que	 carece;	 narcisistas	 e	 vampiros	 são	 metafisicamente	 contrários.	 De	 alguma	 forma,	 um
diagnóstico	possível	 sobre	a	 fotografia	contemporânea	poderia	ser	o	anúncio	da	abrupta	 irrupção
dos	 vampiros,	 sua	 proliferação,	 sua	 coexistência	 com	 os	 narcisistas	 e,	 frequentemente,	 a
progressiva	metamorfose	de	uns	em	outros.
A	 década	 de	 1970	 viu,	 em	 seu	 início	 e	 em	 seu	 final,	 essas	 duas	 formas	 opostas	 de	 afrontar	 a
imagem.	Consideremos,	 por	 exemplo,	 a	 passagem	de	Diane	Arbus	 a	Cindy	Sherman.	Apenas	 oito
anos	 separam	 o	 suicídio	 de	 Arbus,	 ocorrido	 em	 1971,	 da	 publicação	 dos	 primeiros	 trabalhos	 de
Sherman,	então	jovem	e	desconhecida.	Assistimos	com	elas	a	uma	substituição	geracional,	na	qual
evidentemente,	 mais	 do	 que	 a	 cronologia	 das	 idades,	 importao	 desajuste	 programático	 que
manifestam.
O	 estilo	 de	 Diane	 Arbus	 criara	 escola.	 Seus	 retratos	 se	 caracterizavam	 por	 um	 marco	 formal
perfeitamente	identificável	(formato	quadrado,	frontalidade	do	modelo,	luz	direta	de	flash	etc.),	mas
também,	e	sobretudo,	pela	escolha	de	um	repertório	de	indivíduos	à	margem	da	sociedade.	Arbus
explorava	 a	 sordidez	 de	 certa	 subcultura	 urbana	 com	uma	 acidez	 não	 isenta	 de	 compaixão	 e,	 de
algum	modo,	marcando	uma	corrente	humanista	de	grande	peso	na	história	da	fotografia.
Testemunhar	 o	mundo	dos	 freaks	 e	 dos	 inadaptados	 equivalia	 a	 erigir-se	 em	 consciência	 de	 uma
problemática	social	para	a	qual	se	reclamava	atenção	e	remédio.
Com	os	Film	Stills	de	Cindy	Sherman,	muda	tanto	a	posição	estética	quanto	moral.	As	composições
passam	 a	 proceder	 da	 ficção	 cinematográfica	 e	 a	 mensagem	 inerente	 a	 essa	 coleção	 de	 falsos
autorretratos	 é	 muito	 mais	 cética.	 Nos	 anos	 1980,	 o	 desencanto	 malogrou	 qualquer	 vestígio	 de
messianismo	e	as	poéticas	do	compromisso	político	ficaram	desacreditadas.	Sherman	já	não	vai	ao
encontro	 dos	 arquétipos	 e	 dos	 monstros:	 contenta-se	 com	 suas	 projeções	 na	 tela.	 De	 fato	 nem
sequer	vai	ao	encontro	de	um	mundo	feito	de	coisas,	contenta-se	com	um	mundo	feito	de	imagens.
Não	 interessa	a	experiência	direta	da	realidade,	mas	 justamente	seu	sedimento.	São	 imagens	que
aludem	a	outras	imagens;	imagens	cuja	origem	primitiva	se	perde	em	uma	distância	remota.	Cindy
Sherman	 se	 questiona	 sobre	 a	 identidade	 feminina	 e	 conclui	 que	 a	 mulher	 não	 passa	 de	 um
amontoado	de	clichês	gerados	pelos	telefilmes	e	pela	publicidade.	Suas	fantasias	evocam,	portanto,
a	despersonalização	e	a	noção	de	identidade	como	encenação.	Sua	obra	constitui	uma	celebração	do
grande	teatro	de	marionetes	da	cultura	regida	pelos	mass	media.
Esse	 deslocamento	 do	 objeto	 à	 imagem	 implica	 também	 posições	 distintas	 com	 relação	 à
consciência	artística.	Para	a	corrente	narcisista	que	se	atribui	a	Arbus,	a	 imagem	fotográfica	 tem
uma	 dupla	 natureza:	 como	 documento	 e	 como	 arte.	 Como	 arte	 consiste	 na	 exploração	 das
qualidades	únicas	do	meio;	a	 fotografia	 transcende	a	 imagem	como	estrito	suporte	de	 informação
para	chegar	a	ser	obra,	ou	seja,	um	objeto	dotado	de	uma	riqueza	de	valores	genuínos	de	forma	e	de
conteúdo.	Para	Sherman,	a	fotografia	supõe	simplesmente	um	registro	contingente	da	experiência
artística,	desprovida	em	princípio	de	um	valor	autônomo	e	significante	em	troca	enquanto	ilustração
de	um	discurso	artístico.
Cindy	Sherman,	Untitled	Film	Still	35,	1979
Daniel	Canogar,	Mirada,	1991
No	 entanto,	 o	 fundo	 epistemológico	 das	 duas	 atitudes	 separa	 as	 modalidades	 de	 diálogo	 com	 o
espelho	e	acentua	o	rompimento	entre	dois	modelos	do	fotografável	e,	por	extensão,	do	real.	Para
Arbus,	 a	 câmera	 é	 um	 instrumento	 de	 análise	 e	 crítica,	 fundamentando-se	 em	 um	 esquema	 que
pressupõe	a	dupla	existência:	de	um	lado,	de	um	sujeito	que	observa	e,	de	outro,	de	uma	alteridade
—a	 sociedade—	que	 é	 observada.	A	 linguagem	—a	 fotografia—	estabelece	 a	 ponte	 entre	 objeto	 e
sujeito.	 Para	 Sherman,	 por	 outro	 lado,	 tal	 distinção	 não	 pode	 ocorrer:	 somos	 aquilo	 que	 a	mídia
determina,	somos	um	produto	cultural,	somos	linguagem.	Para	Arbus,	o	real	são	os	fatos	e	as	coisas
tangíveis,	o	mundo	físico	que	interage	com	nosso	eu,	mas	do	qual	se	é	totalmente	independente.	Em
contraposição,	 para	 a	 lógica	 cínica	 do	 vampiro,	 a	 realidade	 é	 apenas	 um	 efeito	 de	 construção
cultural	 e	 ideológica	 que	 não	 preexiste	 à	 nossa	 experiência.	 Fotografar,	 em	 suma,	 constitui	 uma
forma	de	reinventar	o	real,	de	extrair	o	invisível	do	espelho	e	de	revelá-lo.
Dois	autores	que	posteriormente	aprofundaram	essa	dissolução	da	identidade	foram	Daniel	Canogar
e	 Keith	 Cottingham.	 Em	 suas	 instalações,	 Canogar	 propõe	 uma	 leitura	 metafórica	 do	 corpo
fragmentado.	Trata-se	de	ampliações	sobre	filme	transparente	de	seus	olhos,	lábios,	mãos,	braços	e
pernas,	colocadas	frontalmente	em	relação	ao	espectador,	de	maneira	que	ficam	semi-invisíveis.	Só
quando	recebe	a	 luz	direta	de	um	refletor,	a	 imagem	fica	projetada	por	um	 lado	e,	pelo	outro,	se
reflete	 na	 parede.	 A	 peça	 simboliza	 uma	 realidade	 corpórea	 da	 qual	 só	 podemos	 perceber	 as
sombras	e	os	 reflexos	 imateriais.	O	corpo	é	apresentado	como	uma	entidade	 intangível	 à	qual	 só
podemos	acessar	por	seu	rastro.	Só	a	ilusão	virtual	de	suas	sombras	nos	revela	sua	presença.
Cottingham	persegue	o	mesmo	propósito	com	um	resultado	extremamente	sutil	que	até	pode	passar
despercebido	para	o	espectador	desavisado.	Fotografa	retratos	de	jovens	que	personificam	o	ideal
de	perfeição	da	alta	 sociedade	dos	Estados	Unidos.	Seus	corpos	e	 suas	poses	denotam	a	aura	de
sucesso	 que	 todo	 norte-americano	 sonha	 ter.	 As	 imagens	 estão	 concebidas	 segundo	 cânones
compositivos	 da	 tradição	 pictórica	 em	 que	 todos	 os	 códigos	 nos	 resultam	 familiares:	 expressão
facial,	 postura	 estática,	 disposição	maneirista	 etc.	 Contudo,	 algo	 estranho	 e	 inquietante	 aparece,
pois	os	rostos	são	muito	perfeitos	e	excessivamente	parecidos	entre	si.	São	fotografias	de	pessoas
que	não	existem,	fantasmas	resgatados	do	vazio,	a	inversão	do	reflexo	absorvido	do	vampiro.
Keith	Cottingham,	Fictitious	Portraits,	1993	(esboços	e	detalhe)
Nancy	Burson,	Mankind,	1983-1985
Cottingham	produziu	 identidades	 fictícias	de	adolescentes	clonados,	não	por	engenharia	genética,
mas	por	manipulação	digital;	ou	seja,	não	 intervindo	na	memória	biológica	do	organismo,	mas	na
informação	que	configura	a	 imagem.	O	artista	os	hibridou	com	outros,	criou	traços	fisionômicos	a
partir	 de	 modelos	 de	 argila,	 desenhos	 anatômicos	 e	 numerosas	 fotografias	 tiradas	 de	 revistas
ilustradas;	 acrescentou	 textura	 de	 pele,	 cabelos,	 olhos	 e	 outros	 elementos	 faciais	 até	 obter	 uma
recriação	artificial,	porém	absolutamente	realista,	uma	montagem	sem	costuras,	uma	colagem	mais
mental	do	que	física.
Criando	um	retrato	como	a	soma	de	múltiplas	pessoas,	a	identidade	do	eu	se	dissolve	para	aparecer
como	um	produto	 de	 interação	 social.	Nancy	Burson,	 no	 início	 dos	 anos	 1980,	 já	 havia	 realizado
incursões	no	mesmo	campo,	apoiando-se	também	nas	possibilidades	da	imagem	digital.	Em	sua	obra
intitulada	Mankind,	 Burson	 apresenta	 um	 rosto	 com	 componentes	 de	 origens	 distintas	 (oriental,
caucasiano	e	negro);	a	proporção	dos	traços	étnicos	foi	feita	segundo	as	estatísticas	de	população
no	momento	 de	 realizar	 a	 imagem.	 Trata-se,	 portanto,	 de	 um	 verdadeiro	 retrato-robô	 ou,	melhor
dizendo,	de	um	retrato-médio	de	um	habitante	do	planeta:	o	paradigma	do	ser	humano,	a	antítese
dos	ensaios	visuais	que	pretendiam	isolar	a	essência	de	uma	etnia	ou	de	um	povo.
Talvez	haja	mais	realidade	nos	retratos	de	Burson,	como	personificação	de	toda	a	humanidade,	ou
nos	 de	Cottingham,	 como	plasma	de	 estereótipos,	 do	 que	 em	qualquer	 vã	 fotografia	 instantânea.
Como	 no	 caso	 de	 Sherman,	 são	 construções	 intelectuais	 que	 se	mostram	 como	 tais.	 Cottingham
declara:	“tento	evidenciar	a	fragmentação	e	o	rompimento	entre	a	imagem	e	a	matéria,	entre	a	alma
e	o	corpo”.	O	falso	realismo	em	seu	trabalho	atua	como	um	espelho	que	já	não	revela	a	nós	mesmos,
mas	 nossas	 invenções,	 provocando	 simultaneamente	 fascínio	 e	 repulsa.	 Rompe-se	 o	 cordão
umbilical	entre	a	imagem	e	o	objeto.	O	mito	modernista	do	espelho	acaba	por	desvanecer.	O	sentido
se	instala	na	fragilidade	porque	essas	“imagens	frágeis”,	às	quais	alude	Marta	Gili	no	catálogo	da
exposição	 com	 o	mesmo	 título	 (1994),	 acabaram	 por	 perder	 seu	 apoio	 na	 estabilidade	 de	 nossas
crenças.	 Tornam-se	 então	 “aparência	 ou	 rastro,	 ficção	 ou	 indício,	mas	 justamente	 graças	 a	 essas
qualidades	convirão	para	transmitir	os	valores	mais	intangíveis	e	frágeis	do	ser	humano”.
Enquanto	isso,	continuará	sendo	mais	prudente	virar	a	cabeça	de	vez	emquando	na	autoestrada:	o
motorista	do	outro	carro	pode	ser	um	vampiro	transparente.
Pedro	Meyer,	da	série	I	photograph	to	remember,	1991
			Vidência	e	evidência
“Esquecer	é	uma	função	tão	importante	da	memória	quanto	lembrar”.
VILÉM	FLUSSER,	Sobre	la	memória	(electrónica	o	cualquier	otra)
A	arte	da	amnésia
Para	 os	 egípcios,	 a	 linguagem	 escrita	 significava	 literalmente	 “a	 língua	 dos	 deuses”.	 Em	 uma
passagem	da	antiga	mitologia	egípcia,	o	deus	Toth,	advogado	da	sabedoria	e	patrono	dos	escribas,
defendia	perante	Amon,	o	deus-rei,	sua	invenção	da	escrita.	Amon	lamentava	o	invento	de	Toth	com
as	seguintes	palavras:	“Sua	descoberta	fomentará	o	descuido	no	ânimo	dos	que	estudam,	pois	não
se	 servirão	 de	 sua	memória,	mas	 confiarão	 totalmente	 na	 aparência	 dos	 caracteres	 escritos	 e	 se
esquecerão	 de	 si	 mesmos.	 O	 que	 descobriste	 não	 é	 uma	 ajuda	 para	 a	 memóri	 a,	 mas	 para	 a
rememoração	e	o	que	oferece	aos	seus	discípulos	não	é	a	verdade,	e	sim	seu	reflexo.	Ouvirão	muitas
coisas	e	não	terão	aprendido	nada;	serão	oniscientes	e	em	geral	ignorarão	tudo;	sua	companhia	será
entediante,	pois	terão	a	aparência	de	homens	sábios	sem	realmente	sê-lo”.
É	justo	considerar	a	fotografia	como	um	tipo	semelhante	de	escritura,	ou	seja,	de	linguagem	escrita.
Entretanto,	 sua	 aparição	 se	deu	quando	os	deuses	 já	 haviam	abandonado	os	homens	 e	 o	 espírito
positivista	 revelava-se	 sobre	 o	 mundo	 moderno.	 No	 entanto,	 os	 anátemas	 que	 recebeu	 ainda
procediam	 do	 conflito	 entre	 uma	 tradição	 oral	 (entendida	 como	 o	 supostamente	 natural)	 e	 uma
tradição	 “literária”	 (entendida	 como	 tudo	 o	 que	 está	 filtrado	 pelas	 convenções	 culturais	 e	 pela
tecnologia).	 Finalmente,	 como	 sempre,	 o	 pragmatismo	 acabou	 se	 impondo	 sobre	 as	 objeções	 dos
fundamentalistas:	a	fotografia	era	muito	valiosa	para	a	memória.
Que	 tipo	de	experiência	a	 fotografia	proporciona	ou,	mais	diretamente,	para	que	 serve?	Como	se
desse	uma	 resposta	que	não	admitia	paliativos,	 em	1992,	Pedro	Meyer	 intitulava	 I	photograph	to
remember	 (Fotografo	 para	 lembrar)	 um	 de	 seus	 trabalhos.	 Meyer	 evitava	 o	 que	 subjaz	 no
procedimento	 comum	 dos	 fotógrafos,	 uma	 prótese	 tecnológica	 que	 culmina	 o	 velho	 desejo	 de
ampliar	nossa	capacidade	mental	de	armazenar	informação	e	que,	ao	longo	da	história,	deu	lugar	a
tratados	e	a	métodos	nada	desprezíveis,	como	o	conhecido	Teatro	da	memória	de	Giordano	Bruno.	A
importância	da	memória	foi,	de	fato,	mais	urgente	para	os	homens	do	que	para	os	deuses.	Norberto
Bobbio	conclui	em	seu	ensaio	De	senectute	(1996):	“Você	é	o	que	lembra”.	Tanto	a	nossa	noção	do
real	quanto	a	essência	de	nossa	identidade	individual	dependem	da	memória.	Não	somos	nada	além
de	memória.	A	 fotografia,	 portanto,	 é	 uma	atividade	 fundamental	 para	nos	definir,	 que	 abre	uma
dupla	via	de	ascese	para	a	autoafirmação	e	para	o	conhecimento.
Na	série	I	photograph	to	remember,	que	foi	apresentada	em	formato	de	CD-ROM,	permitindo	certa
interação	com	o	espectador,	Meyer	combinava	narração	e	música	com	uma	centena	de	fotografias
de	seus	pais,	Liesel	e	Ernesto,	ambos	falecidos	em	um	breve	intervalo	de	tempo	devido	ao	câncer.
Por	 meio	 de	 imagens	 de	 estilo	 documental	 que	 transpiravam	 uma	 emotividade	 visceral,	 Meyer
oferecia	uma	reflexão	poética	sobre	o	amor	e	a	ternura,	a	união	familiar	e	as	atitudes	para	enfrentar
a	morte.
Experiente	 testemunha	 gráfica	 de	 diversas	 situações	 dramáticas	 do	 barril	 de	 pólvora	 latino-
americano,	onde	a	morte	era	moeda	corrente	e	a	desgraça	depositária	(como	a	revolução	sandinista,
para	citar	um	único	exemplo),	o	fotógrafo	tinha,	nesse	caso,	que	expressar	sua	própria	tragédia	sem
distanciamentos	 profissionais.	 Imagens	 extraídas	 do	 álbum	 familiar	 à	 maneira	 de	 flashback	 se
mesclavam	com	outras,	que	foram	feitas	expressamente	para	esse	trabalho	a	partir	do	momento	em
que	souberam	o	diagnóstico.	Impressiona-me	a	atitude	de	uns	e	de	outros,	fotógrafos	e	modelos,	ao
aceitar	esse	jogo	para	que	o	filme	retivesse	aquilo	que	poderia	desaparecer	de	uma	memória	traída
pelas	emoções.	A	fotografia	em	que	Pedro	segura	o	pai	com	o	braço	esquerdo	enquanto	com	o	outro
empunha	a	câmera	e	faz	um	retrato	em	que	inevitavelmente	ficará	plasmada	essa	demonstração	de
afeto	me	deixa	arrepiado.	Pensando	bem,	não	se	trata	tanto	de	um	retrato	quanto	de	tornar	patente
o	contato,	a	proximidade,	o	apoio,	o	amor.
Esse	trabalho	suscita	grande	variedade	de	comentários,	tanto	de	ordem	estética	quanto	moral.	Por
exemplo,	surpreende	—possivelmente	por	falta	de	costume—	a	brusca	disjunção	entre	o	calor	dos
sentimentos	e	a	“frieza”	do	meio	empregado,	a	tela	glacial	do	monitor.	Mas,	sobretudo,	surpreende
um	título	que	se	manifesta	como	declaração	ontológica	e	não	como	mero	formalismo	descritivo	mais
ou	 menos	 evocador,	 como	 costuma	 ocorrer	 com	 frequência.	 Fotografo	 para	 lembrar,	 diz	 Pedro
Meyer,	 e,	 por	menos	 que	 pensemos,	 a	 obviedade	 parece	 se	 transformar	 em	 tautologia.	 Porque	 é
sempre	assim.	Porque	sempre	fotografamos	para	lembrar	aquilo	que	fotografamos,	para	proteger	a
experiência	da	precária	fiabilidade	da	memória.	Ou	não?
Quando	a	dúvida	se	instala	na	implacabilidade	desses	raciocínios,	estamos	em	condições	de	abrir-
nos	 para	 uma	 nova	 dimensão	 de	 análise.	 Lembrar	 significa	 selecionar	 certos	 capítulos	 de	 nossa
experiência	 e	 esquecer	 o	 resto.	 Não	 há	 nada	 tão	 doloroso	 quanto	 a	 lembrança	 exaustiva	 e
indiscriminada	de	cada	um	dos	detalhes	de	nossa	vida.	Em	seu	conto	Funes	o	memorioso,	Jorge	Luis
Borges	fala	sobre	a	infelicidade	que	nos	precipita	uma	memória	excessivamente	prodigiosa.	Mas	é
sobretudo	 no	 romance	 The	 man	 who	 never	 forgot	 (1957),	 do	 prolífico	 autor	 de	 ficção	 científica
Robert	 Silverberg,	 em	 que	 talvez	 mais	 certeiramente	 se	 põe	 o	 dedo	 na	 ferida.	 Nela,	 conta-se	 a
história	de	Tom	Niles,	personagem	dotado	de	uma	memória	sobre-humana	capaz	de	se	lembrar	de
cada	acontecimento,	 por	mais	 insignificante	que	 fosse,	 de	qualquer	história	 vivida.	No	entanto,	 o
que	em	princípio	parece	ser	o	dom	de	um	cérebro	privilegiado	é,	na	verdade,	uma	grave	doença,
mais	perniciosa	até	do	que	a	amnésia	absoluta,	uma	verdadeira	monstruosidade	mnemotécnica:	a
incapacidade	de	esquecer	o	que	quer	que	seja.	Tom	Niles	 tem	sempre	presente	em	sua	mente	os
maus	momentos,	é	incapaz	de	perdoar	ofensas	ou	de	superar	traumas;	a	adversidade	lhe	pesa	como
uma	 cruz.	 Definitivamente,	 a	 impossibilidade	 de	 superar	 os	 aspectos	 negativos	 da	 vida	 acaba
transformando	sua	relação	com	o	próximo	em	uma	catástrofe.	Silverberg	insinuava	que,	de	fato,	é	a
discriminação	 da	 lembrança	 e,	 finalmente,	 o	 esquecimento,	 o	 que	 nos	 permite	 querermos	 ser
felizes.
Mas	deixemos	a	ficção	literária	e	nos	ocupemos	de	nossa	própria	situação:	tomemos	uma	coleção	de
fotografias	pessoais.	Aparentemente	só	se	incluem	situações	agradáveis	entendidas	como	exceções
da	 cotidianidade:	 ritos,	 celebrações,	 viagens,	 férias	 etc.	 Fotografamos	 para	 reforçar	 a	 felicidade
desses	momentos.	Para	afirmar	aquilo	que	nos	agrada,	para	cobrir	ausências,	para	deter	o	tempo	e,
pelo	 menos	 ilusoriamente,	 adiar	 a	 inevitabilidade	 da	 morte.	 Fotografamos	 para	 preservar	 a
estrutura	de	nossa	mitologia	pessoal.
O	louvável	esforço	de	alguns	fotógrafos	contemporâneos,	como	Nan	Goldin,	consiste	precisamente
em	 ampliar	 o	 protocolo	 do	 fotografável.	 Nan	 Goldin,	 por	 exemplo,	 estende	 o	 âmbito	 do	 álbum
familiar,	acolhendo	não	só	casamentos	como	também	funerais,	não	só	velinhas	de	aniversário,	mas
também	surras	e	hematomas,	não	só	amigos	e	amantes	quando	fazem	caras	engraçadas	ou	elogios
carinhosos,	mas	também	quando	se	drogam,	urinam	ou	fazem	sexo.	Levada	ao	limite,	essa	atuação
conduziria	a	um	paradoxo	de	natureza	borgeana:	ter	que	fotografar	sem	concessões	cada	instante
da	existência	para	que	absolutamente	nada	escape	da	voracidade	da	câmera.	O	trabalho	de	Friedl
Kubelka-Bondi,	 quando	 fotografaa	 si	 mesma	 sistematicamente	 todos	 os	 dias	 de	 sua	 vida	 em
diferentes	situações,	sempre	as	mesmas,	ao	se	 levantar,	no	asseio,	no	café	da	manhã,	no	trabalho
etc.,	se	aproxima	dessa	tarefa.	Ao	longo	dos	anos	sua	perseverança	lhe	permite	recobrir	as	paredes
de	galerias	ou	museus	com	milhares	e	milhares	de	pequenas	fotos	instantâneas	não	transcendentes
que	 sistematizam	 a	 disposição	 de	 um	 eu	 projetado	 ao	 infinito.	 Ainda	 assim,	 o	 gesto	 da	 artista
austríaca,	além	da	acumulação	desenfreada	e	obsessivamente	patológica,	permanece	na	esfera	do
simbólico	e	do	testemunhal	que	não	chega	a	alcançar	o	absoluto	borgeano.	E,	enquanto	não	se	dê
este	absoluto,	continuamos	condenados	a	 fotografar	para	esquecer:	ressaltamos	alguns	 fatos	para
adiar	os	intervalos	anódinos	e	tediosos	que	fatigam	o	espírito.	I	photograph	to	forget.	Eu	fotografo
para	esquecer.
Na	verdade,	o	enfrentamento	dialético	entre	duas	figuras	fundamentais	da	prática	fotográfica	dos
anos	1950	já	esboçava	coordenadas	teóricas	similares	ao	enfatizar	essa	dupla	polaridade	funcional
lembrança/esquecimento.	Henri	Cartier-Bresson	preconizava	o	 ato	 epifânico,	 capturar	 o	momento
decisivo	 que	 reunia	 a	 tensão	 de	 uma	 cena	 e	 sintetizava	 a	 essência	 com	 a	máxima	 contundência.
Robert	Frank	contestava	que,	tanto	existencial	quanto	estatisticamente,	a	verdadeira	fotocópia	da
realidade	deveria	ser	feita	não	no	clímax,	mas	no	lapso	que	separa	sucessivos	instantes	decisivos.
Contudo,	 a	 distância	 entre	 as	 duas	 posturas	 não	 conseguia	 negar	 um	 ponto	 de	 consenso:	 a
fotografia	como	constatação	da	experiência,	a	fotografia	como	evidência.
Friedl	Kubelka–Bondi,	2nd	Year	Portrait,	1977-1978	(25/04/1977-29/05/1977)
Mike	Mandel	e	Larry	Sultan,	do	livro	Evidence,	1977
Duas	décadas	mais	tarde,	em	1977,	os	artistas	californianos	Mike	Mandel	e	Larry	Sultan	publicaram
um	livro	intitulado	simplesmente	Evidence.	Carente	de	qualquer	tipo	de	texto,	ao	virar	as	páginas,	o
leitor	 só	 encontra	 fotografias	 documentais	 de	 angustiante	 trivialidade.	 Trata-se	 de	 imagens
assépticas	 e	 obedientes	 às	 convenções	 do	 documentalismo	 puro	 e	 simples,	 isto	 é,	 sem	 maior
aspiração	 além	 de	 transmitir	 informação	 visual	 da	 forma	 mais	 clara	 e	 concisa,	 desprovida	 de
qualquer	tipo	de	traço	de	“autor”.	Provavelmente	o	tipo	de	material	gráfico	servil	às	necessidades
do	mundo	da	indústria	ou	da	ciência.	No	entanto,	ao	perscrutar	o	significado	dessas	fotografias,	o
mais	profundo	surrealismo	emerge	de	sua	banalidade	radical.	Na	extremidade	(?)	semipeluda	de	um
símio	(?)	alguém	injetava	um	soro	(?);	um	astronauta	(?)	se	arrastava	(?)	no	carpete	(?);	uma	densa
fumaça	 (?)	 indicava	 a	 detonação	 controlada	 (?)	 de	 um	 novo	 explosivo	 (?).	 São	 algumas
interpretações	que	dou	e,	depois	de	quinze	anos	de	 ter	adquirido	o	 livro,	continuo	 fascinado	pela
incerteza	e	desassossego	que	me	provoca.
Mandel	e	Sultan	haviam	obtido	as	imagens	em	diferentes	laboratórios	de	pesquisa,	departamentos
de	veterinária	e	criminologia,	arquivos	de	bombeiros	e	de	diversos	hospitais,	institutos	aeronáuticos
e	de	estudos	agrícolas.	No	âmbito	dos	respectivos	 lugares	de	procedência,	essas	 fotografias	eram
tanto	aborrecidamente	compreensíveis	quanto	perfeitamente	úteis;	limitavam-se	a	cumprir	o	papel
característico	de	transmitir	uma	informação	precisa	e	ninguém	teria	dificuldade	em	decifrá-las.	Isso
ocorria	por	uma	simples	razão:	o	espaço	cultural	e	funcional	no	qual	estavam	inseridas	ancorava	a
eventual	disseminação	de	seus	significados.	O	que	demarcava	esse	significado,	para	dizer	em	outros
termos,	 era	 o	 laço	 entre	 o	 quadro	 da	 imagem	 e	 o	 “extraquadro”	 que	 o	 envolvia.	 De	 fato,	 para
transgredir	esse	laço	e	constatar	assim	a	fragilidade	do	sentido,	a	dupla	de	artistas	se	limitou	a	pôr
em	prática	a	técnica	dadaísta	do	estranhamento	do	objeto:	do	arquivo	no	laboratório	de	pesquisa	ao
papel	cuchê	do	livro	de	arte;	da	finalidade	descritiva	à	especulação	estética;	uma	mesma	coisa	via
fundamentalmente	 transtornado	 seu	 conteúdo	 e,	 portanto,	 sua	 relação	 com	 o	 usuário.	 A
descontextualização	 não	 apenas	 modificava	 um	 valor	 de	 uso,	 mas	 também,	 principalmente,
pulverizava	 a	 própria	 noção	 de	 que	 a	 fotografia	 é	 a	 prova	 de	 alguma	 coisa,	 o	 suporte	 de	 uma
evidência.	 Devemos	 nos	 perguntar:	 evidência	 do	 quê?	 Provavelmente,	 evidência	 apenas	 de	 sua
própria	ambiguidade.	O	que	resta,	então,	do	documento?
A	bola	de	cristal
“Filosoficamente,	a	memória	não	é	menos	prodigiosa	do	que	a	adivinhação	do	futuro”.
JORGE	LUIS	BORGES,	O	informe	de	Brodie
No	filme	Eyes	of	Laura	Mars	 (Os	olhos	de	Laura	Mars),	 um	suspense	medíocre	dirigido	por	 Irvin
Kershner	 (um	especialista	em	cinema	de	ação	que	realizou	 títulos	como	O	império	contra-ataca	 e
Robocop	II)	em	1978	e	interpretado	por	Faye	Dunaway,	aventura-se	uma	resposta	que,	apesar	das
aparências,	 ultrapassa	 o	 simples	 golpe	 de	 efeito	 do	 roteirista	 ou	 qualquer	 outra	 tentativa	 de
boutade.	O	argumento	relata	as	peripécias	de	uma	famosa	fotógrafa	nova-iorquina	que,	assim	como
Thomas	de	Blow-up,	doze	anos	antes	e	em	Londres,	une	publicidade	e	moda	com	obra	pessoal	de
criação.	 Em	 todos	 esses	 âmbitos,	 suas	 composições	 impactam	 pela	 grande	 dose	 de	 erotismo	 e
violência	(se	as	fotografias	de	reportagem	que	Thomas	apresentava	a	seu	editor	foram	cedidas	por
Don	 McCullin,	 aqui	 haveriam	 de	 sê-lo	 por	 Helmut	 Newton).	 Em	 Blow-up,	 uma	 simples	 foto
instantânea	dava	o	indício	de	um	fato	inadvertido,	a	consumação	de	um	crime,	e	as	fotografias	de
Laura	Mars,	à	sua	maneira,	também	são	indícios	de	crimes.	Até	aqui	a	estrutura	argumental	corre
paralela,	mas	 em	 seguida	 aparece	 uma	 engenhosa	 diferença:	 enquanto	Blow-up	 usa	 um	 conceito
tradicional	 de	 documento	 que	 implica	 a	 relação	 temporal	 com	 o	 passado,	 Eyes	 of	 Laura	 Mars
inverte	essa	relação	e	a	orienta	para	o	futuro.
Laura	Mars	encena	com	modelos	em	seu	estúdio	simulações	de	assassinatos	que	não	economizam
luxo,	sexo,	nem	agressividade.	O	que	em	princípio	é	apenas	fruto	da	fantasia	se	transforma	em	um
amontoado	 de	 visões	 premonitórias.	 Horrorizada,	 Laura	 Mars	 constata	 que	 sua	 imaginação	 está
acompanhando	 de	 forma	 simultânea,	 ou	 até	 antecipando,	 nos	 mínimos	 detalhes,	 alguns
acontecimentos	 reais:	uma	sucessão	de	crimes	violentos.	Naturalmente,	 o	protagonista	masculino
do	filme,	um	inspetor	de	polícia,	reticente	de	ofício	aos	prodígios	e	obcecado	por	uma	racionalidade
elementar,	considera	que	a	fotógrafa	está	ligada	ao	que	está	acontecendo.
No	entanto,	o	 interessante	não	é	a	 intriga	 tola	do	argumento,	mas	o	 fato	de	que	de	 forma	oculta
presenciamos	 a	 passagem	da	 fotografia	 como	 evidência	 à	 fotografia	 como	 vidência.	 Esse	 trânsito
reveste	o	ato	 fotográfico	de	poderes	mânticos	que	transtornam	a	percepção	empírica	do	tempo	e,
por	extensão,	o	próprio	papel	da	memória.	Talvez	Kershner	pensasse	em	Joseph	Conrad	quando	este
escreveu	que	“a	mente	do	homem	é	capaz	de	tudo,	porque	tudo	está	contido	nela,	tanto	o	passado
quanto	o	futuro”.
Um	ânimo	 razoavelmente	 cético	 nos	 impele	 a	 deduzir	 que	 acreditar	 que	 a	 fotografia	 testemunha
algo	implica,	em	primeiro	lugar,	precisamente	isso,	acreditar,	ter	fé.	O	realismo	fotográfico	e	seus
valores	subjacentes	são	uma	questão	de	fé.	Porque	não	há	nenhum	indício	racional	convincente	que
garanta	que	a	fotografia,	por	sua	própria	natureza,	tenha	mais	valor	como	índice	do	que	o	laço	feito
em	um	dedo	ou	a	relíquia.	A	mensagem	de	Michelangelo	Antonioni	em	Blow-up,	além	de	nos	dizer
que	 as	 formas	 familiares	 do	mundo	 encobrem	 outra	 realidade,	 reduz-se	 a	 que	 tudo	—inclusive	 a
certeza	fotográfica—	é	pura	ilusão:	na	sequência	final	do	filme,	um	grupo	de	mímicos	joga	tênis	com
uma	bola	inexistente	até	que	esta	cai	para	fora	da	cerca	da	quadra	e	é	um	desconcertado	Thomas,
convertido	em	cúmplice	na	causa	da	ilusão,	quem	devolve	a	bola	invisível	para	que	a	partida	possa
continuar.
É	 possívelque	 esse	 afastamento	 da	memória	 estigmatize	 o	 posicionamento	 da	 fotografia	 na	 arte
contemporânea.	 A	 alternativa	 entre	 descobrir	 e	 inventar,	 que	 sob	 diferentes	 formalizações
categorizou	 até	 agora	 as	 práticas	 artísticas	 (por	 exemplo,	 fotografia	 “direta”	 versus	 fotografia
“construída”),	 deixa	 de	 ter	 sentido.	 Tudo	 é	 descoberta	 e	 invenção.	 Entre	 as	 extravagâncias
“achadas”	de	Cristina	García	Rodero	e	as	“recriadas”	por	Joel-Peter	Witkin	varia	o	modus	operandi,
mas	 as	mensagens	 sobre	 a	 religião	 e	 a	 dor	 são	muito	 próximas.	 Com	 sua	Señora	 de	 las	 iguanas
(México,	 1979),	 Graciela	 Iturbide	 nos	 apresenta	 uma	 mulher	 com	 a	 cabeça	 coberta	 por	 esses
répteis;	 se	 desconhecermos	 as	 razões	 etnológicas	 dessa	 peculiar	 situação,	 a	 imagem	 poderia
pertencer	 à	 série	 Peluquerías	 de	 Ouka	 Leele,	 em	 que	 os	 modelos	 igualmente	 decoram	 seus
penteados	com	diversos	animais,	como	tartarugas	ou	polvos.
Ouka	Leele,	da	série	Peluquerías,	1979
Graciela	Iturbide,	Señora	de	las	iguanas,	México,	1979
Nossa	 perspectiva	 dilui	 as	 condições	 de	 trabalho	 e	 as	 intenções	 de	 todos	 esses	 fotógrafos	 e,	 na
passagem	do	tempo,	só	restam	imagens,	imagens	que	se	parecem.	Os	discursos	que	as	justificavam
se	convertem	em	espectros	que,	como	a	alma,	abandonam	o	corpo.	A	fotografia	estetiza	e	coisifica
tudo	 por	 igual,	 transforma	 a	 natureza	 em	 troféu,	 como	 um	 caçador	 que	 recolhe	 uma	 presa.	 No
entanto,	 como	aponta	Celeste	Olalquiaga,	ao	contrário	do	caçador,	o	 fotógrafo	não	mata	o	corpo,
mas	a	vida	das	coisas.	Só	deixa	a	carcaça,	o	envoltório,	o	contorno	morfológico:	através	do	visor,
qualquer	parte	de	mundo	 se	 transfigura	necessariamente	em	uma	natureza-morta,	um	retalho	de
natureza	inquietantemente	parada,	inerte.	Não	é	possível	para	a	fotografia	outro	gênero	que	não	a
naturezamorta.	Porque	o	princípio	básico	tanto	da	memória	quanto	da	fotografia	é	que	as	coisas	têm
que	morrer	em	ordem	para	viver	para	sempre.	E	na	eternidade	não	conta	o	tempo;	o	passado	e	o
futuro	se	confundem,	da	mesma	forma	que	a	lembrança	e	a	premonição	não	são	mais	que	um	único
e	mesmo	ato,	se	procedem	do	que	conviemos	em	chamar	historiadores	ou	profetas.	Sim,	a	lente	da
câmera	parece	conservar	algumas	das	propriedades	divinatórias	da	bola	de	cristal	utilizada	pelas
pitonisas,	da	qual	certamente	foi	extraída.
Além	 das	 metáforas,	 resta	 apenas	 certificar-nos	 de	 que	 a	 sensibilidade	 contemporânea	 nos
predispõe	 paradoxalmente	 à	 profecia	 e	 não	 à	 história.	 Vivemos	 em	 um	 mundo	 de	 imagens	 que
precedem	a	realidade.	As	paisagens	alpinas	suíças	nos	parecem	simples	réplicas	das	maquetes	dos
trens	elétricos	de	quando	éramos	crianças.	O	guia	do	safári	fotográfico	detém	o	jipe	no	local	exato
onde	os	turistas	melhor	reconhecerão	o	diorama	do	museu	de	história	natural.	Em	nossas	primeiras
viagens	 nos	 sentimos	 inquietos	 quando	 em	 nossa	 descoberta	 da	 torre	 Eiffel,	 do	 Big	 Ben	 ou	 da
estátua	da	Liberdade	percebemos	diferenças	com	as	imagens	que	tínhamos	prefigurado	através	de
postais	 e	 filmes.	Na	 verdade	 não	 procuramos	 a	 visão,	mas	 o	déjà-vu.	Nesse	 sentido,	 assim	 como
Laura	 Mars,	 hoje	 todos	 somos	 um	 pouco	 videntes	 e	 a	 verdade	 é	 que	 a	 fotografia	 contribuiu
intensamente	 para	 essa	 hegemonia	 da	 vidência.	 Na	 ficção	 do	 filme,	 Laura	 Mars	 pressentia	 e
visualizava	 a	morte;	 na	 realidade	de	 nossas	 vidas,	 o	 que	 antecipamos	 é	 o	 cadáver	 de	muitas	 das
presunções	de	nossa	cultura	visual.
Enoshima,	Japão,	1992
			Os	peixes	de	Enoshima
Em	Enoshima,	pequena	localidade	pesqueira	perto	de	Tóquio,	os	barcos	saem	toda	tarde	para	o	mar.
Ao	retornar,	os	pescadores	selecionam	algumas	das	peças	obtidas,	ensopam-nas	com	tinta	e,	com
elas,	 imprimem	 seus	 próprios	 cartazes.	 Os	 peixes	 substituem	 as	 nossas	 pranchas	 de	 gravura:	 a
pressão	sobre	o	papel	permite	transferir	sua	própria	imagem.	Seu	tamanho,	sua	silhueta,	a	textura
de	suas	escamas,	a	 transparência	de	suas	guelras…	Os	pescadores	só	se	permitem	o	retoque	dos
olhos,	uma	 licença	que	eu	gostaria	de	acreditar	mais	aparentada	com	a	magia	e	a	brincadeira	do
que	 com	 a	 obsessão	 realista	 de	 fidelidade	 ao	 modelo.	 Em	 seguida,	 com	 uma	 caligrafia	 delicada
anotam	o	tipo,	o	peso	e	o	preço	do	peixe.	Penduram	o	cartaz	no	interior	de	seu	estabelecimento	ao
lado	de	outros	que	anunciam	os	peixes	que	estão	à	venda	no	dia	e	que	vão	desaparecendo	conforme
os	clientes	os	compram.
Esse	procedimento	tradicional,	que	recebe	o	nome	de	gyotaku,	não	chama	a	atenção	de	ninguém	no
Japão;	 faz	 parte	 das	 formas	 populares	 de	 comércio	 implantadas	 há	 muitos	 séculos.	 Mas	 resulta
chocante	para	os	ocidentais,	sobretudo	se	nos	aprofundamos	mais	além	da	qualidade	pitoresca	que
nosso	olhar	de	turista	 tenderá	espontaneamente	a	projetar.	Da	mesma	forma	será	preciso	esforço
para	 prescindir	 provisoriamente	 das	 inegáveis	 qualidades	 estéticas	 nas	 quais	 a	 deformação
profissional	 inevitavelmente	 nos	 lança.	 É	 difícil	 não	 ficarmos	 admirados	 diante	 da	 elegância	 de
imagens	que	equilibram	forma	e	função	com	tanta	eficácia.
Eu	 gostaria,	 contudo,	 de	 destacar	 duas	 coisas.	 Em	 	 primeiro	 lugar,	 um	 determinado	 estilo	 de
comunicação	 publicitária.	 A	 publicidade	 ocidental,	 que	 se	 autodefine	 como	 informação	 mais
persuasão,	 fundamenta-se	 no	 superlativo	 e	 na	 hipérbole.	 Ora	 filtrada	 por	 notáveis	 doses	 de
criatividade,	 ora	 com	 argumentos	 destinados	 a	 atrair	 amplas	 parcelas	 da	 população,	 parece,	 no
entanto,	 que	 diante	 da	 saturação	 de	mensagens	 só	 vale	 o	 exagero,	 isto	 é,	 a	 verdade	 duvidosa,	 a
verdade	como	ponto	de	vista.	E,	para	legitimar	esse	discurso	e	lavar	a	consciência,	construímos	um
verdadeiro	 aparato	 filosófico:	 a	 verdade,	 esforcemo-nos	 em	 convir,	 não	 passa	 de	 uma	 opinião
institucionalizada	a	partir	de	determinadas	posições	de	poder.
A	 sabedoria	 popular	 dos	 pescadores	 de	 Enoshima	 torna	 inúteis	 esses	 estratagemas.	 Embora	 o
objetivo	final	seja	o	mesmo	(vender,	no	caso	peixe),	a	proposta	ao	cliente	é	forçosamente	justa	e	não
admite	o	excesso.	O	próprio	procedimento	escolhido	o	 impede:	esse	é	o	 segundo	 fator	que	quero
enfatizar.	O	contato	do	peixe	no	papel	só	permite	fixar	sua	própria	silhueta,	com	seu	tamanho	real:
trata-se	de	seu	rastro	direto,	a	analogia	pura,	a	natureza	que	fala	por	si	mesma.	Não	há	espaço	para
excessos	e	 floreios.	Diante	de	 tal	ostentação	de	“objetividade”,	devemos,	pois,	perguntar-nos	se	a
impressão	 não	 constitui	 o	 tipo	 de	 imagem	 que	 mais	 nos	 aproxima	 do	 real,	 a	 que	 mais
obstinadamente	dificulta	a	tergiversação.
Diversos	teóricos	—e	considero	especialmente	Philippe	Dubois—	analisaram	a	natureza	da	imagem
fotográfica	para	concluir	destacando	seu	valor	como	 índice,	 como	rastro.	A	 fotografia	é	um	signo
que,	efetivamente,	requer	para	sua	consecução	uma	relação	de	causalidade	física	com	o	objeto.	O
objeto	 representa	a	 si	 próprio,	mediante	a	 luz	que	 reflete.	A	 imagem	não	é	mais	que	o	 rastro	do
impacto	dessa	luz	sobre	a	superfície	fotossensível:	um	rastro	armazenado,	um	rastro–memória.
Mas	 hoje	 sabemos	 que	 a	 fotografia	 é	 tão	 maleável	 e	 tão	 falível	 quanto	 a	 memória.	 A	 fotografia
publicitária	nos	oferece	exemplos	 constantes.	Pensemos	nas	 ilustrações	de	comida	ou	bebida	que
exalam	 o	 que	 no	 jargão	 especializado	 dos	 profissionais	 se	 denomina	 appetite	 appeal.	 O	 appetite
appeal	é	um	amontoado	de	signos	imperceptíveis,	uma	retórica	dirigida	à	sedução:	as	gotículas	de
condensação	nos	copos	de	bebidas	refrescantes,	a	fumaça	cheirosa	exalada	por	um	assado,	o	corte
que	 revela	 uma	 carne	 tenramente	 rosada…	 São	 elementos	 resultantes	 do	 retoque	 ou	 de	 uma
simulação	artificial	que	incitam	o	desejo	e	fomentam	uma	exigência	de	perfeição	que	não	existe	na
realidade.
Será	 também	esse	hiper-realismo	 fotográfico	 resultado	de	um	rastro?	Sim,	mas	de	uma	categoria
diferente	de	rastro.	Por	enquanto,	convenhamosque	os	rastros	podem	ser	diretos	ou	diferidos.	Se	os
peixes	de	Enoshima	exemplificam	o	“rastro	direto”,	esses	anúncios	hipotéticos	corresponderiam	à
noção	de	“rastro	diferido”.	São	rastros	na	medida	em	que	foram	produzidos	a	partir	da	incidência
dos	raios	luminosos	sobre	o	filme	fotográfico,	mas	entre	o	modelo	e	o	suporte	interveio	uma	série	de
dispositivos	 operativos	 e	 tecnológicos	 que	 seguem	 preceitos	 culturais	 e	 ideológicos.	 Dispositivos
que	mitigam	a	nitidez	do	rastro	original	e	permitem	sua	osmose.	Para	alguns	teóricos,	como	Roland
Barthes,	a	origem	da	dimensão	alucinatória	da	imagem	fotográfica	radica	nesses	dispositivos,	uma
vez	que	permitem	que	o	que	é	falso	no	nível	de	percepção	possa	ser	verdadeiro	no	nível	de	tempo.	A
natureza	estrutural	do	meio	possibilita	que	a	veracidade	histórica	(a	presença	real	dos	manjares	do
anúncio	 frente	à	objetiva)	não	necessariamente	corresponda	com	a	veracidade	perceptiva	 (nossas
sensações).
Enoshima,	Japão,	1992
Poderíamos	dizer	que	as	fotos	convencionais	são	rastros	filtrados,	rastros	codificados	que	mostram
o	desajuste	entre	imagem	e	experiência.	A	tecnologia	que	intervém	na	produção	da	fotografia	não	é
mais	 que	 um	 saber	 acumulado.	 Todas	 as	 ferramentas	 (uma	 esferográfica,	 uma	 câmera	 ou	 um
computador)	 e	 o	 conhecimento	 de	 seu	 manejo	 não	 constituem	 senão	 memória	 aplicada.	 Seria
possível,	portanto,	concluir	que	os	rastros	são	as	unidades	da	memória,	sua	matéria-prima,	e	que	a
memória,	por	sua	vez,	é	uma	intrincadíssima	estratificação	de	rastros.
Toda	 imagem	 é	 fisicamente	 um	 rastro,	 o	 resultado	 de	 uma	 transposição	 ou	 de	 uma	 troca	 (um
depósito	de	tinta,	um	efeito	de	carga	elétrica	ou	magnética,	uma	reação	química).	Em	síntese,	uma
diferente	modulação	 de	 informação	 armazenada,	 de	 “memória”.	 Somente	 a	 consciência	 histórica
nos	permitirá	distinguir	entre	rastros	diretos	e	diferidos,	matizar	os	infinitos	graus	intermediários.
Reduzir	essa	exuberância	de	matizes	aos	seus	limites,	restringir-se	a	“índices”	e	“símbolos”,	como
propõem	os	semioticistas	seguindo	Charles	S.	Peirce	ao	classificar	o	mundo	dos	signos	icônicos,	é
uma	simplificação	excessiva	e	superficial.
Por	exemplo,	um	desenho	figurativo,	se	atendermos	à	gênese	de	seu	procedimento,	também	é	um
rastro,	marcado	pelo	atrito	do	grafite	no	papel.	Nesse	caso,	o	que	nos	interessa	não	é	o	traço,	mas	a
configuração	 codificada	 de	 traços	 que	 aspira	 a	 adquirir	 um	 sentido	 para	 nós.	 O	 traço	 seria	 uma
unidade	linguística	cuja	articulação	nos	permitiria	criar	estruturas	de	ordem	muito	mais	complexa,
mas	que	careceria	de	intenção	de	representação	por	si	mesma.	O	frottage	de	Max	Ernst,	por	outro
lado,	 seria	 uma	 modalidade	 de	 desenho	 (o	 desenho	 automático	 dos	 surrealistas,	 a	 aplicação	 do
conceito	de	escritura	automática	nas	artes	plásticas)	muito	mais	próxima	do	rastro	direto.	Mediante
essa	técnica,	colocamos	um	papel	sobre	um	objeto	de	superfície	rugosa,	esfregamos	com	um	lápis
exercendo	certa	pressão	e	obtemos	a	transferência	da	textura	do	objeto	ao	papel.
A	 vida	 e	 a	 arte	 apresentam	 diversos	 episódios	 em	 que	 se	 manifesta	 o	 conflito	 dos	 signos.	 As
impressões	digitais	dos	documentos	de	 identificação	policial	supõem	um	exemplo	de	rastro	direto
em	que	a	ponta	do	dedo	atua	como	uma	prancha	de	gravura.	No	entanto,	o	sentido	dessa	estampa
pode	variar	no	aspecto	estético	e	semântico.	Segundo	a	tradição,	no	século	IX	o	conde	de	Barcelona,
Wifredo	 o	 Cabeludo,	 foi	 ferido	 de	 morte	 no	 campo	 de	 batalha.	 Pressentindo	 seu	 fim	 iminente,
molhou	 os	 dedos	 de	 uma	 mão	 no	 sangue	 da	 ferida	 e	 traçou	 quatro	 linhas	 vermelhas	 sobre	 seu
escudo	de	ouro.	A	densidade	épica	desse	gesto	valeu	à	Catalunha	seu	emblema	nacional	e	a	história
se	 encarregou	 de	 impregnar	 esse	 brasão	 do	 conteúdo	 simbólico	 e	 grandiloquente	 próprio	 desses
casos	 (honra,	 bravura,	 esforço,	 generosidade,	 sacrifício…).	 Uma	 metassignificação	 que	 nada	 se
relaciona	 com	o	 traçado	abstrato	dessas	quatro	 linhas	 vermelhas	 sobre	 fundo	amarelo.	 Por	 outro
lado,	 quando	 os	 artistas	 do	 acionismo	 vienense	 ou	 a	 artista	 cubana	 Ana	Mendieta	 encharcam	 o
corpo	ou	parte	do	corpo	com	sangue	para	deixar	sua	marca	no	chão	ou	em	um	papel,	como	Yves
Klein	 fez	 com	 suas	 modelos	 pintadas	 de	 azul,	 desejam	 que	 a	 impressão	 anatômica	 fique
perfeitamente	reconhecível.	Embora	os	artistas	queiram	sublimar	poeticamente	esse	gesto	ou	dotá-
lo	de	uma	significação	política,	os	espectadores	devem	reconhecer	a	mão	como	mão	e	o	rosto	como
rosto.	Não	se	trata	de	manchas	de	sangue,	mas	de	impressões	feitas	com	sangue.	Percebemos,	em
um	primeiro	momento,	o	corpo	ensanguentado	e	só	depois	pensamos	em	repressão,	tortura	e	morte.
A	produção	artística	contemporânea	constata	frequentemente	os	distintos	graus	de	escalonamento
dos	 rastros	 e	 sua	 tradução	 em	 diferentes	 referências	 à	 memória.	 Podemos	 nos	 referir	 como
ilustração	 pertinente	 à	 série	 Sconosciuti	 de	 Paolo	 Gioli	 (Art&,	 Udine,	 1995).	 Gioli	 tomou	 uma
coleção	de	retratos	de	personagens	desconhecidos,	imagens	que	correspondem	a	antigos	negativos
em	 grandes	 placas	 de	 vidro	 e	 que,	 em	 sua	 época,	 foram	 objeto	 de	 um	 consciencioso	 retoque
embelezador.	 Até	 os	 anos	 1960,	 o	 retoque	 foi	 uma	 prática	 comum	 nos	 estúdios	 de	 retratistas:
dissimular	 rugas,	 marcar	 sobrancelhas,	 ressaltar	 lábios…	 O	 retoque	 devia	 solucionar	 o	 que	 a
maquiagem	e	a	iluminação	não	eram	capazes	de	corrigir.
Durante	décadas,	pictorialistas	e	puristas	se	envolveram	em	violentos	debates	sobre	a	legitimidade
do	 retoque,	 mas	 o	 comércio,	 que	 não	 entende	 nada	 além	 da	 satisfação	 do	 cliente	 traduzida	 em
benefício	econômico,	não	via	problemas	em	valer-se	de	um	recurso	híbrido	que	procedia	do	desenho
ou	da	pintura.	O	paradoxal	—e	 também	o	mais	 interessante—	era	 a	 absoluta	 necessidade	de	 sua
camuflagem,	resumida	na	máxima	de	que	“um	bom	retoque	é	aquele	que	não	se	nota”,	pois,	em	vez
de	suavizar	os	defeitos	de	um	rosto,	um	retoque	malfeito	atraía	a	atenção	para	eles	e,	portanto,	os
aumentava.	É	compreensível,	em	consequência,	que	esse	tipo	de	prática	fosse	tão	condenado	pelos
puristas,	 por	 significar	 a	 incursão	 poluente	 de	 um	 recurso	 estranho	 ao	 meio,	 quanto	 pelos
pictorialistas,	 pois	 se	 tratava	 de	 uma	 intervenção	 pictórica	 não	 assumida,	 bastarda,	 que	 se
envergonhava	de	si	própria.
Paolo	Gioli,	da	série	Sconosciuti,	1995
Tecnicamente	 esses	 retoques	 eram	 efetuados	 na	 face	 da	 emulsão	 do	 negativo	 com	 um	 lápis
gorduroso	que	 ia	 sedimentando	 camadas	 ou	 traços	para	 aumentar	 a	 densidade,	 ou	 com	um	buril
para	raspar	e	rebaixar	a	densidade	já	existente.	Às	vezes,	a	emulsão	era	recoberta	com	verniz	para
facilitar	o	trabalho	e	obter	um	resultado	permanente.	Obviamente,	o	retoque	podia	estender-se	ao
positivo,	o	que	aumentava	a	lista	de	materiais	e	utensílios	empregados	(diferentes	tipos	de	tintas	e
pigmentos,	pincéis	e,	 inclusive,	aerógrafos).	Nos	dois	casos,	o	sedimento	 físico	do	retoque	 (a	 fina
camada	de	carvão	ou	de	pigmento)	a	longo	prazo	resultava	muito	mais	duradouro	do	que	a	instável
imagem	de	prata,	atacada	pelos	resíduos	ácidos	do	fixador	e	pelos	raios	ultravioleta.
Nas	placas	encontradas	por	Gioli,	portanto,	interagiam	dois	tipos	de	rastros	—a	impressão	lumínica
e	o	traço	do	retoque—	fundidos	de	forma	deliberadamente	desequilibrada:	o	retoque	se	sujeitava	à
imagem	 fotográfica.	 A	 intervenção	 de	 Gioli	 consistiu	 em	 degradar	 controladamente	 a	 imagem
fotográfica	 (processo	 que	 acelerava	 o	 desaparecimento	 gradual	 das	 fotografias	 antigas)	 para
restabelecer	 o	 equilíbrio	 ou	mesmo	 invertê-lo,	 isto	 é,	 para	 conceder	 a	 supremacia	 ao	 retoque.	O
artista	desvela	assim	o	escondido,	torna	visível	o	invisível,	glorifica	o	supérfluo.	Os	garranchos	e	os
riscos	 se	 erigem	 em	 figura	 sobre	 o	 fundo	 de	 uma	 fisionomia	 transformada	 em	 fantasma,	 quase
imperceptível.	A	subversão

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