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AULA 1 JORNALISMO E DISPOSITIVOS MÓVEIS Prof.ª Luciane Leopoldo Belin 2 INTRODUÇÃO Qual é o lugar do jornalismo no atual contexto de mobilidade? Essa será a questão norteadora desta disciplina. Ao longo desse período, nosso objetivo será, mais do que responder a essa pergunta, refletir sobre a relação desta modalidade muito específica de comunicação, o do fazer jornalístico, com o cenário de transformação digital marcado pelos dispositivos móveis. Primeiro, buscaremos discutir a importância alcançada pelos próprios dispositivos móveis dentro da área da comunicação e, em seguida, passaremos por aspectos que vão desde as práticas de produção, os sujeitos envolvidos nesse processo, as lógicas que ditam regras em constante atualização, mas também questões relacionadas ao consumo de informação. Iniciaremos esta aula com uma introdução sobre cenários contemporâneos do jornalismo digital e, mais especificamente, mobile, para, na sequência, discutir os principais desafios do jornalismo frente à mobilidade. O terceiro tema da aula trata das relações de tempo e espaço no jornalismo digital, ou seja, quais são os atravessamentos de mediações e temporalidades quando a notícia sai do papel e migra para as telas? Essa discussão está diretamente relacionada ao tema 4, no qual discutiremos midiatização e transformações digitais, partindo das abordagens institucionalista e social- construtivista do conceito de midiatização que contribuem para compreender a complexidade da mídia como instituição, mas também como meio. Por fim, o último tema discutido gira em torno das novas dinâmicas das redações e o papel do jornalista – de gatekeeper a fact checker. Os conteúdos posteriores serão dedicados a discutir forma e linguagem, plataformas e suas Affordances, produção de conteúdo mobile, distribuição e, por fim, lógicas de consumo. TEMA 1 – JORNALISMO E MOBILIDADE Os brasileiros adquirem mais smartphones que os americanos e são usuários mais intensos de aplicativos para celular do que o restante do mundo. Uma pesquisa divulgada em janeiro de 2021 e conduzida pela empresa Digital Turbine mostrou que 38% dos brasileiros instala aplicativos com frequência, ao passo que apenas 10% do público dos Estados Unidos o faz (Brasileiros..., 2021). 3 No entanto, esses aplicativos não necessariamente são voltados a consumo de informação. Comunicação (apps de conversação), games, vídeos, música e mídias sociais são os nichos que mais consomem dados dos usuários de smartphone no Brasil (18ª Pesquisa..., 2020) e diversas pesquisas vêm confirmando nos últimos anos que, em vez de utilizar apps específicos para organização de feed de notícias ou apps de portais de informação, o público brasileiro prefere consumir notícias de maneira gratuita nas mídias sociais. Segundo investigação do Pew Research Center (18ª Pesquisa..., 2020), o consumo de notícias via smartphone já é a preferência de 58% dos norte- americanos, contra 39% que utilizam o notebook ou desktop para a mesma finalidade. O número, de 2018 mostrou que o consumo de notícias via smartphone triplicou em apenas cinco anos, já que, em 2013, apenas 21% apontavam essa preferência. Os dados dos Estados Unidos refletem um cenário global de mobilidade que não é novidade na última década e não se limita ao tipo de plataforma, mas também à qualidade do consumo de conteúdo e ao comportamento dos usuários. Na chamada Geração Z (1990-2010), 55% utilizam as redes sociais como principal fonte de informação e 66% tendem a ler as notícias rápida e superficialmente, ao passo que esta parcela é de 53% entre indivíduos da Geração X (1960-1980). Os dados são da pesquisa global divulgada no começo de 2020 pela companhia de estratégias digitais Comscore e revelam ainda uma fortíssima indisposição por pagar pelo conteúdo jornalístico: em todas as gerações, pelo menos 80% das pessoas se recusam a dispor de recursos financeiros em troca de informação de qualidade (Wakka, 2021). Esse cenário traz para empresas e jornalistas dois grandes desafios no que diz respeito à produção de conteúdo em contexto digital: como se adaptar aos formatos no universo mobile e como encontrar maneiras de fazer com que seus conteúdos noticiosos furem as diferentes bolhas e encontrem espaço neste grande oceano de informação e desinformação que são as redes sociais digitais. Apesar da preocupação com o futuro da profissão, por outro lado, a transformação digital também carrega oportunidades e brechas para inovações nunca antes possíveis no que diz respeito à circulação da informação. Como isso impacta no modo de pensar o jornalismo – ou no próprio fazer jornalístico? E quando esses processos se encontram atravessados por smartphones e tablets? 4 O jornalismo não se tornou móvel quando esses dispositivos passaram a ser comercializados. Ele é móvel desde que o primeiro jornalista se deslocou para fazer a primeira cobertura in loco, carregando seu bloquinho de anotações. Da mesma forma, embora notebooks e laptops também sejam móveis num sentido mais literal, quando falamos em dispositivos móveis, estamos nos referindo especificamente a tablets e smartphones, já que foi com a chegada desses dispositivos que algumas lógicas precisaram ser reinventadas. O que mudou com a evolução tecnológica foi uma sofisticação e aceleração dos processos, no que diz respeito à produção, mas também nas lógicas de construção e design da notícia e, especialmente, do consumo e mediação de plataformas. Assim, o que hoje entendemos como jornalismo móvel – mobile journalism ou ainda MoJo, comercialmente – é um conceito muito mais complexo e articulado às noções de produção e consumo da informação do que a simples ideia de abrir a notícia no browser do smartphone. No cenário atual, a prática é caracterizada pela mobilidade física e informacional para a produção de conteúdos diretamente do local do evento cujas condições são potencializadas pela portabilidade, ubiquidade e mobilidade, além da consideração do aspecto de espacialização contextualizada com a geolocalização da notícia. (Silva, 2015, p. 9) Essa definição diz respeito especialmente ao que significa o conceito do ponto de vista de quem está pensando o jornalismo para dispositivos móveis e, embora o âmbito do consumo de alguma maneira também esteja contemplado, já que é o objetivo de todo o processo, nos dedicaremos num primeiro momento à questão da mobilidade com enfoque na produção. Assim como o mercado e a academia perceberam rapidamente que jornalismo digital era muito mais do que simplesmente transpor o conteúdo dos meios impressos para as telas do computador, o lado da produção jornalística também logo se deu conta de que jornalismo mobile era muito mais do que replicar ou “vender” o conteúdo do jornal, revista ou site de maneira responsiva – embora alguns sites sigam atuando de maneira rudimentar no quesito responsividade. Na Figura 1, elaborada por Barbosa (2013, p. 42), a autora descreve a evolução do jornalismo digital desde que a internet passou a despontar como um espaço de compartilhamento e circulação de notícias. Nele, essa etapa de transposição mencionada acima é considerada como uma fase correspondente à terceira geração do jornalismo para redes digitais. Embora os dispositivos móveis 5 tenham surgido durante a quarta fase, quando as redes digitais já demandavam alguma produção exclusiva, é somente na quinta geração que se desenvolvem os produtos autóctones, ou seja, aqueles em que se exploram as potencialidades oferecidas pelos dispositivos móveis. Figura 1 – Estágios de evolução do jornalismo em redes digitais Fonte: Barbosa, 2013, p. 42. No processo de adaptar seu conteúdo e o modelo de negócios das empresas jornalísticas para aproveitar, de fato, as possibilidades oferecidas pelos dispositivos e suas atualizaçõesconstantes, o setor vem encontrando alguns desafios e desenvolvendo novas possibilidades, que serão discutidos a seguir. TEMA 2 – DESAFIOS E POSSIBILIDADES MOJO Uma vez que as tendências de consumo são cada vez mais móveis e com telas cada vez menores, o jornalismo em um contexto de mobilidade se depara com cinco principais desafios que carregam consigo também possibilidades promissoras de evolução, do ponto de vista dos indivíduos que atuam como jornalistas e também como campo. Trataremos desses desafios na sequência. 2.1 Monetização O primeiro desafio é a sobrevivência econômica. Como cobrar por um conteúdo que o leitor se recusa a adquirir? Ou, ainda, quão lucrativo é um negócio quando esse mesmo conteúdo chega ao consumidor por outras vias gratuitas, como as redes sociais? 6 A monetização dos veículos de comunicação – principalmente jornais e sites jornalísticos – é um desafio que há anos preocupa gestores de algumas das mais importantes e já consagradas empresas do setor. Uma pesquisa da PWC Global identificou que o mercado de anúncios, historicamente a principal fonte de recursos dessas organizações, seria o mais atingido pela pandemia de coronavírus, em comparação com os mercados de consumo e acessibilidade (PWC, 2021). Mesmo antes disso, a redução da fatia de mercado e a perda de recursos com anúncios, assinaturas e classificados enxugavam a estrutura das empresas e levavam à sobrecarga dos profissionais, à diminuição da área de cobertura e à consequente queda na qualidade do trabalho. Por outro lado, é justamente nos dispositivos móveis que estão as possibilidades de crescimento. O mesmo relatório indica que a fatia da publicidade ocupada pelos celulares em 2019 já era de 60% em 2019, e o segmento sustenta 88,4% do crescimento do setor em 2020. Avanços nos formatos móveis que priorizam opções de medição e segmentação – por exemplo, geolocalização – sustentará um forte crescimento nos próximos anos, um período em que haverá mais conteúdo de vídeo social nos mercados emergentes que priorizam os dispositivos móveis e lançamentos 5G que facilitam o consumo de conteúdo de vídeo fora de casa. (PWC, 2021) Resta às companhias encontrarem brechas e caminhos que otimizem a obtenção de recursos, seja com conteúdo pago via novos formatos de assinatura, crowdfunding ou branded content. Passaremos brevemente pela questão da monetização em outra oportunidade. 2.2 Conteúdo multiplataforma Mesmo apostando nos dispositivos móveis, as companhias não devem negligenciar outros canais de informação, já que os modelos de negócio mais rentáveis são aqueles que conseguem atender diversas frentes. Nesse sentido, uma das principais tendências previstas nos anos 2000 e que já se verificam no jornalismo há alguns anos é a do conteúdo multiplataformas, que vai além da mera replicação do texto em diferentes canais, mas explora funcionalidades e potencialidades de cada uma na forma como se constrói o texto. Nessa realidade multifacetada, o jornalista e o desenvolvedor precisam estar preocupados em atacar essas diferentes frentes, ainda que, no dia a dia das 7 redações, as tecnologias e as ferramentas disponíveis muitas vezes não atendam a essas necessidades, o que demanda versatilidade e inventividade dos profissionais. Conceitos como o de convergência midiática, jornalismo convergente e narrativas transmidiáticas, que trabalharemos mais a fundo posteriormente, ajudam a destrinchar o nó do entrecruzamento de plataformas e as influências mútuas entre elas. Por ora, não avançaremos na definição desses conceitos, mas cabe apenas mencionar que os três dizem respeito aos diálogos e trocas entre plataformas de diferentes naturezas e complementam-se, possibilitando uma cobertura mais ampla dos temas das notícias. Após analisar e comparar conteúdo jornalísticos presentes em diferentes telas e plataformas, Barbosa, Silva e Nogueira (2013) observam que, mesmo naqueles veículos midiáticos que investem na otimização dos recursos de cada gadget, o site na web ainda continua atuando como catalisador dos demais, de forma que estes se organizam em torno dele ou com base nele. A distribuição multiplataforma, considerando os dispositivos móveis, ainda encontra-se numa fase transpositiva dos conteúdos com a realização de adequação destes à interface, mas pouco avanço para uma exploração mais intuitiva dos potenciais dos sistemas operacionais móveis e de interatividade, em parte esperado pelo curto período de existência [...] A inovação está acontecendo mais consistentemente nos chamados produtos inovadores, ou seja, aplicações criadas de forma nativa com material exclusivo, tratamento diferenciado e proposta nova, que denominamos aqui de aplicativos autóctones. (Barbosa; Silva; Nogueira, 2013, p. 261) É possível perceber, portanto, que aproveitar ao máximo os recursos oferecidos pelos dispositivos móveis permanece sendo um dos desafios do jornalismo móvel, ao mesmo tempo que se configura como um grande nicho de inovação e de novas possibilidades. 2.3 Demanda por formatos Uma consequência direta da diversidade de plataformas à disposição do público é a necessidade constante de desenvolver novos formatos de narrativa jornalística. A simples divisão entre hard news versus soft news já está obsoleta, assim como o combo texto + imagem é insuficiente. O jornalismo mobile evidenciou a necessidade de ir além para conversar com diferentes gerações. Grupos etários mais jovens vêm demonstrando uma tendência à hipervalorização da imagem, especialmente com o conteúdo 8 audiovisual – como o uso do vídeo, demonstrado pelo crescimento do YouTube fonte de informação, e o boom dos podcasts entre 2018 e 2020. Essas transformações abrem uma gama imensa de possibilidades que, por outro lado, esbarram mais uma vez na necessidade de desenvolver formas criativas de produzir conteúdo de qualidade, aprofundado, que possa ser rodado rapidamente, mas com qualidade de apuração e confiança. 2.4 Filtro das redes sociais Em 2020, 11% dos usuários de Instagram utilizavam essa rede para consumir informação. O Brasil é um dos países que faz crescer a média, com o consumo de notícias sendo uma função incorporada por 30% dos participantes. No Twitter, 17% estão na plataforma para se informar (Reuters Institute, 2020). Esse atravessamento das mídias digitais não é uma novidade para os veículos de comunicação, e o desafio se intensificou desde 2018, quando algumas delas fizeram alterações em seus algoritmos. Naquele ano, após ver reduzir drasticamente seu alcance de público graças a uma dessas mudanças no modo de organização da timeline dos usuários, a Folha de S. Paulo anunciou que não utilizaria mais o Facebook (Folha..., 2018). Ainda assim, mesmo que a própria Folha não faça uso da plataforma para publicar suas notícias, é por esse filtro que muitos dos leitores chegam até as publicações do jornal, cujo conteúdo é compartilhado por outros perfis. Ter as redes sociais como intermediárias e acompanhar as tendências dos buscadores como o Google foi o que fez nascer estratégias como as chamadas manchetes caça-cliques, por exemplo, que distorcem as informações para chamar a atenção do leitor já no título do texto. O que acontece com a qualidade do conteúdo quando o material publicado precisa performar e não mais apenas informar? 2.5 Descontrole e descaminhos da informação Por fim, um dos grandes desafios do jornalismo na era da internet é o efeito telefone sem fio e a falta de controle sobre os processos de circulação de informação. A responsabilidade com a apuração jornalística cresce à medida que a replicabilidade horizontal e em massa permite que tudo o que é publicado possa tomar um rumo muito diferente do que aquele almejado pelo jornalista. 9 Esse aspecto passa por questões muito delicadas de ética e direitosautorais, distorções da informação e pela disseminação de fake news, uma vez que uma das concepções desse conceito é a de que distorcer um conteúdo para levar a interpretações equivocadas. Essa forma de produzir fake news, ainda mais perigosa, faz com que mentiras sejam travestidas de notícia com o selo de credibilidade da linguagem jornalística. TEMA 3 – MEDIAÇÕES E TEMPORALIDADES Nas últimas décadas, uma prolífica área de pesquisa se desenvolveu na América Latina, baseada no conceito de mediações, articulando alguns fenômenos distintos e imbricados entre si e que resultam no tipo de sociedade interconectada como a que temos hoje. Esses fenômenos são as transformações culturais, a evolução tecnológica em todos os setores das sociedades e as reorganizações sociais dela derivadas. No cerne de tudo isso está a comunicação, ao mesmo tempo que esses eventos atuam como nós articuladores do processo comunicativo. A teoria das mediações ganhou força não apenas por demarcar a consistência do campo da comunicação latino-americano em sintonia com o que vinham desenvolvendo algumas importantes escolas do pensamento na Europa, como os estudos culturais, mas também porque alguns de seus pressupostos questionavam ou rompiam com modelos de comunicação que entendiam o ato de comunicar como puramente mecânico. Contrária à ideia de que comunicação envolvia apenas emissão mensagem recepção, a teoria das mediações defende que a fase de recepção, entendida pela escola funcionalista como o ponto de chegada de uma transmissão, era, na verdade, um processo completo e complexo que ressignificava toda a compreensão da comunicação e sugeria repensar algumas regras já estabelecidas de atividades como a jornalística. Capitaneado por pesquisadores como Martín-Barbero e García-Canclini, o conceito de mediações se consolida, pois ajuda a compreender como se comportam os indivíduos frente a inovações nos processos de comunicação, para além da tecnologia: Assim a comunicação se tornou para nós questão de mediações, mais do que de meios, questão de cultura e, portanto, não só de conhecimentos, mas de reconhecimento. Um reconhecimento que foi, de início, operação de deslocamento metodológico para rever o 10 processo inteiro da comunicação a partir de seu outro lado, o da recepção, o das resistências que aí têm seu lugar, o da apropriação a partir de seus usos. (Martín-Barbero, 1997, p. 28) O consumidor de informação deixa de ser então um mero recipiente e passa a ser entendido como, também, um produtor de sentido – e note-se que estamos falando de uma teoria desenvolvida antes de toda a evolução que colocou, também, na prática, o consumidor na posição de produção, muito antes dos smartphones e da comunicação digital. O contexto em que está inserido o receptor da mensagem, sua cultura e condição social, suas experiências e compreensões do mundo e da vida, bem como o instante exato em que tem acesso à mensagem, são, assim, alguns dos aspectos que influenciam a interpretação daquele conteúdo – critérios mediadores da comunicação. São duas as principais mediações discutidas pelo campo, embora não sejam as únicas. A primeira é a ideia de “destempos ou heterogeneidade de temporalidades” (Souza, 1995, p. 44), ou seja, as discrepâncias relacionadas à experiência vivida pelos sujeitos. “Há temporalidades de classe, sem fundamentalismos, sem mecanizações para opô-las como se fossem metafisicamente distintas, mas são histórica e socialmente distintas das temporalidades das raças, das fêmeas, dos sexos, das gerações” (Sousa, 1995, p. 44). A segunda é a das novas e distintas fragmentações sociais e culturais. Ou seja, a forma distinta de ver o mundo quando se contrapõem perspectivas de jovens e adultos, nativos digitais e pessoas que cresceram em uma realidade analógica, ressignificações de espaço público e privado pelos diferentes grupos populacionais, entre outros. Ter ou não um smartphone, saber ou não mexer nesse smartphone, acesso à internet móvel, por exemplo, passam a ser também mediações para o consumo de jornalismo. Embora sejam critérios que atravessam diferentes fenômenos de comunicação e cultura, da informação ao entretenimento, mediações como as citadas acima podem incidir em diferenças de consumo, interpretação e compartilhamento que podem ser facilmente percebidas entre os leitores de notícias em dispositivos móveis. Compreender como o jornalismo digital nos moldes dos dispositivos móveis reorganiza as relações de tempo e espaço entre as notícias e o público é, portanto, um passo essencial para superar os desafios discutidos no tópico anterior. 11 Quando a notícia sai do papel e migra para as telas, a temporalidade por gerações aparece com evidência, uma vez que gerações mais jovens tendem a ser mais receptivas ao consumo de notícias via smartphone, como vimos anteriormente. Por outro lado, a relação desses públicos com a informação resulta em uma tendência à desinstitucionalização da notícia e à espetacularização da vida cotidiana, de forma que espaços menos formais e que não respondem aos já convencionados princípios de ética e credibilidade do jornalismo ganham força e se consolidam como espaços de noticiabilidade. Essa midiatização da sociedade e as novas circularidades da informação são justamente o tema do próximo tópico. TEMA 4 – MIDIATIZAÇÃO E TRANSFORMAÇÕES DIGITAIS Uma sociedade midiatizada é aquela na qual, mais do que perpassada por novos e massificados meios de comunicação, desenvolve “novos processos de circulação, circuitos, dispositivos e ambiência midiatizada” (Braga, 2012), de forma que tudo – ou quase tudo – o que acontece, encontre uma forma de alcançar alguma mídia ou ser “contado” a alguém de alguma maneira. longe de caracterizar uma contraposição ou ruptura entre ambos, a midiatização se põe hoje como principal mediação de todos os processos sociais. Acredito que isso corrobora e desdobra a afirmação de Jesús Martín-Barbero [...] de ter passado de uma proposição sobre “mediações culturais da comunicação”, para uma ênfase nas “mediações comunicativas da cultura”. São os processos da midiatização que hoje delineiam e caracterizam, crescentemente, as mediações comunicativas da sociedade. (Braga, 2012, p. 51) Dito de outra forma e avançando cronologicamente na teoria das mediações, já não são mais apenas os aspectos socioculturais que determinam os modelos de transmissão da mensagem, mas a própria comunicação passou a reorganizar a cultura e a sociedade. Verón (2014) defende o fenômeno da midiatização como não universal e reforça que este se intensificou no último século. O ser humano se comunica por meio do que ele chama de “fenômenos midiáticos, consistindo da exteriorização dos processos mentais na forma de dispositivos materiais. Fenômenos midiáticos são, de fato, uma característica universal de todas as sociedades humanas.” (Verón, 2014, p. 14). Esses fenômenos começam, segundo ele, quando o homem passa a manipular e utilizar a pedra como ferramenta. A cada nova evolução tecnológica, nova mídias acompanham e, com elas, novas formas de reorganizar a relação do 12 público com a informação. Por essa perspectiva que atrela história e cultura aos processos midiáticos e de significação das informações, Verón é considerado um autor de uma vertente antropológica ou semiantropológica das pesquisas sobre midiatização. Além desta, há outras duas abordagens: a institucional e a socioconstrutivista (Santos et al., 2019). Não cabe aqui aprofundar a discussão sobre midiatização, uma vez que esse é apenas um dos aspectos dos quais trataremos com o intuito de contextualizar a comunicação digital e o webjornalismo. Ainda assim, vale mencionar que a primeira entende a midiatização como um resultado da globalização, já a segunda carrega uma perspectiva de que toda transformação,inclusive as que envolvem a comunicação, é pautada na interação social. São, portanto, perspectivas essencialmente complementares. Segundo Verón (2014), avaliar o impacto da técnica sobre a reorganização dos processos não necessariamente implica uma abordagem pautada no determinismo tecnológico. Em outro sentido, o autor sugere que em qualquer tempo, a apropriação pela comunidade de um dispositivo técnico pode tomar muitas formas diferentes; a configuração de usos que finalmente se torna institucionalizada em um lugar e tempo particular ao redor de um dispositivo de comunicação (configuração que pode ser propriamente chamada de meio) só necessita de explicação histórica. (Verón, 2014, p. 16) Em outras palavras, ter um meio de comunicação como mediador não apenas da comunicação, mas da própria estrutura de inter-relações entre as pessoas – daí a própria essência da palavra midiatização – é o que faz com que o momento atual tenha caraterísticas tão particulares, pouco lineares, assíncronas, em que características como as distâncias espaciais e os fusos horários têm sua importância diminuída para a realização dos encontros, mas onde o espaço continua atuando como mediação, assim como hábitos culturais. No cenário mediatizado mediado por dispositivos móveis, aplicativos como Instagram, especialmente depois da popularização dos Instagram Stories e das transmissões ao vivo, Twitter, Snapchat e, mais recentemente, o Tik Tok, recriam algumas dinâmicas sociais e de trocas interpessoais, reorganizam relações e processos e influenciam, também, na maneira como os indivíduos se informam sobre o mundo à sua volta. 13 TEMA 5 – DE GATEKEEPER A FACT CHECKER Elaborada em um período de intensa credibilidade e até mesmo de uma certa romantização do jornalismo, a ideia de que o profissional da imprensa seria uma espécie de guardião da informação remete às décadas iniciais da communication research, na primeira metade do século 20. O conceito de gatekeeper foi desenvolvido com base nas pesquisas de Kurt Lewin e David White, em 1947 e 1950, respectivamente, que discutiam os filtros pelos quais os conteúdos passavam no processo de construção da notícia para que alguns chegassem aos meios de comunicação e outros não. Essa nomenclatura sugere que o jornalista é aquele indivíduo que, exposto a toda a sorte de informações e dados, é o responsável autorizar ou não a entrada de uma determinada informação, na forma de notícia, na sociedade. Identificar quem eram essas pessoas e que critérios direcionavam seu olhar eram objetivos de algumas das pesquisas seminais da comunicação. De acordo com Wolf (2012, p. 185), “O mérito desses primeiros estudos foi definir onde, em quais pontos do aparato, a ação de filtro é exercida explícito e institucionalmente”. Posteriormente, em outras pesquisas desses autores ligados às primeiras tentativas de desenvolver um campo de pesquisa autônomo tendo a comunicação e o jornalismo como objetos, “supera-se o caráter individualista da atividade do gatekeeper, acentuando-se em particular, a ideia da seleção como processo ordenado hierarquicamente e ligado a uma rede complexa de feedback” (Wolf, 2012, p. 186). À medida que essa compreensão coletiva da organização das informações ganha espaço, o conceito de gatekeeper vai dando lugar à noção de newsmaking, à qual daremos mais atenção em conteúdos posteriores. Apesar disso, nas redações e na própria formação da persona do jornalista, a figura de alguém responsável por ditar o que é ou não notícia ainda faz parte do estereótipo da profissão. Ao guardar e vigiar os portões da sociedade, esse grupo de indivíduos detém a autoridade e o poder de moldar os avanços e desdobramentos da transmissão de conteúdo. Com a intensificação dos processos de midiatização, esse personagem perdeu o controle da função, à medida que os novos canais de comunicação abriram, muito rápido, novas brechas que permitiram a circulação livre e alternativa da informação. O portão continua em pé, o guardião também 14 ainda está lá, mas as informações agora entram e saem indiscriminadamente pelos fundos, sem filtros, sem mediadores, amparadas por facilitadores tecnológicos – alguns deles, robôs. Não é possível prever, ainda que se asseverem os mecanismos de controle sobre o jornalismo ou sobre a circulação de notícias e informações de maneira geral, se algum dia o jornalismo recuperará o status que a internet e suas novas formas de comunicação lhe retiraram. Então, para que serve a figura do jornalista numa realidade midiatizada? A resposta reside no que Kovach e Rosentiel (2003, p. 31) propõem no começo dos anos 2000: “A principal finalidade do jornalismo é fornecer aos cidadãos as informações que necessitam para serem livres e se autogovernar”. Com as novas tecnologias e o amplo alcance dos dispositivos móveis, o jornalista não deve mais se encarregar de filtrar o que passa para dentro do portão, mas sim contribuir para organizar as informações por parte dos leitores e espectadores, checando se são confiáveis, atuando quase como um moderador de discussões, uma vez que o cidadão que não é profissional de comunicação também se converteu em produtor de conteúdo, não só consumidor. Característica inerente à ética e à própria essência da profissão, a busca pela verdade deve nortear os jornalistas. Notícias e verdade não são palavras equivalentes, uma vez que “Buscar a exatidão não basta, é preciso ajudar o público a interpretar o jornalismo. O trabalho do jornalista é caminhar com o leitor rumo ao entendimento” (Kovach; Rosentiel, 2003, p. 70). Ao longo dessas duas primeiras décadas do século, no entanto, a figura do jornalista-mediador foi perdendo a credibilidade e categorizado por uma parcela da população como uma figura que manipula e enquadra a realidade a seu bel prazer ou em resposta aos interesses comerciais dos grandes conglomerados de comunicação. Ao mesmo tempo, o jornalista foi assumindo novas e diferentes funções e tarefas, de maior ou menor prestígio: assessor de imprensa, redator web, produtor de conteúdo digital, digital influencer, youtuber, entre tantas outras. Essas funções são necessárias em um diálogo com empresas e instituições dos mais diversos setores no contexto atual, mas estão inseridas em um contexto corporativo, em muitas situações impossibilitadas de produzir notícias com imparcialidade, um tema tão caro à profissão. 15 Kovach e Rosenthiel (2003, p. 116) defendem, no entanto, que, se a verificação é o grande método do jornalismo, isso não deve ser confundido com a discussão sobre objetividade: “Os métodos devem ser objetivos, não o jornalista. [...] A chave está na disciplina do ofício, não em sua finalidade”, justificam. Se, na época, os autores denunciavam uma tendência ao jornalismo declaratório e de afirmação e um declínio do jornalismo de verificação, hoje é justamente neste que residem algumas das melhores perspectivas para a profissão, à medida que a função de fact-checker vem crescendo e se tornando mais e mais necessária. Vinculadas ou não a empresas tradicionais de comunicação, agências especializadas em checagem de fatos como a Aos Fatos e a Lupa são nichos jornalísticos nativos digitais, que surgiram como mecanismos de averiguação que só se mostraram necessários num contexto de horizontalidade da produção e distribuição noticiosa. Conforme pontuam Prado e Morais (2018, p. 2), “a checagem de fatos complementa as práticas jornalísticas, ganha força com a internet, cria uma metodologia própria e ajuda o jornalismo a exercer parte de suas funções democráticas”. Assim, a função de fact-checker se apresenta como uma espécie de renascimento da credibilidade do jornalista como investigador que, ao desvendar a informação e revelar mentiras e verdades, contribui para o combate à desinformação e à circulaçãode informações. 16 REFERÊNCIAS BARBOSA, S. Jornalismo convergente e continuum multimídia na quinta geração do jornalismo nas redes digitais. In: CANAVILHAS, J. (org.). 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