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A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO AULA 6 Prof. Cassio Gonçalves de Azevedo 2 CONVERSA INICIAL A constituição subjetiva, tal como concebida por Lacan, se dá em uma relação inextricável ao mundo da linguagem. O Outro, como o simbólico, condiciona o sujeito tanto no que se refere à sua “estrutura”, que é radicalmente dividida, quanto na sua posição, intervalar, bem como no que diz respeito às suas possibilidades. Nesta etapa, iniciaremos por duas operações lógicas que configuram o sujeito e o desejo que o institui, na relação particular quanto ao Outro. São elas:a alienação e a separação. Lacan as teoriza como dois tempos na constituição subjetiva, porém em termos lógicos, isto é, não como cronologicamente dispostos, um após o outro, mas logicamente articulados. Essas duas operações constituintes nos encadearão na esteira do conceito de objeto α, que vai adquirindo diferentes conotações na elaboração lacaniana, de modo a assumir a função de enodamento da estrutura psíquica, na medida em que participa dos três registros desenvolvidos por Lacan: o real, o simbólico e o imaginário. Veremos um pouco a respeito desses três registros, destacando que o objeto α participa das três instâncias de forma diferente, porém destacando seu estatuto radical de objeto inexistente, isto é, de real, de impossível. Chegaremos, assim, ao sujeito tal como nos aparece na clínica, entre os significantes, como sujeito não do enunciado ou da materialidade do significante, mas da enunciação. Na seção Na Prática, refletiremos sobre as incidências mais imediatas dessos conceitos aqui esboçados e na seção Finalizando retomaremos um pouco do conteúdo estudado. TEMA 1 – ALIENAÇÃO É comum que se atribua ao sujeito a causalidade de algum comportamento ou atitude. Costuma-se então dizer, por exemplo, que é o sujeito que causa um determinado sintoma. Conforme discute Cabas n’O sujeito na psicanálise de Freud a Lacan, existe inclusive o debate a respeito de um novo sujeito que estaria na base da constituição de novos sintomas, isto é, de “novas formas de subjetividade” que levam a “novas formas do sintoma”. O autor é taxativo e categórico ao rechaçar essa tendência, afirmando que, em 3 primeiro lugar, “o sujeito não é causa. Quando muito, ele é causado. Segundo, porque um sujeito é uma função e não uma instância (ou seja: uma instância psíquica). E, terceiro, porque essa função carece de conteúdo próprio” (Cabas, 2009, p. 10). Ora, dizer que o sujeito é causado ao invés de causa significa dizer que ele não é causa de si próprio, que ele é, portanto, constituído por meio da relação do humano com o universo da linguagem, causado pelo Outro, pelo simbólico. Reproduziremos, aqui, dois parágrafos na íntegra do texto Posição do inconsciente, de 1964, inserido nos Escritos de Lacan. O efeito de linguagem é a causa introduzida no sujeito. Por esse efeito, ele não é causa dele mesmo, mas traz em si o germe da causa que o cinde. Pois, sua causa é o significante sem o qual não haveria nenhum sujeito no real. Mas esse sujeito é o que o significante representa, e este não pode representar nada senão para um outro significante: ao que se reduz, por conseguinte, o sujeito que escuta. Com o sujeito, portanto, não se fala. Isso fala dele, e é aí que ele se apreende, e tão mais forçosamente quanto, antes de – pelo simples fato de isso se dirigir a ele – desaparecer como sujeito sob o significante em que se transforma, ele não é absolutamente nada. Mas esse nada se sustenta por seu advento, produzido agora pelo apelo, feito no Outro, ao segundo significante. (Lacan, 1998, p. 849) Vemos aqui, portanto e desde já, que a “a alienação reside na divisão do sujeito que acabamos de designar em sua causa (Lacan, 1998, p. 855), ou seja, que a causa do sujeito é o significante que o funda na medida em que o cinde, o divide, e que não pode representá-lo senão para outro significante; em outras palavras, que só pode representá-lo indiretamente como que por uma procuração. Lacan toma de empréstimo noções da lógica e da teoria dos conjuntos para formalizar a operação de alienação como o efeito da reunião entre dois conjuntos: o campo do ser e o do sentido. A figura a seguir ilustra a operação da alienação ao significante, operação constituinte do sujeito em questão. 4 Figura 1 - O grafo da alienação Fonte: Lacan, 1985, p. 200. A coisa toda se passa de modo que o sujeito, ao aderir um significante do campo do Outro, isto é, valores e normas culturais, por exemplo, que lhe são estrangeiros o faz cedendo parte de si, que fica de fora, de modo que a operação de alienação implica uma perda no campo do a ser, na medida em que esse significante lhe é estranho e tampouco é produzido por si. O sujeito não domina nem pode modificar os valores culturais aos quais é convocado a aderir. É nessa direção que vai o famoso comentário feito por J. A. Miller (Lacan, 1964/2008, p. 210) no interior do Seminário 11: "[...] a alienação de um sujeito que recebeu a definição de ser nascido na, constituído por e ordenado a um campo que lhe é exterior". Assim, a entrada no universo simbólico envolve uma profunda alteração na natureza do ser: “Para ser pars [parte], ele realmente sacrificaria grande parte de seus interesses” (Lacan, 1964/2008, p. 857). O sujeito então se vê condenado a emergir no campo do sentido. (Lustoza; Zanola, 2019, p. 125) Assim, o ser perde algo de si ao aderir um significante que o levará a outro e assim sucessivamente, num deslizamento infinito, de modo que o sujeito, para Lacan, será a questão que daí emerge, o quem sou? que o campo do simbólico não recobre e tampouco responde. O sujeito adere então ao S1, o significante primeiro, em relação ao qual o S2 vem socorrer, conferir um sentido. Assim inagura-se a bateria em que se insere sempre mais um significante, enquanto que a porção não incorporada ao 5 regime do significante, que é a do sujeito do inconsciente, segue deslizando em uma ordem heteróclita à ordem dos significantes, sem que seja efetivamente significado. TEMA 2 – SEPARAÇÃO Lacan utiliza a frase A bolsa ou a vida!, para exemplificar o tipo de operação que se constitui na alienação: “A bolsa ou a vida! Se escolho a bolsa, perco as duas. Se escolho a vida, tenho a vida sem a bolsa, isto é, uma vida decepada. Vejo que me fiz suficientemente compreender” (Lacan, 1985, p. 201). Em outras palavras, não se pode escolher a bolsa porque se perde a vida e, consequentemente, a bolsa. Só resta optar pela vida e perder a bolsa. De modo análogo, o sujeito não pode escolher o ser sem perder o ser e o sentido, porque nada garante até então seu ser senão o sentido que se lhe afigura como tal. Ao escolher o campo do sentido para lhe fundamentar algum sentimento de ser, o sujeito perde no campo do ser, na medida em que no campo do sentido o significante só o representa, o sustenta enquanto ser para outro significante, ou seja, indireta e parcialmente. Perde-se assim um pouco do ser para se aderir ao mundo da linguagem. Essa perda de ser, fruto da identificação do indivíduo com o campo simbólico do Outro, é a negatividade mesma que Lacan identifica como sendo o sujeito da questão, do inconsciente. Na sua fundação, oriunda da relação que se estabelece com a ordem do significante, o sujeito aparece, pacialmente, no campo do simbólico, representado por um significante (S1) para outro significante (S2), ao mesmo tempo que desaparece, (S), sujeito barrado e resistente à significação. Essa porção barrada do sujeito, resistente à significação, vai se confrontar novamente em uma interseccção mas desta vez diferente. Se, na alienação, o sujeito deve optar por um dos vetores do conjunto e acaba escolhendo a inscrição no simbólico, cedendo para isso parte do seu ser, a intersecçãoque se opera na separação é de superposição, mas em relação ao que falta nos dois conjuntos. Isso se dá porque na separação a falta a ser, resultante da alienação, vem a se somar, por assim dizer, à falta no campo do Outro, entrevista, como vimos, nos espaços de falta de sentido, aos pontos de opacidade do discurso do Outro. 6 Uma falta é, pelo sujeito, encontrada no Outro, na intimação mesma que lhe faz o Outro por seu discurso. Nos intervalos do discurso do Outro, surge na experiência da criança, o seguinte, que é radicalmente destacável - ele me diz isso, mas o que é que ele quer? Nesse intervalo cortando os significantes, que faz parte da estrutura mesma do significante, está a morada do que, em outros registros de meu desenvolvimento, chamei de metonímia. É de lá que se inclina, é lá que se desliza, é lá que foge como o furão, o que chamamos desejo. O desejo do Outro é apreendido pelo sujeito naquilo que não cola, nas faltas do discurso do Outro, e todos os porquês? da criança testemunham menos de uma avidez da razão das coisas do que constituem uma colocação em prova do adulto, um por que será que você me diz isso? sempre re-suscitado de seu fundo, que é o enigma do desejo do adulto. (Lacan, 1964/1985, p. 203) A operação de separação, portanto, institui no sujeito dividido o desejo enquanto desejo do Outro, na medida em que o enigma do desejo do Outro vem a causar o desejo do sujeito. Para que este, o sujeito, se descubra enquanto desejante, ele há que se confrontar com uma falta no campo do Outro. Ou seja, o sujeito descobre uma falta no campo do Outro a partir da qual pode também se desvencilhar das identificações primordiais, representadas pela cópulas dos significantes, S1 e S2, e, desse modo, ascender seu desejo a uma nova potência, enlaçando-o nesse vácuo que se localiza ali mesmo, entre os significantes, nos espaços em que o sentido, no campo do outro, falha e se abre para novas possibilidades que não a alienação primordial. Com a queda dessa identificação primordial, institui-se uma hiância na relação do sujeito com o campo do Outro a partir da qual o sujeito desenvolve um contato dialético com o universo simbólico. É a partir da instauração dessa queda que Lacan pensará por que o sujeito é não todo alienado ao campo de suas identificações simbólicas e separado de uma nociva relação dual com o Outro materno, desenvolvendo-se enquanto sujeito desejante a partir da inscrição desse ponto de falta. (Zanola; Lustoza, 2019) Importante então notarmos que, se na alienação o Outro nos é oferecido com a ilusão de que é completo, de que poderemos com ele dar sustentação ao nosso ser, na segunda operação, a da separação, ele se nos apresenta como faltante. Essa falta no campo do Outro, portanto, se conjuga à falta a ser do sujeito quando da sua entrada no campo do simbólico, com seus significantes parciais, e o que daí se depreende, no ensino de Lacan, é o objeto causa do desejo, o objeto α. 7 TEMA 3 – O OBJETO α O único conceits que Lacan assumiu como sendo próprio dele foi o de objeto α, pequeno α. No entanto, este tem seus antecedentes na elaboração freudiana, desde o conceito de das Ding, A Coisa, passando pela falta de objeto inerente à pulsão, dissecada por Freud no texto d’As pulsões e suas vicissitudes, de 1915. Quando Freud desenvolve o conceito de pulsão, um dos quatro elementos que a compõem, o objeto, é definido por ele como sendo indiferente, o que é uma maneira de dizer que todo e qualquer objeto pode ocupar o lugar de objeto da pulsão. No seminário sobre Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Lacan destaca essa passagem do texto freudiano sobre “as pulsões e suas vicissitudes”: “Para o que é do objeto da pulsão, que bem se saiba que ele não tem, falando propriamente, nenhuma importância. Ele é totalmente indiferente.” Lacan deu um nome a essa falta — objeto α — e afirmou, ainda, que esse objeto α tinha sido a sua única invenção teórica. Para Lacan, o objeto α é “apenas a presença de um cavo, de um vazio, ocupável, nos diz Freud, por não importa que objeto, e cuja instância só conhecemos na forma de objeto perdido, α minúsculo” (Jorge, 2008, p. 139). Trata-se, portanto, de um objeto que não existe e que o sujeito se empenha em buscar, que move a estrutura psíquica causando-lhe o desejo: na medida em que faz a manutenção da falta, ele causa o desejo. Freud, desde o texto Projeto para uma psicologia científica, de 1895, tratava do primeiro objeto de satisfação que o bebê acessara por meio dos cuidados recebidos pelo outro que dele se empenha em cuidar. Essas primeiras experiências de satisfações deixariam traços mnêmicos do psiquismo infantil e seriam essas primeiras experiências de satisfações que esse sujeito buscaria reencontrar nas sucessivas experiências de sua vida. Lacan destaca que é em torno desse objeto, que ocupa para o sujeito o lugar do primeiro exterior, de uma impressão à qual nada no campo das percepções pode corresponder, que se orienta todo seu encaminhamento desejante. É esse objeto, das Ding, que representa o Outro absoluto para o sujeito, que se trata no fundo de reencontrar. Mas esse objeto é, por sua natureza, perdido como tal e jamais será reencontrado. Como aponta Moustapha Safouan, o modelo erógeno de Freud, o do beijo que o bebê queria receber de seus próprios lábios, mostra que “não é a separação em relação ao objeto que engendra a procura”, mas que “se trata de uma divisão que está na raiz do investimento e da constituição do objeto e que faz com que encontrar esse objeto seja sempre reencontrá-lo... sem encontrá-lo”. Ao contrário, este objeto é um “objeto fundamentalmente perdido, cuja perda é sinônimo de sua própria objetividade.” (Jorge, 2008, p. 141) 8 Assim, o sujeito se empenharia na busca de satisfações por meio de objetos eleitos conforme sua história pessoal, imaginária e simbolicamente determinados, mas visando sempre a uma satisfação mítica, primordial e completa. Porém, os objetos que encontra não o satisfazem dessa forma, mas apenas parcialmente. Esse objeto vai adquirindo diferentes conotações na elaboração lacaniana, de modo a assumir a função de enodamento da estrutura psíquica, na medida em que participa dos três registros desenvolvidos por Lacan: o real, o simbólico e o imaginário. Assim, o objeto α tem várias aparências imaginárias — grafadas por Lacan como i(α), ou seja, imagens de α —, que podem ser construídas para cada sujeito por intermédio do simbólico, dos significantes do Outro referentes às inserções históricas singulares de cada um. Mas a dimensão que mais importa e que o configura propriamente enquanto objeto α é o seu estatuto real, que lhe confere sua ex-sistência — ex-sistência que designa o que está fora do registro do simbólico. E o nome dessa dimensão real do objeto α, Lacan empenhou-se em mostrar que foi chamado por Freud de das Ding, a Coisa. (Jorge, 2008, p. 140) O ser humano busca assim a Coisa, aquilo que traria uma satisfação completa, mas o que encontra é o objeto α, ou seja, se depara com uma insatisfação real, com um resto de insatisfação que os objetos do mundo sensível não são capazes de recobrir. TEMA 4 – REAL, SIMBÓLICO E IMAGINÁRIO Lacan inicia seu percurso dissecando o Eu e o registro do imaginário avança com a linguística pelo registro do inconsciente estruturado como linguagem, o simbólico, e vai se aproximado gradativamente e cada vez mais do real. E o que é o real? Ora, o real não é a realidade que, em psicanálise, nos remete ao modo que um ser humano encara as coisas já todo permeado pela sua própria fantasia, ou seja, enviesado. Em termos freudianos, a realidade humana é a realidade psíquica ou o real mediado pelo imaginário e pelo simbólico. O real como tal nos remete àquilo que não faz sentido, da ordem do impossível, aquilo que não se conforma com as expectativasdo sujeito, que não atende suas vontades e ambições, que não se enquandra e que é, em suma, traumático, mais ou menos como aquilo que fizesse um buraco nas malhas de uma cadeia simbólica e imaginariamente constituída para dar forma ao mundo. Já o simbólico, por tudo que vimos em relação ao próprio 9 significante, é o registro psíquico da ordem do duplo sentido, enquanto o imaginário, na medida em que desde o princípio vem dar consistência imagética a um corpo despedaçado, é o registro do sentido (Jorge, 2008). O objeto α participa dos três registros, porém no imaginário é como i(α), ou seja, imagem de α, um objeto que não cessa de se escrever, em outras palavras, é tomado pelo indivíduo como necessário e definitivo, um objeto idealizado. No caso do simbólico, esse objeto é contingencial, isto é, cessa de não se escrever, de modo que pode ser alterado, haja vista que o registro simbólico é o do duplo sentido. Ora o objeto é, ora não é (Jorge, 2008). Já o objeto α no registro do real não cessa de não se escrever, ou seja, ele não existe e não se inscreve na estrutura psíquica, ele é da ordem do impossível. Assim, temos três faces objetais para cada registro psíquico. Figura 2 – As três faces objetais Real o objeto não cessa de não se escrever não sentido Simbólico o objeto cessa de não se escrever duplo sentido Imaginário o objeto não cessa de se escrever sentido Fonte: elaborado com base em Jorge, 2008, p. 146. O esquema acima reproduzido nos auxilia a compreender por quais vias se estabelecem as relações de objeto em cada um dos registros, porém cabe- nos ressaltar que o objeto α, na sua essência teórica radical, é da ordem do real, ou seja, ele não existe e é, assim, causa do desejo enquanto tal. Lacan vai desenvolvendo sua teoria sobre os três registros ou instâncias psíquicas e culmina com o nó borromeano, demonstrando que a estrutura psíquica humana podia se valer dessa estrutura para ser representada. Muitos anos depois, no seminário RSI, Lacan irá mostrar que os três registros real-simbólico-imaginário não podem ser isolados, uma vez que se apresentam unidos de modo indissolúvel na topologia do nó borromeano ou cadeia borromeana, tipo de nodulação em que os elos, pelo menos três, estão amarrados uns aos outros de forma tal que, se cortarmos apenas um deles, todos os outros se desligam simultaneamente. Lacan afirmou que o nó borromeano lhe caiu “como 10 um anel no dedo” na medida em que através dele pôde demonstrar algo que seria impossível expressar com palavras: a propriedade (ou a qualidade) borromeana demonstra o fato de que tudo começa no três, de que é preciso pelo menos três para que a estrutura se dê [...] O nó borromeano produziu em Lacan um fascínio em tudo semelhante àquele produzido em Freud pela imagem da cabeça de Janus. (Jorge, 2008, p. 94-95) O que daí resultou é a figura seguinte e que já nos indica que os três registros ou instâncias se amarram justamente em torno de um ponto específico e inapreensível, e esse ponto é justamente o objeto α. Figura 3 – Nó borromeano TEMA 5 – O SUJEITO DA ENUNCIAÇÃO Se o sujeito do inconsciente, como vimos, é não todo inscrito pelo simbólico; se, como diz Lacan, com o sujeito “não se fala” já que “isso fala dele” (Lacan, 1998, p. 849); se o sujeito é, em suma, um efeito de real (Cabas, 2009, p. 73); se ele se aloja entre os significantes, como apreendê-lo, por exemplo, na clínica psicanalítica? De que modo ele comparece? Como abordá-lo? 11 Ora, ainda que seja um dos efeitos de real, o sujeito se faz sentir por meio do simbólico, isto é, das palavras, dos significantes e, como vimos, também por intermédio deles é que se escuta e se intervém. Não obstante, o sujeito do inconsciente, relegado ao espaço entre os significantes, comparece muito mais nos efeitos de enunciação do que de enunciado. É muito mais nos efeitos de corte dos significantes, por exemplo, na pontuação quando da linguagem escrita e na enunciação quando da oralidade que ele poderá comparecer, subvertendo, muitas vezes, o enunciado. A pontuação, sendo na escrita o elemento que estabiliza o sentido, presentifica-se na fala por meio da enunciação, na dependência da qual é facultado a um mesmo enunciado apresentar os sentidos mais díspares, desde que pronunciado de maneiras diferentes. Assim como a pontuação o faz na escrita, a enunciação, na fala, altera os enunciados e, desse modo, revela o sujeito da enunciação, levando à constatação de que a enunciação jamais possa ser reduzida a qualquer enunciado. (Jorge, 2008, p. 82) Sobre a ironia Jorge (2008) afirma, por exemplo, que é possível dizer exatamente o contrário do que se fala, isso em função da expressão do rosto e da entonação (enunciação). Assim, o sujeito do inconsciente, não obstante sua clausura entre os significantes, expressa sua espirituosidade a despeito da palavra, subjugando- a e subvertendo-a desde ali onde ele reside. NA PRÁTICA O objeto α participa dos três registros, porém no imaginário é como i(α), ou seja, imagem de α, um objeto que não cessa de se escrever, em outras palavras, é tomado pelo indivíduo como necessário e definitivo, um objeto idealizado. No caso do simbólico, esse objeto é contingencial, isto é, cessa de não se escrever, de modo que pode ser alterado, haja vista que o registro simbólico é o do duplo sentido. Ora o objeto é, ora não é (Jorge, 2008). Já o objeto α no registro do real não cessa de não se escrever, ou seja, ele não existe e não se inscreve na estrutura psíquica, ele é da ordem do impossível. Esse é o estatuto do objeto α enquanto tal, propriamente dito, o do real, impossível. Mas em termos práticos, a título de exemplo, como apreender isso? Pensemos no objeto de amor, que pode assumir as três configurações que vimos, a depender do registro psíquico pelo qual é, predominantemente, 12 tomado. Se o for pelo registro do imaginário, i(α), o objeto será tomado como necessário, perfeito e total, isto é, pelas vias imaginárias do sentido do tipo que não cessa de se escrever. Se for tomado no registro do simbólico, será tido como contingente, isto é, pode ser essa pessoa ou não, ou pode ser que seja por enquanto, sendo que no futuro poderá não ser mais. Trata-se do duplo sentido em que o objeto cessa de não se escrever. Já se o objeto estiver na sua radical alteridade real, o que temos é um objeto que não existe, isto é, que não cessa de não se escrever, impossível, portanto. Uma pessoa que tomaria o objeto por essa via radical não esperaria encontrar no mundo o par ideal, nem que fosse por um tempo, digamos, ao acaso, pois estaria tomamando o objeto pelo seu estatuto de real, isto é, como impossível. FINALIZANDO Iniciamos pela compreensão de que o sujeito, em psicanálise, não é causa de nada, mas é causado e que sua causa reside na relação da humanidade com a linguagem, isto é, com o campo do simbólico, do Outro, como o chamou Lacan. A primeira operação que efetua a causa do sujeito, sua causação, é a alienação que, como vimos, é alienação ao significante como operador do Outro. Vimos que a “a alienação reside na divisão do sujeito que acabamos de designar em sua causa” (Lacan, 1998, p. 855), ou seja, que a causa do sujeito é sua adesão ao significante que o funda na medida em que o cinde, o divide, na medida em que não pode representá-lo senão para outro significante, isto é, que só pode representá-lo indiretamente. Lacan toma de empréstimo noções da lógica e da teoria dos conjuntos para formalizar a operação de alienação como o efeito da reunião entre dois conjuntos: o campo do ser e o do sentido. Ele utiliza a frase A bolsa ou a vida para exemplificar o tipo de operação que se constitui na alienação: “A bolsa ou a vida! Se escolho a bolsa, perco as duas. Se escolho avida, tenho a vida sem a bolsa, isto é, uma vida decepada. Vejo que me fiz suficientemente compreender” (Lacan, 1985, p. 201). Em outras palavras, não se pode escolher a bolsa porque se perde a vida e, consequentemente, a bolsa. Só resta optar pela vida e perder a bolsa. 13 De modo análogo, o sujeito não pode escolher o ser sem perder o ser e o sentido, porque nada garante até então seu ser senão o sentido que se lhe afigura como tal. Ao escolher o campo do sentido para lhe fundamentar algum sentimento de ser, o sujeito perde no campo do ser, na medida em que no campo do sentido o significante só o representa, o sustenta enquanto ser para outro significante, ou seja, indireta e parcialmente. Perde-se assim um pouco do ser para se aderir ao mundo da linguagem. Essa porção barrada do sujeito, resistente à significação, vai se confrontar novamente em uma interseccção mas desta vez diferente. Se na alienação o sujeito deve optar por um dos vetores do conjunto e acaba escolhendo a inscrição no simbólico, cedendo para isso parte do seu ser, a intersecção que se opera na separação é de superposição, mas em relação ao que falta nos dois conjuntos. Isso se dá porque na separação a falta a ser, resultante da alienação, vem a se somar, por assim dizer, à falta no campo do Outro, entrevista, como vimos, nos espaços de falta de sentido, aos pontos de opacidade do discurso do Outro. Na medida em que no campo do Outro se pode sempre inserir um novo significante, isso se dá na medida em que o Outro carece de um significante que represente em si própria a coisa representada, ou seja, ele é faltante. Essa falta do Outro, assimilada pela porção recalcada do sujeito, isto é, aquela resistente à significação, é o que institui, no sujeito, seu desejo como desejo do Outro. Vale lembrar, com Lacan, que o desejo do Outro é apreendido pelo sujeito naquilo que não cola, nas faltas do discurso do Outro, e todos os porquês? da criança testemunham menos de uma avidez da razão das coisas do que constituem uma colocação em prova do adulto, um por que será que você me diz isso? sempre re-suscitado de seu fundo, que é o enigma do desejo do adulto. (Lacan, 1964/1985, p. 203) Chegamos assim ao tema do desejo e, nele, sobre o seu objeto, o objeto do desejo ou objeto α. Vimos que Lacan reconheceu como seu conceito próprio mas que descende da elucubração de Freud sobre as primeiras experiências de satisfação que o sujeito experimenta bem como sobre a falta inerente do objeto fixo como objeto da pulsão. Trata-se de um objeto que não existe e que o sujeito se empenha em buscar, que move a estrutura psíquica causando-lhe o desejo, na medida em que faz a manutenção da falta. O sujeito se empenharia na busca de satisfações por meio de objetos eleitos conforme sua história pessoal, 14 imaginária e simbolicamente determinados, mas visando sempre a uma satisfação mítica, primordial e completa, isto é, a Coisa. Porém, os objetos que encontra não o satisfazem dessa forma, mas apenas parcialmente. Esse objeto vai adquirindo diferentes conotações na elaboração lacaniana, de modo a assumir a função de enodamento da estrutura psíquica, na medida em que participa dos três registros desenvolvidos por Lacan: o real, o simbólico e o imaginário. Chegamos assim ao nó borromeano e seu enodamento em torno do objeto α e finalizamos destacando um pouco sobre a emergência do sujeito do inconsciente sob a forma de angústia, como um efeito do real. 15 REFERÊNCIAS CABAS, A.G. O sujeito na psicanálise de Freud a Lacan: da questão do sujeito ao sujeito em questão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009. JORGE, M.A.C. Fundamentos da psicanálise de Freud a Lacan. As bases conceituais. 5.ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. LACAN, J. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. 2.ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. LUSTOZA, R.Z.; ZANOLA, P.C. Alienação e separação no Seminário 11 de Lacan: uma proposta de interpretação. Revista Tempo Psicanalítico. v.51, n.2, Rio de Janeiro, jul./dez. 2019, p. 121-139.