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Manual da Teoria Geral do Direito 2019 Carlos Camillo MANUAL DA TEORIA GERAL DO DIREITO © Almedina, 2019 Autor: Carlos Eduardo Nicoletti Camillo Revisão: Marco Rigobelli Diagramação: Almedina Design de Capa: FBA. ISBN: 978-85-8493-543-7 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Camillo, Carlos Manual da teoria geral do direito / Carlos Camillo. – São Paulo: Almedina, 2019. Bibliografia. ISBN 978-85-8493-543-7 1. Direito – Filosofia 2. Direito – Teoria I. Título. 19-28977 CDU-340.11 Índices para catálogo sistemático: 1. Teoria geral do direito 340.11 Cibele Maria Dias – Bibliotecária – CRB-8/9427 Este livro segue as regras do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990). Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro, protegido por copyright, pode ser reproduzida, armazenada ou transmitida de alguma forma ou por algum meio, seja eletrônico ou mecânico, inclusive fotocópia, gravação ou qualquer sistema de armazenagem de informações, sem a permissão expressa e por escrito da editora. Agosto, 2019 Editora: Almedina Brasil Rua José Maria Lisboa, 860, Conj. 131 e 132, Jardim Paulista | 01423-001 São Paulo | Brasil editora@almedina.com.br www.almedina.com.br Nós somos hoje responsáveis pelo futuro mais longínquo da humanidade. PAUL RICOEUR A educação é a arma mais poderosa que você pode usar para mudar o mundo. Nelson Mandela À memória de meu pai, Eduardo, a pessoa mais honrada que já conheci. Para Hebe, Gislene, Juliana e Catarina, as mulheres da minha vida. Sempre. E para os meus alunos, com a esperança de que, conhecendo o Direito, saibam priorizar a justiça, os valores sociais e a dignidade da pessoa humana. PREFÁCIO Em um contexto acadêmico em que o ensino jurídico se mostra cada vez mais banalizado pelo praxismo e pelo dogmatismo estéril, a reflexão crítica tem escasseado progressivamente. Essa tendência reflete-se, infelizmente, em um mercado editorial que, muitas vezes, visando apenas o lucro, publica material de consumo imediato, sem densidade alguma e apenas direcionado ao cultivo de um saber ornamental que serve de bordão retórico para fraseado de efeito. Conforme já notara Tercio Sampaio Ferraz Jr., a partir de uma lúcida mobilização de pensamento de Hannah Arendt, “na lógica da sociedade de consumo, tudo o que não serve ao processo vital é destituído de significado. Até o pensamento torna-se mero ato de prever consequências e só nessa medida é valorizado. Entende-se assim a valorização dos saberes técnicos [...].”1 Em um contexto como esse não é de se espantar que a reflexão teórica estruturada se afigure como artigo raro. Esse é um dos méritos do livro Manual da Teoria Geral do Direito, do Professor Doutor Carlos Camillo que, mediante uma análise fundamentada, discorre sobre questões de grande complexidade de modo a contribuir para que a formação do estudante de direito não se restrinja à enunciação de trivialidades em tom solene. Ao longo de sua obra, o autor nos mostra a importância da reflexão teórica na formação jurídica. Neste sentido, o livro consigna uma pretensão ambiciosa, pois, conforme enfatiza o autor, o seu intuito consiste em “antecipar a visão de uma totalidade do conhecimento, examinando-o, investigando-o e confirmando-o por meio de suas estruturas e verdades, de maneira a permitir que o estudante consiga manusear e melhor compreender a essência e significação do fenômeno jurídico.” Nesse sentido, alinha-se a proposta do autor se aproxima da de significativos analistas contemporâneos que enfatizam a relevância da Teoria Geral do Direito, inclusive para o desenvolvimento de uma prática jurídica mais consistente.2 Entretanto, não é simples a empreitada assumida por Carlos Camillo. O tema de sua obra é caracterizado pelo alto grau de abstração e por consistir em uma seara de significativa divergência. A própria inexistência de uniformidade semântica para a definição do que vem e ser esse exercício reflexivo designado de Teoria Geral do Direito é, por si só, indicativa da seara complexa pela qual o autor desta obra transita.3 Ademais, por não ostentar contornos claramente definidos, a Teoria Geral do Direito é frequentemente confundida com a Dogmática Jurídica e com a Filosofia do Direito. Cumpre, portanto, tal como faz o autor desta obra, especificar, ainda que de forma estipulativa, em que consiste a Teoria Geral do Direito. Em uma recente tentativa de síntese das tendências fundamentais da Teoria do Direito na tradição anglófona contemporânea – mediante a análise de autores como Herbert L. A. Hart, Ronald Dworkin, Joseph Raz, John Rawls, Ernest Weinrib e James Gordley –, Ronaldo Porto Macedo Junior, com o intuito de especificar o que pode ser entendido por Teoria do Direito, procura distingui-la da Dogmática Jurídica e da Filosofia do Direito. Deste modo, afirma que Dogmática Jurídica, balizada pelo princípio da “inegabilidade dos pontos de partida”, consistiria, fundamentalmente, em um saber tecnológico direcionado à “decidibilidade” dos conflitos, exprimindo-se, assim, como um processo de racionalização das opiniões jurídicas de modo a estabilizá-las, fixá-las e torná-las transmissíveis, com uma função fundamentalmente prática.4 Distintamente, a Teoria do Direito poderia ser entendida como expressão de um conhecimento obtido a partir da observação. Advinda do grego “theorein” (“observar”, “contemplar”) a palavra “teoria”, em um de seus usos mais correntes, exprimiria um modelo descritivo da realidade. Trata-se, portanto, de uma instância reflexiva que tem por finalidade observar e descrever o direito a partir de uma articulação conceitual.5 Por sua vez, a Filosofia do Direito ocupar-se-ia, ao menos em parte, das condições de possibilidade do próprio conhecimento teórico acerca do direito, consistindo, assim, em uma seara de difícil definição.6 Com o intuito de distingui-la esquematicamente da Teoria do Direito, vale notar que, conforme observa Jürgen Habermas, a Teoria do Direito, “movimenta-se nos limites de ordens jurídicas concretas. Extrai os seus dados do direito vigente, de leis e de casos precedentes, de doutrinas dogmáticas, de contextos políticos da legislação, de fontes históricas do direito etc.”7 Essa distinção também é particularmente bem explicitada por Niklas Luhmann, especialmente, em seu livro Das Recht der Gesellschaft, publicado em 1993. Segundo Luhmann, tanto na “Tradição Romanística do Direito Civil” (Tradition des römischen Zivilrechts) como na da Common Law, teriam se desenvolvido “teorias jurídicas” (juristische Theorien) dos mais variados tipos. O desenvolvimento de tais teorias decorreria, fundamentalmente, de duas frentes: a) uma direcionada para a condensação de sentido, voltada à prática jurídica, visando a fundamentação de decisões mais sólidas e consistentes (Rechtspraxis); b) e outra direcionada ao ensino jurídico, com vistas à elaboração de sistematizações e conceituações para a formação dos juristas (Rechtsunterricht).8 Segundo Luhmann, as “Teorias do Direito” (Rechtstheorien), surgidas tanto da “prática jurídica” (Rechtspraxis) como do “ensino jurídico” (Rechtsunterricht), seriam expressão, tal como ocorre com os textos do direito vigente, da forma pela qual o direito se apresenta como resultado de interpretações. Assim, as “teorias do direito” constituiriam formas de “autodescrição” (Selbstbeschreibung) do sistema jurídico. Luhmann ressalta, ainda, que mais recentemente, nesse âmbito da autodescrição do sistema jurídico, teriam surgido novas iniciativas que não estariam circunscritas à “Dogmática Jurídica” (Rechtsdogmatik) e à “Filosofia do Direito” (Rechtsphilosophie). Tais iniciativas estariam, segundo ele, articuladas ao redor do rótulo de “Teoria do Direito”, no singular (Rechtstheorie).9 Por conseguinte, tal como a “Dogmática Jurídica” e a “Filosofia do Direito”, também a “Teoria do Direito”, mesmo sendo expressão de novas tendências, constituiria expressão de uma “perspectiva interna do sistema jurídico” (Binnenperspektivene daí advieram muitas palavras, tais como rei, reger, regime, régua, relha, dirigir e se afigura como uma verdadeira metáfora, uma vez que designa aquilo que é reto, isto é, que se encontra conforme às regras, exprimindo, assim, uma noção preliminar de dever ser. E rectum, diferentemente de directum, tinha um sentido mais moral do que jurídico, tanto que também significava, apropriadamente, o bem moral, o justo, a razão; − A Ideia elementar do Direito passa necessariamente pela perspectiva de justiça, lei, ordem e sociedade e, considerando que o seu conceito é essencialmente cultural, deverá ser completada com outros elementos que se mostram essenciais e característicos; − Atualmente vivemos a era que deve resgatar o enfoque valorativo do Direito que havia se esvaziado em meio às teorias puramente normativas, e certamente a justiça se apresenta como um dos valores genuinamente mais importantes, fundando-se como verdadeira essência e núcleo do Direito; − Direito é a ordenação cultural das normas e princípios jurídicos que regulam a vida social no Estado com base nos valores fundantes e contemporâneos da sociedade. - 23 IMMANUEL KANT, Kritik der reinen Vernunft, p. 116. 24 GUSTAV RADBRUCH, Filosofia do Direito, p. 86. 25 JOSÉ HERMANO SARAIVA, O que é direito? p. 13. 26 FRANCISCO TORRINHA, Dicionário Latino Português, p. 732. 27 A letra j era desconhecida dos latinos, tendo sido utilizada por séculos após a queda do Império Romano como variante gráfica da letra i. No século XVI, por criação de Pierre de La Ramée, a letra j – ao lado da v – assumirão valor consonantal autônomo, nos moldes em que conhecemos atualmente (MARIA JOSÉ AZEVEDO SANTOS, Da Visigótica à Carolina – a escrita em Portugal de 882 a 1172. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994, p. 92. 28 É preciso registrar, ainda, o vocábulo grego δικαίου (diké, que significa lei, Direito), ligado à raiz indo-europeia dik que significa indicar – mas que não influenciou, entre nós, a criação de nenhuma palavra ou termo jurídico. 29 CARLOS SANTIAGO NINO, Introdução à análise do direito, p. 17. 30 ROBERT ALEXY, Conceito e validade do direito, p. 5. 31O conceito de Direito, p. 89. 32 Confira-se, a propósito, O império do Direito, p. 3 e ss. e Levando os Direitos a sério, p. 1 e ss. 33 ANDRÉ FRANCO MONTORO, Introdução à Ciência do Direito, p. 33 e ss. 34Filosofia do direito, p. 543. 35 LUIS RECASÉNS SICHES intitula essa perspectiva cultural de vida humana objetivada (Introducción al estudio del derecho, p. 25). 36 Aqueles que estão a se dedicar ao direito precisam, antes de tudo, saber de onde vem o nome do direito (ius). Vem, pois, de justiça. De fato, como Celso elegantemente define, direito é a arte do bom e do justo). DIGESTO, 1.1.1 pr. 37 Originalmente, PLATÃO foi o responsável por pautar a justiça como virtude universal, elevando- a à categoria de princípio regulador da vida social, ao enfatizar a sua utilidade pragmática: fazer bem aos amigos e mal aos inimigos (A República, p. 14). 38 ARISTÓTELES não se distanciou da direção tomada por PLATÃO mas, a partir da filosofia pitagórica, alcançaou a perspectiva da igualdade essencialmente a partir da noção de reciprocidade, e foi o responsável por analisar as suas mais diversas variações, com destaque à justiça comutativa – igualdade absoluta entre prestação e contraprestação – e à justiça distributiva – tratamento proporcional outorgado às mais diversas pessoas (GIORGIO DEL VECCHIO, A justiça, p. 41). 39 GIORGIO DEL VECCHIO, op. cit., p. 71. 40 BLAISE PASCAL, Pensamentos, p. 111. 41 A esse respeito MONTAIGNE (1533-1592) já sustentava há muito tempo que não são obedecidas as leis porque são justas, mas porque decorrem da autoridade (Ensaios, III, Cap. XIII. “Da experiência”, p. 1.203). 42 Nas palavras de JACQUES DERRIDA, la nécessité de la force est donc impliquée dans le juste de la justice (a necessidade da força está, pois, implicada no justo da justiça), in Force de Loi, p. 28. 43 PIERRE TEILHARD DE CHARDIN, O fenômeno humano, p. 355. 44 JORGE EDUARDO MATTOSO (et. Al), Olhar para a história: caminho para a compreensão da ciência in O Caminho para a ciência moderna, p. 8. 45 ARISTÓTELES, Política, p. 56. 46 Onde há sociedade, há Direito. GIORGIO DEL VECCHIO (Lições de Filosofia do Direito, Tomo II, p. 102), acrescenta que ubi homo, ibi societas; ubi homo, ibi jus (onde há o homem, há sociedade e onde há o homem, há o direito). 47 Art. 2º, segunda parte, CC. Na verdade, até mesmo os filhos nondum conceptus, na forma do art. 1.799 do mesmo códex estão tutelados, conquanto sejam concebidos em até 2 dois anos a contar da abertura da sucessão. De qualquer forma, encontram-se desamparados por esta norma o embrião que se encontra fora do útero materno, consoante o julgamento do Plenário do E. STF na ADI 3.510-DF de 29/05/2008. 48 CARLOS CAMILLO, Novas luzes sobre a ciência jurídica: a (inevitável) reaproximação da ética ao direito em tempos do pós-positivismo in Governação corporativa e corrupção, p. 109/129. 49 CARLOS CAMILLO, A teoria da alteridade jurídica, p. 15. A este respeito, ERIC HOBSBAWN divide a história do século XX em três eras distintas: “era da catástrofe”, “era dos anos dourados” e “o desmoronamento”, in Era dos extremos: o breve século XX.1914-1991, p. 31. 50 Realizados entre 20 de novembro de 1945 e 1º de outubro de 1946. 51 Do latim declarare, pronunciar, referir, confessar, que deriva de clarare, de clarus, claro, brilhante. 52 Disponível em https://www.unicef.org/brazil/pt/resources_10133.htm, acessado em 03/10/2018. 53Noch suchen die Juristen eine Definition zu ihrem Begriffe vom Recht (Kritik der reinen Vernunft, p. 479). 54Die metaphysik der Sitten, p. 229. 55 JÜRGEN HABERMAS, A ética da discussão e a questão da verdade, p. 59. 56 Como bem adverte SANTI ROMANO, O ordenamento jurídico, p. 62. 57 CARLOS CAMILLO, A teoria da alteridade jurídica, p. 23. 58 LUÍS ROBERTO BARROSO, Interpretação e aplicação da Constituição, p. 326. 59 GUSTAV RADBRUCH, Filosofia do Direito, p. 125. 60 DANTE ALIGHIERI, Monarchia, Livro II – Item V, n. 1, p. 15. 61 Esta é uma velha lição que desafia o tempo e foi repetida nas obras de grandes cultores do Direito, aos quais rendemos todas as homenagens: GIORGIO DEL VECCHIO (Lições de Filosofia do Direito, Tomo II, p. 98); HERMES LIMA (Introdução à Ciência do Direito, p. 34); VICENTE RÁO (O Direito e a vida dos Direitos, p. 53), MIGUEL REALE (Lições Preliminares de Direito, p. 61). § 2º A Função do Direito Naturalmente, o objetivo final do Direito é satisfazer as necessidades sociais de acordo com as exigências da justiça e os outros valores legais implicados por ela, como o reconhecimento e a garantia da dignidade pessoal do indivíduo humano, de sua autonomia, das suas liberdades básicas, a promoção do bem- estar geral ou do bem comum 62 . LUIS RECASÉNS SICHES 1. A “Engenharia Social” do Direito ROSCOE POUND, eminente jurista norte-americano e famoso por ter sido Reitor de Harvard, uma das mais prestigiadas universidades do planeta, vislumbrou uma notável função do Direito, argumentando que o Direito realiza uma tarefa de engenharia social, consistente na harmonização de interesses em conflito, na consecução dos fins sociais, favorecendo a coesão e integração social dos indivíduos numa determina estrutura social63. De fato, o Direito, desde a sua formatação mais singela e primitiva, se afigura como organizador da estrutura normativa da sociedade, regulando a conduta dos indivíduos que compõem esse núcleo social, intervindo todas as vezes em que, não raras ocasiões, ocorre o conflito de interesses desses mesmos indivíduos. Na medida em que as sociedades se tornaram mais complexas, o Direito acompanhou essa mesma complexidade, estabelecendo autoridades, competências, regras de comportamento e aparelhando-se, como se verá no Capítulo a seguir, do uso da força estatal para atingir os seus objetivos maiores. Mas quais serão esses objetivos? 2. Conceito de Função Já advertimos que o estudante de Direitodeve estar atento ao significado das palavras e termos técnicos empregados. E função é um termo que exige certa cautela. É possível, primeiramente, outorgar um sentido embasado numa analogia entre a vida social e a vida orgânica. Trata-se, aqui, de uma perspectiva objetiva atribuída a EMILE DURKHEIM que, pautado numa espécie de metáfora, vislumbra o sistema social a partir de um organismo vivo. Assim, tal como ocorre com o corpo de um ser vivo em que é possível constatar uma série de funções orgânicas (respiratória, digestiva, circulatória, entre outras), o sistema social estaria lastreado por determinadas funções que também se afigurariam vitais e essenciais à coesão social. Se já há críticas para a perspectiva objetiva, mais problemática se mostra a subjetiva que se justifica a partir do olhar dos atores sociais e que são relativizadas diferentemente em cada sistema social analisado. Mais consentâneos com a realidade que se procura afirmar a partir da função do Direito, encontramos dois critérios razoáveis. O primeiro, enxerga as funções como positivas ou negativas, segundo se encontram, ou não, adequadas com as exigências e necessidades dos atores sociais e o segundo, por seu turno, em funções latentes e patentes, à luz dos efeitos sociais produzidos. As funções latentes, diferentemente das patentes, não são desejadas conscientemente pela sociedade e podem provocar, não raras vezes, efeitos perversos em relação aos objetivos64. Um exemplo de uma função latente se deu com a conversão da MP 2.083-32/2001 na Lei 9.434/97, prevendo originalmente, no seu art. 4º, que todas as pessoas eram potenciais doadoras de órgãos, o que se dava por meio de uma vontade presumida65. Diante da repercussão negativa desse dispositivo, foi sancionada a Lei 10.211/2001, que consagrou a necessária autorização, do cônjuge, companheiro ou parentes do falecido, na linha sucessória, reta ou colateral, até o segundo grau inclusive, para fins de doação de órgãos, instrumentalizada em documento subscrito por duas testemunhas presentes à verificação da morte66. 3. As Funções Ordinárias do Direito Qualquer que seja a concepção jurídica sobre o Direito, é lugar-comum situar o sistema jurídico dentro de uma perspectiva mais ampla – mas não menos complexa – intitulada de sistema social. É exatamente nesse plano que se torna factível vislumbrar as funções que ordinariamente se encontram presentes no Direito: (i) integração ou controle social, (ii) resolução de conflitos, (iii) organização social, (iv) legitimação do poder e (v) transformação social. 3.1. Integração, Controle e Organização Social Trata-se da função mais importante para grande parte dos doutrinadores, por meio da qual o Direito consiste num meio de orientação dos comportamentos dos indivíduos com a finalidade básica de produzir ou manter a coesão social, integrando e controlando a conduta de toda a coletividade que faz parte desse núcleo social. Essa função é concretizada, mediante a coercitividade típica das regras jurídicas que fazem irradiar o desejado comprometimento de todos os indivíduos para que respeitem elementares interesses da sociedade a que pertencem. Ora, convivendo todos os indivíduos numa mesma sociedade, é elementar que os seus caprichos encontrem uma espécie de barreira – no caso, o Direito – que proteja os interesses primordiais67, assim consagrados pela ordem jurídica de um determinado Estado. Como exemplo, veja a nossa Constituição Federal que prescreve a propriedade como um direito fundamental68 e, dessa forma, esse direito será protegido concretamente nas mais diversas ramificações de nosso sistema jurídico, como é o caso do direito penal que tipifica como crime o furto, o roubo, a extorsão, a usurpação, o dano, a apropriação indébita, prescrevendo sanções (negativas) a todos aqueles que, de alguma forma, violarem o direito à propriedade69. Nessa ordem de ideias, aquele que furta bem material ou intelectual que não lhe pertence, responderá, via de regra, pela sanção criada legitimamente pelo Estado como consequência direta do descumprimento do dever jurídico imposto na lei penal, mais precisamente, se sujeitará à pena de reclusão de um a quatro anos e multa, na sua fórmula mais singela70. A expectativa da criação de uma norma jurídica que atenda essa finalidade de integração ou controle social, portanto, reside na perspectiva de que as pessoas, cientes da existência de um comando jurídico desse porte, de uma só vez, se conduzirão estritamente ao seu comando, cumprindo todas as suas diretrizes e, pois, respeitando, o direito à propriedade. A função de integração ou controle social pode, enfim, ser instrumentalizada mediante: i) técnicas repressivas; ii) técnicas preventivas; iii) técnicas organizadoras, diretivas ou reguladoras e de controle público e iii) técnicas promocionais. As técnicas repressivas pressupõem ter havido violação a um direito e se destinam, precipuamente: a) à reparação do prejuízo experimentado, mediante compensação em razão da lesão sofrida; b) punir o agente causador da lesão e c) dissuadir e/ou prevenir nova prática do mesmo tipo de evento danoso. É exemplo, aqui, da clássica fórmula de reparação civil no direito brasileiro, a partir da conjugação dos arts. 186, 187 e 927. Confira-se: Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito. Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. As técnicas preventivas ocupam primazia em nosso sistema jurídico, porque se destinam a proteger um direito ainda não violado, mas que se encontra sob ameaça concreta e real de violação. Justifica-se a primazia, na medida que nenhum direito violado pode, efetivamente, ser compensado na mesma proporção. Imagine-se, aqui, o direito à vida. Que indenização poderia ser paga que pudesse reparar uma grande perda como a vida? O sistema jurídico brasileiro possui inúmeras prescrições com natureza preventiva. Como exemplo, cite-se a figura do mandado de segurança preventivo, cabível sempre que houver justo receio de violação a direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, mediante ilegalidade ou abuso de poder. Veja-se, a propósito, o disposto no art. 1º da Lei 12.016/2009: Art. 1º Conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, sempre que, ilegalmente ou com abuso de poder, qualquer pessoa física ou jurídica sofrer violação ou houver justo receio de sofrê-la por parte de autoridade, seja de que categoria for e sejam quais forem as funções que exerça. As técnicas organizadoras, diretivas ou reguladoras e de controle público revelam que o Direito objetiva, precipuamente, manter a segurança, a ordem e a paz social. Tratam-se, precisamente, das técnicas em que o Direito organiza a estrutura social e econômica, define os direitos fundamentais e sociais, traça as regras de competência e formatação do Estado, regime e sistema de governo, sua atuação e as políticas públicas imediatas ou dirigentes. Em nosso sistema jurídico, essas técnicas se encontram, fundamentalmente, previstas em nossa Constituição Federal. Como exemplo, veja-se a redação do art. 1º da CF, em que minuciosamente o texto constitucional explicita como é formada a República Federativa do Brasil e, ainda, indicando qual o tipo de Estado é o brasileiro, bem como indicando os seus fundamentos: Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I – a soberania; II – a cidadania III – a dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;V – o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. A organização, contudo, não se restringe a esse dispositivo. Praticamente toda a Constituição Federal estrutura a organização do Estado brasileiro, bem como assinala os direitos fundamentais e sociais. As técnicas promocionais, finalmente, são aquelas que têm por escopo persuadir os indivíduos para a aderência de determinadas condutas socialmente necessárias, ainda que por um curto período de tempo. Cuida- se da instrumentalização de metas por meio de leis de incentivo e que fomentam, como política pública do Estado, uma espécie de premiação aos indivíduos que assim atingiram os resultados esperados. Trata-se, aqui, da denominada sanção positiva, também conhecida como sanção premial, cuja finalidade não é outra, senão a de deferir consequências vantajosas em decorrência do correto e estrito cumprimento das normas. Como exemplo, cite-se os descontos incidentes sobre a chamada Tarifa Social Energia Elétrica, destinada aos consumidores enquadrados na subclasse residencial baixa renda, conquanto obedecidas determinadas metas de consumo. Confira-se, a propósito, o art. 1º da Lei 12.212/2010: Art. 1º A Tarifa Social de Energia Elétrica, criada pela Lei nº 10.438, de 26 de abril de 2002, para os consumidores enquadrados na Subclasse Residencial Baixa Renda, caracterizada por descontos incidentes sobre a tarifa aplicável à classe residencial das distribuidoras de energia elétrica, será calculada de modo cumulativo, conforme indicado a seguir: I – para a parcela do consumo de energia elétrica inferior ou igual a 30 (trinta) kWh/mês, o desconto será de 65% (sessenta e cinco por cento); II – para a parcela do consumo compreendida entre 31 (trinta e um) kWh/mês e 100 (cem) kWh/mês, o desconto será de 40% (quarenta por cento); III – para a parcela do consumo compreendida entre 101 (cento e um) kWh/mês e 220 (duzentos e vinte) kWh/mês, o desconto será de 10% (dez por cento); IV – para a parcela do consumo superior a 220 (duzentos e vinte) kWh/mês, não haverá desconto. As técnicas promocionais também se encontram presentes em outras fontes do Direito, sobretudo nos negócios jurídicos entre particulares, com os mesmos reflexos. Como exemplo, cite-se a previsão contratual para “desconto de pontualidade”, isto é, a premiação ao consumidor que, por pagar pontualmente as prestações a que se sujeitou, faz jus a um desconto na prestação71. 3.2. Resolução de Conflitos Convivendo em sociedade, as pessoas possuem os mais diversos interesses. Não raras vezes, pode ocorrer conflito de interesses entre os indivíduos que compõem essa mesma sociedade. Uma vez deflagrado o conflito, algumas possibilidades poderiam ser cogitadas para solucioná-lo, desde a violência até o uso da razão. A violência a que nos referimos seria aquela típica das sociedades primitivas, provida pelos próprios indivíduos em conflito até que seja dirimido. Neste caso, fala-se em autotutela, que constitui, apropriadamente, a reação direta e pessoal de quem faz justiça com as próprias mãos. Como exemplo, cite-se a previsão estatuída no § 1º do art. 1.210 do CC: O possuidor turbado, ou esbulhado, poderá manter-se ou restituir-se por sua própria força, contanto que o faça logo; os atos de defesa, ou de desforço, não podem ir além do indispensável à manutenção, ou restituição da posse. A autotutela é repudiada na maioria dos sistemas jurídicos modernos, sendo admitida apenas de maneira excepcional. Quanto mais se reforça a organização do Estado, mais se restringe essa vetusta fórmula de solução de conflito, onde o vencedor sempre será o mais forte, mais astuto ou mais ousado, sobre o mais fraco ou mais tímido72. No Direito brasileiro, o exercício arbitrário das próprias razões configura crime punível com detenção, ainda que se cuide de pretensão legítima, salvo exceções expressamente previstas em lei. É o que preceitua o caput do art. 345 do CP73. De outro lado, inexistindo a possibilidade de autocomposição entre as partes a fim de dirimir os conflitos existentes74, seja porque estas não têm interesse para tanto, seja, enfim, porque a natureza do interesse objeto do conflito não comporta essa possibilidade de solução, exsurge a atuação do Direito, que exercerá uma de suas mais elementares funções. A resolução de conflitos por meio do Direito situa-se no âmbito da razão e, a depender da vontade das partes conflitantes, sobretudo levando em consideração a natureza do interesse em discussão, será instrumentalizada por meio da (i) mediação, (ii) conciliação, (iii) arbitragem e (iv) jurisdição. A mediação é a solução de conflitos em que uma terceira pessoa (a mediadora), neutra e imparcial auxiliará as partes conflitantes a refletir e buscar, por elas próprias, a melhor solução para o litígio. A conciliação, por sua vez, é a solução de conflitos em que as partes, por meio da ação de uma terceira pessoa (a conciliadora), neutra e imparcial que também auxiliará as partes com vistas à solução do litígio – mas diferentemente da mediação, cuja solução é efetivada pelas próprias partes conquanto auxiliadas pelo mediador, a conciliação pressupõe a prerrogativa inerente ao conciliador de sugerir uma específica solução para o conflito. O sistema jurídico brasileiro textualmente recomenda a utilização da mediação e conciliação nos litígios de direito de família, na forma do caput do art. 694 do CPC: Art. 694. Nas ações de família, todos os esforços serão empreendidos para a solução consensual da controvérsia, devendo o juiz dispor do auxílio de profissionais de outras áreas de conhecimento para a mediação e conciliação. A arbitragem, por seu turno, é a forma de solução de conflitos em que as partes, mediante livre e espontânea vontade, elegem uma terceira pessoa (um árbitro), neutra e imparcial, para que, exercendo o seu trabalho com confidencialidade, resolva o conflito que, na forma do caput do art. 1º da Lei 9.307/1996, obrigatoriamente deverá se cingir a direitos patrimoniais disponíveis: Art. 1º. As pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis. Por fim, a jurisdição. O moderno Estado de Direito exerce, basicamente, três funções distintas, porém harmônicas entre si, correspondentes aos três poderes: a) Legislativo, função legislativa; b) Executivo, função administrativa e c) Judiciário, função jurisdicional, onde distribui o seu poder soberano e que ora nos interessa sobremaneira, abrangendo-se a jurisdição voluntária e a jurisdição contenciosa. A jurisdição será voluntária quando inexistir conflito de interesses propriamente dito, mas a necessidade da obtenção de um pronunciamento judicial de administração de interesse privado e com relevante repercussão. Como exemplo, cite-se a emancipação do relativamente incapaz sob tutela75. A jurisdição contenciosa realiza-se através de atos concretos, isto é, o Poder Judiciário aprecia e decide de maneira concreta os casos que lhe são submetidos, aplicando a lei, abstrata e genérica, produzida pelo Poder Legislativo, resolvendo-se o conflito e assegurando-se, então, a ordem jurídica e a autoridade da Lei. Essa função traduz-se em um dos mais eficientes mecanismos para a resolução dos conflitos, seja pela independência e imparcialidade do órgão ao qual esta função é atribuída, seja pelos instrumentos e mecanismos de que dispõe. Bem por isso, sustenta-se convincentemente que a jurisdição contenciosa civil compreende todas as funções de administração da justiça nas “controvérsias civis”, em particular, de “ditar a justiça” (poder de resolução), bem como a direção processual e prestando-se, ainda, para a proteção do ordenamento jurídico mediante a declaração (constituição), execução e o asseguramento e proteção dos direitos e relações jurídicas.76 3.3. Legitimação do Poder Social MAX WEBER nos ensina que a concepção de legitimidade se afigura como elementarpara a diferenciação entre os vários tipos de dominação, pelo que propõe três possíveis fundamentos para a legitimidade da dominação política: i) fundamento tradicional que repousa na tradição; ii) fundamento carismático que se baseia na crença em qualidades especiais de uma pessoa e iii) fundamento racional que descansa na crença na legalidade. É exatamente no fundamento racional vislumbrado por WEBER que identificamos a estabilidade da dominação característica nos dias atuais77. Disso decorre que é o atributo da crença na legalidade que levaria todos os indivíduos de uma determinada sociedade se sujeitarem à dominação instrumentalizada pela positivação do Direito. Nessa ordem de ideias, é possível concluir que o Direito, apropriadamente, outorga legitimidade, em sentido estrito, aos órgãos e autoridades públicas, mediante normas formalmente positivadas pelo Estado78. Veja-se, como exemplo, o caput do art. 216-A da CF: Art. 216-A. O Sistema Nacional de Cultura, organizado em regime de colaboração, de forma descentralizada e participativa, institui um processo de gestão e promoção conjunta de políticas públicas de cultura, democráticas e permanentes, pactuadas entre os entes da Federação e sociedade, tendo por objetivo promover o desenvolvimento humano, social e econômico com pleno exercício dos direitos culturais. 3.4. Transformação Social Liberté, égalité et fraternité : esse foi o lema revolucionário que, apropriadamente, transformou historicamente o mundo e que, mesmo séculos após a sua criação, vem consagrando a geração dos direitos fundamentais nas mais variadas dimensões: os direitos da primeira dimensão, que se ligam à temática da liberdade do famoso lema, e se justificavam como limitadores dos poderes do Estado em respeito às liberdades individuais, abrangendo os direitos civis e políticos; os direitos da segunda dimensão dizem respeito à questão da igualdade material e abrangem os chamados direitos sociais, econômicos e culturais, ao passo que os direitos da terceira dimensão estão ligados ao valor fraternidade (ou solidariedade) e se relacionam ao desenvolvimento ou progresso, ao meio ambiente, à autodeterminação dos povos, bem como o direito de propriedade sobre o patrimônio comum da humanidade79. A perspectiva da transformação social reside pontualmente nos direitos da terceira dimensão. A concretização de direitos dessa dimensão implica numa redistribuição de recursos na sociedade, independentemente de qualquer ideologia que se possa outorgar aos agentes políticos, dado que são estratégias de Estado – e não de governantes. Como exemplo, cite-se o programa Bolsa Família criado com o advento da Lei n. 10.836/2004, onde se defere um benefício básico destinado a unidades familiares que se encontram em situação de extrema pobreza, mediante recursos a serem transferidos de renda do Governo Federal. 4. Em Síntese − O Direito, desde a sua formatação mais singela e primitiva, se afigura como organizador da estrutura normativa da sociedade, regulando a conduta dos indivíduos que compõem esse núcleo social, intervindo todas as vezes em que, não raras ocasiões, ocorra o conflito de interesses desses mesmos indivíduos. Na medida em que as sociedades se tornaram mais complexas, o Direito acompanhou essa mesma complexidade, estabelecendo autoridades, competências, regras de comportamento e aparelhando-se; − As funções que ordinariamente se encontram presentes no Direito: (i) integração ou controle social, (ii) resolução de conflitos, (iii) organização social, (iv) legitimação do poder e (v) transformação social; − A função de integração ou controle social pode, enfim, ser instrumentalizada mediante: i) técnicas repressivas; ii) técnicas preventivas; iii) técnicas organizadoras, diretivas ou reguladoras e de controle público e iii) técnicas promocionais; − As técnicas repressivas pressupõem ter havido violação a um direito e se destinam, precipuamente: a) à reparação do prejuízo experimentado, mediante compensação em razão da lesão sofrida; b) punir o agente causador da lesão e c) dissuadir e/ou prevenir nova prática do mesmo tipo de evento danoso; − As técnicas preventivas ocupam primazia em nosso sistema jurídico, porque se destinam a proteger um direito ainda não violado, mas que se encontra sob ameaça concreta e real de violação; − As técnicas organizadoras, diretivas ou reguladoras e de controle público revelam que o Direito objetiva, precipuamente, manter a segurança, a ordem e a paz social; − As técnicas promocionais, finalmente, são aquelas que têm por escopo persuadir os indivíduos para a aderência de determinadas condutas socialmente necessárias, ainda que por um curto período de tempo; − A resolução de conflitos por meio do Direito situa-se no âmbito da razão e, a depender da vontade das partes conflitantes, sobretudo levando em consideração a natureza do interesse em discussão, será instrumentalizada por meio da (i) mediação, (ii) conciliação, (iii) arbitragem e (iv) jurisdição; − A mediação é a solução de conflitos em que uma terceira pessoa (a mediadora), neutra e imparcial auxiliará as partes conflitantes a refletir e buscar, por elas próprias, a melhor solução para o litígio. − A conciliação, por sua vez, é a solução de conflitos em que as partes, por meio da ação de uma terceira pessoa (a conciliadora), neutra e imparcial que também auxiliará as partes com vistas à solução do litígio – mas diferentemente da mediação, cuja solução é efetivada pelas próprias partes conquanto auxiliadas pelo mediador, a conciliação pressupõe a prerrogativa inerente ao conciliador de sugerir uma específica solução para o conflito; − A arbitragem, por seu turno, é a forma de solução de conflitos em que as partes, mediante livre e espontânea vontade, elegem uma terceira pessoa (um árbitro), neutra e imparcial, para que, exercendo o seu trabalho com confidencialidade, resolva o conflito; − A jurisdição contenciosa civil compreende todas as funções de administração da justiça nas “controvérsias civis”, em particular, de “ditar a justiça” (poder de resolução), bem como a direção processual e prestando-se, ainda, para a proteção do ordenamento jurídico mediante a declaração (constituição), execução e o asseguramento e proteção dos direitos e relações jurídicas; − O Direito outorga legitimidade, em sentido estrito, aos órgãos e autoridades públicas, mediante normas formalmente positivadas pelo Estado; − A perspectiva da transformação social reside pontualmente nos direitos da terceira dimensão. A concretização de direitos dessa dimensão implica numa redistribuição de recursos na sociedade, independentemente de qualquer ideologia que se possa outorgar aos agentes políticos, dado que são estratégias de Estado – e não de governantes. - 62 LUIS RECASÉNS SICHES, Introducción al estudio del derecho, p. 111. 63 ROSCOE POUND, Social control through law, p. 35. 64 MARÍA JOSÉ FARIÑAS, El derecho como forma de organización social in CURSO DE TEORÍA DEL DERECHO (PECES-BARBA, Gregorio; FERNÁNDEZ, Eusebio e ASÍS, Rafael – Org.), p. 51 65 Confira-se a redação original do art. 4º da Lei 9.434/97: “Salvo manifestação de vontade em contrário, nos termos desta Lei, presume-se autorizada a doação de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano, para finalidade de transplantes ou terapêutica post mortem”. 66 Eis a nova redação do art. 4º da Lei 9.434/97, com a redação dada pela Lei 10.211/2001: A retirada de tecidos, órgãos e partes do corpo de pessoas falecidas para transplantes ou outra finalidade terapêutica, dependerá da autorização do cônjuge ou parente, maior de idade, obedecida a linha sucessória, reta ou colateral, até o segundo grau inclusive, firmada em documento subscrito por duas testemunhas presentes à verificação da morte. 67 CLAUDE DU PASQUIER, Introduction à la théorie générale et à la philosophie du Droit, p. 16. 68 Art. 5º, inc. XXII. 69 Arts. 155 e ss. do CP. 70 Art. 155, caput, do CP. 71 A este respeito, o STJ já chancelou o entendimento sobre a legalidade desse tipo de negócio jurídico.Confira-se o julgamento do REsp 1424814/SP (2013/0405555-9), mediante a lavra do I. Min. MARCO AURÉLIO BELLIZZE e a votação unânime da C. 3ª Turma daquele E. Tribunal Superior (j. 04/10/2016). 72 ANTONIO CARLOS DE ARAÚJO CINTRA, ADA PELLEGRINI GRINOVER e CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO, Teoria Geral do Processo, p. 27. 73 Fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo quando a lei o permite. Pena – reclusão, de um a quatro anos, e multa, além da pena correspondente à violência. 74 Art. 139, inc. V, do CPC. 75 Art. 725, inc. I, do CPC. Na hipótese do relativamente incapaz não se encontrar sob tutela, bastará a outorga pelos pais, mediante instrumento público e independentemente de homologação judicial, conforme prescreve o art. 5º, inc. I, do CC. 76 LEO ROSENBERG, Tratado de Derecho Procesal Civil, Tomo I, p. 112. 77 MAX WEBER, Economía y sociedad, p. 171 e ss.; JOSÉ RENATO GAZIERO CELLA, A crítica de Habermas à ideia de legitimidade em Weber e Kelsen, disponível em http://www.cella. com.br/conteudo/Habermas-IVR-01.pdf, acessado em 28/10/2018. 78 VINCENZO FERRARI, Funciones del Derecho, p. 197 e ss. 79 PAULO BONAVIDES já consagra os direitos da quarta dimensão, referindo-se àqueles que abrangem os direitos à democracia, informação e pluralismo, introduzidos em razão da globalização política (Direito Constitucional, p. 562 e ss.). § 3º O Direito e as Outras Ordenações Normativas A moral domina o direito na medida em que a queremos dirigida por ela. A moral flui dentro do direito positivo como o sangue no corpo 80 . CLAUDE DU PASQUIEUR Experiências morais e legais são espécies de complexos impulsivo- intelectuais normativos nos quais estamos particularmente interessados. Os impulsos morais e legais correspondentes (positivos e negativos) têm certos atributos comuns que fornecem uma base para a formação de uma única classe superior de impulsos, que denominamos experiências de dever – de obrigação: impulsões éticas 81 . LEON PETRAZYCKI 1. As Diversas Normas que Regem a Conduta Humana A pessoa humana, já estudamos, tem na convivência social o seu habitat natural. Mas o viver em sociedade exigirá a obediência a uma grande variedade de normas de conduta que, como um complexo e sofisticado mosaico, é composto por pequeninas e diferentes peças que regerão e disciplinarão as várias realidades da vivência humana. Dentre as várias regras que regem a nossa conduta, as mais relevantes são as de ordem jurídica, moral, religiosa e de trato social. Essas normas têm como gênese os primitivos costumes que regulavam a vida social, derivando, assim, da perspectiva cultural da sociedade de onde se afigura possível concluir que há três atributos que não podem ser desprezados para a sua melhor compreensão. Primeiramente, as normas de ordem jurídica, moral, religiosa e de trato social pertencem ao universo das relações sociais e têm, pois, o escopo de ordenar a conduta e o comportamento das pessoas. Sob esta ótica, conclui- se que a característica fundamental dessas normas é que elas se circunscrevem entre o agir e a intenção da pessoa. Em segundo lugar, possuem uma essência em comum. Uma vez que possuem a mesma origem, todas elas se tocam e se entrelaçam, exercendo- se entre elas recíproca influência, maior ou menor, conforme o tempo, lugar, a índole e a evolução da sociedade82. Por fim, a pressão. O destinatário de todas essas normas é a pessoa humana média. Ainda que nesta obra a preocupação seja a de identificá-las, separá-las, estudá-las e, também, que somente seria possível vislumbrar nas normas jurídicas a legítima coercibilidade, a realidade social e concreta da pessoa média não pode ser ignorada, de maneira que o quesito da pressão social impingirá a aderência da pessoa ao cumprimento dessas regras. Bem por isso, desde já é preciso adiantar que as normas decorrentes do Direito não são cumpridas de maneira meramente autônoma, como plena manifestação de disposição e vontade da pessoa. O Direito é, enfim, estruturado coercitivamente a ponto de obrigar as pessoas ao dever jurídico, sujeitando todos aqueles que não cumprirem as regras jurídicas às sanções, isto é, as consequências previstas em Lei, assegurando-se, enfim, o estrito cumprimento do bem jurídico tutelado. 2. A Moral Seria possível traçar um perfil único e sintetizador da pessoa humana? Por mais complexa que se mostra essa indagação, a consciência humana e, mais precisamente, a essência moral do ser humano se afigura imprescindível nesta empreitada. O ser humano é um ente essencialmente moral, o que o distinguiria de qualquer outro modo de ser e estar no mundo. Ser moral não significa ser necessariamente bom, como adverte ZYGMUNT BAUMAN, mas ter a perfeita compreensão de que coisas e atos podem ser bons ou maus, o que exigirá do ser humano uma decisiva escolha, que se desencadeará na construção de um produto social para a manutenção da própria sociedade: a ética83. O termo moral, do latim moralis e que significa caráter, estilo, costume84, correlaciona-se com a ética, do grego ethiké, cujo significado original está diretamente ligado à ideia da dimensão pessoal do ato humano, remetendo-se para a significação do agir e da intenção humana. Mas não se tratam de expressões que deveriam ser indistintamente utilizadas. A moral fundamenta-se na obediência aos costumes, aos hábitos, relacionando sempre a existência a valores, tudo a acentuar um perfil único: a moral é essencialmente normativa. Dentro da tradição que remonta a KANT, entende-se a moral como a atitude universalista em que nós podemos respeitar todos os sujeitos de maneira igual como fins em si mesmos ou como pessoas autônomas85. Em síntese, a lei moral é um dever e a obediência é o seu único efeito e a sua única finalidade86. De outro lado, a Ética é a teoria, o conhecimento, ou a ciência do comportamento, que busca justificar e fundamentar as ações morais a partir do conhecimento verdadeiro do bem e do mal, a que ESPINOSA intitulou de verdadeira razão87. A ética é a ciência que estuda a conduta humana, ao passo que a moral é o referencial da conduta. Daí se falar, apropriadamente, em ética do magistrado, ética do advogado, ética do professor, ética do estudante, quando se tem por escopo aferir a conduta dessas pessoas em um determinado contexto fático. A ordem moral, dentro no plano da convivência social, estabelece-se por meio de um conjunto de inúmeros preceitos e valores que objetivam fazer com que a pessoa humana alcance sua plena perfeição, abrangendo-a por inteiro, por meio da sua consciência, intenção, palavras e atos88. A moralidade é, pois, implacável e nada escapa ao seu domínio, desde a prescrição dos deveres até o exercício de todas as virtudes humanas. Nessa ordem de ideias, a moral sempre manteve estreitas relações com o Direito e algumas teorizações são fundamentais para a sua compreensão. 2.1. Relações Entre a Moral e o Direito Atribui-se ao jurista inglês JEREMY BENTHAM a criação de uma teoria, segundo a qual o Direito estaria abrangido, por inteiro, pela ordem moral. Não seria possível imaginar o Direito, à luz desse pensamento, segregado da moral. Ilustrativos e clássicos, aliás, são os exemplos dados por BENTHAM ao sustentar a razoabilidade de seu pensamento89: – O toucado de uma mulher pega fogo e existe água à mão; um homem, ao invés de ajudar a apagar o fogo, assiste e ri. – Um ébrio, caindo com o rosto numa poça, está em perigo de sufocar-se; bastaria levantar-lhe um pouco a cabeça para um lado para salvá-lo; uma outra pessoa vê o fato e deixa o ébrio caído. – Em uma sala existe uma quantidade de pólvora espalhada, e uma pessoa está para entrar no local com uma vela acesa; um outro, consciente disto, a deixa sem preveni-la. Quem ousaria pensar que em tais casos uma punição seria mal aplicada? GEORG JELLINEK, um jurista alemão, seguindo a trilha de BENTHAM, edificou no final do século XIX a famosa Teoria do Mínimo Ético, segundo a qual o Direito deveria representar apenas o mínimo de moralidade declaradaobrigatória para que uma sociedade possa sobreviver. Profunda e sintética, a respeito, é a definição de JELLINEK sobre o Direito: o direito não é nada além do mínimo ético90. BENTHAM e JELLINEK imaginavam, pois, que o Direito era inferior ao campo da moral, daí que essa teoria pode ser compreendida empiricamente a partir de dois círculos concêntricos, onde o maior deles pertence à moral e o menor ao Direito. É exatamente a partir dessas construções que um dogma foi construído na ciência jurídica: entre o Direito e a moral não pode haver contradição, ou seja, uma das normas não poderia permitir o que a outra vedasse e vice- versa. Mas estaria essa teoria integralmente correta? Todo o Direito realmente se encontra dentro da moral? Mais de cinquenta anos mais tarde, uma nova teoria foi desenvolvida para explicar as relações entre Direito e moral, desta vez pelo jurista suíço CLAUDE DU PASQUIER. Segundo essa teoria, o Direito é a regra positiva, uma injunção do poder social para a melhor convivência social e a moral, por seu turno, é uma regra pela qual a pessoa se sente obrigada de seu cumprimento por perseguir o bem, respeitando a sua própria humanidade e a dos outros. Em síntese, o Direito é uma realidade, ao passo que a moral é essencialmente espiritual91. De outro lado, PASQUIER entende que a essência da moral também tem a sua morada no Direito, de maneira que a moral encontra-se perfeitamente inserida no núcleo do Direito, mas há outras regras e usos sociais que também compõem o direito positivo, os quais não se confundem com a moral92. De fato, não é correto afirmar que todas as normas jurídicas estão contidas no plano da ordem moral, tal como idealizado originalmente por BENTHAM e, mais tarde, por JELLINEK. O Direito é composto por uma pluralidade complexa de normas e muitas não se encontram fundamentadas à luz da moral, o que poderia ser constatado por dois distintos enfoques: normas que se mostram indiferentes à moral e, por tal, são intituladas de normas amorais e, ainda, normas que se afiguram contrárias à moral, daí serem intituladas de normas imorais. Como exemplo de norma amoral, inclua-se todas as normas de ordem essencialmente técnica. A propósito, veja-se o § 1º do art. 18 da CF que prescreve que Brasília é a Capital Federal da República Federativa do Brasil. Para ser imoral, não basta dizer que a norma deve contrariar a pauta dos valores imanentes dos direitos naturais ou mesmo do patrimônio ético e moral consagrado pelo senso comum da sociedade. A concepção de uma norma imoral dependerá de um referencial de moral para assim ser considerada como, por exemplo, a hipótese da norma que irradia manifesta desigualdade social ou, ainda, implica em desequilíbrio contratual, fundado em manifesta onerosidade a uma das partes. Como exemplo, é de se lembrar o julgamento da Apelação Cível n. 941.361-2, mediante a lavra do I. Des. Relator CANDIDO ALEM e votação unânime da C. 16ª Câmara de Direito Privado do E. Tribunal de Justiça de São Paulo93. Nesse julgamento, em que se discutia a possibilidade jurídica ou não da legitimidade da Medida Provisória n. 1.963/2000, que permitia aos Bancos a cobrança de juros sobre juros (capitalização de juros), o E. Tribunal de Justiça, por meio do Voto do I. Des. Relator, assim declarou: Inadmissível o anatocismo, ou a capitalização dos juros, ainda que contratada. A Medida Provisória n. 1.963/2000 é inaplicável, porque imoral. E norma imoral não se aplica. Independente do entendimento definitivo sobre o mérito da questão94, é imprescindível destacar que o julgador qualificou referida norma de imoral, ao fundamento de que a essência da lei chancelava o desequilíbrio contratual, mais precisamente por implicar em manifesta onerosidade à parte mais vulnerável da relação, aproveitando-se da sua necessidade em manifesta abusividade, exigiu a devolução do numerário emprestado com todos os encargos, bem como a capitalização de juros, tornando o valor da operação extremamente vultosa. 2.1.1. O Direito é Estruturalmente Moral Já assinalamos uma das premissas da moral: a pessoa humana é essencialmente moral. Agora, está na hora de compreender a consequência lógica dessa premissa: o Direito é estruturalmente moral. Os fatos da vida humana sempre ofertam aos seus protagonistas as preferências, escolhas e formas de atuação dos indivíduos em face de todas as questões, sejam elas complexas ou não. É exatamente aí que a moral se transforma no instrumental de todas as decisões, por meio de vários preceitos e valores culturais da sociedade, cujo escopo também já havíamos assinalado: a perfeição individual. A perfeição individual está atrelada à ideia daquilo que se afigura dentro do mais correto95 e mais relevante, tanto sob a ótica individual, como sob a coletiva: o bem-estar, a justiça, a liberdade, a segurança, a felicidade, entre tantos outros significativos valores. Qualquer sistema jurídico que se examine sempre refletirá um ponto de vista sobre a justiça e revelará, por meio de suas normas e demais referenciais estruturais, sobretudo a interpretação das normas por seus Tribunais, a legitimidade e os valores que lhe dão sentido e fundamento96. É claro que será possível constatar, dentro do Direito, normas que se afiguram amorais – e não raras ocasiões em que a norma imoral também se faça presente. Mas, ainda assim, até mesmo ao se interpretar essas regras, sejam as amorais, como as imorais, a estrutura moral do Direito será ativada e as pessoas humanas, essencialmente morais como já assinalado, protagonizarão qual decisão deverá ser tomada. A decisão poderá ter sido exclusivamente jurídica, ou eminentemente de direito, mas é incontroverso que a estrutura moral do Direito se fez presente97. 2.1.2. Aproximações Entre o Direito e a Moral Nesta quadra, é importante salientar os pontos de aproximação entre o Direito e a moral: i) tanto o Direito como a moral são fenômenos culturais, vale dizer, têm a mesma gênese cultural essencialmente humana; ii) a moral inspira o Direito, desde a sua criação, interpretação, até culminar em seu fim, com sua aplicação ao caso em concreto; iii) o Direito é uma opção moral, não se podendo permitir que tenha sido criado para praticar injustiças – mas se isto acontecer, somente foi possível perceber justamente porque se afigura uma antítese ao seu escopo maior, qual seja o de trilhar os caminhos da justiça; e iv) os valores morais fornecem o conteúdo, sentido e significação das regras jurídicas. O Código Penal veda o homicídio em nosso sistema, mas somente a moral é capaz de justificar as relevantes e significativas razões de sua vedação. 2.1.3. Distinções Entre o Direito e a Moral Agora, vamos destacar as distinções entre o Direito e a moral: i) Autonomia da Moral, Heteronomia do Direito. Sustenta-se que a moral é guiada pelo veículo da autonomia, onde a pessoa exerceria, com liberdade, a sua vontade para promover a sua decisão. sua vontade. O termo heteronomia foi cunhado por KANT para explicar a sujeição de um indivíduo à vontade de outro ou de uma coletividade98. Imagine-se a abertura de uma herança, por meio do qual é deflagrado, entre nós, o instituto droit de saisine que remonta ao direito medieval e traduz, apropriadamente, a transmissão de todos os bens e direitos aos herdeiros99. Por meio da saisine, a herança é transmitida automaticamente aos herdeiros – mesmo que eles desconheçam a morte do autor da herança – fenômeno esse essencialmente heterônomo: não acontece porque está dentro da ação humana individual, mas porque o Direito assim determinou, ressalvando-se o direito à renúncia da herança, conquanto seja expressa; ii) A moral é interna, o Direito é externo. Desde KANT aprendemos a situar as ações e os deveres ao âmbito interno de nossas ações, ao passo que o Direito é externo, encontrando-se consagrado culturalmente na legislação e demais referenciais do Estado. Não existe um código que possa detalhar todas as regras de ordem moral, mas as regras jurídicas podem se encontrar nas constituições, nos códigos,sobretudo nos Estados que adotaram o civil law; iii) Imperatividade atributiva do Direito. Ao contrário da moral, somente o Direito está estruturado para exigir, forçadamente, o cumprimento de uma obrigação prevista no ordenamento jurídico100; iv) Sob a ótica do Estado, a moral é incoercível, ao passo que a coercibilidade é inerente ao Direito. O Direito está aparelhado de mecanismos específicos para exigir o cumprimento das suas regras, sujeitando os indivíduos a diversas ordens de sanções. A coercibilidade da moral não se encontra lastreada no Estado – se afigurando incoercível para muitos – recaindo apenas na reprovação ou aprovação das decisões tomadas pelos indivíduos na sociedade; v) Moralidade e Legalidade. Embora gênese da cultura social, a criação do Direito, sobretudo nos Estados que aderiram ao chamado Civil Law, é formal e obedece ao preenchimento de várias etapas, que vão desde a discussão de um projeto de lei até culminar na chancela do Executivo mediante a sanção da lei, seguida da promulgação e publicação da lei. A moral não obedece a padrões para sua criação que, em muitos casos, é fruto da repetição que desafia o tempo, mas nem por isso deixa ela de acompanhar as transformações sociais; vi) Objeto. Toda ordem moral se estabelece, como regra, objetivando à perfeição do indivíduo, o que não se verifica com o Direito, que não trata, apropriadamente, da perfeição da pessoa, mas preocupa-se com a sua proteção, enquanto pessoa, sujeito e titular de direitos, bem como todas as relações jurídicas que decorrem de seu comportamento; e vii) Extensão do objeto. A moralidade, já vimos, atinge a pessoa por inteiro e nada lhe escapa: pensamento, palavras, atos. O Direito abrange as atividades humanas e por mais que o núcleo normativo do Direito seja abstrato, jamais poderá ele coincidir com o viés transcendental do plano moral. 3. As Normas Religiosas e o Direito Há autores que optam por não fazer expressa alusão às normas religiosas, por considerarem a sua inserção dentro do âmbito da moral – mas isto é um equívoco, especialmente no que tange à perspectiva das consequências do descumprimento dessas normas. No Direito Romano, dois termos distintos eram utilizados para separar o direito divino do direito profano ou comum: fas e ius. O universo do fas é o do direito sagrado, do divino e sua etimologia está ligada, apropriadamente, à ideia de ordem, licitude, justiça. Comum era a sua utilização, entre os antigos romanos em frases como si fas est dicet (se é lícito falar assim) ou fas nefasque (o justo e o injusto), mas sempre numa perspectiva religiosa e afeta ao sagrado101. Ius é o direito estranho à religião e, por isso, profano; que não pertence ao sagrado ou não é religioso. Numa referência à famosa obra de SANTO AGOSTINHO, é como se o fas pertencesse à Cidade de Deus (De Civitate Dei) e ius, por seu turno, à cidade terrena102. Essa dimensão nos parece fundamental para entender que, historicamente, o sagrado inspirou o direito, mas nem de longe as normas religiosas podem ser confundidas com o Direito. As normas religiosas derivam das mais variadas crenças. Religião, aliás, provém do latim religio e sua significação está ligada à ideia de dogmas que estabelecem, condicionam e relacionam a humanidade com a espiritualidade ou outros valores que a transcendem e, não raras vezes, se desenvolvem por meio de narrativas, símbolos e tradições que se destinam ora justificar o sentido da vida, ora explicar a origem da humanidade, do universo e, ainda, predizer o seu destino. Sob a perspectiva cultural, as normas religiosas influenciam sensivelmente a sociedade e ainda delas derivam a moralidade e a ética, bem como o próprio sistema jurídico. Como exemplo, o Código Canônico foi o responsável pela inspiração dos chamados impedimentos dirimentes para a constituição de família no Código Civil de 1916, atualmente intitulados de impedimentos no Código Civil de 2002 (art. 1.521). Mas se a norma religiosa está lastreada na fé em um Deus – ou deuses – o Direito, por sua vez, vincula-se na fé no Estado e na própria sociedade. Já se sustentou, durante muito tempo na ciência jurídica, que as normas religiosas têm natureza interna e autônoma, porque o seu cumprimento é espontâneo, ao passo que o Direito, ao contrário, é externo e não goza da mesma autonomia, o que lhe atribuiria a elementar obrigatoriedade. Não nos parece que essa seja a perspectiva mais acertada. Em verdade, o descumprimento de uma regra religiosa traz consequências que se instrumentalizam dentro do âmbito da ordenação religiosa, mas não a transcendem, conquanto não implique, simultaneamente, contrariedade ao Direito. A este respeito, KELSEN correlaciona à consequência a ideia de uma sanção transcendente, cuja fundamentação estaria assentada na crença de uma instância supra- humana103. Concretamente, imagine a situação daquele que deixa de contribuir com o dízimo ou, ainda, deixa de seguir uma regra capitulada como obrigatória, como não usar uma determinada peça de vestimenta. Há duas possíveis consequências para as pessoas que violaram essas normas religiosas, além da reprovaçãoe aprovação, como ocorre nas normas morais. A primeira é interna: frente ao erro cometido e considerando a consciência da atitude, a pessoa poderá reagir com arrependimento ou com a culpa. A segunda é externa e liga-se à eficácia que o descumprimento da norma religiosa poderá acarretar ao seu agente violador mas, registre-se, dentro do âmbito da ordenação religiosa, a não ser que a norma violada também tenha sido positivada pelo Estado – ou reconhecida como tal culturalmente – hipótese em que as consequências serão protagonizadas pela atuação do Estado e não apenas pela ordem religiosa. Uma última observação deve ser feita. Em nosso sistema, a liberdade de crença é um direito fundamental, sendo assegurado o respeito ao livre exercício dos cultos religiosos, bem como a proteção aos locais de culto, suas liturgias104 e, da mesma forma, ninguém poderá ser prejudicado em seus direitos por motivo de crença religiosa, mas o que não pode ser alegado para eximir o religioso de uma obrigação legal imposta a todos105. Isso, contudo, não pode fomentar a incorreta interpretação segundo a qual a norma religiosa, uma vez fundada na liberdade religiosa, gozaria de primazia em nosso sistema sobre todas as demais regras jurídicas. A despeito de se tratar de direito fundamento, qualquer comportamento, ainda que dentro do exercício de um normativo religioso, deverá se render à eficácia do Direito chancelado naquela sociedade. Quer isso dizer, portanto, que ninguém pode retirar o direito à liberdade da liturgia e culto de determinada religião, mas os cultos religiosos não podem fomentar violação às demais regras da convivência social como, por exemplo, a perturbação ao sossego da vizinhança com ruídos que são superiores aos limites do aceitável, trazendo claro incômodo aos vizinhos106. 4. As Normas de Trato ou Convívio Social Cortesia, urbanidade, respeito social, gentileza, amabilidade, companheirismo, boas maneiras, regras de etiqueta à mesa, regras para utilização de trajes ou vestimentas em festas ou comemorações, a boa educação, entre tantas outras107 constituem as chamadas normas de trato ou convívio social, com forte apelo de eficácia social – mas não de eficácia jurídica – frutos do convencionalismo social. Divergem os doutrinadores a respeito de sua origem e natureza, tendo prevalecido a ideia de que se constituiriam, tais normas, numa categoria intermediária entre a moral e o Direito108, sendo possível afirmar que se tratam de valorações que não foram tocadas nem pela moral, nem pelo Direito. Rigorosamente, essas normas não se afiguram obrigatórias como aquelas que provém do Direito, sendo o seu cumprimento tido como espontâneo. Isto é, inexiste coercibilidade oriunda do Estado para que as pessoas cumpram tais regras, porque são meras regras com a gênese no convencionalismo social. Nem por isso deixam de ser seguidas pelas pessoas, razão pela qual já se atribuiua importância da significação dessas normas em relação histórica ao Direito, uma vez que se traduziriam como a sua forma mais primitiva109. Mas há alguma consequência para quem descumprir uma norma de trato ou convívio social? Entendemos que a consequência com a maior incidência possível repousará, quando o caso, em constrangimentos, seja para quem foi o responsável pelo seu descumprimento, seja para o grupo social a que pertence – conquanto não positivada pelo Direito. Cita-se como exemplo a pessoa que, durante um jantar corporativo da empresa na qual trabalha bebe além do razoável e, em nítido estágio inicial de embriaguez, tem um ataque de riso ou se mostra absolutamente inconveniente com as demais pessoas da mesa e do restaurante, sem que tais condutas configurem-se ilícitos cíveis ou criminais. Ainda, tem-se a hipótese daquela pessoa que, convidada para uma cerimônia onde se pediu determinado traje social, aparece com uma outra vestimenta totalmente inadequada para aquela ocasião. Não é difícil imaginar, aqui, a situação embaraçosa que marcará o reencontro dessas pessoas com os demais membros do grupo, não se podendo olvidar que, em ambos os casos, o grupo social poderá, ainda, aplicar-lhe uma reprimenda, como o distanciamento ou isolamento, mas nada comparado à perspectiva da obrigatoriedade do dever jurídico e a sua coercibilidade garantida pelo Direito. 5. Em Síntese − A moral fundamenta-se na obediência aos costumes, aos hábitos, relacionando sempre a existência a valores, tudo a acentuar um perfil único: a moral é essencialmente normativa; − O termo moral vem do latim moralis,que significa caráter, estilo, costume110. Correlaciona-se com a ética, do grego ethiké, cujo significado original está diretamente ligado à ideia da dimensão pessoal do ato humano, remetendo-se para a significação do agir e da intenção humana. Mas não se tratam de expressões que deveriam ser indistintamente utilizadas. Semelhanças entre o Direito e a Moral: i) Tanto o Direito como a moral são fenômenos culturais; ii) A moral inspira o Direito; iii) O Direito é uma opção moral; e iv) Os valores morais fornecem o conteúdo, sentido e significação das regras jurídicas. − Distinções entre o Direito e a Moral: i) Autonomia da Moral, Heteronomia do Direito; ii) A moral é interna, o Direito é externo; iii) Imperatividade atributiva do Direito; v) Moralidade e Legalidade; vi) Objeto; e vii) Extensão do objeto; − O descumprimento de uma regra religiosa traz consequências que se instrumentalizam dentro do âmbito da ordenação religiosa, mas não a transcendem, conquanto não implique, simultaneamente, contrariedade ao Direito; − As normas de trato social não se afiguram obrigatórias como aquelas que provém do Direito, sendo o seu cumprimento tido como espontâneo. - 80 CLAUDE DU PASQUIER, Introduction à la théorie générale et à la philophie du Droit, p. 316. 81 LEON PETRAZYCKI, Law and Morality, p. 35. 82 BENJAMIN DE OLIVEIRA FILHO, Introdução à ciência do Direito, p. 51. 83 ZYGMUNT BAUMAN, Bauman sobre Bauman – diálogos com Keith Tester, p. 55. 84 FRANCISCO TORRINHA, Dicionário latino português, p. 530. 85 AXEL HONNETH, Luta por reconhecimento – a gramática moral dos conflitos sociais, p. 270. 86 GILLES DELEUZE, Espinosa – filosofia prática, p. 29. 87 SPINOZA, Ethica, p. 285. 88 SANTO TOMÁS DE AQUINO imortalizou a teoria segundo a qual o pecado se dividia em três estágios: pensamentos, palavras e obras (Suma Teológica, 2.1.Q. 72 – Art. 7º, p. 1381, disponível em https://sumateologica.files.wordpress.com/2017/04/suma-teolc3b3gica.pdf, acessado em 4/01/2019). 89 JEREMY BENTHAM, Uma introdução aos princípios da moral e da legislação, p. 74. A propósito, tem sido nomeada a teoria idealizada por BENTHAM como Teoria dos Círculos Concêntricos. Empiricamente ela pode ser explicada por dois círculos concêntricos, onde a moral abrange o Direito. 90 GEORG JELLINEK, Die socialethische bedeutung von recht, unrecht und strafe, p. 42. 91 CLAUDE DU PASQUIER, Introduction à la théorie générale et à la philosophíe du Droit, p. 316. 92 Ibidem, p. 247. A propósito, tem sido nomeada a teoria idealizada por PASQUIER como Teoria dos Círculos Secantes. Empiricamente ela pode ser explicada por dois círculos secantes, onde a moral toca apenas uma parte do Direito. 93 J. 25/08/2009. 94 O entendimento consagrado nesse julgamento não prevaleceu perante o E. Supremo Tribunal Federal que, ao analisar a Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI 2.316 entendeu que a capitalização de juros assegurada na Medida Provisória n. 1.963/2000 (sucedida pela MP 2.170- 36/2001), era constitucional (J. 04/03/2015). 95 Essa é a perspectiva do festejado professor da Universidade de Harvard, MICHAEL J. SANDEL (Justice: what’s the right thing to do?, p. 3 e ss.). 96 A este respeito, confira-se a precisa lição de EUSEBIO FERNÁNDEZ, Derecho y moral in Curso de Teoría del Derecho, p. 68. 97 Significativa, a propósito, é a imortal lição de GUSTAV RADBRUCH que sustenta que o Direito começa por se encontrar ao lado da moral, mas estranho a ela. Posteriormente, como meio de realização de certos valores morais, o direito se torna parte deste fim, embora com reserva de sua autonomia, é absorvido pela moral (Filosofia do Direito, p. 113). 98 IMANNUEL KANT, Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 80. 99 Art. 1.784 do CC: Aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários. 100 LEON PETRAZYCKI, Law and Morality, p. 274. 101 FRANCISCO TORRINHA, Dicionário latino português, p. 327. 102 Prevalece entre os romanistas modernos a ideia de que será da evolução do vocábulo fas, enquanto manifestação da vontade divina, que surgirá, posteriormente, o ius, derivando-se assim as acepções faz para compreender o direito divino e ius para o direito profano, ou, simplesmente, direito (ANTONINO GUARINO, L’ordinamento giuridico romano, p. 61 e ss.). 103 HANS KELSEN, Reine Rechtslehre, p. 67. 104 Confira-se o inciso VI do art. 5º da CF: “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”. 105 Art. 5º, inc. VIII, da CF: “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recursar-se a cumprir a prestação alternativa, fixada em lei”. 106 Veja-se, nesse sentido, trechos da v. Ementa atribuída ao julgamento da Apelação nº 4024121- 80.2013.8.26.0224, oriunda da Comarca de Guarulhos/SP, mediante a lavra do Des. Relator KIOITSI CHICUTA e votação unânime da C. 32ª Câmara de Direito Privado do E. Tribunal de Justiça de São Paulo: “A liberdade religiosa, assegurada constitucionalmente, não pode prejudicar o sossego alheio e as normas de tolerância, decorrentes da convivência das pessoas em agrupamentos sociais, observam limites a que todos devem obediência. Ultrapassados estes, cabe as providências administrativas e jurisdicionais para recondução para as regras de convivência social das pessoas” (j. 09/04/2015). 107 A este respeito, consulte LUIS RECASÉNS SICHES, Introducción al estudio del Derecho, p. 99 e ss. 108 Uma subespécie da moral, como preconizado por GIORGIO DEL VECCHIO, Lições de Filosofia do Direito, T. II, p. 79. 109 GUSTAV RADBRUCH, Filosofia do Direito, p. 117. 110 FRANCISCO TORRINHA, Dicionário latino português, p. 530. Frontispício Ficha Técnica Prefácio Lista de Abreviaturas Sumário Considerações Iniciais § 1º Conceito de Direito § 2º A Função do Direito § 3º O Direito e as Outras Ordenações Normativasdes Rechtssystems).10 Segundo Luhmann, também a “Teoria do Direito” estaria atrelada ao conceito de norma como “conceito fundamental” (Grundbegriff). Tratar-se- ia, portanto, de uma “teoria reflexiva” do sistema jurídico.11 A “Teoria do Direito” (Rechtstheorie), nascida em conexão com as autodescrições do sistema jurídico, expressaria, assim, os esforços teóricos que, mesmo sendo críticos, submetem-se ao direito e declaram sua adesão às obrigações das normas correspondentes. Essa característica seria comum tanto às “Teorias Jurídicas” (juristische Theorien), desenvolvidas, sobretudo, a partir da prática casuística e referidas a princípios gerais, como às “Teorias da Reflexão do Sistema Jurídico” (Reflexionstheorien des Rechtssystems), que representam o valor específico da produção do direito e o sentido de sua autonomia.12 Para Luhmann, ainda que essas formas de autodescrição do sistema jurídico possam atingir altos níveis de abstração, elas se mantêm indissociavelmente ligadas à distinção entre fato e norma, que não é a distinção que baliza o conhecimento científico.13 Daí a sua análise relativamente à “descrição externa” (Fremdbeschreibung ou Außenbeschreibung) do direito que o concebe não como uma ordem normativa, mas, ao contrário, em termos factuais, à qual, entretanto, não cabe aludir aqui.14 É a esse complexo objeto, a “Teoria do Direito”, que a presente obra se dedica. Para compreendê-la, não é despiciendo fazer uma breve menção ao itinerário intelectual e acadêmico de Carlos Camillo, pois isso permite evidenciar o seu compromisso com a reflexão teórica acerca do Direito. Graduado, Mestre e Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, o autor é docente dos Programas de Graduação e de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, onde leciona, entre outras, a disciplina Teoria Geral do Direito, que justamente constitui o objeto da presente obra. Ocupando também posições de destaque na estrutura administrativa da Faculdade de Direito da referida Universidade, o autor, como Coordenador de Pesquisa, Representante Internacional, Coordenador Adjunto de Graduação e, atualmente, Coordenador Geral da Graduação, sempre envidou esforços no sentido de promover a docência e pesquisa consistente da Teoria Geral do Direito. Essa preocupação com o desenvolvimento da pesquisa teórica acerca do Direito também se reflete na participação do autor em diversos Grupos de Pesquisa, nos quais desenvolve investigações envolvendo, de forma estruturada, as temáticas da ciência jurídica, da teoria geral do Direito, da justiça, da ética, do biodireito, de da inovação e tecnologia. Composto por quatorze capítulos, a presente obra se inicia com uma elucidativa abordagem do objeto, importância e finalidade de uma abordagem introdutória à Teoria Geral do Direito. Em seguida, no primeiro capítulo, o autor realiza uma excelente análise do conceito de direito, em meio à qual clássicos como Georges Ripert, Gustav Radbruch, Hans Kelsen, Herbert L. A. Hart, Luis Rescaséns Siches, Manuel Atienza, Norberto Bobbio, Ronald Dworkin e Santi Romano, entre outros, são mobilizados de modo consiste e original. No segundo capítulo, dedicado à função do direito, é realizado um exame dessa importante questão, mediante a conjugação de autores da Filosofia do Direito, da Teoria do Direito e da Sociologia Jurídica, tais como Michel Villey, Hans Kelsen, Max Weber, Roscoe Pound e Vincenzo Ferrari. No terceiro capítulo, é enfocada a incontornável (porém, controvertida) questão do Direito diante das outras ordens normativas. Transitando por teóricos tradicionais na discussão acerca dessa temática, tais como Arthur Kaufmann, Gustav Radbruch, Giorgio Del Vecchio, Hans Kelsen, Jeremy Bentham e Miguel Real, o autor mobiliza, de modo sagaz e inovador, pensadores como Axel Honneth, Gilles Deleuze, Leon Petrazycki e Zygmunt Bauman, O quarto capítulo, direcionado à relação entre Direito e força, aborda, vários assuntos fundamentais, especialmente as formas de sanção, mobilizando grandes clássicos da filosofia como Hannah Arendt, Immanuel Kant, Thomas Hobbes e, juristas como Gustav Radbruch, Giorgio Del Vecchio, Hans Kelsen, Norberto Bobbio e Rudolf von Ihering. Em seguida, Carlos Camillo desenvolve um amplo exame das fontes do direito, dedicando-se, no capítulo quinto, à elaboração de uma teoria geral atinente a essa matéria, em meio à qual, a partir dos clássicos trabalhos de Alf Ross, Herbert L. A. Hart, Hans Kelsen e Norberto Bobbio e Ronald Dworkin, entre outros, enfoca temas como o conceito de fontes, a relação entre as fontes do Direito e as normas jurídicas, além de uma precisa taxionomia das fontes. A partir desse pródromo, o autor enfoca, no capítulo sexto, as fontes do direito em espécie, mediante uma minuciosa análise da legislação, do processo legislativo, da lei, dos costumes jurídicos, da jurisprudência, dos princípios gerais do Direito, das fontes negociais, da doutrina e, inclusive, a discussão relativa à admissão de outras fontes além das tradicionais das quais, excetua, entretanto, a analogia e a equidade. O capítulo sétimo consigna uma densa análise da norma jurídica que contempla, especialmente, as questões relativas às funções da linguagem, à etimologia e à tipologia da norma, à definição de norma jurídica e sua concepção como proposição normativa do dever ser no pensamento de Hans Kelsen para, a partir daí, analisar as perspectivas de Herbert L. A. Hart e Ronald Dworkin.15 O capítulo contempla, ainda, um exame da norma jurídica e o seu pertencimento ao sistema jurídico, da norma jurídica como fruto da atividade típica e pragmática do jurista, da norma prescritiva como padrão paradigmático da norma jurídica e de outras normas jurídicas, a partir do que enfoca, especialmente, o costume jurídico, as normas constitutivas, as metanormas e a distinção entre regras e princípios e as cláusulas gerais. Por fim, analisa os critérios de valoração da norma jurídica, a questão da validade da norma jurídica, assim como a de sua aplicabilidade, eficácia e justiça. A partir desse ponto, Carlos Camillo analisa a temática que pode ser considerada o tema principal de sua obra. Assim, no capítulo oitavo, dedicado à ciência do direito e à sua metodologia, aborda, preliminarmente, a formação do conhecimento científico e a questão relativa à classificação do direito como uma ciência para, a partir daí, investigar as dimensões da ciência do direito, mediante a tematização da dogmática jurídica, da Teoria Geral do Direito, do direito comparado, da teoria da legislação, da ciência do direito e da Filosofia do Direito. No bojo desse capítulo, o autor enfoca, ainda, a linguagem, o objeto e as funções da ciência do direito. No que concerne a esse último tópico examina as funções decisória, sistemática, hermenêutica e social da ciência do Direito. Feito isso, se dirige aos métodos da Ciência do Direito para, em seguida, focalizar os modelos teóricos que lhe são constitutivos. Para tanto, realiza uma sintética, porém elucidativa, digressão pelo jusnaturalismo na antiguidade, no medievo, na Idade Moderna e em sua figuração renovada na contemporaneidade, aludindo, no que concerne a esta última, especialmente, às obras de John Mitchell Finnis e Brian H. Bix. Em seguida, o autor enfoca o positivismo jurídico, preliminarmente no que tange à sua abordagem e ao seu delineamento teórico para, a partir daí, concentrar-se na teoria pura de Hans Kelsen e na discussão relativa ao positivismo exclusivo, inclusivo e conceitual, mediante uma alusão às perspectivas de Joseph Raz, David Lyons, Jules Coleman e Wilfrid Waluchow. Feita essa digressão pelo positivismo, o capítulo enfoca, ainda, o realismo jurídico, em sua vertente norte-americana e escandinava, e as “tendências pós-positivistas”, ilustrando-as mediante a tematização da teoria tridimensional do direito de Miguel Reale, a teoria “pós-positivista” de Ronald Dworkin e o “antipositivismo” de Robert Alexy. A partir dessa análise, Carlos Camillo aborda,no nono capítulo, os conceitos fundamentais do direito. Para esse fim, indica, em primeiro lugar, a utilidade dos conceitos fundamentais do direito e, a partir daí, discute as especificidades que permitem diferenciar Civil Lawe Commom Law, Direito objetivo e Direito positivo e Direito Subjetivo, para, em seguida, mediante o exame da distinção entre Direito Público e Direito Privado, descrever as ramificações que lhes são concernentes além de outras ramificações consolidadas e emergentes. O capítulo contempla, ainda, a relação jurídica, a concepção clássica de relação jurídica segundo a clássica perspectiva de Giorgio Del Vecchio, os elementos da relação jurídica, a concepção de relação jurídica segundo Hans Kelsen e, finalmente, o dever jurídico. O décimo capítulo, intitulado “o sistema jurídico: a noção sistêmica do ordenamento”, aborda temas fundamentais à adequada cognição do direito. Assim, a partir da definição de sistema jurídico, são analisados enquanto atributos de tal sistema, a normatividade, a coatividade, a origem estatal, a complexidade e a totalidade. Em seguida, no que tange à unidade do sistema, o autor enfoca o problema da hierarquia das normas jurídicas, a teoria do escalonamento das normas e a teoria da norma Fundamental. Tendo por base essa análise, o autor enfoca a questão da coerência do sistema jurídico e, em meio a ela, o problema das antinomias das normas a partir de suas múltiplas dimensões. Por fim, é realizado um exame da questão das lacunas no ordenamento jurídico. Em estreita conexão com esses temas, o décimo primeiro capítulo focaliza os temas da vigência, da eficácia e do conflito de leis no tempo, tendo por base a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, Decreto-Lei 4.657, de 04/09/1942. Em seguida, o décimo segundo capítulo dirige-se à interpretação e à aplicação do direito, ambas temáticas incontornáveis no âmbito de uma obra direcionada à implementação de uma abordagem introdutória à Teoria Geral do direito. Assim, sustentando que a “tarefa primordial e típica do jurista é, antes de qualquer coisa, a interpretação da norma”, o autor em uma digressão de forte acento filosófico, mobiliza Friedrich Schleiermacher, Wilhelm Dilthey, Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Paul Ricœur para fundamentar a sua análise da hermenêutica jurídica como teoria científica da interpretação. Após examinar as diversas técnicas de interpretação, o capítulo consigna uma interessante incursão por métodos de interpretação nos quais o enfoque filosófico predomina sobre o dogmático. Assim, alude à interpretação conforme a Constituição, ao método científico espiritual, ao método tópico-problemático, ao método hermenêutico concretizador, ao método normativo estruturante e ao método hermenêutico da alteridade jurídica,16 para, a partir daí, enfocar a interpretação e a sua extensão. O décimo terceiro capítulo, dedicado ao incontornável tema dos fundamentos do direito, tem por objeto privilegiado a questão da justiça. Assim, em primeiro lugar, enfoca, especialmente com base no pensamento aristotélico, as noções de justiça distributiva, justiça corretiva, justiça comutativa, justiça judiciária ou reparativa, justiça restaurativa e justiça social. Em seguida, realiza uma síntese panorâmica da ideia de justiça até a primeira metade do século XX, a partir da qual enfoca, em termos sintéticos, algumas das mais importantes teorias da justiça na atualidade: a) a justiça como equidade proposta por John Rawls; b) a justiça na perspectiva de Ronald Dworkin; c) a justiça como aplicação correta de uma norma, tal como proposta por Alf Ross; d) a “justiça formal” de Chaïm Perelman; e) a “justiça como exatidão” proposta por Robert Alexy; f) a perspectiva de Paul Ricœur acerca da justiça; g) a justiça como reconhecimento a partir da reconstrução normativa tal como proposta por Axel Honneth; h) a justiça a partir da alteridade jurídica, tal como concebida pelo próprio autor.17 Por fim, à guisa de conclusão, o décimo quarto capítulo analisa o impacto das revoluções científicas e das inovações tecnológicas sobre a atividade jurídica. Para tanto, mobilizando, de modo original, as obras de autores como Carla Faralli, Thomas Kuhn, Jack Balkin e Herman Kantorowicz, realiza-se um exame ponderado dessa questão perturbadora. Contudo, as conclusões do autor são, quanto a esse tema, alentadoras, uma vez que, em sua avaliação, “nenhuma inovação tecnológica – tampouco a inteligência artificial – terá o condão de suceder o jurista pois, como já asseverado, sua atividade decorre de relações humanas complexas” e “o direito não será substituído por algorítimos.” Por conseguinte, apesar de impactada pelas inovações tecnológicas, a atividade jurídica remanescerá, em seu entendimento, indispensável. Procurando não apenas instruir, mas, inclusive, sensibilizar o estudante e o jurista acerca das importantes questões de que trata, o livro Manual da Teoria Geral do Direito de Carlos Eduardo Nicoletti Camillo assume particular importância. Para além da significativa contribuição que traz para o estudo teórico do direito, trata-se de uma obra que também serve de crítica às abordagens que, balizadas por uma orientação meramente dogmática, circunscrevem-se a um formalismo estéril e pouco vocacionado a contribuir para uma compreensão mais consequente a regulação jurídica. Assim, a sua publicação pela Almedina confirma o compromisso desta prestigiosa editora para com a difusão da pesquisa de qualidade, o que certamente contribui ao desenvolvimento de uma atividade jurídica compromissada com “a justiça, os valores sociais e a dignidade da pessoa humana”, tal como propugnada pelo autor. ORLANDO VILLAS BÔAS FILHO18 - 1 FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 4ª edição. São Paulo: Atlas, 2003, p. 27. 2 A respeito, no âmbito de propostas congêneres, ver, por exemplo: MILLARD, Éric. Théorie générale du droit. Paris: Dalloz, 2006, p. 1-2; SÈVE, René. Philosophie e théorie du droit. Paris: Dalloz, 2007, p. 2-3. 3 Vale lembrar que a expressão “teoria geral do direito” ou “teoria do direito”, tal como comumente empregada em português, corresponde, genericamente, ao que, em francês, designa-se por Théorie Générale du Droit, Théorie du Droit e mesmo, em alguns casos, de Science du droit. Em espanhol são recorrentes as expressões Teoría General del derecho e Teoría del Derecho. Em alemão, os termos comuns são Jurisprudenz e Rechtstheorie. Em inglês, utilizam-se, habitualmente, as expressões Legal Theory, Jurisprudence, General Jurisprudence. A respeito, ver, por exemplo: MACEDO JR., Ronaldo Porto. Teoria, filosofia e dogmática jurídica: rigor e método. In: ______ (Org). Teoria do direito contemporânea: autores e temas. Curitiba: Juruá, 2017, p. 18. 4 Segundo o autor, “a dogmática jurídica, de forma análoga à engenharia civil (outra forma de sistematização de saberes técnicos), cumpre a função de realizar uma sistematização dos conceitos jurídicos fundamentais, bem como servir de guia para a sua interpretação e aplicação. Por esse motivo, ela possui a natureza de um saber tecnológico. Neste sentido, ela guarda uma relação direta com a questão da técnica da tomada de decisão jurídica (isto é, a decisão guiada por critérios jurídicos). Para que a dogmática jurídica cumpra com a sua função dentro das práticas jurídicas, ela deve ser capaz de se estruturar em torno de um conjunto organizado e simplificado de dogmas. Ela deve enunciados unificantes essenciais. Exemplo de tais dogmas são o princípio da legalidade, da positivação do direito, o princípio do legislador racional etc.” MACEDO JR., Ronaldo Porto. Teoria, filosofia e dogmática jurídica: rigor e método, p. 20. Em sentido análogo, ver: FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação, p. 85-91. 5 Assim, conforme sublinha o autor, “é possível afirmar que a teoria do direito procura descrever o que é o direito. Ela também “auxilia” a dogmática jurídica de forma relevante. Para realizara sua função de unificação é necessário que os referidos dogmas fundamentais contenham implícita ou explicitamente uma teoria do direito material como sua fundamentação última.” MACEDO JR., Ronaldo Porto. Teoria, filosofia e dogmática jurídica: rigor e método, p. 21. 6 Cf. MACEDO JR., Ronaldo Porto. Teoria, filosofia e dogmática jurídica: rigor e método, p. 23-24. Não cabe aqui, procurar definir a Filosofia do Direito. A respeito, basta aludir às observações feitas por Michel Troper: “Il n’existe d’accord ni sur une définition du droit, ni sur une définition de la philosophie du droit, ni sur le point de savoir si elle est une branche de la philosophie ou une partie de la science juridique, ni sur une liste de questions dont elle devrait s’occuper, ni sur ses fonctions, ni sur l’expression même de ‘philosophie du droit’, à laquelle certains préfèrent ‘théorie générale du droit’ ou, en anglais, général jurisprudence.” TROPER, Michel. La philosophie du droit. 2e édition. Paris: Presses Universitaires de France, 2008, p. 9. Em sentido análogo, no mesmo contexto intelectual de Michel Troper, vale aludir também aos seguintes autores: FRYDMAN, Benoît; HAARSCHER, Guy. Philosophie du droit. 2e édition. Paris: Dalloz, 2002, p. 11; OPPETIT, Bruno. Philosophie du droit. Paris: Dalloz, 1999, p. 9-16; FABRE-MAGNAN, Muriel. Introduction au droit. Paris: Presses Universitaires de France, 2010, p. 83-86. 7 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, vol. 1, p. 243-244. 8 Cf. LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1993, p. 9-11. 9 Para uma análise semelhante que contrapõe a Philosophie du Droit, associada ao jusnaturalismo, à Théorie Générale du Droit, ligada ao positivismo jurídico, ver: TROPER, Michel. La philosophie du droit, p. 10-12. 10 A respeito, ver, por exemplo: VILLAS BÔAS FILHO, Orlando. O desenvolvimento dos estudos sociojurídicos: da cacofonia à construção de um campo de pesquisa interdisciplinar. Revista da Faculdade De Direito da USP, nº 113, 263-264, jan./dez. 2019. 11 Cf. LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft, p. 11-12. 12 Cf. LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft, p. 18. 13 Cf. LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft, p. 12. 14 Cf. LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft, p. 16-17 e 540, especialmente, nota 95 em que o autor reproduz o quadro proposto por Donald Black no livro Sociological justice. A respeito, ver, por exemplo: GONÇALVES, Guilherme Leite; VILLAS BÔAS FILHO, Orlando. Teoria dos sistemas sociais: direito e sociedade na obra de Niklas Luhmann. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 149- 152. 15 A respeito, como complementação da análise do autor, ver, especialmente: SHAPIRO, Scott J. The “Hart-Dworkin” debate: a short guide for the perplexed. In: RIPSTEIN, Arthur. Ronald Dworkin. Cambridge, New York: Cambridge University Press, 2007, p. 22-55. 16 Nesse particular, o autor introduz o leitor ao método por ele idealizado, com base na fenomenologia e na ontologia do filósofo Emmanuel Lévinas. A respeito, ver: CAMILLO, Carlos Eduardo Nicoletti. Teoria da alteridade jurídica – em busca do conceito de Direito em Emmanuel Lévinas. São Paulo: Editora Perspectiva, 2016. 17 Cf. CAMILLO, Carlos Eduardo Nicoletti. Teoria da alteridade jurídica – em busca do conceito de Direito em Emmanuel Lévinas. São Paulo: Editora Perspectiva, 2016, p. 12. 18 Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Bacharel em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Bacharel e Licenciado em História pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas e pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Mestre e Doutor em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Pós-doutorado na Université de Paris X (Nanterre) e na École Normale Supérieure de Paris. Professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Membro do Réseau Européen Droit et Société. LISTA DE ABREVIATURAS a.C.: Antes de Cristo ADCT: Ato das Disposições Constitucionais Transitórias Art.: Artigo CADE: Conselho Administrativo de Defesa Econômica CC: Código Civil – Lei n. 10.406, de 10/01/2002 CCom.: Código Comercial – Lei n. 556, de 25/06/1850 CCP: Código Civil de Portugal CDC: Código de Defesa do Consumidor – Lei n. 8.078, de 11/09/1990 CF: Constituição Federal CLT: Consolidação das Leis do Trabalho – Decreto-Lei n. 5.452, de 1º/05/1943 CP: Código Penal – Decreto-Lei n. 2.848, de 7/12/1940 CPC: Código de Processo Civil – Lei n. 13.105, de 16/03/2015 CPP: Código de Processo Penal – Decreto-Lei n. 3.689, de 3/10/1941 CRP: Constituição da República Portuguesa CTN: Código Tributário Nacional – Lei n. 5.172, de 25/10/1966 CVM: Comissão de Valores Mobiliários DJe: Diário da Justiça Eletrônico d.C.: Depois de Cristo ECA: Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei n. 8.069, de 13/07/ 1990 ed.: Edição Inc.: Inciso j.: Julgado LC: Lei Complementar LINDB: Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro – Decreto-Lei 4.657, de 04/09/1942 Min.: Ministro MP: Medida Provisória PEC: Projeto de Emenda à Constituição PL: Projeto de Lei RE: Recurso Extraordinário Rel.: Relator REsp: Recurso Especial ss.: Seguintes STF: Supremo Tribunal Federal STJ: Superior Tribunal de Justiça TJ: Tribunal de Justiça Trad.: Tradução TRF: Tribunal Regional Federal Vol.: Volume v.u.: Votação unânime SUMÁRIO PREFÁCIO LISTA DE ABREVIATURAS SUMÁRIO CONSIDERAÇÕES INICIAIS 1. Objeto, Importância e Finalidade de uma Teoria Geral do Direito 2. Como Utilizar este Livro § 1º – CONCEITO DE DIREITO 1. Etimologia da Palavra Direito 2. Ideia Elementar de Direito 3. O Direito na Contemporaneidade 4. O Conceito de Direito 5. A Busca do Valor Ético do Bem 6. Em Síntese § 2º – A FUNÇÃO DO DIREITO 1. A “Engenharia Social” do Direito 2. Conceito de Função 3. As Funções Ordinárias do Direito 3.1. Integração, Controle e Organização Social 3.2. Resolução de Conflitos 3.3. Legitimação do Poder Social 3.4. Transformação Social 4. Em Síntese § 3º – O DIREITO E AS OUTRAS ORDENAÇÕES NORMATIVAS 1. As Diversas Normas que Regem a Conduta Humana 2. A Moral 2.1. Relações Entre a Moral e o Direito 2.1.1. O Direito é Estruturalmente Moral 2.1.2. Aproximações Entre o Direito e a Moral 2.1.3. Distinções Entre o Direito e a Moral 3. As Normas Religiosas e o Direito 4. As Normas de Trato ou Convívio Social 5. Em Síntese § 4º – DIREITO E FORÇA 1. De Onde Provém a Força do Direito 2. Força e Poder 3. Estrutura do Direito a Partir da Coação e Sanção 3.1. Sanção em Sentido Estrito (Sanção Negativa) e Sanção Premial (Sanção Positiva) 4. Em Síntese § 5º – TEORIA GERAL DAS FONTES DO DIREITO 1. As Fontes Como Modelos de Revelação, Expressão e Criação do Direito 2. Conceito 3. Fontes do Direito e Normas Jurídicas 4. Classificação das Fontes 4.1. Fontes Materiais e Fontes Formais 4.2. Fontes Estatais e Fontes Não Estatais 4.3. Fontes Históricas, Atuais e Reais 4.4. Fonte Principal e Fonte Supletiva 4.5. Fonte Escrita e Fonte Não Escrita 5. O Sistema Jurídico: uma Infinidade de Normas e “Numerus Clausus” das Fontes do Direito 6. Fontes do Direito em Espécie 7. Em Síntese § 6º – FONTES DO DIREITO EM ESPÉCIE 1. Legislação 2. Processo Legislativo 3. Da Lei 3.1. Conceito e Características 3.2. A Sanção Não é uma Característica Essencial da Lei 3.3. Classificação 3.3.1. Quanto à Hierarquia 3.3.2. Quanto à Obrigatoriedade 3.3.3. Quanto à Sanção 3.3.4. Quanto ao Caráter de Suas Disposições 3.3.5. Quanto à Aplicabilidade 3.3.6. Quanto à Natureza de Suas Disposições 3.3.7. Quanto à Sistematização 3.3.8. Quanto à Esfera do Poder de que Emanam 3.3.9. Quanto ao Âmbito de sua Eficácia 4. Costumes Jurídicos 4.1. Os Costumes Jurídicos na História do Direito 4.2. Da Estrutura de seus Elementos à Formação de seu Conceito 4.3. Espécies 5. Fonte Jurisprudencial5.1. Etimologia, Conceito e Elementos 5.1.1. Conjunto de Pronunciamentos Colegiados 5.1.2. Proferidos pelo Judiciário 5.1.3. Proferidas Reiteradamente no Mesmo Sentido, de Maneira Constante e Atual 5.1.4. Sobre uma Específica Questão Jurídica 5.2. Sobre a Função da Jurisprudência 5.3. Súmula de Jurisprudência dos Tribunais 5.4. Súmula Vinculante do STF 6. Princípios Gerais do Direito 7. Fonte Negocial 8. Doutrina 9. Outras Fontes? 10. Fontes do Direito e Analogia 11. Fontes do Direito e a Equidade 12. Diálogo das Fontes § 7º – A NORMA JURÍDICA 1. As Funções da Linguagem 2. Etimologia e Tipologia da Norma 3. Definição de Norma Jurídica 3.1. A Norma Jurídica comoa Proposição Normativa do Dever Ser em KELSEN 3.2. Críticas de HART e DWORKIN 3.3. A Norma Jurídica e o seu Pertencimento ao Sistema Jurídico 3.4. A Norma Jurídica como Fruto da Atividade Típica e Pragmática do Jurista 4. Norma Prescritiva como Padrão Paradigmático da Norma Jurídica 4.1. Outras Normas Jurídicas 4.1.1. Costume Jurídico 4.1.2. Normas Constitutivas 4.1.3. Metanormas 4.1.4. Regras e Princípios 4.1.5. Cláusulas Gerais 5. Critérios de Valoração da Norma Jurídica 5.1. Da existência à Validade da Norma Jurídica 5.2. Aplicabilidade da Norma Jurídica 5.3. Eficácia da Norma Jurídica 5.4. Justiça da Norma Jurídica 6. Em Síntese § 8º – A CIÊNCIA DO DIREITO E SUA METODOLOGIA 1. A Formação do Conhecimento Científico 2. O Direito é uma Ciência? 3. Dimensões da Ciência do Direito 3.1. Dogmática Jurídica 3.2. Teoria Geral do Direito 3.3. Direito Comparado 3.4. A Teoria da Legislação 3.5. Filosofia do Direito 3.6. Sociologia do Direito 4. Linguagem na Ciência do Direito 5. Objeto da Ciência do Direito 6. Funções da Ciência do Direito 6.1. Função Decisória da Ciência do Direito 6.2. Função Sistemática da Ciência do Direito 6.3. Função Hermenêutica da Ciência do Direito 6.4. Função Social da Ciência do Direito 7. Métodos da Ciência do Direito 7.1. Método Analítico 7.1.1. Indução 7.1.2. Dedução 7.1.3. Intuição 7.1.4. Analogia 8. Os Modelos Teóricos da Ciência do Direito 8.1. Jusnaturalismo ou Direito Natural 8.1.1. Jusnaturalismo na Antiguidade 8.1.2. Jusnaturalismo na Idade Média 8.1.3. Jusnaturalismo na Idade Moderna 8.1.4. Jusnaturalismo Renovado 8.2. Positivismo Jurídico 8.2.1. Abordagem do Positivismo Jurídico 8.2.2. Teoria do positivismo jurídico 8.2.3. A Teoria Pura do Direito de HANS KELSEN 8.2.4. Positivismo Exclusivo, Inclusivo e Conceitual 8.3. Realismo Jurídico 8.3.1. Realismo Norte-Americano 8.3.2. Realismo Escandinavo 8.4. Tendências Pós-Positivistas 8.4.1. Teoria Tridimensional de REALE 8.4.2. Teoria Pós-Positivista de DWORKIN 8.4.3. Antipositivismo de ALEXY 9. Em Síntese § 9º – OS CONCEITOS FUNDAMENTAIS DO DIREITO 1. Utilidade dos Conceitos Fundamentais do Direito 2. Civil Law e Common Law 3. Direito Objetivo e Direito Positivo 4. Direito Subjetivo 5. Direito Público e Direito Privado 5.1. Ramificações do Direito Público 5.2. Ramificações do Direito Privado 5.3. Outras Ramificações Consolidadas 5.4. Ramificações Emergentes 6. Relação Jurídica 6.1. A Concepção Clássica de Relação Jurídica Segundo GIORGIO DEL VECCHIO 6.2. Elementos da Relação Jurídica 6.3. A Concepção de Relação Jurídica Segundo HANS KELSEN 7. Dever Jurídico 8. Em Síntese § 10º – O SISTEMA JURÍDICO: NOÇÃO SISTÊMICA DO ORDENAMENTO 1. Ordenamento ou Sistema Jurídico? 2. Atributos do Sistema Jurídico 2.1. Normatividade 2.2. Coatividade 2.3. Autoridade Estatal 2.4. Complexidade 2.5. Totalidade 3. A Unidade do Sistema Jurídico 3.1. A Teoria Escalonada das Normas 3.2. A Teoria da Norma Fundamental 4. A Coerência do Sistema Jurídico 4.1. O Problema das Antinomias das Normas 4.2. Classificação das Antinomias 4.2.1. Extensão 4.2.1.1. Antinomia Total-Total 4.2.1.2. Antinomia Parcial-Parcial 4.2.1.3. Antinomia Total-Parcial 4.2.2. Âmbito de Incidência 4.2.2.1. Antinomia de Direito Interno 4.2.2.2. Antinomia de Direito Internacional 4.2.2.3. Antinomia de Direito Interno-Internacional 4.2.3. Conteúdo 4.2.3.1. Antinomia Própria 4.2.3.2. Antinomia Imprópria 4.2.4. Solução 4.2.4.1. Antinomias Aparentes 4.2.4.2. Antinomias de Segundo Grau 4.2.4.3. Antinomias Reais 4.3. Critérios Tradicionais para Solução das Antinomias 4.3.1. Critério Hierárquico 4.3.2. Critério Cronológico 4.3.3. Critério da Especialidade 5. A Completude do Sistema Jurídico 5.1. O Problema das Lacunas no Ordenamento 5.2. Classificação das Lacunas 5.2.1. Lacunas Intencionais 5.2.2. Lacunas Involuntárias 5.2.3. Lacunas Normativas 5.2.4. Lacunas Axiológicas 5.2.5. Lacunas Ontológicas 5.3. O art. 4º da LINDB 5.4. Meios Supletivos das Lacunas 5.5. A Autointegração 5.5.1. Analogia 5.5.1.1. Analogia Legis e Analogia Juris 5.6. A Heterointegração 5.6.1. Costumes Jurídicos 5.6.2. Princípios Gerais do Direito 5.7. Equidade 6. Em Síntese § 11º – VIGÊNCIA, EFICÁCIA E CONFLITO DE LEIS NO TEMPO COM BASE NA LINDB 1. Sentido e Alcance da LINDB – Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – em Nosso Sistema Jurídico 2. Vigência das Leis 2.1. Início da Obrigatoriedade das Leis 2.2. Tempo da Obrigatoriedade das Leis 2.3. Repristinação 3. Princípio da Obrigatoriedade das Leis 4. Conflito das Leis no Tempo – Direito Intertemporal 4.1. A Teoria Subjetiva (Teoria dos Direitos Adquiridos) 4.2. A Teoria Objetiva (Teoria das Situações Jurídicas) 4.3. O art. 6º da LINDB 4.3.1. Ato Jurídico Perfeito 4.3.2. Direito Adquirido 4.3.3. Coisa Julgada 5. Em Síntese § 12º – INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DO DIREITO 1. Interpretação e Aplicação do Direito 2. Hermenêutica e Interpretação 2.1. Hermenêutica e Hermenêutica Jurídica 2.2. Interpretação e Interpretação Jurídica 3. Variedade de Intérpretes 3.1. Interpretação Autêntica 3.2. Interpretação Oficial 3.3. Interpretação Judicial 3.4. Interpretação Doutrinária 4. Técnicas de Interpretação Jurídica 4.1. Interpretação Gramatical 4.2. Interpretação Lógica 4.3. Interpretação Histórica 4.4. Interpretação Teleológica 4.5. Interpretação Sistemática 4.6. Outras Técnicas de Interpretação 4.6.1. Interpretação Conforme a Constituição 4.6.2. Método Científico Espiritual (RUDOLF SMEND) 4.6.3. Método Tópico Problemático (THEODOR VIEHWEG) 4.6.4. Método Hermenêutico Concretizador (KONRAD HESSE) 4.6.5. Método Normativo Estruturante (FRIEDRICH MÜLLER) 4.6.6. Método Hermenêutico Autrement ou da Alteridade Jurídica (CARLOS CAMILLO) 5. A Interpretação e a sua Extensão 5.1. Interpretação Declarativa ou Literal 5.2. Interpretação Extensiva ou Ampliativa 5.3. Interpretação Restritiva ou Estrita 6. Em Síntese § 13º – FUNDAMENTOS DO DIREITO 1. O Sentido do Direito 2. A Teoria Geral da Justiça 2.1. Justiça Distributiva 2.2. Justiça Corretiva 2.2.1. Justiça Comutativa 2.2.2. Justiça Judiciária ou Reparativa 2.3. Justiça Restaurativa 2.4. Justiça Social 2.5. Síntese Panorâmica da Ideia de Justiça até a Primeira Metade do Século XX 2.6. As Mais Importantes Teorias da Justiça na Atualidade 2.6.1. JOHN RAWLS: a Justiça Como Equidade 2.6.2. RONALD DWORKIN: Justiça Para Garantir o Bem-Estar 2.6.3. ALF ROSS: a Justiça Como Aplicação Correta de uma Norma 2.6.4. CHAÏM PERELMAN: a Justiça Formal 2.6.5. ROBERT ALEXY: da Dupla Natureza do Direito à Justiça Como Exatidão 2.6.6. PAUL RICOEUR: Viver a Vida Boa, Com e Para os Outros, em Instituições Justas 2.6.7. AXEL HONNETH: a Justiça Como Reconhecimento a Partir da Reconstrução Normativa 2.6.8. Nossa Proposição: a Justiça a Partir da Alteridade Jurídica 3. Em Síntese § 14º – O IMPACTO DAS REVOLUÇÕES CIENTÍFICAS E INOVAÇÕES TECNOLÓGICAS NO DIREITO 1. As Revoluções Científicas Contemporâneas e o Seu Impacto no Direito POSFÁCIO REFERÊNCIAS Considerações Iniciais Introdução ao Direito por quê? Entender, conhecer, amar o Direito. Entender o Direito exige a aquisição de ferramentas, o vocabulário e o raciocínio que compõem a essência da ciência jurídica 19 RÉMY CABRILLAC 1. Objeto, Importância e Finalidade de uma Teoria Geral do Direito Este trabalho, além de representar fruto das pesquisas deste Autordesde os bancos da graduação, mestrado e doutorado em Filosofia do Direito pela PUC/SP, também resulta do magistério das suas aulas de Introdução ao Direito e Teoria Geral de Direito ao longo de quase duas décadas na Universidade Presbiteriana Mackenzie/SP e, bem assim, do exercício ininterrupto da advocacia por mais de vinte e cinco anos. Mas o Direito não faz parte apenas da vida daqueles que se dedicaram integralmente a ele. O Direito é um extraordinário fenômeno que se encontra presente em todas as relações humanas. Bem por isso, essa obra, longe de ser definitiva, procura sintetizar as ideias e preocupações deste Autor de maneira a verbalizar o retrato técnico e elementar do Direito, imprescindível aos alunos ingressantes aos estudos jurídicos. O escopo maior desta obra, pois, é o de antecipar a visão de uma totalidade do conhecimento, examinando-o, investigando-o e confirmando- o por meio de suas estruturas e verdades, de maneira a permitir que o estudante consiga manusear e melhor compreender a essência e significação do fenômeno jurídico. É esse o sentido de uma Teoria Geral do Direito que fala sobre o conhecimento, mas com ele não se confunde, distinguindo-se, pois, da ciência que procura introduzir aos seus leitores. A proposta, aqui, é transcender os limites de uma mera introdução ao direito, para também investigar as lições preliminares sobre a justiça. E assim é que seu conteúdo, que mais se aproxima a uma verdadeira enciclopédia, se movimentará sobretudo pelos eixos da formação fundamental, estabelecendo as relações do direito com outras áreas do saber, como sociologia, ciência política, antropologia, economia, ética, filosofia, história, psicologia e da formação profissional, para ir além da ciência dogmática e compreender o fenômeno da interpretação, integração e aplicação do Direito, observadas as peculiaridades dos seus mais diversos ramos e sem perder de vista a perspectiva de se margear as novas fronteiras da ciência jurídica. A disciplina teoria geral do direito tem vários protagonistas. Mas é exatamente o estudo da dogmática do direito e das teorias da justiça os seus objetivos mais relevantes, aliados aos conceitos fundamentais que o jurista – ao mesmo tempo o titular da investigação, intérprete do sistema normativo e operador da ciência jurídica – deverá absorvê-los, trabalhá-los e aplicá-los. A ciência jurídica – como toda e qualquer ciência – está em constante transformação e, não raras vezes, o fenômeno jurídico poderá representar evolução numa determinada situação e, simultânea ou reflexamente, irradiar absurda e manifesta injustiça, dependendo, especialmente, do prisma interpretativo e do enfoque valorativo e social que serão utilizados para a sua compreensão. O grande desafio que se impõe ao futuro Jurista não é apenas estudar, compreender e viver o Direito à luz dos mais significativos valores e referenciais que projetam a sua formação e transformação, mas o de não se perder de vista que a sua gênese, enquanto consciência, também está entrelaçada às necessidades materiais das pessoas em sociedade e que o escopo maior, ainda que apto aos mais diversos discursos, também se projeta à construção de uma sociedade mais justa. Ademais, não se pode ignorar os signos de nossa modernidade, sobretudo os movimentos sociais e o fenômeno do pensamento coletivo, da chegada da internet e, fundamentalmente, das redes sociais que pressupõem forjar um novo pensamento coletivo. Assim, não se pode deixar de conceber que esses verdadeiros avatares repercutem, sobremaneira, no Direito moderno, influindo decisivamente na construção de paradigmas elementares na ciência jurídica, sobretudo a justiça, a liberdade, a consciência, a democracia, a igualdade e, enfim, a ética em todas as suas possíveis vertentes. E ao estudante de Direito – um jurista em formação – nada disso pode escapar. Afinal, somente o jurista, diante de sua formação propedêutica e humanística, em cotejo com os valores e a realidade social, poderá transformar um conflito, uma dúvida, uma angústia ou qualquer hipótese em uma decisão, quando, por exemplo, promove a aplicação, interpretação ou integração do direito. É exatamente isso que se espera do jurista que, com a peculiaridade de sua decisão, pautada em critérios normativos e éticos, marcada por inequívoca função social, propicia a possibilidade de se reconhecer que o direito é inegavelmente um mecanismo de transformação social. Mas não se engane que o Direito, não raras vezes, pode se revelar, igualmente, como instrumento de dominação e de abuso, em atentado frontal às conquistas sociais e à dignidade da pessoa humana, sobretudo quando ignorar a ética e vulnerar qualquer verdade fundante do sistema jurídico. É preciso frisar, desde já, que a contrariedade aos valores ou aos princípios gerais do direito e, também, da justiça comprometerá todo o ordenamento jurídico. E nem ouse duvidar de que o mesmo Direito que nos aprisiona, é o Direito que nos liberta. O fenômeno jurídico está presente nas sociedades, das épocas mais primitivas às mais avançadas, sobretudo quando se mostra sofisticadamente estruturado a partir de normas positivas e impositivas que pretendem garantir os valores mais significativos da sociedade, sobretudo a liberdade20. As mais diversas ordens emprestaram do Direito o seu signo. Daí fala-se em leis da natureza, leis morais, leis da lógica, leis do universo, leis da gravidade e do espaço.21 O Direito se revela, assim, como fenômeno eminentemente cultural e a sua história, apropriadamente, se confunde com a da humanidade. Isso, aliás, se mostra decisivo para a mais perfeita distinção entre o mundo do ser do mundo do dever ser: enquanto o mundo do ser diz respeito ao dado, à natureza, abrangendo os fatos e a realidade, o mundo do dever ser é um pressuposto da experiência, abarcando o conhecimento, a ação moral e o sentimento estético. É claro que é possível, ainda, reestruturar essa noção de cultura, transcendendo-a, para atingir maior amplitude, de maneira a conceber que a cultura consiste em tudo o que ganha sentido e significado para as pessoas, que reconhecem esses significados como tais22. À evidência, não se pode jamais resumir o direito como um conjunto de leis, tampouco se pode conceber que a justiça é mais ou menos garantida desde que existam leis. Nada disso se mostra real e verdadeiro, pois o jurista, não importando a função que exerça nas mais diversas relações jurídicas – juiz, procurador, promotor, advogado, defensor, delegado, entre tantas outras – exerce um papel singular na construção do sistema jurídico. É exatamente assim que o Direito se apresenta: fruto da atividade intelectual e cultural do jurista que nem de longe está imune a uma série de fenômenos e transformações sociais. E a justiça traduz um verdadeiro sentido e fundamento para o sistema jurídico, de maneira a lhe possibilitar uma concepção que não se encontra, necessariamente, restrita a um modelo concebido no contexto de ordens coercitivas, isto porque, não é um conjunto de leis que assegura a eficácia da Justiça, mas somente as relações humanas que se conformam aos mais singulares valores da sociedade é que estão abertas ao Infinito e à Humanidade e, pois, podem traduzir o verdadeiro sentido do justo. 2. Como Utilizar este Livro Esta obra apresenta os conceitos jurídicos fundamentais para a melhor compreensão das questões mais importantes do Direito. O destinatário deste livro é, por excelência, o estudante ingressante do Curso de Direito ou o estudioso que pretende revisitar a Teoria Geral do Direito. A obra é composta de 14 capítulos que objetivam, a partir dos títulos que compreendem cada um desses capítulos, traçar o panorama do fenômeno jurídico, desde a compreensão de seu conceito, passando por sua função, estrutura, criação, sistematização e fundamentação, o que é temperado por uma linguagem simples e metodologia que privilegiam a abordagem essencialmente didática, sobretudo a partir de variados exemplos, bem como a remissão legislativa pertinente,tudo com o escopo da melhor compreensão de cada um dos tópicos. Os capítulos – que nesta obra são representados pelo símbolo § – são compostos de subcapítulos próprios para o desenvolvimento de todas as temáticas que compreendem a Teoria Geral do Direito. Cada um dos capítulos é iniciado com o pensamento dos grandes juristas, com o escopo de permitir ao estudante – e bem assim ao estudioso – dialogar com as mais importantes teorias do Direito. No final de cada um dos capítulos, apresenta-se o item em síntese (ressalvada nesta parte introdutória e no último dos capítulos), com o propósito de traçar a síntese dos principais tópicos – mas que não dispensa, em hipótese alguma, a leitura e discussão de todos os capítulos na sua íntegra. Sejam muito bem-vindos à Teoria Geral do Direito. - 19 RÉMY CABRILLAC, Qu’est-ce qu’une introduciton au droit?, p. 3. 20 Nesse sentido confira JÜRGEN HABERMAS, Direito e democracia, Vol II, p. 307. 21 GUSTAV RADBRUCH, Introdução à ciência do direito, p. 1. 22 KARL LARENZ, Metodologia da ciência do direito, p.130. § 1º Conceito de Direito Pensar um objeto e conhecer um objeto não são a mesma coisa 23 . IMMANUEL KANT Direito é, pois, a realidade que possui o sentido de estar ao serviço do valor jurídico, da Ideia do Direito 24 . GUSTAV RADBRUCH 1. Etimologia da Palavra Direito As palavras, termos e expressões em Direito têm singular significação. Metaforicamente, o estudante de Direito fará uma extraordinária jornada durante cinco anos, ficando imerso em meio à descoberta, conhecimento e construção de um universo jurídico. Cada passo será marcado pela aquisição de vocabulário, sem jamais perder os atributos da leveza, elegância e eloquência. E eis aqui, o seu primeiro desafio: o que significa “direito”? Etimologicamente, a palavra direito deriva dos vocábulos do baixo-latim rectum e directum, tendo sua origem na raiz reg, que traduz a ideia de movimento em linha reta e daí advieram muitas palavras, tais como rei, reger, regime, régua, relha, dirigir25 e se afigura como uma verdadeira metáfora, uma vez que designa aquilo que é reto, isto é, que se encontra conforme às regras, exprimindo, assim, uma noção preliminar de dever ser. E rectum, diferentemente de directum, tinha um sentido mais moral do que jurídico, tanto que também significava, apropriadamente, o bem moral, o justo, a razão26. Ambos vocábulos influenciaram, historicamente, a maioria dos idiomas modernos: direito (português), diritto (italiano), derecho (espanhol), droit (francês), drejtë (albanês), dret (catalão), dereito (galego), dreapta (romeno), dritt (maltês), right (inglês), recht (alemão), rechts (holandês). Além desses vocábulos, há outro termo latino para designar o direito: ius (ou jus27), do qual deriva justiça, juízo, juiz, julgar, jurar, perjurar, julgamento, jurídico, judicial, judiciário, jurisdição, jurisprudência, jurisconsulto, entre outros28. Malgrado a riqueza cultural aqui exposta, nenhum dos vocábulos consegue definir, com precisão, o que vem a ser o Direito.. Para agravar ainda mais essa situação, a palavra Direito traduz um significado afetivo favorável o que, por si só, acarreta uma grande imprecisão, especialmente porque se abrange ou se ignora de sua denotação todos os fenômenos conforme o significado afetivo favorável ou desfavorável29. Divergem os juristas, filósofos, sociólogos e outros pensadores sobre o seu verdadeiro conceito. Justifica-se a polêmica do conceito do Direito, ainda, levando em consideração a correlação entre o Direito e a moral. Se de um lado as teorias positivistas defendem a total separação entre o Direito e a moral, as teorias não positivistas defendem a sua vinculação, o que determinaria um conceito contendo, pois, elementos morais30. A este respeito, HERBERT HART dedicou uma obra integralmente à busca do conceito do Direito que, por meio do viés crítico e apoiando-se na vertente normativa, procurou redefini-lo, elucidando-o pela união de regras primárias (normas de conduta, correspondendo a uma forma singela de controle social) e secundárias (regras de reconhecimento, de alteração), tendo como ponto de partida as falhas da concepção tradicional do Direito, em especial a tradicional concepção do Direito com gênese nas ordens coercitivas do soberano31. Essa obra, lançada em 1961, foi deveras impactante, dando origem a uma multiplicidade de publicações que nem de longe foram convergentes, com destaque especial ao maior crítico dessa teoria, RONALD DWORKIN, para quem, à luz de uma perspectiva pragmática e sem se desviar do jusmoralismo, o Direito está assentado nos costumes sociais, no consenso político e na moral de um povo32. Entre nós, tentando superar os problemas quanto à conceituação do Direito, ANDRÉ FRANCO MONTORO, propôs a concepção analítica do Direito a partir de cinco distintas realidades: justiça, lei, faculdade, fato social e ciência33 e MIGUEL REALE, por sua vez, edifica uma solução sintética, consistente na tridimensionalidade do Direito: fato, norma e valor que se interligam e se correlacionam34. Já se afirmou, aqui, que o Direito é um fenômeno essencialmente cultural. Ele é fruto da intervenção humana, dentro de um universo de objetos e coisas que não são feitos pela natureza, mas que, como genuína expressão de intencionalidade humana, tem sua gênese na criação humana e todos eles possuem um sentido, uma significação, um propósito35. Bem por isso, acreditamos que o conceito do Direito, assim como qualquer outro instituto que detenha a mesma natureza cultural, somente será perfeitamente compreendido se o construirmos a partir de uma prévia ideia elementar, que decorre da experiência e tradição cultural humana. 2. Ideia Elementar de Direito Conhecer é conquistar uma verdade que supomos encontrar-se fora de nós. Dentre as possibilidades do conhecimento, sobreleva citar duas distintas categorias: senso comum (conhecimento vulgar) e conhecimento científico (ou técnico). A primeira hipótese nasce de maneira espontânea em nosso meio social e nos fornece a maior parte das noções de nosso cotidiano, ao passo que a segunda, é aquela edificada por uma linguagem essencialmente artificial e peculiar, desenvolvida por um forte rigor metodológico. Em ambas as possibilidades do conhecimento, há sempre uma correlação imprescindível: um sujeito e um objeto. Por meio do senso comum é em geral pensado um objeto e, em segundo lugar, nasce intuitivamente uma ideia. Somente após a formação de uma ideia é que se tornaria possível se chegar ao conhecimento científico e, pois, permitir ao cientista a elaboração de conceitos. Assim, qualquer estudante universitário que pretenda trilhar os caminhos do conhecimento científico deve conhecer uma noção preliminar da realidade que o cerca, irradiando, assim, uma ideia elementar para, posterior e metodologicamente, promover a construção de um conceito técnico integrador do objeto pensado. E qual seria, então, a ideia elementar de Direito? O Direito é um fenômeno essencialmente cultural, o que lhe possibilita fomentar diversas ideias que permeiam a estrutura social da humanidade ao longo da sua história. Numa primeira perspectiva, faz parte do senso comum afirmar que a ideia do Direito não pode ser distinta da de justiça – havendo quem sustente, aliás, que o Direito deriva da própria Justiça, como se infere da seguinte máxima de ULPIANO (150-223): Iuri operam daturum prius nosse oportet, unde nomen iuris descendat. Est autem a iustitia appellatum: nam, ut eleganter Celsus definit, ius est ars boni et aequi36. A justiça não é apenas uma categoria de virtude universal por meio da qual a vida social se pauta37 mas, concretamente, um valor entre os mais significativos de nossa sociedade, de onde se afirma a busca de valores correlatos, sobretudo a igualdade38, manifestando-se propriamente só onde se encontram as ações e exigências de mais de um sujeito, com a função específica de outorgar a proporcionalidade, sem perder de vista os atributos de alteridade, bilateralidade, paridade e reciprocidade39. Masa justiça sem a força é impotente40, daí que a ideia de Direito também está correlacionada às ideias de ordem e lei. Mais precisamente, seria possível arriscar, ainda que prematuramente, que o direito é um conjunto ordenado de leis para se garantir a justiça.41 Assim, além de se idealizar o valor do justo para o Direito, torna-se imperioso estruturá-lo por meio de um poder capaz de assegurar adequadamente o que foi estabelecido42, o que nos remete à personificação da ideia mais representativa do Direito – uma lei ou regra. Realmente, sob o impulso do senso comum o Direito é justiça – mas ao mesmo tempo é lei e ordem, formando um instrumento específico da convivência social, estabelecendo regras obrigatórias e limitadoras para a atuação de cada um de seus membros. Por fim, não menos importante, é fundamental a compreensão de que ideia de Direito somente pode se desenvolver no único ambiente possível, mais precisamente, em sociedade. O exemplo utópico de Robinson na ilha deserta não interessa, em princípio, à ciência jurídica, até o momento em que se dá uma interação social fundamental: o encontro com o Sexta-Feira. A pessoa, sob a perspectiva do universo, não representa originalmente mais que uma entre inúmeras outras nervuras que formam o esplendor da vida43 e, como tal, atua sobre a natureza, para sobreviver enquanto espécie. Essa atuação não se verifica apenas pelo viés biológico, mas, essencialmente, se desenvolve de maneira consciente, isto é, o ser humano tem consciência de que transforma a natureza para adaptá-la às suas necessidades. Se essa consciência se afigura ora como um poder totalmente estranho, onipotente e inabalável, com o qual o ser humano se relaciona de um modo puramente animal, ora como uma necessidade de firmar relações com os indivíduos que o cercam44, a verdade é que ela trará a definitiva distinção para com os demais animais: a experiência será transmitida às futuras gerações essencialmente por meio da cultura. Dentro desse contexto, o ser humano não vive definitivamente isolado, tratando-se, apropriadamente e por natureza de um animal político, destinado a viver em sociedade45, de maneira que, como fenômeno social, o Direito não existe senão na sociedade e jamais poderá ser cogitado fora dela: ubi societas, ibi ius46. Sob a perspectiva dos indivíduos, o Direito é um fenômeno singular na vida das pessoas, tutelando cada indivíduo desde a concepção e enquanto estiver no ventre materno47, seguindo-se desde o nascimento e advento de sua personalidade jurídica, acompanhando por todas as eventualidades e vicissitudes em sua vida, disciplinando a sua capacidade para a contratação de obrigações em geral e a fruição de direitos, e até mesmo após a sua morte. Também regra o direito de estar só, como também lhe assegurará as prerrogativas para estabelecimento de entidade familiar, matrimonial ou mediante união estável, assim como permitirá a anulabilidade do matrimônio se atendidos os requisitos da lei, bem como facultará a dissolução dessa união. O Direito fixa um manto de proteção contemplando os mais diversos valores patrimoniais e extrapatrimoniais, tanto no âmbito do direito privado como do público: liberdade, vida, corpo, integridade física e moral, honra, imagem, nome, intimidade, privacidade, propriedade intelectual, herança, patrimônio, dignidade sexual. Os incapazes gozam de proteção especial, assim como a família é instituída como a célula mais importante da sociedade. Da mesma forma, o Direito tutela as mais diversas possibilidades de atividade empresarial, com ampla assistência às pessoas jurídicas, como também disciplina a relação de emprego, de trabalho e todas as prerrogativas aos empregados, entre tantas outras regras. Ainda sob o viés das relações privadas, o Direito dispõe sobre a modulação de vontade nas mais diversas formas, tais como a venda e compra, permuta, prestação de serviços, locação de imóveis e móveis, depósito, empréstimo, arrendamento, entre outras. Sob uma perspectiva mais complexa, o Direito estrutura e organiza o Estado, delimitando sua gestão, competências, esferas de poder, relações internas e externas, assim como também regula as dimensões dos direitos fundamentais, sociais, políticos, nacionalidade, definindo a ordem social, defesa do Estado, tributação e orçamento, ordem econômica e financeira, entre outras regulamentações. Sofisticada, permanente e ilimitada se mostra a atuação do Direito em face do indivíduo, da sociedade e, bem assim, do Estado, nos parecendo que o Direito se apropria dos desígnios do indivíduo – só que não: é apenas o espectro da proteção aos valores mais importantes e significativos em nossa sociedade, porquanto ele se afigura como o fundamento maior da ordem social. Por conseguinte, fica suficientemente claro que a ideia do Direito não se distancia da ideia de justiça e, ainda, encontra-se essencialmente lastreada nas ideias de lei, ordem e sociedade, sem perder de vista a elementar estruturação empregada ao Estado. Mas nenhuma ideia de Direito se mostra perfeitamente pertinente se não for acompanhada, essencialmente, de um panorama da sua contemporaneidade. A ciência do Direito, já foi dito, está em constante evolução, de maneira que a formulação de sua concepção deve, necessariamente, se render à adequação temporal. 3. O Direito na Contemporaneidade 48 O positivismo jurídico inundou a ciência do Direito, a partir do final do século XIX, com teorias que, em essência, objetivavam excluir todo o enfoque ideológico do direito, com o intuito de revelar claramente a sua protagonista e objeto maior do jurista: a norma jurídica. Além disso, vislumbrava-se que o Direito somente poderia ser conhecido e classificado por meio de seus referenciais técnicos e objetivos que lhe fundam e lhe dão sentido: a norma e suas variáveis normativas, como os costumes, a jurisprudência, o contrato, os princípios gerais. Para essas teorias, a política, a sociologia, a história, a filosofia e, por conseguinte, a ética e a justiça, são referenciais estranhos ao direito. Estava lançada, assim, a pedra fundamental de uma ciência pura, que tinha por escopo ordenar e garantir a segurança da sociedade. Foi um tempo em que a positivação da norma jurídica bastava para outorgar e estabelecer a ordem – sobretudo quando servia como mecanismo de simulação para dar legitimidade a diferentes ordens, inclusive aquelas revestidas de autoritarismos e tiranias. A ideia de direito estava alicerçada mais a um instrumento de dominação do que de distribuição de justiça, propriamente dito. Sob o prisma da validade formal, eficácia e existência, o direito estava reduzido a um conjunto de normas. Mas isso não perdurou por muito tempo. O século XX, que ao mesmo tempo foi palco de intensa evolução social, cultural e tecnológica, flertou com a morte, a dor e a destruição em massa, em manifesta desumanização, atravessando duas grandes guerras, entre tantos outros conflitos, a ponto de ser identificado como século sangrento49. Cessada a segunda grande guerra e por ocasião dos Julgamentos de Nuremberg50 que tinham por finalidade processar e julgar os membros da liderança política, militar e econômica nazista, por todos os crimes cometidos contra a humanidade, toda a aparente fortaleza dos fundamentos dessas teorias positivistas desmoronou. Afinal, como sustentar a legitimidade de ordens que, de uma só vez, atentaram covardemente contra a humanidade e conspiravam cruelmente contra o protagonista de toda a proteção do direito, isto é, o ser humano? Mas não bastava simplesmente reconhecer os crimes contra a humanidade. Era preciso declarar51 e não necessariamente legislar que a pessoa humana traduz o valor fundamental da ordem jurídica e que o direito à vida, ao lado de tantos outros direitos, faz parte dos chamados direitos humanos básicos que deverão ser respeitados e garantidos por todos os povos. Nessa ordem de ideias, adotou-se e proclamou-se a Declaração Universal dos Direitos Humanos52, em 10 de dezembro de 1948 pela ONU – Organização das NaçõesUnidas, especialmente com o escopo de se atingir novos paradigmas ideológicos. À evidência que esse momento não é histórico apenas para a humanidade, mas sobretudo para a ciência jurídica, na medida em que se viu florescer novas perspectivas para a compreensão do fenômeno jurídico, já que a norma jurídica, protagonista, pois, da teoria positivista jurídica, não mais se mostrava apta e adequada para abarcar toda a ciência jurídica. E assim é que posteriormente a esse histórico momento, firme na concepção de frustração da teoria positivista jurídica, novas opções teóricas surgiram, lastreadas sobretudo na releitura das estruturas normativas que posicionam o jurista para além da sua delimitada atitude cognoscitiva fundada em juízos de fato, alcançando-se, assim, juízos de valor. 4. O Conceito de Direito IMMANUEL KANT, o principal filósofo da era moderna em sua genial Crítica da Razão Pura (1781), ironizava a propósito dos juristas que ainda buscavam uma definição do conceito de direito53. Anos mais tarde, KANT retorna a essa mesma temática ao escrever Metafísica dos Costumes (1785), tendo aí confrontado a questão “O que é o Direito?” com a outra famosa indagação: “O que é a verdade?”54. O pragmatismo kantiano centrado na ideia de uma justificação do conhecimento (O que é o Direito) por meio da verdade, é retomado por HABERMAS, para quem o conceito de conhecimento como representação é indissociável do conceito de verdade como correspondência55, de maneira que a função pragmática de conhecimento se mostra indispensável para o seu aprendizado. Daí, portanto, que a construção do conceito de direito está ligada necessariamente à ideia do Direito estabelecida a partir do senso comum, sem perder de vista a atmosfera da sua contemporaneidade. Assim, como visto, a Ideia elementar do Direito passa necessariamente pela perspectiva de justiça, lei, ordem e sociedade e, considerando que o seu conceito é essencialmente cultural, deverá ser completada com outros elementos que se mostram essenciais e característicos56: Direito é a ordenação cultural das normas e princípios jurídicos que regulam a vida social no Estado, com base nos valores fundantes e contemporâneos da sociedade. À guisa de melhor compreensão, promoveremos uma reflexão analítica desse conceito: i) o Direito é a ordenação cultural: As normas jurídicas não existem de maneira isolada, por mais específico que seja o alvo de sua abrangência. Há um contexto maior, mais denso e bem mais complexo enfeixando um conjunto de várias normas jurídicas, que guardam entre si um determinado referencial de especificidade57. Destarte, o Direito se afigura como um sofisticado instrumento da convivência social e compreende um complexo sistema de normas jurídicas, que foram objeto da criação humana – e não da natureza ou divindade; ii) das normas e princípios jurídicos: as normas e os princípios jurídicos constituem as fontes do Direito e, por meio delas, revelam a essência e obrigatoriedade do Direito. Têm como gênese as regras de convivência que nasceram, na sua tradição cultural, pela convivência humana na sociedade. Atualmente, a principal diferença entre os princípios e as normas está atrelada à noção de abstração, sendo que o grau de abstração do princípio é bem mais amplo e vasto que o das normas jurídicas. De qualquer forma, ambos os termos irradiam a tese de que o Direito é composto por normas e princípios jurídicos que, numa primeira análise, têm natureza de verdadeiros preceitos e mandamentos obrigatórios, sujeitando o seu violador, usualmente, a uma consequência direta do descumprimento, isto é, uma sanção jurídica. É o caso, por exemplo, da prisão no direito penal ou a reparação de danos no direito privado; iii) que regulam a vida social no Estado: como já assinalado, o Direito se apresenta como um sofisticado instrumento de controle social, tutelando cada indivíduo em todas as suas necessidades, seja no âmbito do direito privado comum, no direito privado empresarial, no direito público, no direito interno e direito internacional; iv) com base nos valores fundantes e contemporâneos da sociedade: atualmente, vivemos a era que deve resgatar o enfoque valorativo do Direito que havia se esvaziado em meio às teorias puramente normativas e certamente a justiça se apresenta como um dos valores genuinamente mais importantes, fundando-se como verdadeira essência e núcleo do Direito. Vivemos, pois, em um tempo em que a Ética não pode ser concebida senão dentro de todas as nossas relações humanas. Não se trata, portanto, de desconstrução, mas da superação aos limites objetivos do sistema jurídico para possibilitar a sua interpretação com a reintrodução da justiça58 e da busca incessante dos valores éticos para a construção de um ordenamento, por meio da intersecção das regras jurídicas, sem jamais perder de vista os valores e princípios que permeiam a nova hermenêutica e a teoria dos direitos fundamentais, que parte de nossos juristas intitulam de pós- positivismo. É essa a (nossa) concepção contemporânea do Direito. 5. A Busca do Valor Ético do Bem O jurista não é apenas um bacharel em Direito, mas um verdadeiro operador que manuseia as suas fontes, promove a integração jurídica, construindo e alicerçando todas as nuances e dificuldades do sistema normativo. Ele atua diretamente sobre o Direito, seja sob a perspectiva teórica como pensador, filósofo ou mesmo professor, seja sob o manto da experiência prática, como advogado, promotor, juiz, delegado, procurador, professor, entre tantas outras funções que dignificam as carreiras jurídicas. Seja qual for o seu mister profissional, o jurista não é melhor – nem pior – do que o administrador, o engenheiro, o arquiteto, o psicólogo, etc. O jurista é o profissional que, atento à sua formação propedêutica com forte carga humanista, olha para uma norma de nosso ordenamento jurídico e consegue dela extrair o seu verdadeiro e justo alcance, cotejando a realidade cultural e os valores que lhe dão sentido. Dentre os valores éticos, lógicos, estéticos, do bem, da verdade e do belo, certamente o valor ético do bem compreende os demais59 e se converterá na incessante busca do jurista. Ora, se a cultura é o genuíno tempero da humanidade, que permeia a solidariedade e que também flerta com a barbárie, são os valores que fazem toda a diferença para o jurista. Afinal, o que se espera do jurista, seja qual for o seu mister profissional, é uma decisão – tal como ocorre em outras profissões, como o médico, o engenheiro, etc. Mas a decisão do jurista não está lastreada, apenas, de conteúdo científico. É ela, antes de mais nada, uma decisão eminentemente valorativa, cujo conteúdo será a realização do justo, permeada na incessante busca do valor ético do bem. À evidência, há quem se desvia desse escopo e, em vez de perseguir a realização do justo, transforma o Direito em verdadeiro instrumento de dominação, destoando, sobretudo, da velha e sábia lição: just est realis et personalis hominis ad hominem proportio: quae servata, hominum servat societatem, et corrupta corrumpit60. A síntese foi elaborada por DANTE ALIGHIERI e deve ser objeto de reflexão para a melhor compreensão do Direito. Em nossa versão: o Direito é uma proporção real e pessoal, de pessoa para pessoa que, conservada, conserva a sociedade; corrompida, corrompe-a61. Não se cuida, pois, de qualquer relação interpessoal, mas daquela que fomenta uma justa proporcionalidade, mantendo-se harmoniosamente a vida em sociedade. O Direito conduz a vida social, atribuindo a todas as pessoas reciprocidade de poderes, direitos, deveres, obrigações, prerrogativas. Na medida em que a proporção não for mantida, estaremos diante de uma frustração quanto à realização do justo, dado que abandonado o valor ético do bem como busca pelo jurista, alcança-se o estado de corrupção pessoal e social. 6. Em Síntese − Etimologicamente, a palavra direito deriva dos vocábulos do baixo- latim rectum e directum, tendo sua origem na raiz reg, que traduz a ideia de movimento em linha reta