Prévia do material em texto
REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 4 - 2022 486 TERCEIROS E RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO NO ORDENAMENTO BRASILEIRO Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho1 Sumário: 1- Imputação e terceiros: responsabilidade indireta (ação); fato de outrem (omissão); 2- Responsabilidade civil do Estado por atos de seus agentes; 2.1- Responsabilidade por fato de outrem e responsabilidade civil do Estado; 2.2- Relação vertical entre Estado e agente público: a tese da dupla garantia, o surgimento de um dever de regresso, o significado de erro grosseiro e a regra da prescritibilidade; 3- Fato de terceiro, nexo de causalidade e responsabilidade civil do Estado por atos omissivos; 3.1- Divergências nos tribunais superiores. 1- Imputação e terceiros: responsabilidade indireta (ação); fato de outrem (omissão) O problema da imputação de danos de terceiros, já por si instigante, articula-se na hipótese em tela com os dois eixos que sustentam a dogmática da responsabilidade civil estatal, como se pode perceber abaixo.2 Em primeiro lugar, a Administração Pública, como entidade abstrata e ficcional, atua – é lógico – única e exclusivamente por meio de seus agentes, de forma que são os atos destes que vinculam a Administração e, eventualmente, geram o dever de indenizar.3 Diante dessa percepção, parece possível 1 Professor Titular de Direito Civil da Faculdade de Direito da UERJ. Procurador do Estado do Rio de Janeiro. Vice-presidente do IBERC. 2 O presente estudo decorre da apresentação intitulada “Terceiros e responsabilidade civil do Estado”, que tive a satisfação de fazer nas V Jornadas Luso-brasileiras de Responsabilidade Civil, em novembro de 2021, promovidas pelo Instituto Jurídico da Comunicação, pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e pelo IBERC, sob a coordenação de Mafalda Miranda Barbosa, Nelson Rosenvald e Francisco Muniz. 3 Caio Mário da Silva Pereira anota que “da mesma forma que as pessoas jurídicas de direito privado, que por não serem dotadas de individualidade fisiopsíquica têm de se servir de órgãos e comunicação, também o Estado, como ente abstrato, posto que cientificamente portador de realidade técnica ou realidade jurídica, tem de proceder por via de seus ‘agentes’, ou de seus ‘órgãos’” (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade civil. 11ª ed. Atualizado por Gustavo Tepedino. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 175). No mesmo sentido, Carvalho Filho: “Como pessoa jurídica que é, o Estado não pode causar qualquer dano a ninguém Sua atuação se consubstancia por seus agentes, pessoas físicas capazes de manifestar vontade real. Todavia, como essa vontade é imputada ao Estado, cabe a este a responsabilidade civil pelos danos causados por aqueles que os fazem presentes no mundo jurídico” (CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 30ª ed. São Paulo: Atlas, 2016, p. 588). REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 4 - 2022 487 concluir que a responsabilidade civil do Estado por atos comissivos consiste em espécie de responsabilidade civil por fato de terceiro, assemelhando-se, em alguma medida, à responsabilidade dos pais por atos dos filhos menores ou do empregador por atos do preposto. Em segundo, quando se trata de responsabilidade da Administração por omissão, ganham relevo atos praticados por terceiros não vinculados previamente ao ente público, mas cujas ações, em razão de alguma omissão específica do Estado, são incapazes de afastar o nexo causal entre referida omissão e o efeito lesivo. Nesse caso, embora não se esteja diante de uma espécie de responsabilidade civil por fato de terceiro propriamente dita, a análise da ação do terceiro assume papel preponderante no momento da aferição do nexo de causalidade e, consequentemente, da existência do dever de indenizar por parte da Administração Pública. Em síntese, se na modalidade comissiva (por ação) a responsabilidade do ente público aproxima-se da responsabilidade por fato de terceiro (dita indireta), nas hipóteses de responsabilidade por omissão, a avaliação da conduta do terceiro adquire centralidade no manejo da excludente de fato de outrem, que teria o condão de romper o nexo de causalidade entre a omissão estatal e o efeito lesivo. A partir dessas reflexões iniciais, convém destacar que o presente trabalho será dividido justamente nestes dois segmentos: o primeiro tem por objetivo abordar a responsabilidade civil do Estado por atos comissivos, isto é, a responsabilização do ente públicos por atos praticados (ação) por seus agentes. Nesse primeiro momento, serão abordadas as situações nas quais os atos de terceiros – agentes públicos – vinculam a Administração Pública ao dever de reparar. Para tanto, pretende-se investigar o conceito de agente público e, principalmente, estudar a dupla relação que se forma em tais casos, isto é, a relação externa entre o Estado e a vítima do dano e a relação interna, entre o ente estatal e seu agente, a fim de verificar quando e em que termos haverá direito de regresso por parte do Estado. Já o segundo eixo tem por escopo a responsabilidade civil do Estado por atos omissivos. Nesse caso, o enfoque recairá sobre a verificação dos pressupostos da conduta omissiva da Administração vis-à-vis ao ato de terceiro, para se averiguar se o resultado da ponderação se mostra capaz de elidir o nexo causal, a afastar, portanto, o dever de REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 4 - 2022 488 indenizar por parte do ente público. Para tanto, o estudo percorrerá as diversas teorias existentes e a evolução doutrinária e jurisprudencial a respeito da responsabilização por atos omissivos. 2- Responsabilidade civil do Estado por atos de seus agentes 2.1- Responsabilidade por fato de outrem e responsabilidade civil do Estado A regra geral, na responsabilidade civil, consiste na responsabilização de cada um por seus próprios atos.4 Excepcionalmente, entretanto, há casos em que ocorre imputação indireta da responsabilidade, de modo que aquele que dispuser de autoridade de direito ou de fato sobre o agente causador do dano terá o dever de repará-lo (responsabilidade por fato de terceiro).5 A Administração Pública, como mencionado, atua por meio de seus agentes, pessoas cujas ações vinculam o ente em questão. Por essa razão, parece natural enquadrar a responsabilidade civil do Estado como espécie de responsabilidade civil por fato de outrem, desvelando-se, assim, o primeiro eixo a ser trilhado no presente trabalho. Essa possibilidade de imputação do dever de indenizar a pessoas não diretamente vinculadas ao ato lesivo, no direito brasileiro, encontra-se prevista no artigo 932 do Código Civil, segundo o qual “São também responsáveis pela reparação civil: I - os pais, pelos filhos menores que estiverem sob sua autoridade e em sua companhia; II - o tutor e o curador, pelos pupilos e curatelados, que se acharem nas mesmas condições; III - o empregador ou comitente, por seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele; IV - os donos de hotéis, hospedarias, casas ou estabelecimentos onde se albergue por dinheiro, mesmo para fins de educação, pelos 4 Trata-se, aqui, da previsão contida no caput do artigo 927 do Código Civil, segundo o qual “Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”. 5 “De regra, no sistema de responsabilidade subjetiva, somente àquele que deu causa ao prejuízo impõe-se o dever de indenizar. Diz-se, portanto, que a responsabilidade é direta, decorrente de fato próprio do agente causador do dano. Noo dano. Ademais, não parece exata a noção de que, ao se dispensar a prova do elemento culpa, o Estado se tornaria, ipso facto, o segurador universal de todos os danos. Em rigor, a necessidade de comprovação do nexo de causalidade funciona como elemento de contenção. As causas excludentes de responsabilidade, em hipóteses de fato exclusivo da vítima, fato de terceiro, força maior ou caso fortuito, estabelecem o ponto de equilíbrio que afasta o risco de o Estado se transformar em um garante de tudo e de todos, em uma indesejada panresponsabilização. A denominada teoria intermediária, a rigor, ao apresentar como requisito a omissão específica do Estado para responsabilizá-lo, parece, na realidade, querer dizer que a omissão esteja direta e imediatamente ligada ao efeito lesivo, a demonstrar, com isso, a presença de nexo de causalidade entre referida omissão e o dano gerado.51 Então, quanto mais específica a omissão, ou o dever de evitar o dano, mais a omissão estatal será 50 TJRJ, 16ª CC, Apelação 0007329-43.2015.8.19.0031, Rel. Des. Lindolpho Morais Marinho, julg. 02.02.2021. 51 Nessa linha observa Juarez Freitas: “bem de ver, desnecessário provar, em situações desse jaez, culpa ou dolo dos agentes e cumpre ao Poder Público desfazer o nexo causal, tudo de acordo com a teoria do risco administrativo, redimensionada dialeticamente, sob o prisma da proporcionalidade”. (FREITAS, Juarez. A responsabilidade extracontratual do Estado e o princípio da proporcionalidade: vedação de excesso e de omissão. In: Revista de direito administrativo, vol. 241, jul./set. 2005, p. 35). Destaca-se, ainda, a expressiva lição de Cristiano Farias, Nelson Rosenvald e Felipe Braga Netto, segundo os quais: “Diminuem os espaços da omissão estatal legítima. Aumentam os deveres estatais de ação – não qualquer ação, mas uma ação eficiente, proporcional, cuidados. Omissões que nos séculos passados não responsabilizariam o Estado, progressivamente, no século atual, passarão a responsabilizá-lo” (FARIAS, Cristiano; ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETTO, Felipe. Curso de direito civil: responsabilidade civil, volume 3. São Paulo: Atlas, 2015, p. 606). REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 4 - 2022 508 relevante juridicamente. Confira-se, em sequência, o que se pode depreender dos debates no âmbito dos tribunais superiores. 3.1 – Divergências nos tribunais superiores O Supremo Tribunal Federal, por muito tempo, não apresentou solução uniforme para o problema da omissão, apresentando acórdãos em ambos os sentidos (imputação objetiva e subjetiva), podendo-se delinear a existência de franca divergência entre suas Turmas, em torno da virada do século XX para o XXI. Naquela altura, a Primeira Turma do STF decidia inúmeras vezes no sentido da adoção irrestrita da responsabilidade objetiva do Estado em casos de omissão, conforme se pode observar nos Recursos Extraordinários nºs 109.615-2/RJ (Rel. Min. Celso de Mello, julgado em 28/05/1996, votação unânime) e 170.014-9/SP (Rel. Min. Ilmar Galvão, julgado em 31/10/1997, votação unânime).52 Por outro lado, a Segunda Turma do Egrégio Tribunal apresentava acórdãos nos quais se percebem, à primeira vista, argumentos que se inclinam na direção da tese objetivista, mas que, ao cabo da análise, dão guarida à teoria subjetiva em sua plenitude. Neste sentido, é oportuno mencionar os Recursos Extraordinários nºs 180.602-8/SP (Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 15/12/1998, votação unânime) e 179.147-1/SP (Rel. Min. Carlos Velloso, julgado em 12/12/1997, votação unânime).53 52 Por ilustrativa do entendimento esposado pela Colenda Turma, convém reproduzir excerto da ementa do RE nº 109.615-2/RJ: “A teoria do risco administrativo, consagrada em sucessivos documentos constitucionais brasileiros desde a Carta Política de 1946, confere fundamento doutrinário à responsabilidade civil objetiva do Poder Público pelos danos a que os agentes públicos houverem dado causa, por ação ou omissão. Essa concepção teórica, que informa o princípio constitucional da responsabilidade civil objetiva do Poder Público, faz emergir, da mera ocorrência de ato lesivo causado à vítima pelo Estado, o dever de indenizá-la pelo dano pessoal e/ou patrimonial sofrido, independentemente de caracterização de culpa dos agentes estatais ou de demonstração de falta do serviço público. (...) O princípio da responsabilidade objetiva não se reveste de caráter absoluto, eis que admite o abrandamento e, até mesmo, a exclusão da própria responsabilidade civil do Estado, nas hipóteses excepcionais configuradoras de situações liberatórias – como o caso fortuito e a força maior – ou evidenciadoras de ocorrência de culpa atribuível à própria vítima (RDA 137/233 – RTJ 55/50)”. 53 No voto do Ministro Marco Aurélio, relator do primeiro acórdão (RE nº 180.602-8/SP), lê-se o seguinte: De início, depreende-se do preceito constitucional que os vícios na manifestação de vontade, revelados por dolo ou culpa, dizem respeito apenas ao direito de regresso. Em si, o Estado responde de forma objetiva. Daí a impropriedade do acórdão recorrido na parte em que se consignou: ‘não ficou demonstrada a existência de culpa por parte do poder público...’ (folha 182). Na espécie, o Recorrente, trafegando pela via pública, chocou-se com um semovente. (...) A hipótese é, iniludivelmente, reveladora da deficiência de um serviço público, valendo notar que a responsabilidade não foca restrita a certo espaço do dia, a certo horário de funcionamento burocrático da entidade pública (original sem grifos). REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 4 - 2022 509 Mais explícito, o Ministro Carlos Velloso, também da Segunda Turma, não deixava dúvidas quanto ao acolhimento da doutrina da culpa administrativa – ou da responsabilidade pela falta do serviço, desenvolvida pelo Conselho de Estado, na França – conforme e verifica na ementa do RE nº 179.147-1/SP, de que vale reproduzir breve trecho da ementa: III. Tratando-se de ato omissivo do poder público, a responsabilidade civil por tal ato é subjetiva, pelo que exige dolo ou culpa, numa de suas três vertentes, negligência, imperícia ou imprudência, não sendo, entretanto, necessário individualizá-la, dado que atribuída ao serviço público, de forma genérica, a faute de service dos franceses. O acórdão em comento debruça-se sobre fato lamentavelmente não raro no cotidiano brasileiro: a morte de detento por seus companheiros. Na espécie, temendo por sua incolumidade, a vítima solicitou sua transferência para uma “cela segura”, destinada a detentos que corriam risco de vida ou de agressões graves. E, conforme o decisum então recorrido dá notícia: “A Administração atendeu o pedido da vítima. Mas a cela nada tinha de segura, como os fatos logo vieram a demonstrar”. O voto do Ministro Relator concluiu que o Estado de São Paulo “no caso, deve responder pelo preso em ‘cela segura’, diante da ameaça que existia contra a vítima e que lhe foi transmitida. O poder público foi, portanto, negligente, modalidade de culpa, a faute de service dos franceses”. A mencionada doutrina da responsabilidade pela falta do serviço encontra lastro nas lições de diversos administrativistas, dentre eles: Celso Antônio Bandeira de Mello (já citado), Lúcia Valle Figueiredo e Maria Sylvia Di Pietro.54 O mesmo entendimento se depreende da ementa do Recurso Extraordinário nº 140.270-9/MG, também da Segunda Turma, julgado em 15/04/1996, e igualmente de relatoria do Ministro Marco Aurélio: RESPONSABILIDADE CIVIL – ESTADO – MORTE DE POLICIAL MILITAR – ATO OMISSIVO VERSUS ATO COMISSIVO. Se de um lado, e se tratando de ato omissivo do Estado, deve o prejudicado demonstrar a culpa ou dolo, de outro, versandoa controvérsia sobre ato comissivo – liberação, via laudo médico, do servidor militar, para a feitura de curso e prestação de serviços – incide a responsabilidade objetiva. 54 Acrescente-se que, no mesmo sentido, é o magistério de GAPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2001 p. 836; CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 30ª ed. São Paulo: Atlas, 2016, p. 597; e DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, vol. 7 – Responsabilidade Civil. 15ª ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 530. Favoráveis à adoção da responsabilidade objetiva para atos omissivos são as posições de CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 11ª ed. 2014, São Paulo: Atlas, p. 297; e CASTRO, Guilherme Couto de. A Responsabilidade Civil Objetiva no Direito Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 37. REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 4 - 2022 510 Com a passagem do tempo, e o amadurecimento dos debates, acórdãos mais recentes do Supremo Tribunal Federal inclinaram-se para a tese segundo a qual a omissão estatal pode ser dividida em “genérica” e “específica”, atribuindo-lhes consequências diversas.55 Apenas quando restar demonstrada omissão específica é que pode haver responsabilização do Estado. Nesses termos foi julgado o Recurso Extraordinário 841.526/RS, que analisou o Tema 592 da Repercussão Geral do STF, com relatoria do Ministro Luiz Fux e no qual restou fixada a seguinte tese: “Em caso de inobservância do seu dever específico de proteção previsto no art. 5°, inciso XLIX, da Constituição Federal, o Estado é responsável pela morte de detento”.56 Interessante mesmo notar o avanço argumentativo dos julgados do Tribunal acerca da matéria. Como visto acima, a justificativa fundava-se, inicialmente, na falta do serviço ou na presença de dolo ou culpa da Administração Pública, a caracterizar responsabilização subjetiva. A partir do julgamento supramencionado, no entanto, o Tribunal voltou-se à aplicação da teoria do risco administrativo tanto para ações quanto omissões do Estado. Isso, por óbvio, não afasta a necessidade de comprovação de efetiva omissão do ente público e do nexo de causalidade entre tal omissão e o efeito lesivo, o que, nos termos colocados na tese fixada, traduz-se como “inobservância de dever específico”. Veja-se o seguinte extrato da ementa do acórdão em questão: 1. A responsabilidade civil estatal, segundo a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 37, § 6º, subsume-se à teoria do risco administrativo, tanto para as condutas estatais comissivas quanto paras as omissivas, posto rejeitada a teoria do risco integral. 2. A omissão do Estado reclama nexo de causalidade em relação ao dano sofrido pela vítima nos casos em que o Poder Público ostenta o dever legal e a efetiva possibilidade de agir para impedir o resultado danoso. (...)7. A responsabilidade civil estatal resta conjurada nas hipóteses em que o Poder Público comprova causa 55 No direito português, Mafalda Miranda Barbosa faz as seguintes ponderações sobre a responsabilidade do Estado por atos omissivos e que se aproximam do conceito de omissão específica utilizada no direito brasileiro: “Se o caráter negativo da ação – aqui vista como omissão – não é perturbador para o jurista, quer pela equiparação valorativa entre o facere e o omittere, quer porque a omissão de deveres no âmbito da supervisão pode ser vista como um deficiente cumprimento da atividade de supervisão, colocam-se, ao invés, interessantes questões, neste quadro, ao nível da imputação objetiva. (...)haveremos de considerar a edificação de uma esfera de responsabilidade pelo regulador. Esta é delineada a partir da preterição dos deveres de supervisão e para ela serão reconduzidos, em princípio, todos os danos que se integrem no âmbito de proteção de tais deveres, ou seja, teremos de ver quais os interesses que com eles se procuravam proteger e que danos se pretendiam obviar. Se o dano experimentado for um desses cuja obliteração o dever pretendia alcançar, então, afirma-se a imputação”. (BARBOSA, Mafalda Miranda. A causalidade na responsabilidade civil do Estado. In: Revista de direito da responsabilidade, a. 2, 2020, p. 436). 56 STF, Tribunal Pleno, RE 841.526/RS, Rel. Min. Luiz Fux, julg. 30.03.2016. REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 4 - 2022 511 impeditiva da sua atuação protetiva do detento, rompendo o nexo de causalidade da sua omissão com o resultado danoso. Nos mesmos termos fixou-se a tese referente ao Tema 366 da Repercussão Geral do tribunal, analisado no Recurso Extraordinário 136.861/SP: “Para que fique caracterizada a responsabilidade civil do Estado por danos decorrentes do comércio de fogos de artifício, é necessário que exista a violação de um dever jurídico específico de agir, que ocorrerá quando for concedida a licença para funcionamento sem as cautelas legais ou quando for de conhecimento do poder público eventuais irregularidades praticadas pelo particular”.57 Ainda mais recentemente, o Supremo Tribunal Federal julgou o RE 608.880/MT, referente ao Tema 362 de sua Repercussão Geral, que tratava da responsabilidade civil do Estado pelos danos decorrentes do cometimento de crimes por detentos evadidos do sistema prisional. Na ocasião, fixou-se a seguinte tese: “Nos termos do artigo 37, § 6º, da Constituição Federal, não se caracteriza a responsabilidade civil objetiva do Estado por danos decorrentes de crime praticado por pessoa foragida do sistema prisional, quando não demonstrado o nexo causal direto entre o momento da fuga e a conduta praticada”.58 É enorme a relevância desse julgado na trajetória da discussão doutrinária e jurisprudencial acerca da responsabilidade do Estado por atos omissivos, pois, na ementa do acordão, afirma-se expressamente que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal “entende ser objetiva a responsabilidade civil decorrente de omissão, seja das pessoas jurídicas de direito público ou das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público”. Veja-se: EMENTA. CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. ART. 37, § 6º, DA CONSTITUIÇÃO. PESSOA CONDENADA CRIMINALMENTE, FORAGIDA DO SISTEMA PRISIONAL. DANO CAUSADO A TERCEIROS. INEXISTÊNCIA DE NEXO CAUSAL ENTRE O ATO DA FUGA E A CONDUTA DANOSA. AUSÊNCIA DE DEVER DE INDENIZAR DO ESTADO. PROVIMENTO DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. 1. A responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito público e das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público 57 STF, Tribunal Pleno, RE 136.861/SP, Rel.p/ acórdão Min. Alexandre de Moraes, julg. 11.03.2020. 58 STF, Tribunal Pleno, RE 608.880/MT, Rel.p/ acórdão Min. Alexandre de Moraes, julg. 08.09.2020. REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 4 - 2022 512 baseia-se no risco administrativo, sendo objetiva, exige os seguintes requisitos: ocorrência do dano; ação ou omissão administrativa; existência de nexo causal entre o dano e a ação ou omissão administrativa e ausência de causa excludente da responsabilidade estatal. 2. A jurisprudência desta CORTE, inclusive, entende ser objetiva a responsabilidade civil decorrente de omissão, seja das pessoas jurídicas de direito público ou das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público. 3. Entretanto, o princípio da responsabilidade objetiva não se reveste de caráter absoluto, eis que admite o abrandamento e, até mesmo, a exclusão da própria responsabilidade civil do Estado, nas hipóteses excepcionais configuradoras de situações liberatórias como o caso fortuitoe a força maior ou evidências de ocorrência de culpa atribuível à própria vítima. 4. A fuga de presidiário e o cometimento de crime, sem qualquer relação lógica com sua evasão, extirpa o elemento normativo, segundo o qual a responsabilidade civil só se estabelece em relação aos efeitos diretos e imediatos causados pela conduta do agente. Nesse cenário, em que não há causalidade direta para fins de atribuição de responsabilidade civil extracontratual do Poder Público, não se apresentam os requisitos necessários para a imputação da responsabilidade objetiva prevista na Constituição Federal - em especial, como já citado, por ausência do nexo causal. 5. Recurso Extraordinário a que se dá provimento para julgar improcedentes os pedidos iniciais. Tema 362, fixada a seguinte tese de repercussão geral: “Nos termos do artigo 37, § 6º, da Constituição Federal, não se caracteriza a responsabilidade civil objetiva do Estado por danos decorrentes de crime praticado por pessoa foragida do sistema prisional, quando não demonstrado o nexo causal direto entre o momento da fuga e a conduta praticada”. Como se nota, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal na matéria avançou sobremaneira nos últimos anos, desde a divergência existente entre as Turmas a respeito da responsabilidade objetiva ou subjetiva dos atos estatais omissivos até a afirmação atual de que a Corte reconhece a natureza objetiva da responsabilidade da Administração Pública mesmo para casos de omissão – o que não significa que o Estado se responsabilize por todo e qualquer dano ocorrido, já que não se trata de responsabilidade por risco integral.59 Há, assim, a necessidade de comprovação dos elementos da responsabilidade 59 Sustenta-se, em doutrina, que a responsabilidade civil do Estado por risco integral teria lugar, no direito brasileiro, apenas em casos de acidentes nucleares, na linha do que dispõe o artigo 21, XXIII, d da Constituição da República. Sobre o tema, ver ARAGÃO, Alexandre Santos de. A responsabilidade civil e ambiental em atividades nucleares. In: Revista de Direito Administrativo, vol. 271, jan./abr. 2016, pp. 70- 78. REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 4 - 2022 513 civil objetiva, quais sejam, a omissão estatal, a ocorrência do dano e, muito especialmente, o nexo de causalidade entre um e outro (risco administrativo). No que toca à jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, no entanto, a discussão se põe sob outros termos. Isso porque, conforme se observa, o entendimento de que a responsabilidade do Estado por atos omissivos tem natureza subjetiva parece arraigado praticamente na totalidade de seus julgados. Ilustrativo dessa situação é o julgamento, pela Segunda Turma, do Recurso Especial 1.869.046/SP,60 no qual o apego ao referido entendimento mostra-se tamanho que, no esforço de dar solução justa a determinado caso prático e, para isso, poder aplicar o regime objetivo à responsabilização da Administração Pública por ato omissivo, recorreu-se ao artigo 927, parágrafo único, do Código Civil ao argumento de que, na hipótese, estava-se diante de atividade de risco anormal. Confira- se o seguinte extrato da ementa: Falecimento de advogado nas dependências do fórum. Morte causada por disparos de arma de fogo efetuados por réu em ação criminal. Omissão estatal em atividade de risco anormal. (...) 3. A regra geral do ordenamento brasileiro é de responsabilidade civil objetiva por ato comissivo do Estado e de responsabilidade subjetiva por comportamento omissivo. Contudo, em situações excepcionais de risco anormal da atividade habitualmente desenvolvida, a responsabilização estatal na omissão também se faz independentemente de culpa. 4. Aplica-se igualmente ao Estado a prescrição do art. 927, parágrafo único, do Código Civil, de responsabilidade civil objetiva por atividade naturalmente perigosa, irrelevante seja a conduta comissiva ou omissiva. 6. Ademais, também presente o nexo causal, apto a determinar a responsabilização do Poder Público no caso concreto. Se não fosse por sua conduta omissiva, tendo deixado de agir com providências necessárias a garantir a segurança dos magistrados, autoridades, servidores e usuários da Justiça no Fórum Estadual, o evento danoso não teria ocorrido. É certo ainda que a exigência de atuação nesse sentido - de forma a impedir ou, pelo menos, dificultar que réu em Ação Penal comparecesse à audiência portando arma de fogo – não está, de forma alguma, acima do razoável. Conquanto se perceba com facilidade os contornos da divergência conceitual-normativa entre a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, pode-se entrever traço comum no sentido da tentativa de garantir a reparação integral da 60 STJ, 2ª T., REsp 1.869.046/SP, Rel. Min. Herman Benjamin, julg. 09.06.2020. REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 4 - 2022 514 vítima, sem atribuir panresponsabilidade aos entes públicos, e, nesse sentido, torna-se fundamental o papel do nexo de causalidade na qualificação das excludentes invocadas – fato de terceiro, ou da vítima, força maior etc. Sem embargo, e, para além dos dissídios retratados no presente texto, conclui-se este ensaio, cruzando as fronteiras temáticas demarcadas, sob a luz das funções preventiva e precaucional da responsabilidade civil, com a sinalização de que ao Estado não basta adotar conduta de não causar danos; antes, e mais do que isso, importa atuar positivamente no sentido da proteção dos direitos fundamentais, diante do reconhecimento da preeminência das situações existenciais sobre as patrimoniais, para a adoção de políticas públicas e medidas preventivas que sirvam de instrumento a evitar a consumação de lesões irreparáveis.entanto, o anseio de justiça e proteção à vítima impôs certa flexibilização da exigência de comprovação do ‘nexo causal entre o dano e a pessoa indigitada como causador do dano’, passando-se a admitir a atribuição a terceiros do dever de indenizar”. (TEPEDINO, Gustavo; TERRA, Aline de Miranda Valverde; GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Fundamentos do direito civil, vol. 4. 1ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 137). Para outras considerações acerca da responsabilidade civil indireta, ver MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo; ROSENVALD, Nelson. Responsabilidade civil indireta e inteligência artificial. In: BARBOSA, Mafalda Miranda; BRAGA NETTO, Felipe; SILVA, Michael César; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. (Org.). Direito Digital e Inteligência Artificial: Diálogos entre Brasil e Europa. 1ed. Indaiatuba: Foco, 2021, v. 1, p. 181-194. REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 4 - 2022 489 seus hóspedes, moradores e educandos; V - os que gratuitamente houverem participado nos produtos do crime, até a concorrente quantia”. Em complemento, o artigo 933 estabelece que “as pessoas indicadas nos incisos I a V do artigo antecedente, ainda que não haja culpa de sua parte, responderão pelos atos praticados pelos terceiros ali referidos”. Indigitado dispositivo representa importante avanço legislativo em relação ao regime encampado pelo Código Civil de 1916. Isso porque a legislação revogada previa expressamente que a responsabilidade indireta se baseava em culpa in eligendo ou culpa in vigilando. Exigiam-se, assim, dois elementos probatórios: (i) a prática do ato pelo agente causador direto do dano; e (ii) a culpa in eligendo ou in vigilando do sujeito a quem se imputava o dever de indenizar. Nos termos do artigo 1.523 do Código Beviláqua, “só serão responsáveis as pessoas enumeradas nesse e no artigo 1.522, provando-se que elas concorreram para o dano por culpa, ou negligência de sua parte”.6 Ainda durante a vigência do regime anterior, no entanto, a jurisprudência relativizou a previsão legislativa com a edição do Enunciado 341 da Súmula do Supremo Tribunal Federal em 1963, de acordo com a qual “é presumida a culpa do patrão ou comitente pelo ato culposo do empregado ou preposto”, acompanhando a mais qualificada doutrina daquele tempo. Inaugurou-se, assim, um segundo momento no roteiro histórico da responsabilidade indireta no direito brasileiro ao se admitir presunção relativa de culpa dos sujeitos imputáveis indiretamente.7 Bastava, com isso, que a vítima demonstrasse a relação causal entre o prejuízo por ela sofrido e o ato de terceiro causador do dano; 6 Nas palavras de Carvalho de Mendonça, “O que se chama hoje responsabilidade por facto de outrem é, num sentido moral superior, uma responsabilidade de facto próprio, tendo por fundamento a culpa in vigilando ou a culpa in eligendo e não no direito de representação, pois que o responsável jamais pode ser presumido como tendo dado ao seu representante direitos de offender. De modo que essa espécie de responsabilidade não é derogatória do princípio da personalidade da culpa. É pela própria culpa, afinal, que responde quem não vigia e guarda aquelles a quem deve guarda e vigilância; é, no fundo, a culpa de imprudência ou negligência” (CARVALHO DE MENDONÇA, Manuel Inácio. Doutrina e Prática das Obrigações. Curitiba: Typ. e Lith. a vapor Imp. Paranaense, 1908, p. 876). 7 Ricardo Pereira Lira menciona essa evolução doutrinária e jurisprudencial da responsabilidade civil do Estado como exemplo de direito insurgente. Nas palavras do autor: “No direito legislado [a referência, aqui, é ao CC de 1916], por conseguinte, a responsabilidade do amo, patrão ou comitente é desenganadamente subjetiva. Não basta que a vítima prove a culpa do preposto, serviçal ou empregado. Para surgir a responsabilidade do preponente seria necessário, em face do texto da lei, que a vítima provasse a culpa in vigilando ou in eligendo do preponente, ou seu procedimento doloso. (...) Os operadores do direito criaram, insurgentemente, a responsabilidade sem culpa do preponente, por força da qual provada a culpa ou dolo do preposto é responsável o preponente”. (LIRA, Ricardo Pereira. A Aplicação do Direito e a Lei Injusta. In: Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, n. 5. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 93. REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 4 - 2022 490 admitindo-se, porém, prova em contrário por parte do responsável quanto à sua ausência de culpa.8 Na sequência, vislumbra-se ainda um terceiro momento nessa caminhada rumo à objetivação da responsabilidade indireta, no qual os tribunais brasileiros passaram a não mais aceitar a demonstração de ausência de culpa, o que, em termos práticos, representou uma aproximação com a responsabilidade objetiva.9 A consagração definitiva, porém, da responsabilidade objetiva nos casos de responsabilidade civil por fato de outrem deu-se apenas com a promulgação do Código Civil de 2002, com seu já mencionado artigo 933, que admite a imputação da responsabilidade “ainda que não haja culpa” dos sujeitos responsáveis. Deve-se deixar assentado que, em toda e qualquer hipótese de responsabilidade indireta, há sempre uma relação dita complexa que exige dupla investigação.10 Em primeiro lugar, existe a relação base, de primeiro grau ou horizontal, entre o agente causador do dano e a vítima. E, em segundo lugar, há ainda uma relação de segundo grau ou vertical entre o agente causador do dano e o sujeito a quem se imputa o dever de indenizar. A constatação dessa dupla relação é que justifica o surgimento da responsabilidade civil por fato de 8 Carvalho Santos posiciona-se da seguinte forma a respeito do assunto: “Estamos com Pontes de Miranda, em que o artigo 1.521 não constitui exceção ao princípio da culpa, nem cria responsabilidade por culpa alheia, mas regula o ônus da prova, estabelecendo para o lesado a presunção de que foram culpadas as pessoas designadas no texto. (...) O que parece claro é que o art. 1.521, que se deve interpretar como dispositivo análogo ao BCG, §§ 831 E 832, impõe à vítima tão somente a obrigação de determinar o autor direto do dano, daí decorrendo, automaticamente, a culpa do responsável, qualquer que seja dentre os ali enumerados, que, para eximir-se, terá que provar que não foi negligente”. (CARVALHO SANTOS, João Manuel de. Código civil brasileiro interpretado, principalmente do ponto de vista prático, vol XX. 12ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1990, pp. 213-214). Em entendimento dissonante, Aguiar Dias compreendia que a presunção em questão referia-se à causalidade, não já à culpa, veja-se: “consideramos infundado o vivo debate, travado na jurisprudência francesa, sobre se tal presunção se refere à culpa ou à responsabilidade: a presunção é de causalidade; o que se presume é nexo de causa entre o fato da coisa e o dano” E continua: “O dever jurídico de cuidar das coisas que usamos se funda em superiores razões de política social, que induzem, por um ou outro fundamento, á presunção de causalidade aludida e, em consequência, à responsabilidade de quem se convencionou chamar o guardião da coisa, para significar o encarregado dos riscos dela decorrentes”. (DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. 11ª ed. Atualizado por Rui Berford Dias. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 588-589). 9 “Os Tribunais tornaram-se refratários à demonstração de ausência de culpa, e se consolidou, ao menos no caso da responsabilidade do patrão pelo ato culposo do empregado (art. 1.521, III), a presunção absoluta. A rigor, referida interpretação acabou por produzir resultado prático equivalente à adoção da teoria objetiva, na medida em quese afastava por completo a possibilidade de demonstração da ausência de culpa in eligendo ou in vigilando, e apenas se elidia a responsabilidade pelas excludentes de causalidade”. (TEPEDINO, Gustavo; TERRA, Aline de Miranda Valverde. A evolução da responsabilidade civil por fato de terceiro na experiência brasileira. In: Revista de Direito da Responsabilidade, ano 1, 2019, p. 1.083). 10 Alvino Lima afirma que “Os problemas mais árduos e controvertidos sobre a responsabilidade civil, quer na doutrina, como na jurisprudência, debatem-se no estudo da responsabilidade civil pelo fato de outrem”. (LIMA, Alvino A responsabilidade civil pelo fato de outrem. Rio de Janeiro: Forense, 1973, p. 27). REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 4 - 2022 491 outrem, na medida em que, (i) se inexistir a relação lesiva base, sequer surgirá a obrigação indenizatória; e, (ii) se não houver a relação jurídica de segundo grau, então haverá responsabilização direta do agente causador do dano, não havendo que se cogitar de responsabilidade civil por fato de terceiro. Importante, com isso, desmembrar o estudo em dois momentos, a perquirir, primeiro, a relação base e, na sequência, a relação vertical. Os contornos e requisitos da relação de primeiro grau são diversos a depender do regime de responsabilidade incidente à hipótese.11 Com efeito, assim como a responsabilidade civil direta pode ser objetiva ou subjetiva, da mesma forma a relação base pode atrair qualquer dos dois regimes, de modo que exigirá a verificação dos pressupostos de imputação definidos para cada caso, seja (i) a culpa do agente que agiu diretamente; ou, (ii) nos casos de inimputáveis por ausência de discernimento, a verificação de ato equivalente ao ilícito; ou, ainda, (iii) a demonstração de que na relação de base havia risco no desempenho da atividade pelo agente (CC, art. 927, par. único); (iv) a constatação de relação de consumo, a atrair o regime de responsabilidade do CDC, dentre outros. Dessa forma, nos casos, por exemplo, que envolverem ato praticado por preposto e que não caracterizem atividade de risco nem relação de consumo, será necessário averiguar a presença de todos os requisitos do ato ilícito, isto é, a culpa do preposto, o dano sofrido pela vítima e o nexo causal. No caso do filho menor, por outro lado, deverão estar presentes o dano e o nexo causal, afastando-se a presença de culpa por se tratar de agente incapaz, mas, como pontua a doutrina especializada, o ato praticado deve equivaler a um ato ilícito. Especificamente quanto à responsabilidade civil do Estado, a relação base, entre agente público e vítima, reveste-se de caráter objetivo. Isso porque, por força do § 6º do artigo 37 da Constituição da República, “as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros”.12 Como se nota, basta a existência do dano e do nexo 11 Conforme anota Maria Celina Bodin de Moraes, “a cada dia tem-se mais e mais hipóteses de regimes especiais diferenciados, tornando impossível a tarefa de sistematizar a matéria da responsabilidade civil”. (BODIN DE MORAES, Maria Celina. LGPD: um novo regime de responsabilização civil dito proativo. In: civilistica.com, a. 8, n. 3, 2019, p. 1). 12 Para uma análise pormenorizada da evolução histórica da responsabilidade civil do Estado no Brasil, ver MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo. Problemas de responsabilidade civil do Estado. In: Rumos REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 4 - 2022 492 causal para que a Administração reste responsabilizada, não havendo que se perquirir culpa do agente. A segunda parte do mencionado dispositivo constitucional menciona culpa ou dolo do agente apenas como premissas para o exercício de direito de regresso do ente público em face de seu agente. Essa questão, no entanto, será objeto de aprofundamento adiante. Pois bem, verificada a presença dos requisitos mencionados para que surja o dever de indenizar, passa-se ao segundo momento, no qual se busca constatar a existência de subordinação ou dependência entre o agente causador do dano e um terceiro que a lei acaba por imputar a obrigação de arcar com a indenização; trata-se da relação dita vertical ou de segundo grau. Essa segunda relação terá, em todo e qualquer caso, natureza objetiva por força do supracitado artigo 933 do Código Civil, inexistindo qualquer necessidade de investigação da culpa daquele que se vê responsabilizado, bastando a existência da relação com o causador do dano para que surja para aquele o dever de indenizar. Assim, a lei não exige qualquer investigação sobre eventual negligência do pai na vigilância de seu filho menor, tampouco se preocupa com a demonstração de culpa do empregador – ou do Estado – na escolha de seu preposto ou agente. Delineados os contornos estruturais da responsabilidade civil por fato de terceiro, importa tecer breves considerações sobre seu aspecto funcional.13 O fundamento constitucional da responsabilização indireta encontra-se no princípio da reparação integral, previsto no artigo 5º, incisos V e X (reparação integral em perspectiva extrapatrimonial) e artigo 5º, inciso XXII (reparação integral em perspectiva patrimonial).14 Com efeito, as hipóteses contemporâneos de direito civil: estudos em perspectiva civil-constitucional. Belo Horizonte: Fórum, 2017, pp. 173-203. 13 “O fato jurídico, como qualquer outra entidade, deve ser estudado nos dois perfis que concorrem para individuar sua natureza: a estrutura (como é) e a função (para que serve). (...) Identificar a função não é o mesmo que descrever os efeitos do fato, interligando-os desordenadamente entre si, mas sim apreender o seu significado normativo. Este significado, reconstruído pela aplicação das regras e princípios, se exprime em efeitos do fato”. (PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Trad.: Maria Cristina de Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 642). E afirma ainda o mesmo autor: “Entender a norma não é, e nem pode ser, o resultado da exegese puramente literal, mas é a individualização da sua lógica e da sua justificação axiológica; e isso é impossível sem levar em conta o restante do ordenamento e dos princípios que o sustentam”. (PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Trad.: Maria Cristina de Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 629). 14 “Como se pode inferir, de um lado, em exame sob a perspectiva existencial, os danos extrapatrimoniais são merecedores de tutela privilegiada, estando intrinsecamente ligados à dignidade da pessoa humana, segundo a normativa da Constituição. Erigida a fundamento da República (art. 1º, III), a dignidade da pessoa humana se irradia prioritária e necessariamente por todo o ordenamento e consagra a plena compensação dos danos morais (art. 5º, V e X), fundamento extrapatrimonial da reparação integral. (...) Noutro giro, a perspectiva patrimonial da reparação integral parece fundamentar-se no direito de propriedade (art. 5º, XXII). A indenização, sob a perspectiva da reparação integral, consiste em expediente pelo qual a vítima REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 4 - 2022 493 nas quais a legislação prevê a imputação do dever de reparar a terceiro que não provocou o dano têm em comum o objetivo de conferir à vítima maior probabilidade de ressarcimento, afinal, na generalidade dos casos, os pais terão patrimônio mais vultoso em comparação com o do filho menor, o mesmo ocorrendo nos casos do empregador em relação ao preposto, do Estado em relação aoseu agente e assim por diante.15 Trata-se de decorrência lógica da tutela dos interesses da vítima à luz da efetividade do princípio da reparação integral. 2.2- Relação vertical entre Estado e agente público: a tese da dupla garantia, o surgimento de um dever de regresso, o significado de erro grosseiro e a regra da prescritibilidade Identificados os contornos da responsabilidade civil por fato de terceiro, em especial da responsabilidade do Estado por atos de seus agentes, e verificado que a relação base ou de primeiro grau, entre ofensor e vítima, possui as mesmas características da responsabilidade civil direta, a variar os requisitos apenas de acordo com o regime de responsabilidade civil aplicável ao caso, importante enfocar a específica relação de segundo grau existente na responsabilidade civil do Estado, que possui como personagens o agente público e a Administração. O conceito de agente público adotado pela legislação é bastante amplo, a abarcar “os membros dos Poderes da República, os servidores administrativos, os agentes sem vínculo típico de trabalho, os agentes colaboradores sem remuneração, enfim todos aqueles que, de alguma forma, estejam juridicamente vinculados ao Estado”.16 Essa procura reaver o patrimônio que efetivamente perdeu ou deixou de lucrar, na exata medida da extensão do dano sofrido. (MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo. Limites ao princípio da reparação integral no direito brasileiro. In: civilistica.com, a. 7, n. 1, 2018, p. 3). 15 A responsabilidade por fato de outrem pode ser compreendida a partir do contexto geral da busca do direito civil por tutelar à vítima do dado, fenômeno que tem como carro chefe a constante expansão da responsabilidade objetiva. Na lição de Josserand: “todas essas leis, e muitas outras ainda, preparam e consagram uma verdadeira revolução, dissociando completamente a responsabilidade da culpa, erigindo o patrão, a comuna ou o explorador da aeronave em seu próprio segurador por motivo dos riscos que criou; a ideia de mérito ou de demérito nada tem a ver no caso; a lei impõe o princípio justo e salutar ‘ a cada um segundo seus atos e segundo suas iniciativas’, princípio valioso para uma sociedade laboriosa, princípio protetor dos fracos: a força, a iniciativa, a ação devem ser por si mesmas geradoras de responsabilidade”. (JOSSERAND, Louis. Evolução da responsabilidade civil. In. Revista Forense, vol. LXXXVI, a. XXXVIII, abril de 1941, p. 557). 16 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 30ª ed. São Paulo: Atlas, 2016, p. 589. REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 4 - 2022 494 abrangência se verifica no artigo 2º da Lei de Improbidade Administrativa, com redação conferida pela Lei nº 14.230/2021, segundo o qual “para os efeitos desta Lei, consideram- se agente público o agente político, o servidor público e todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função nas entidades referidas no art. 1º desta Lei”.17 Vale destacar, ainda, que a Constituição é clara ao afirmar que o Estado responde pelos danos causados por seus agentes quando estiverem atuando “nessa qualidade”, isto é, apenas quando o ato lesivo for praticado a pretexto da função que o sujeito exerce na Administração Pública. Dessa forma, caso algum servidor público cause dano a outrem sem que esteja no exercício de suas funções, evidentemente haverá sua responsabilização direta, sem que se cogite de responsabilidade do Estado. Existem, no entanto, algumas situações dúbias. Já foi levado à apreciação do Judiciário, por exemplo, caso em que policial militar, fora do horário de serviço e sem estar fardado, causa dano a terceiro com arma de fogo pertencente à corporação. Em casos como esse, não se vislumbra jurisprudência consolidada nos tribunais brasileiros, encontrando-se decisões tanto a favor quanto contrária à responsabilização do Estado. No Supremo Tribunal Federal, são escassos os casos que chegam a ter o mérito analisado por se considerar matéria de direito infraconstitucional e que depende de exame probatório. Há, no entanto, alguns casos antigos que abordam a questão, como o julgamento do Recurso Extraordinário 135.310/SP,18 que entendeu pela responsabilização do ente público e o Recurso Extraordinário 294.440/RJ,19 que, embora não tratasse de hipótese de arma de 17 As entidades referidas no art. 1º da referida lei são: Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, bem como da administração direta e indireta, no âmbito da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal; entidades privadas que recebam subvenção, benefício ou incentivo, fiscal ou creditício, de entes públicos ou governamentais; e entidades privadas para cuja criação ou custeio o erário haja concorrido ou concorra no seu patrimônio ou receita atual. 18 RECURSO EXTRAORDINÁRIO. POLICIAL CIVIL. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA POR ATO ILÍCITO PRATICADO PELO AGENTE PÚBLICO NO EXERCÍCIO DAS SUAS FUNÇÕES. INDENIZAÇÃO DEVIDA. 1. A Constituição Federal responsabiliza as pessoas jurídicas de direito público pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, não sendo exigível que o servidor tenha agido no exercício das suas funções. 2. Dano causado por policial. Responsabilidade objetiva do Estado em face da presunção de segurança que o agente proporciona ao cidadão, a qual não é elidida pela alegação de que este agiu com abuso no exercício das suas funções. Ao contrário, a responsabilidade da Administração Pública é agravada em razão do risco assumido pela má seleção do servidor. Recurso extraordinário não conhecido. (STF, 2ª T., RE 135.310/SP, Rel. Min. Maurício Corrêa, julg. 10.11.1997). 19 AGRAVO REGIMENTAL. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO. ACIDENTE DE TRÂNSITO ENVOLVENDO VEÍCULO OFICIAL. SÚMULA 279 DO SUPREMO TRIBUNAL REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 4 - 2022 495 fogo, condenou o Estado a indenizar a vítima de acidente automobilístico causado por agente público que utilizava veículo da Administração durante período de folga. Relevante precedente teve-se no assunto com o julgamento do Recurso Extraordinário 363.423/SP,20 no qual a Segunda Turma do STF entendeu pela não responsabilização do Estado, conquanto tenha havido disparo de arma de fogo da corporação por policial militar em período de folga. No caso específico, porém, a vítima possuía relação pessoal com o autor dos disparos, que teriam sido motivados por razões passionais, o que levou a Turma, na ocasião, a concluir que “o policial autor do disparo não se encontrava na qualidade de agente público”. Esse precedente tem sido utilizado por tribunais estaduais para afastar a responsabilidade estatal nas hipóteses em que havia relação pessoal pretérita entre o agente público e a vítima, como ocorreu no julgamento da Apelação 1009307- 98.2020.8.26.0053 pela 9ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que tratava de disparo realizado por policial militar de folga em decorrência de desentendimento com vizinho.21 Outra questão que demandou esclarecimento por parte do Poder Judiciário diz respeito aos tabeliães e oficiais de registro. A dúvida surgiu porque esses profissionais não são servidores públicos, exercendo sua função por meio de delegação, nos moldes do artigo FEDERAL. Responsabilidade pública que se caracteriza, na forma do § 6.º do art. 37 da Constituição Federal, ante danos que agentes do ente estatal, nessa qualidade, causarem a terceiros, não sendo exigível que o servidor tenha agido no exercício de suas funções.Precedente. Análise das circunstâncias fáticas do caso dos autos inviável por força da súmula em questão. Agravo desprovido. (STF, 1ª T., RE 135.310/SP, Rel. Min. Ilmar Galvão, julg. 15.05.2002). 20 CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. LESÃO CORPORAL. DISPARO DE ARMA DE FOGO PERTENCENTE À CORPORAÇÃO. POLICIAL MILITAR EM PERÍODO DE FOLGA. Caso em que o policial autor do disparo não se encontrava na qualidade de agente público. Nessa contextura, não há falar de responsabilidade civil do Estado. Recurso extraordinário conhecido e provido. (STF, 1ª T., RE 135.310/SP, Rel. Min. Carlos Britto, julg. 16.11.2004). 21 CIVIL E PROCESSUAL CIVIL – RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO – INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS – HOMICÍDIO - DISPAROS EFETUADOS POR POLICIAL CIVIL EM PERÍODO DE FOLGA – DESAVENÇA COM VIZINHO – NATUREZA PESSOAL DA CONDUTA DESVINCULADA DA QUALIDADE DE AGENTE PÚBLICO - AUSÊNCIA DE NEXO CAUSAL ENTRE A FUNÇÃO PÚBLICA E O DANO – DEVER DE INDENIZAR INEXISTENTE. 1. As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos respondem pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa (art. 37, § 6º, CF e art. 43 CC). A Constituição Federal não exige que o agente público tenha agido no exercício de suas funções, mas na qualidade de agente público (art. 37, § 6º). 2. Briga de vizinhos que acabou em tragédia. Disparo efetuado por policial civil em período de folga, sem qualquer relação com a qualidade de agente público. Irrelevância do uso de arma da Corporação. Precedentes do STF e desta Corte. Pedido improcedente. Sentença mantida. Recurso desprovido. (TJSP, 9ª C.Dir.Publ., Apelação 1009307-98.2020.8.26.0053, Rel. Des. Décio Notarangeli, julg. 06.10.2020). REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 4 - 2022 496 236, § 1º, da Constituição.22 Desde o ano de 1999, todavia, o Supremo Tribunal Federal tem assentado posição firme sobre a questão no sentido de afirmar a responsabilidade objetiva do Estado por atos dos tabeliães e registradores oficiais que, no exercício de suas funções, causem danos a terceiros.23 Mais recentemente, o entendimento foi reafirmado quando do julgamento do Recurso Extraordinário 842.846/SC, que julgou o tema 777 da Repercussão Geral do STF. Na ocasião, fixou-se a seguinte tese “O Estado responde, objetivamente, pelos atos dos tabeliães e registradores oficiais que, no exercício de suas funções, causem dano a terceiros, assentado o dever de regresso contra o responsável, nos casos de dolo ou culpa, sob pena de improbidade administrativa”.24 O dever de indenizar a vítima por danos causados por agentes públicos recai exclusivamente sobre o Estado, não havendo a possibilidade de o lesado ajuizar ação em face da pessoa do agente. Após grande e acirrada discussão sobre o tema, e ao contrário de inúmeros precedentes do STJ25, foi esse o entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Recurso Extraordinário 1.027.633/SP, que fixou a seguinte tese para o Tema 940 de sua Repercussão Geral: “A teor do disposto no art. 37, § 6º, da Constituição Federal, a ação por danos causados por agente público deve ser ajuizada contra o Estado ou a pessoa jurídica de direito privado prestadora de serviço público, sendo parte ilegítima para a ação o autor do ato, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.26 Trata-se de consagração jurisprudencial da teoria da dupla garantia, assim denominada por proteger tanto a vítima quanto o agente público. Nas palavras do Ministro relator: 22 CRFB/88, art. 236: “Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público”. 23 O julgamento de 1999 a que se faz referência é o RE 209.354, julgado pela Segunda Turma com relatoria do Min. Carlos Veloso e ementado da seguinte forma: “CONSTITUCIONAL. SERVIDOR PÚBLICO. TABELIÃO. TITULARES DE OFÍCIO DE JUSTIÇA: RESPONSABILIDADE CIVIL. RESPONSABILIDADE DO ESTADO. C.F. , art. 37, § 6º. I. - Natureza estatal das atividades exercidas pelos serventuários titulares de cartórios e registros extrajudiciais, exercidas em caráter privado, por delegação do Poder Público. Responsabilidade objetiva do Estado pelos danos praticados a terceiros por esses servidores no exercício de tais funções, assegurado o direito de regresso contra o notário, nos casos de dolo ou culpa (C.F., art. 37, § 6º). II. - Negativa de trânsito ao RE. Agravo não provido”. 24 STF, Tribunal Pleno, RE 842.846/SC, Rel. Min. Luiz Fux, julg. 27.02.2019. 25 “O STJ vislumbra a possibilidade - no caso de dano causado por agente público - da vítima escolher contra quem propor a ação (contra o Estado, contra o autor do dano ou contra ambos). O STJ chega a dizer que a questão é pacífica por lá (STJ, REsp 687.300. Precedentes: REsp 731.746; REsp 1.325.862; AgInt no ARESP 583.842, DJe 24/08/2017)”. BRAGA NETTO, Felipe. Responsabilidade civil do Estado por omissão: entre mitos e verdades. In: Migalhas de responsabilidade civil, 24.11.2020. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-responsabilidade-civil/336797/responsabilidade-civil- do-estado-por-omissao--entre-mitos-e-verdades. Consultado em 25.02.2022. 26 STF, Tribunal Pleno, RE 1027633/SP, Rel. Min. Marco Aurélio, julg. 14.08.2019. REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 4 - 2022 497 A Constituição Federal preserva tanto o cidadão quanto o agente público, consagrando dupla garantia. A premissa ensejadora da responsabilidade civil do Estado encontra guarida na ideia de justiça social. A corda não deve estourar do lado mais fraco. O Estado é sujeito poderoso, contando com a primazia do uso da força. O indivíduo situa-se em posição de subordinação, de modo que a responsabilidade objetiva estatal visa salvaguardar o cidadão. No tocante ao agente público, tem-se que esse, ao praticar o ato administrativo, somente manifesta a vontade da Administração, confundindo-se com o próprio Estado. A possibilidade de ser acionado apenas em ação regressiva evita inibir o agente no desempenho das funções do cargo, resguardando a atividade administrativa e o interesse público. Como consequência desse entendimento, a vítima pode pleitear indenização apenas em face do ente público, restando a este o, agora denominado, dever de regresso em face do agente público, se este atuou com culpa ou dolo, nos termos da parte final do § 6º do artigo 37 da Constituição. Frise-se, aqui, a expressão dever de regresso, que se utiliza em função do fixado no já mencionado Tema 777 da Repercussão Geral do STF. Naquela oportunidade, ficou “assentado o dever de regresso contra o responsável, nos casos de dolo ou culpa, sob pena de improbidade administrativa”, a impor verdadeira obrigação de o Estado exigir do agente público que atuou com dolo ou culpa a restituição do valor despendido pela Administração para indenizar a vítima do ato lesivo. Nos termos do voto do Ministro Luiz Fux, relator do feito, “o direito de regresso é direito indisponível e de índole obrigatória, que deve ser necessariamente pleiteado pelo Estado”. Embora referido julgamento tratasse especificamente da responsabilidade do Estado pelos atos de registradores e tabeliães, a lógica da obrigatoriedade de a Administração exigir o regresso perante o agente causador do dano parece aplicável a danos causados por qualquer agente estatal e tende a se espraiar pelas diferentes hipóteses de responsabilidade civil estatal. Em todos os casos, a decisão a respeito da exigência do reembolso não tem caráter discricionário, a configurar improbidadeadministrativa do administrador público responsável por tomá-la, caso não o faça. Outro ponto relevante a se destacar é que, embora o § 6º do artigo 37 da Constituição, como visto, mencione culpa ou dolo como requisitos para a responsabilização regressiva do agente público, fato é que, nos últimos anos, tem se visto tendência legislativa no sentido de restringir sua responsabilidade aos casos de dolo e erro grosseiros, na linha do artigo 28 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), incluído pela REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 4 - 2022 498 Lei nº 13.655, de 2018. De acordo com dito dispositivo, “O agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro”. Conquanto tenha surgido importante discussão a respeito da constitucionalidade do artigo supracitado ao argumento principal de que a legislação infraconstitucional não poderia restringir os parâmetros de responsabilização fixados pelo constituinte, fato é que, com a referida limitação, o legislador parece movido por objetivos relevantes de interesse público, pois estimula a criatividade do agente público na tomada de decisão e, por consequência, o princípio constitucional da eficiência administrativa.27 Ao saber que não será pessoalmente responsabilizado na hipótese de simples culpa, o administrador se sentirá menos constrangido a tomar decisões pouco burocráticas. De fato, não vem de hoje a máxima segundo a qual “na dúvida, dorme tranquilo quem indefere”,28 a ilustrar o pouco estímulo que a ordem jurídica, no Brasil, dá ao administrador público de tomar decisões inovadoras, ainda que, por vezes, haja certo grau de incerteza acerca de suas consequências. Nessa direção, Gustavo Binenbojm e André Cyrino explicam que a maior virtude do dispositivo foi “criar um ambiente propício à inventividade, cuidando de gestores e técnicos que buscam inovar os meios de gestão pública. Se suas tentativas de inovação não forem bem-sucedidas, eles apenas responderão por dolo ou erro grosseiro”.29 27 “O princípio da eficiência [...] traduz-se, de forma bastante ampla, no dever imposto à Administração Pública de decidir pela melhor opção disponível, considerando os custos envolvidos e benefícios almejados. Trata-se não apenas de atuar de maneira legal e razoável, mas de buscar a solução juridicamente possível que seja a mais apropriada ao atendimento de determinado interesse público”. (BARCELLOS, Ana Paula de. Curso de direito constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 390). 28 A respeito do tema, v. RIBEIRO, Leonardo Coelho. "Na dúvida, dorme tranquilo quem indefere", e o Direito Administrativo como caixa de ferramentas. In.: Direito do Estado, n. 149, 2016. Disponível em: http://www.direitodoestado.com.br/colunistas/leonardo-coelho-ribeiro/na-duvida-dorme-tranquilo-quem- indefere-e-o-direito-administrativo-como-caixa-de-ferramentas 29 BINENBOJM, Gustavo; CYRINO, André. O Art. 28 da LINDB - A cláusula geral do erro administrativo. In: Revista de Direito Administrativo, Edição Especial: Direito Público na Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro – LINDB (Lei nº 13.655/2018), nov. 2018, p. 213. José Vicente Santos de Mendonça, em estudo anterior ao advento da nova disposição da LINDB, procurava dar densidade à responsabilização da atividade consultiva da Administração, indicando 4 parâmetros: (i) dolo do parecerista: a mais evidente causa de responsabilização, embora de difícil comprovação a prática diante da necessidade de comprovação da má-fé subjetiva; (ii) erro evidente e inescusável: erros flagrantes perceptíveis pelo advogado médio. Exemplos dados pelo autor: elaborar parecer jurídico referente a matéria atual de trânsito com base no revogado Código Nacional de Trânsito, Lei Federal n.º 5.108, de 21 de setembro de 1966. Enquadrar caso de dispensa de licitação em artigo inteiramente inaplicável da Lei de Licitações. Aplicar a legislação da União relativa a pregão a hipótese em que a legislação estadual sobre o tema estabelece regra diversa e incompatível; (iii) a não-adoção de condicionantes reais de cautela, como o dever de informar à Administração a respeito dos riscos jurídicos de determinada estratégia; (iv) a necessidade de preservação da heterogeneidade de ideias: o juízo de responsabilização do parecerista deve REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 4 - 2022 499 No que concerne especificamente ao conceito de erro grosseiro como causa de responsabilização do agente público, embora comumente se sustente sua qualidade de conceito jurídico indeterminado,30 pode-se dizer que se subsume à noção de culpa grave.31 Isso é o que se depreende, por exemplo, do § 1º do artigo 12 do Decreto nº 9.830/2019, que regulamenta o artigo 28 da LINDB. Segundo tal dispositivo, “Considera- se erro grosseiro aquele manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia”.32 Da mesma forma, o Tribunal de Contas da União já assentou que “O entendimento jurisprudencial do TCU vem se inclinando no sentido de considerar que, para o exercício do poder sancionatório, considera-se erro grosseiro o que decorreu de grave inobservância do dever de cuidado, isto é, que foi praticado com culpa grave”.33 O Supremo Tribunal Federal também já teve oportunidade de abordar a questão do erro grosseiro ao julgar a constitucionalidade da Medida Provisória 966/2020, que dispõe sobre a responsabilização de agentes públicos por ação e omissão em atos relacionados com a pandemia da Covid-19 e estabeleceu, em seu artigo 2º, nos mesmos termos do Decreto nº 9.830/2019, que “considera-se erro grosseiro o erro manifesto, evidente e sempre levar em conta a pluralidade de ideias e o incentivo da inovação na formulação jurídica, concedendo liberdade, dentro dos limites da lei, para que o advogado público exerça sua função. (MENDONÇA, José Vicente Santos de. A responsabilidade pessoal do parecerista público em quatro standards. In: Revista Brasileira de Direito Público, v. 27, p. 177-199, 2009). 30 Nesse sentido, v. CRUZ, Alcir Moreno da; BORGES, Mauro. O artigo 28 da LINDB e a questão do erro grosseiro. In: Consultor Jurídico, 14 de maio de 2018. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018- mai-14/opiniao-artigo-28-lindb-questao-erro-grosseiro De acordo com Luís Roberto Barroso, consideram- se conceito jurídico indeterminado “expressões de sentido fluido, destinadas a lidas com situações nas quais o legislador não pôde ou não quis, no relato abstrato do enunciado normativo, especificar de forma detalhada suas hipóteses de incidência ou exaurir o comando a ser dele extraído”. (BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 352). 31 “Não obstante tenha o legislador optado por adotar, mais uma vez, o estranho requisito do ‘erro grosseiro’ (já inserido no art. 28 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, por via da reforma implementada pela Lei nº 13.655/2018), pecou menos em indicar que, em última análise, quer-se referir que a responsabilização ocorrerá nas hipóteses de culpa grave. [...]A redação do art. 2º da Medida Provisória nº 966/2020 encerra, a rigor, uma tautologia: erro grosseiro nada mais é que o erro evidente e inescusável praticado com culpa grave. Esta, por sua vez, por ter alta gravidade, é sempre explícita e indesculpável, o que se trataria de ‘erro grosseiro’. (REIS JUNIOR, Antonio dos. A responsabilidade civil dos agentes públicos em tempos de covid-19: análise do julgamento do Supremo Tribunal Federal no pedido cautelarna ADI nº 6421 e outras. In: Revista IBERC, v. 3, n. 2, maio/ago. 2020, pp. 315-316) 32 “Importante frisar que o erro grosseiro, para fins de responsabilização, não afasta a ocorrência de culpa. Na verdade, estão abrangidas na ideia de erro grosseiro as noções de imprudência, negligência e imperícia, quando efetivamente graves – ou gravíssimas”. BINENBOJM, Gustavo; CYRINO, André. O Art. 28 da LINDB - A cláusula geral do erro administrativo. In: Revista de Direito Administrativo, Edição Especial: Direito Público na Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro – LINDB (Lei nº 13.655/2018), nov. 2018, p. 213. 33 TCU, Plenário, 4ª C.C., TC 031.560/2016-4, Rel. Augusto Nardes, julg. 17.03.2021. REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 4 - 2022 500 inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia”. No julgamento, o STF fixou as seguintes importantes teses: “Configura erro grosseiro o ato administrativo que ensejar violação ao direito à vida, à saúde, ao meio ambiente equilibrado ou impactos adversos à economia, por inobservância: (i) de normas e critérios científicos e técnicos; ou (ii) dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção. 2. A autoridade a quem compete decidir deve exigir que as opiniões técnicas em que baseará sua decisão tratem expressamente: (i) das normas e critérios científicos e técnicos aplicáveis à matéria, tal como estabelecidos por organizações e entidades internacional e nacionalmente reconhecidas; e (ii) da observância dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção, sob pena de se tornarem corresponsáveis por eventuais violações a direitos”.34 O julgado revestiu- se de caráter fundamental e de relevância histórica ao densificar os parâmetros de responsabilização dos agentes públicos no trato das mazelas da pandemia com base na evolução científica e nos princípios da prevenção e da precaução, fato que, à luz da axiologia constitucional, permite entrever sua força expansiva. Embora geralmente associado à culpa grave, como visto acima, para parte da doutrina o erro grosseiro equiparar-se-ia ao dolo, nos termos do tradicional brocardo latino culpa lata dolo comparabitur, aproximação que se teria reforçado especialmente após processo de objetivação do dolo,35 consubstanciado no deslocamento do foco da intenção do agente – elemento psíquico – para sua atitude deliberada e consciente do resultado que pode acarretar. Para os adeptos da tese, o conceito de dolo, objetivado, consiste “na consciência 34 STF, Tribunal Pleno, MC nas ADIs 6421,6422,6424, 6425, 6427, 6428 e 6431, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, 21.05.2020. 35 “No primeiro caso, ou seja, no tocante à culpa lata, ela é equiparável ao dolo: culpa lata dolo comparabitur (D. 11, 6, 1, 1), por ser tão vergonhosa quanto esse, nas não menos conhecidas palavras de Windscheid. É a negligência extrema a que alude o Digesto (D. 50, 16, 213, 2): culpa lata é a mínima diligência, id est, non intelligere quod omnes intelligunt. Ou, ainda, a culpa aqui decorre de uma falta tão elementar, conhecida por todos, que vai equiparada ao ato deliberado de má-fé”. (CARRÁ, Bruno Leonardo Câmara. A doutrina da tripartição da culpa: uma visão contemporânea. In: Revista de Direito Civil Contemporâneo – RDCC, vol. 13, ano 4, out.-dez. 2017, p. 203). REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 4 - 2022 501 do agente quanto à efetiva possibilidade de produção do resultado lesivo”.36 37 E, assim, traçam uma linha de raciocínio pela qual, como a expressão erro grosseiro refere-se, ao fim e ao cabo, à culpa grave e esta, por sua vez, equipara-se ao dolo objetivado, poder- se-ia sustentar que o agente público responderia pessoal e regressivamente perante a Administração Pública apenas quando atuasse com dolo. Em reforço argumentativo, invocam ainda a orientação assumida pelo direito positivo brasileiro com a reforma da Lei de Improbidade Administrativa ocorrida no final de 2021 por meio da Lei nº 14.230/2021, que, alterando drasticamente a normativa anterior, passou a afirmar que haverá improbidade apenas quando comprovado o dolo na ação ou omissão do agente público. A título exemplificativo, originalmente o artigo 9º da lei em questão possuía a seguinte dicção: “Constitui ato de improbidade administrativa importando enriquecimento ilícito auferir qualquer tipo de vantagem patrimonial indevida em razão do exercício de cargo, mandato, função, emprego ou atividade nas entidades mencionadas no art. 1° desta lei”. Com a reforma de 2021, passou a estatuir: “Constitui ato de improbidade administrativa importando em enriquecimento ilícito auferir, mediante a prática de ato doloso, qualquer tipo de vantagem patrimonial indevida em razão do exercício de cargo, de mandato, de função, de emprego ou de atividade nas entidades referidas no art. 1º desta Lei”. 36 TEPEDINO, Gustavo; TERRA, Aline de Miranda Valverde; GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Fundamentos do direito civil, v. 4. 1ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 107. No mesmo sentido, Caio Mário da Silva Pereira ensina: “Modernamente, o conceito de dolo alargou-se, convergindo a doutrina no sentido de caracterizá-lo na conduta antijurídica, sem que o agente tenha o propósito de prejudicar. Abandonando na noção tradicional do animus nocendi (ânimo de prejudicar), aceitou que a sua tipificação delimita-se no procedimento danoso, com a consciência do resultado. Para a caracterização do dolo não há mister perquirir se o agente teve o propósito de causar mal. Basta verificar se ele procedeu consciente de que o seu comportamento poderia ser lesivo. Se a prova da intenção implica a pesquisa da vontade de causar o prejuízo, o que normalmente é difícil de se conseguir, a verificação da consciência do resultado pode ser averiguada na determinação de elementos externos que envolvem a conduta do agente”. (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade civil. 11ª ed. Atualizado por Gustavo Tepedino. Rio de Janeiro: Forense, 2016, pp. 89-90). 37 Há ainda quem sustente, em doutrina, que a culpa grave do direito civil se assemelha ao dolo eventual do direito penal: “Poderíamos lembrar que quem age com culpa grave, está agindo com a previsibilidade de causar dano, é o que em Direito Penal se chama de dolo eventual; a pessoa assume o risco de prejudicar outrem”. (LOPEZ, Teresa Ancona. Principais linhas da responsabilidade civil no direito brasileiro contemporâneo. In: Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, v. 101, jan-dez. 2006, p. 129). Em direito penal, conceitua-se dolo eventual da seguinte forma: “Haverá dolo eventual quando o agente não quiser diretamente a realização do tipo, mas aceitá-la como possível ou até provável, assumindo o risco da produção do resultado (art. 18, I, in fine, do CP), isto é, não se importando com sua ocorrência. No dolo eventual o agente prevê o resultado como provável ou, ao menos, como possível, mas, apesar de prevê-lo, age aceitando o risco de produzi-lo, por considerar mais importante sua ação que o resultado”. (BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal, vol. 1. 20ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 362). REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 4 - 2022 502 Em que pese o teor da reforma legislativa supra, fato é que o exercício do direito (ou dever) de regresso nas hipóteses de responsabilidade civil do Estado não se confunde com a configuração dos atos de improbidade administrativa e seus efeitos próprios, em sede de direito administrativo sancionatório. A discussão, em rigor, acaba por extrapolar oslimites da questão da improbidade para alcançar patamar de constitucionalidade, vale dizer: poderia o legislador ordinário suprimir da regra do regresso as hipóteses de culpa previstas expressamente no texto constitucional? Parece-nos que não. Não é dado ao legislador infraconstitucional derrogar regra constitucional. De maneira muito diferente, insista-se uma vez mais, procedeu o legislador de 2018 ao incluir na LINDB a denominada cláusula geral de erro administrativo na dicção do artigo 28: aqui, o sentido e alcance da exclusão limita-se à culpa leve, ao erro simples, a ensejar o pleno exercício regressivo em face de condutas dolosas ou gravemente equivocadas (erro grosseiro = culpa grave), daí decorrendo sua plena compatibilidade com o teor da Carta de 1988, como desenvolvido acima. Por fim, um último tema a ser abordado acerca da relação interna entre Administração Pública e seu agente causador de dano a terceiro diz respeito à prescritibilidade da ação de regresso a ser movida em face deste último. A discussão surge em razão do previsto no § 5º do artigo 37 da Constituição da República, que prevê que “A lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento”, a gerar a discussão sobre possível imprescritibilidade das ações de ressarcimento ao erário. O Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Tema 666 de sua Repercussão Geral, fixou a regra geral sobre a matéria com a seguinte tese: “É prescritível a ação de reparação de danos à Fazenda Pública decorrente de ilícito civil”.38 Há, porém, exceções, e uma delas consiste nos atos de improbidade administrativa em que tenha havido dolo do agente público, conforme restou fixado no julgamento do Tema 897 de sua Repercussão Geral: “São imprescritíveis as ações de ressarcimento ao erário fundadas na prática de ato doloso tipificado na Lei de Improbidade Administrativa”.39 Em complemento a esse entendimento, no julgamento do Recurso Extraordinário RE 636.886/AL, de relatoria do 38 STF, Tribunal Pleno, RE 669.069/MG, Rel. Min. Teori Zavascki, julg. 03.02.2016. 39 STF, Tribunal Pleno, RE 852.475/SP, Rel. Min. Alexandre de Moraes, julg. 08.08.2018. REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 4 - 2022 503 Min. Alexandre de Moraes e que julgou o Tema 899 da Repercussão Geral, restou consignado o seguinte na ementa: Este Supremo Tribunal Federal concluiu que somente são imprescritíveis as ações de ressarcimento ao erário fundadas na prática de ato de improbidade administrativa doloso tipificado na Lei de Improbidade Administrativa – Lei 8.429/1992 (Tema 897). Em relação a todos os demais atos ilícitos, inclusive àqueles atentatórios à probidade da administração não dolosos e aos anteriores à edição da Lei 8.429/1992, aplica-se o Tema 666, sendo prescritível a ação de reparação de danos à Fazenda Pública.40 Finalizado o primeiro eixo de investigação proposto para o presente trabalho consubstanciado no exame da responsabilidade civil do Estado por atos praticados por agentes públicos, passa-se ao segundo eixo, que terá por objeto atos de terceiros não vinculados à Administração Pública que, a depender do caso, poderão afastar o nexo de causalidade e, consequentemente, a responsabilidade estatal. 3- Fato de terceiro, nexo de causalidade e responsabilidade civil do Estado por atos omissivos Uma das mais tormentosas e duradouras discussões em tema de responsabilidade civil do Estado, calcada no contraste entre o modelo subjetivo (culpa) para a omissão e objetivo para atos comissivos, teve origem na celeuma em torno da eventual vigência do artigo 15 do Código Civil de 191641 mesmo após a Constituição de 1946, ou se o artigo 194 da Carta em questão cuidou de disciplinar inteiramente o tema, ab-rogando aquele primeiro dispositivo.42 Na base do debate, o contraste entre dois modelos de imputação bastante diversos: o anterior, por falha do serviço; o posterior, por risco administrativo. Doutrina e 40 STF, Tribunal Pleno, RE 636.886/AL, Rel. Min. Alexandre de Moraes, julg. 20.04.2020. 41 “Art. 15. As pessoas jurídicas de direito público são civilmente responsáveis por atos dos seus representantes que nessa qualidade causem danos a terceiros, procedendo de modo contrário ao direito ou faltando a dever prescrito por lei, salvo o direito regressivo contra os causadores do dano”. 42 “Art. 194. As pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis pelos danos que os seus funcionários, nessa qualidade, causem a terceiros. Parágrafo Único. Caber-lhes-á ação regressiva contra os funcionários causadores do dano, quando tiver havido culpa dêstes”. REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 4 - 2022 504 jurisprudência mostravam-se divididas, havendo uma forte e tradicional corrente (que viria a se tornar majoritária), em que se destaca Celso Antônio Bandeira de Mello, segundo a qual o referido artigo 15, de índole subjetiva (repita-se), prevaleceria para as hipóteses de responsabilidade do Estado por ato omissivo, aplicando-se a regra constitucional, objetiva, apenas para os atos comissivos. À luz dos dados normativos atuais, isso quer dizer que nos chamados atos comissivos, ou seja, naqueles em que o Estado atue de forma positiva, aplica-se o artigo 37, §6º, da atual Constituição, que prevê a teoria objetiva da responsabilização, a prescindir da culpa, sendo exigida apenas a demonstração do dano – efeito da lesão a interesse juridicamente tutelado43 – e nexo causal – liame entre a atividade estatal (no caso, conduta comissiva) e efeito danoso.44 Por outro lado, em casos em que o dano tenha sido ocasionado por terceiros diante de uma omissão estatal, aplicar-se-ia a regra da responsabilidade subjetiva, sob a ótica em que é atualmente interpretada, vale dizer, a despeito de serem aqui exigidos os três tradicionais pressupostos da responsabilidade civil, dano, nexo causal e culpa, esta última revela-se mitigada, vez que não precisa estar personificada em um ou mais funcionários determinados, bastando que se comprove a ineficiência culposa do serviço público em geral, isto é, a culpa anônima. Abram-se dois breves parênteses neste ponto. O primeiro para o registro de que o Código Civil de 2002 apresenta, em seu artigo 43, regra acerca da responsabilidade civil do Estado praticamente idêntica à da Constituição da República e, portanto, com feições bastante distintas às do revogado artigo 15 do Código de 1916, eliminando esse esteio legal da teoria da responsabilidade subjetiva dos entes públicos por atos omissivos. O segundo, no sentido de que o texto constitucional de 1946 pretendeu efetivamente disciplinar por completo a matéria, não recepcionando, assim, a anterior norma infraconstitucional prevista no artigo 15 do Código Civil de 1916, o que se extrai da regra de hermenêutica constante do artigo 2º, §1º, parte final, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, segundo a qual a lei posterior revoga a anterior se houver cuidado 43 Para as definições de dano moral e material com base nos efeitos da lesão de direito, bem como das respectivas técnicas de reparação de acordo com a ordem constitucional, v. MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo. De volta à reparação do dano moral: 30 anos de trajetória entre avanços e retrocessos. In: SCHREIBER, Anderson; MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo; OLIVA, Milena Donato (orgs.). Problemas de direito civil: homenagem aos 30 anos de cátedra do professor Gustavo Tepedino por seus orientandos e ex-orientandos. Rio de Janeiro: Forense, 2021, pp. 563-577. 44 TEPEDINO, Gustavo. Notas sobre o nexo de causalidade.In: Revista Trimestral de Direito Civil – RTDC, vol. 6, pp. 3-19. REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 4 - 2022 505 inteiramente da matéria, e principalmente do princípio da supremacia da Constituição.45 E, uma vez revogada a regra do artigo 15 desde 1946, não há que se indagar de sua vigência em confronto com o artigo 37, §6º da Constituição de 1988, pois que não existindo em regra efeito repristinatório no ordenamento jurídico brasileiro, não houve ressuscitação da regra infraconstitucional após sua irremediável revogação.46 Nada obstante, para aqueles que defendem que os atos omissivos desafiam necessariamente a responsabilidade subjetiva, como o citado Celso Antônio Bandeira de Mello, se o Estado não agiu, não pode ser autor do dano; e, não tendo sido seu autor, só caberia responsabilizá-lo na hipótese de estar obrigado a impedi-lo. A responsabilidade, em suma, decorreria do descumprimento do dever legal de obstar o evento lesivo, geralmente desencadeado por ato de terceiro. Na síntese do próprio autor: “se o Estado, devendo agir, por imposição legal, não agiu ou o fez deficientemente, comportando-se abaixo dos padrões legais que normalmente deveriam caracterizá-lo, responde por esta incúria, negligência ou deficiência, que traduzem um ilícito ensejador do dano não evitado quando, de direito devia sê-lo”.47 Tal posicionamento foi elaborado ainda sob a égide da Constituição de 1946 por Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, mas ainda hoje é o que congrega o maior número de seguidores em doutrina e jurisprudência, talvez porque tenha como tônica o expressivo e convincente argumento de que o Estado não pode ser responsável por tudo o que aconteça, 45 Na ênfase de Luís Roberto Barroso: “nenhum ato jurídico, nenhuma manifestação de vontade pode subsistir validamente se for incompatível com a Lei Fundamental” (BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 161). 46 Ainda que assim não fosse, cumpre observar que as Constituições que se sucederam à de 1946 adotaram essencialmente a mesma regra sobre responsabilidade do Estado. Todas simplificando sobremaneira a lide a ser enfrentada pela vítima, a qual já não mais precisa demostrar a ocorrência de culpa, ainda que anônima, na atuação comissiva ou omissiva do Estado. O elemento culpa só irá interessar na relação Administração versus agente, para efeito de eventual direito de regresso. Confira-se o teor das Cartas de 1967, 1969 e 1988: 1967: “Art. 105. As pessoas jurídicas de direito público respondem pelos danos que os seus funcionários, nessa qualidade, causem a terceiros. Parágrafo Único. Caberá ação regressiva contra o funcionário responsável, nos casos de culpa ou dolo”. 1969: “Art. 107. As pessoas jurídicas de direito público responderão pelos danos que seus funcionários, nessa qualidade, causarem a terceiros. Parágrafo Único. Caberá ação regressiva contra o funcionário responsável, nos casos de culpa ou dolo”. 1988: 46 “Art. 37, § 6º. As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”. 47 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 32ª ed. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 1.042. REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 4 - 2022 506 o grande segurador de todas as desgraças e infortúnios, argumento este que, na prática, sensibiliza sobremaneira os aplicadores do Direito. Em contraposição, a outra corrente que se coloca, de feições bastante distintas, defendia, já na origem, a total superação da regra infraconstitucional e, consequentemente, pretendem a adoção exclusiva da teoria objetiva para a responsabilidade civil do Estado, quer seja em hipóteses de atos omissivos ou comissivos.48 Para Gustavo Tepedino, por exemplo, “não é dado ao intérprete restringir onde o legislador não restringiu, sobretudo em se tratando de legislador constituinte – ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus”. E arremata: “a Constituição Federal, ao introduzir a responsabilidade objetiva para os atos da administração pública, altera inteiramente a dogmática da responsabilidade neste campo, com base em outros princípios axiológicos e normativos (dos quais se destaca o da isonomia e o da justiça distributiva)”.49 A questão se reveste de enorme interesse prático, pois, com frequência, os tribunais se deparam com ações judiciais em que se discute a responsabilização do Estado em hipóteses de atos omissivos, normalmente associados a fatos de terceiros, tais como assaltos, morte de presidiários, danos ocasionados por buracos em vias públicas, ou pela presença de animais na mesma, bala perdida etc. E, mais ainda, acaba por contrapor visões antagônicas da essência dos institutos da responsabilidade civil e suas funções: o modelo clássico, derivado do liberalismo econômico e do individualismo filosófico, a apontar na direção da regra subjetiva, versus o modelo contemporâneo, que deita raízes no Estado social e no princípio da solidariedade, a indicar a solução objetiva. 48 BRAGA NETTO, Felipe. Responsabilidade civil do Estado por omissão: entre mitos e verdades. In: Migalhas de responsabilidade civil, 24.11.2020. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-responsabilidade-civil/336797/responsabilidade-civil- do-estado-por-omissao--entre-mitos-e-verdades . Consultado em 25.02.2022. Calha transcrever a eloquente passagem do autor: “É fundamental ainda que busquemos, de modo criativo e responsável, soluções que promovam o diálogo da responsabilidade civil do Estado com a teoria dos direitos fundamentais e com os conceitos, categorias e institutos mais harmônicos com o século XXI. É fundamental que tenhamos também estabilidade, isonomia e clareza nos julgados. O direito administrativo do século XXI não pode continuar a trabalhar com conceitos formulados há mais de um século, com um instrumental que se reporta ao século XIX. Há certo sabor autoritário nas lições tradicionais do direito administrativo, que costuma ter como ângulo de análise os poderes do administrador, não os direitos do cidadão. Não por acaso, há autores que ainda usam a palavra "súdito" para falar em cidadão.” 49 TEPEDINO, Gustavo. A evolução da responsabilidade civil no direito brasileiro e suas controvérsias na atividade estatal. In: Temas de Direito Civil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 191. REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 4 - 2022 507 Desenvolveu-se, mais recentemente, em um ponto intermediário entre as duas concepções supra, a tese que diferencia a omissão estatal em genérica ou específica, a acarretar, respectivamente, o regime de responsabilidade subjetiva ou objetiva, conforme o caso. A esse respeito, são recorrentes os casos de assalto em via pública em que a vítima pleiteia a responsabilização do Estado. Nessas hipóteses, a jurisprudência mostra-se firme em reconhecer que a omissão estatal é genérica, pois “para se caracterizar a omissão específica deve-se provar que o Estado sabia da possibilidade do dano e podia agir para impedi-lo”. Conforme registram diuturnamente os tribunais, “não há como assegurar que a presença de agentes policiais no posto policial mencionado pelo recorrente evitaria a ação dos criminosos, ou garantiria a prisão dos mesmos e a recuperação de seus pertences”.50 De fato, quanto mais genérica a omissão, mais difícil a comprovação da causalidade entre a conduta ou atividade administrativa e