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COLEÇÃO JÚLIO BARREIRO EDUCAÇÃO E TEMPO PRESENTE/14 ORIENTAÇÃO Osmar Fávero e Maria de Lourdes de A. Fávero CAPA Ziraldo EDUCAÇÃO POPULAR E CONSCIENTIZAÇÃO Tradução de CARLOS RODRIGUES BRANDÃO FICHA CATALOGRAFICA CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. Barreiro, Júlio. B255e Educação popular e conscientização / Júlio Barreiro; tradução de Carlos Rodrigues Brandão. Petrópolis: Vozes, 1980. (Educação e tempo presente; 14). Bibliografia. 1. Educação e estado 2. Sociologia educa- cional I. Título II. Série. CDD - 370.193 379.24 CDU 37.015.4 Petrópolis 80-0277 37.014 EDITORA VOZES LTDA. 1980É sobre estes pontos de aproximação entre as di- 1. Educação Popular: algumas versas experiências que, significativamente, sur- giram de baixo para cima, na medida em que se alternativas para a América Latina foram criando em nossas sociedades novos siste- mas educativos impostos de cima para baixo pelas classes dominantes, inventados ao ritmo do desen- volvimento dos diversos regimes autoritários que sofremos atualmente em nossos países lugar onde sempre tivemos a clara consciência de nos estar movimentando em uma área profunda e anun- ciadora da vida de nossos povos. Por último é preciso dizer algumas palavras sobre os verdadeiros autores deste livro. Fomos todos, de "Caso quiséssemos estudar um destes grupos de Cultura uma maneira ou de outra, em maior ou em menor que se encontram em certas fábricas, não estaríamos quites grau, integrantes de grupos de base de Educação com velho slogan: os operários acreditam que lêem (por- Popular, que estivemos trabalhando durante tem- tanto que objeto coletivo é cultural) ; de fato eles apenas po assinalado no começo desta apresentação, em retardam em si mesmos a tomada de consciência e a cinco países da América do Sul, em zonas urbanas, emancipação do proletariado. Pois é bem verdade que eles retardam em si momento de tomada de consciência: mas suburbanas, rurais e também com grupos margi- é bem verdade também que eles lêem e que suas leituras nalizados. Participaram nas diversas experiências se produzem no seio de uma comunidade que as favorece equipes interdisciplinares formadas por educadores, e que se desenvolve nelas". sociólogos, economistas, politólogos, técnicos agrá- (Sartre, A Questão do Método, p. 68) rios, psicólogos, assistentes sociais, lingüistas, espe- cialistas em problemas de migração interna, urba- nistas e teólogos. 1.1 EDUCAÇÃO ALGUNS PRESSUPOSTOS NECESSÁRIOS JÚLIO BARREIRO setembro 1973 Comprometidos com projetos de educação, dirigi- dos a populações adultas e geralmente considera- das como «marginalizadas» de processos nacionais de desenvolvimento, há, hoje em dia, uma apreciá- vel quantidade de instituições, grupos e pessoas em todos os países da América Latina. Os motivos pelos quais foram conduzidos a este tipo de trabalho popular são diferentes, às vezes 17opostos, se considerarmos grupos semelhantes em «para desenvolvimento máximo das potencialida- suas aparências de ação, dentro de um mesmo país. des humanas», ou simplesmente «para aperfei- çoamento da personalidade». Acontece com a Educação mesmo que costuma ocorrer ao longo da história de outras áreas con- b) Quando sociedades em industrialização come- fluentes do quefazer humano alguns pressupos- çaram a exigir uma quantidade progressivamente tos, que na realidade são constituídos como os mo- aumentada de mão-de-obra especializada, a educa- tivos principais da ação, ou não se tornam explí- ção passou a ser estendida às «classes sociais me- citos de forma alguma, mesmo para muitos de seus nos favorecidas» e começou a ser também inter- praticantes mais diretos, ou se explicitam apenas pretada cada vez mais como uma técnica social para um número muitíssimo reduzido de pessoas ou, se quisermos, como uma entre outras técnicas que manejam os significados essenciais e divulgam mediante as quais grupos sociais exercem controle apenas as explicações secundárias. sobre outros grupos sociais. Algumas vezes, somente quando novas exigências c) ingresso de algumas sociedades em uma eta- sociais impõem esclarecimento da justificação de pa de capitalismo de expansão monopolista, ou de uma atividade, prática ou técnica social, é que o sistematização de processos de mudança sócio- seu verdadeiro significado aquele que sempre econômica, tem provocado aparecimento e a di- orientou sua vigência começa a ser divulgado e fusão acelerada de um novo enfoque para a edu- reinterpretado. cação: ela é um investimento econômico, e as suas alternativas de ação são deslocadas para critérios Uma análise mais crítica das explicações que a de rentabilidade a curto ou médio prazo, na me- educação tem recebido em diferentes sociedades ou dida da retribuição que ela possa fazer ao sistema em diferentes conjunturas históricas de uma mes- capitalista que a sustenta. ma sociedade demonstraria que, além da maneira de praticar a educação, próprio modo de inter- Com base na maneira como seus promotores inter- pretá-la varia sistematicamente na mesma medida pretam a estrutura e as relações sociais, e a partir em que se modificam os seus usos sociais. de como projetam a continuidade ou mudanças dessa estrutura e relações, os grupos de educação Em termos de aplicação mais abrangente e menos dirigida a adultos distribuem-se ao longo de uma rigorosa é possível descobrir a seguinte cadeia de escala ampla e matizada de perspectiva pedagógi- ca e compromisso social. a) Durante todo tempo em que a educação foi Com relação a essa variação há dois pontos que um indiscutível privilégio de alguns representan- deveriam ficar claros ainda nos primeiros momen- tes da «classe ociosa», os seus teóricos tendiam a tos de nossas reflexões. primeiro deles nossa considerá-la como um instrumento ou um caminho interpretação da Educação Popular parte da pró- 18 19pria prática de alguns grupos de educadores, aos e) programas de Educação Popular podem se cons- quais retorna, como «uma ação que se pensa a si tituir como um dos instrumentos de formação- mesma». que caracteriza, em grandes linhas, os organização do povo, ao longo de sua própria ação grupos a quem nos dirigimos é que tentaremos transformadora. sintetizar logo a seguir. segundo ponto toda prática educativa tem uma explicação política. É As cinco idéias-base apresentadas não são novida- que añalisaremos no próximo item. de alguma para quantos estão comprometidos com um programa de liberação do homem latino-ameri- Ao procurar algumas constantes que caracterizem cano, calcado sobre uma compreensão os grupos e as pessoas a quem nos dirigimos espe- zada» das contradições de suas sociedades e das cificamente, encontraríamos certamente pelo menos ações necessárias para superá-las efetivamente. as seguintes idéias Elas poderiam ser também complementadas com mais algumas reflexões que insistimos são a) há transformações justas e necessárias que mais o resultado do trabalho de grupos compro- precisam ocorrer na América Latina e elas devem metidos com a Educação Popular, do que uma teo- modificar essencialmente as bases estruturais das rização acadêmica a seu respeito. sociedades onde se localizam as contradições sócio- econômicas e culturais dos sistemas vigentes em A ação de transformações estruturais faz-se na quase todos os países; História: ao longo de um período determinado de tempo e dentro de estruturas sócio-econômicas. As b) as transformações estruturais a realizar devem sociedades em que elas se realizam, ao mesmo tem- se constituir como um verdadeiro «programa his- po em que mantêm e organizam as contribuições tórico» assumido pelo povo, como uma tarefa sua, dos modos de relações, dos homens com a nature- e através da qual ele se transforma progressiva- za, e dos homens entre si, estabelecem pelo menos mente em sujeito de sua própria ação; algumas das próprias bases de sua modificação; c) para que povo possa conquistar e desenvolver Uma ação transformadora de estruturas sociais, essa ação transformadora precisa passar a níveis compreendida como tarefa de responsabilidade po- de ação coletiva cada vez mais organizada, mais pular, é tanto mais autêntica e eficaz quanto mais abrangente e mais crítica; estabelecidas sobre a viabilidade de participação mobilizada e crítica a seus agentes. A Educação d) conseqüentemente, uma das tarefas mais neces- Popular pode ser, concretamente, um instrumento sárias para aqueles que se colocam a serviço desse de desenvolvimento da consciência crítica popular, «projeto de liberação» é a preparação de grupos na medida em que aporta instrumentos para que populares capazes de se constituírem como agentes os agentes populares de transformação sejam ca- conscientes e críticos de todo processo de mu- pazes de viver, ao longo de sua ação, essa dinâ- danças sociais; mica do concreto na relação ação-reflexão: 20 21crítica da realidade social vigente, ação mobilizada de transformação pessoal que se torna progressivamente mais com- da realidade social, plexa. A Educação Popular assume, portanto, a ta- revisão da ação realizada, refa de cuidar dessa instrumentalização, de modo reformulação da ação transformadora, aparentemente semelhante ao de alguns programas reavaliação crítica da realidade social... tradicionais de Educação de Aultos, mas através de outros processos, porque os objetivos da própria Em termos práticos, é possível conceber uma instrumentalização são outros. Expliquemos que Educação Popular participante como forma de ação queremos dizer aqui: na quase totalidade dos pro- transformadora, na medida em que ela cria situa- gramas tradicionais de Educação de Adultos os ções para permanente reflexão-revisão dos dois objetivos sociais são resumidos em uma «maior pólos: realidade existente-ação necessária. adequação» do homem do povo aos problemas e bens que sistema opressor impõe e oferece. Um dos problemas mais sérios na conquista homem aprende a «viver melhor» em um sistema dessa ação transformadora é a constituição de um que oprime essencialmente. Ele aprende a nível inicialmente mínimo de organização popular. dificar-se para que sistema sócio-político não Como uma de revisão e ação permanen- precise transformar-se. te», um programa de Educação Popular pode ser um dos instrumentos úteis para essa organização Um programa de Educação Popular tem como fun- inicial, e para sua progressão. damento a necessidade e a possibilidade de que sistema seja transformado pelo povo, para que ele A ação popular transformadora deve represen- possa plenamente transformar-se em agente de sua tar sempre um novo projeto global de relações so- própria história. Toda a instrumentalização da ciais que se opõe, nas sociedades classistas, às inter- Educação Popular deve procurar, em última aná- pretações correntes da realidade social. A Educação lise, uma maior inadequação ao sistema opressor Popular pode ser um dos instrumentos de re- e, ao mesmo tempo, uma adequação maior aos significação da própria realidade social, na medida processos através dos quais se mobiliza a ação em que se constitui como uma situação organizada transformadora. do encontro de pessoas que se empenham coletiva- Esses são apenas alguns primeiros mente na tarefa de «transformar o mundo». Ela de Acreditamos que são comuns pode ser ainda, na mesma medida, um importante entre aqueles que os definiram com a sua própria instrumento de co-significação deste mundo «redes- prática libertadora. coberto», quando se transforma em uma situação organizada de difusão dos pólos: realidade social- 1.2 A DIMENSÃO POLÍTICA ação transformadora, re-significados. DO TRABALHO EDUCATIVO Ora, como essa Educação exige, fi- nalmente, de seus agentes, uma instrumentação Há uma idéia que está subjacente a tudo aquilo que dissemos até agora. Até mesmo na maneira de 22 23tentar caracterizar as pessoas a quem nos dirigi- das como necessárias e previstas para a manuten- mos, estivemos todo tempo com os olhos na idéia ção e desenvolvimento de uma determinada for- de que a atividade educativa tem usos sociais e ma de «vida social». Assim como a educação, há intenções políticas. Procuremos desdobrar com um vários outros «modos de intervenção sistematiza- pouco mais de cuidado essa afirmação perigosa- da» na organização das relações e das representa- mente categórica. ções sociais. No interior da sociedade, a educação se distingue desses outros «modos» pelo seu modo A simples observação da passagem progressiva de pedagógico próprio de intervir socialmente. interpretações da educação de acordo com os seus novos usos sociais sugere que a justificação atri- b) Uma dimensão de correspondência, no caso, buída ao processo educativo institucionalizado não política, na medida em que se combina com outros está nem na educação em si mesma, nem nas suas modos de intervenção social operacionalmente dife- possíveis respostas de «desenvolvimento pessoal». rentes, mas convergentes a um mesmo «objetivo social» a conservação dos elementos básicos da A análise sociológica mais atual compreende que estrutura social. é a sociedade mesma quem determina a maneira como os seus membros, individualmente, necessi- As respostas sociais interventoras não são deter- tam da educação, e os modos como cada um pode minadas na própria esfera de opção restrita de participar de seus processos (divisão social do cada um dos vários modos de intervenção social conhecimento). sistematizada. Com relação à educação, é evidente que não são os educadores que determinam Alguns sociólogos e educadores não tardaram em significado social dela e a maneira como será ofe- demonstrar que essas determinações não são feitas recida e realizada «oficialmente». «pela sociedade como um todo», mas respondem a perspectivas e interesses dos grupos dominantes. Essas respostas sociais não são igualmente deter- minadas pela «sociedade integral» em benefício de Assim como outros integrantes de um sistema so- «todos» os seus membros. São escolhidas e impos- cial são capazes de serem organizados como fatores tas pelos grupos sociais que defendem interesses de conservação ou modificação do próprio sistema, específicos de sua situação dentro da sociedade e com influência decisiva do modo de produção e que, ao mesmo tempo, controlam os modos espe- das relações de trabalho decorrentes, as institui- cíficos e os usos políticos da intervenção social. ções e os pocessos da educação possuem sempre, e em qualquer sociedade Um exemplo de constatação muito comum poderia esclarecer que foi afirmado. a) Uma dimensão de especificidade, em seu caso, pedagógica, através da qual a educação é aceita e Nas sociedades divididas em classes, alguns grupos praticada por processar relações sociais reconheci- dominam os meios de produção e controlam os 24 25modos de intervenção social. A educação, como um metas políticas. Como convencê-los de duas verda- destes modos, é «explicada» através dos seguintes des ao mesmo tempo tão desmistificadoras, como objetivos atribuídos a ela: capazes de constituir uma educação «para a ver- dade» e dirigida de fato a um povo que tem vi- 1°) A socialização de crianças e adolescentes com vido, em nosso continente, até agora, à margem propósito de integrá-las ajustadamente em seus dela, como de tantos outros direitos mínimos e ne- ambientes sociais; cessários de qualquer pessoa? A elevação do nível cultural da população em a) As determinações dos significados, usos e geral; modos da educação são estabelecidos na base de estratégias de manutenção de uma ordem social A preparação para formas cada vez mais classista e injusta em quase todas as sociedades aperfeiçoadas de participação nas atividades de latino-americanas. produção. b) A educação pode tornar-se um dos instrumen- Esses propósitos «educacionais» são desdobrados tos do processo de liberação do povo oprimido. Da em muitos outros e normalmente encobrem mesma maneira como tem sido «alienada» e apro- políticos» que podem inclusive permanecer não- veitada por sistemas oficiais de educação, assim conscientizados por muitos de seus controladores e também pode constituir-se em fator importante na realizadores práxis liberadora. 1°) controle ideológico dos grupos dominados é Se existe uma «explicação política» quase sempre feito sobretudo pela difusão sistemática da ideolo- explícita ao público para a educação escolar ofi- de crianças e adolescentes, cujos efeitos so- gia dos grupos dominantes; ciais mais importantes têm alguma vigência so- A formação condicionada de expectativas, aspi- mente a médio e longo prazo, pode-se esperar definições políticas bastante mais intensas e ime- rações e atitudes consoantes com o «destino atri- buído ao povo» pelos grupos dominantes; diatas quando se trata de programas de Educação de Adultos que, mesmo não sendo os mais impor- A formação de mão-de-obra qualificada para tantes em termos globais, são os de realização mais a aplicação em locais de produção sob controle e conflitiva, por se dirigirem especialmente a uma de interesses dos grupos dominantes. população economicamente ativa e com possibilida- des de interferência política também imediata. Aos olhos de muitos profissionais ou voluntários que reforça ainda mais essa base política dos pro- jetos de Educação de Adultos é fato de cada dedicados, com os melhores propósitos pessoais, à vez mais eles se organizarem na esteira de pro- educação, ela poderia manchar-se em seus objeti- gramas locais ou regionais de mudança social e vos «mais elevados», se aparecesse mesclada com desenvolvimento 26 27Os interesses que os grupos controladores dos pro- da» poderia «acabar» com a própria Educação gramas de Educação de Adultos têm, a respeito de Popular, isso porque um de seus princípios centrais seus resultados, concentraram uma atenção e um é de que ela não se define «a partir de si mes- cuidado maiores em tudo que envolve a sua reali- ma», mas de acordo com a estratégia que uma luta zação. Por outro lado, as mudanças de «significado» liberadora propõe, em cada uma de suas etapas. e «estratégia» da Educação de Adultos são mais rá- pidas que as da educação escolar, onde as mudan- Neste conjunto de reflexões sobre as relações entre ças mais comuns são apenas de ordem metodoló- os processos de conscientização e a Educação Po- gica. Não é difícil compreender que essas modifi- pular não cabe uma análise histórica (ainda por cações na definição dos próprios objetivos da Edu- ser feita, na América Latina) da Educação Popu- cação de Adultos são acompanhadas das modifica- lar. Mas seria certamente muito útil procurar ções que, politicamente, pretendem dar os que con- indicar alguns acontecimentos generalizados que trolam a educação às massas proletárias partici- mostram, com alguma clareza, a maneira como pantes de seus programas. grupos e pessoas modificaram, ao longo de sua prática educativa junto ao povo, as suas visões De tudo que se pode encontrar de verdadeiro a respeito desta própria prática. Antes de refletir até aqui, há uma reflexão sem dúvida mais impor- como processo de conscientização foi paulatina- tante ainda para quem pretende se comprome- mente se explicitando em bases estruturais, tome- ter com um projeto de liberação através da ação educativa. mos dois exemplos em que próprios conscien- tizadores se A Educação Popular é claramente compreendida hoje como um instrumento de contribuição imedia- ta a uma efetiva participação popular em proces- 1.3 DA EDUCAÇÃO COMO OPOSIÇÃO À EDUCAÇÃO de transformação da sociedade classista e PARA A EDUCAÇÃO COMO OPOSIÇÃO À SITUAÇÃO opressora. Ela se originou em boa parte da prática e das descobertas de grupos de cristãos compro- Voltemos inicialmente um pouco atrás para refor- metidos com intervenções sociais liberadoras, cada çar certas idéias. vez mais próximas de projetos realistas de parti- cipação nas transformações sociais. Mesmo os educadores que pouco se ocuparam em No entanto a atual de de pensar as contradições das sociedades onde reali- parte destes grupos foi uma lenta conquista, um zam a sua educação são acordes em educar-se a si mesmo na prática da Educação 1°) Que a educação parece manter relações de Popular. interdependência com a sociedade que a modifica Os pontos que relacionamos páginas atrás não re- e pode ser, de alguma forma, modificada por ela. presentam ainda uma definição acabada da Edu- Que parece ser inerente à educação desen- cação Popular. Na verdade uma definição «acaba- volver-se a partir de suas próprias funções apa- 28 29rentemente contraditórias, que são, por sua vez, Havia duas distorções na base deste deslocamento conseqüência da forma como ela se relaciona com inicial da Educação Popular, até uma esfera onde a sociedade. Assim a educação é ao mesmo tempo ela corria permanente risco de se transformar um renovador e assim ela em um «pedagogismo», sem dúvida alguma reno- é a um só tempo homogeneizadora (formada do vado, dentro da educação, mas inadequado, dentro «socius») e diferenciadora (formada do produtor da sociedade. especializado) 10 Um certo «utopismo pedagógico» que tem as As funções sociais vagamente reconhecidas pela suas raízes fincadas na certeza de que a educação maior parte dos responsáveis pela Educação Esco- é, em si mesma, um fator suficientemente deter- lar e pela Educação de Adultos foram, desde minante e orientador das transformações sociais início, mais crítica e radicalmente identificadas necessárias. corolário dessa interpretação tão por quantos começaram a criar um «projeto novo idealizada da educação é a idéia de que basta trans- em educação» A Educação Popular. Muitos dentre formar as pessoas (conscientizar) pela educação, estes chegaram à Educação Popular pelos degraus para que elas se convertam fatalmente em fator da Educação de Adultos de patrocínio governamen- decisivo na transformação de estruturas sociais tal ou religioso. Alguns desses programas eram opressoras. pedagogicamente inovadores mas sem terem uma clara visão política do processo de transformações Dito assim, em toda a sua nudez, a afirmação desse sociais. Foi a partir dessas experiências educacio- utopismo pedagógico pode parecer exagerada, para nais de «apresentação renovadora» e «projeção re- caracterizar grupos que existem ou tenham existi- formista» que algumas pessoas e grupos passaram do na realidade. Mas é fato que ela se dissolve em a uma Educação Popular caracterizada agora por inúmeras experiências, em geral bastante válidas seus projetos de vinculação a processos de liberação. dentro de um prisma puramente educativo, mas onde compromisso da educação com um projeto Para muitos grupos, entretanto, novo significa- de transformações sociais é definido, em última do de uma educação liberadora do homem oprimi- análise, a partir das possibilidades da própria edu- do não foi (e em certos casos não é, ainda) com- cação. E todos sabemos que «homem educado» preendido em toda a sua extensão e com a ne- não é necessariamente um homem envolvido num cessária e conseqüente participação no processo processo de libertação. político. Havia uma tendência comum após as crí- ticas que eram feitas às injustiças sociais a cen- Uma certa «subestimação da pedagogia» que tralização da ação educativa como uma oposição à parece se opor, pelo menos em parte, à tendência educação «oficial», como pólo oposto e solução pa- anterior, mas cujos resultados em geral se dissol- ralela, ao mesmo tempo, a um dos sintomas da vem de maneira muito semelhante. opressão existente na sociedade, sem aprofunda- mento do estudo das causas dessa opressão e da Mesmo quando se reconhecia a necessidade e a ação para superá-las. justiça de transformações sociais que modificassem 30 31todo sistema de relações de classes tomava-se mente, a sua fundamentação teórica, o sentido e as seguintes atitudes a estratégia de sua ação, e aspectos da meto- dologia de mobilização e formação de quadros a) ou se acreditava que essas transformações se populares. realizassem pela acumulação progressiva de mu- danças isoladas das várias «esferas» da sociedade, Em termos muito concretos, é possível apontar o como, por exemplo na agricultura, na política, na próprio núcleo das modificações que indicamos, na «consciência e atitude das sendo então a descoberta de que uma ação liberadora próxima aos missão do educador trabalhar para obter mudanças critérios que estamos defendendo não pode ser específicas dentro unicamente da educação; construída como «ита experiência mais autêntica b) ou se reconhecia que a atividade educativa era e mais eficaz» de educação ou de promoção humana dentro de um sistema de relações sociais, políticas suficientemente «elevada» para não se combinar e econômicas que destrói pela base a possibilidade com estratégias políticas de luta pelo poder, onde de existência de tudo que 0 ameaça. Uma educa- não eram conservadas as mesmas de ação ção popular que não serve como instrumento para e intenção» que a educação procura manter. que o povo se organize e mobilize para estabelecer Com as caracterizações que apresentamos, preten- um novo sistema de relações sociais serve apenas demos apontar algumas indefinições de trabalhos para que os sistemas opressores permaneçam em nossas sociedades. educativos que, mesmo comprometidos com uma decisão de participar com povo de sua própria liberação, acabavam deslocados de qualquer possi- A maturidade de muitos grupos de Educação Po- bilidade de resultados reais no sentido dessa li- pular foi alcançada simplesmente quando, condu- beração. E como é próprio da estrutura das socie- zidos por sua prática educativa, descobriram que dades de classe a institucionalização e incorpora- todo o compromisso com o povo deve ser traduzido na convergência de qualquer ação coletiva a um ção, em seu benefício, de tudo o que não a destrói, só projeto de determinação política, de possibili- seria oportuno perguntar quantas experiências de Educação Popular não terão sido também elas in- dades realistas de transformação estrutural e de destino liberador. corporadas e postas a serviço dos grupos opresso- res, mesmo quando isso pudesse parecer absurdo Poderíamos resumir tudo isso, e voltar até onde para os seus realizadores mais diretos? começamos ao dizer que grupos de prática educa- Não resta dúvida de que ocorreram modificações tiva e de perspectiva liberadora estão descobrindo importantes em grupos e movimentos de Educação modo político de comprometer suas ações de edu- Popular. Desde aparecimento das primeiras expe- cadores populares. riências continentais, até momento atual, a maior parte dos grupos reformulou, às vezes drastica- 32 331.4 A CONSCIENTIZAÇÃO subestimação da pedagogia que procuramos carac- DOS CONSCIENTIZADORES terizar linhas atrás. A problemas que se apresen- tavam na esfera educativa dever-se-ia opor, em Veremos no capítulo seguinte como a conscientiza- contrapartida, um modo de educação novo e re- ção tem sido empregada com freqüência para tra- novador. A um processo educativo de tipo ban- duzir certas modificações que devem ocorrer na cário opunha-se um processo revolucionário, libe- consciência popular. Por que não usar a mesma rador, como arma eficiente e capaz de conduzir idéia para expressar modificações correspondentes que, acreditamos, estejam ocorrendo com muitos transformações estruturais em outras esferas. grupos e pessoas dedicadas a trabalhos de educa- ção popular? A aproximação lenta, mas decisiva de um modo científico de análise da realidade social, provocou As definições políticas da ação educativa que indi- modificações também decisivas nos modos de inter- camos acima não se fizeram ao acaso, isso é certo. venção liberadora em todo Continente. Alguns Elas são tanto 0 resultado da prática de uma ação grupos de Educação Popular não tardaram a des- cada vez mais conseqüente, como serão cobrir que, para orientar seus programas como cia de reformulações da própria teoria da Educa- um instrumento eficaz de um projeto muito mais ção Popular. Essas reformulações devem indicar amplo do que «ele mesmo», era necessário conhe- mudanças de consciência política entre praticantes cer rigorosamente: como se estrutura a sociedade da Educação Popular de intenção liberadora. em seus vários níveis; qual é a dominante em um determinado momento histórico; como se dá a Durante algum tempo a maioria desses grupos ado- interdependência entre esses vários níveis; e quais tava um modelo de análise dos problemas da socie- são as bases determinadoras do sistema de domi- dade capitalista ao nível de Mais nação capitalista. Somente depois ou juntamente ainda, em alguns casos as contradições apontadas com a compreensão de um complexo processo de a este nível de relações culturais eram os indica- relações políticas, econômicas e sociais seria possí- dores quase únicos para a interpretação de toda vel encaminhar coerentemente uma luta de libera- a sociedade. A expressão teórica dessa posição ado- ção por um modo de educação. tada eram modelos ditos culturalistas de interpre- tação da realidade social. Tal esquema de análise A passagem de um modelo culturalista para um social não podia deixar de ser pouco preciso e modelo de tipo estrutural histórico de análise da pouco totalizador e por certo não poderia oferecer realidade proporcionou aos grupos que se acerca- perspectivas de ação capazes de conduzir a um processo das relações mais essenciais da socieda- ram deste último modelo condições operativas de de capitalista. A expressão prática de tudo isso foi reformulação do seu esquema teórico básico de aná- a organização de programas de Educação Popular lise social e de sua estratégia educacional. A conse- que se inclinavam para utopismo ou para a qüência inevitável foi a reformulação do próprio significado atribuído à Educação Popular. 34 35Mas tudo isso foi o reflexo apenas de algumas des- de elementos justificadores da opressão. No entre- cobertas ainda mais radicais e profundas. Procure- tanto, as classes oprimidas tendem a explicitar a mos chegar a elas. sua própria ideologia, sobretudo se contam com apoio de uma ciência social realista. Essa ideolo- Aprende-se muito com o povo, nessa tarefa comum gia popular, mesmo quando não está ainda clara, de liberação das sociedades latino-americanas. Essa já é um fator importante (quando não decisivo) afirmação é aparentemente demagógica, mas tem para a sua atuação política. É da sua explicitação um sentido muito rico quando aplicada à Educação que depende, em grande parte, a própria orienta- Popular. O sentido deste «aprender com povo» ção e eficácia da luta revolucionária popular. tem então uma força de descobertas que mudam rumo e a decisão de uma ação coletiva. Tal Por considerar a ideologia do próprio povo como como já afirmamos os movimentos e grupos de contraditória com valores humanistas e/ou cristãos Educação Popular aos quais nos dirigimos foram elementares, durante muito tempo tendeu-se a inicialmente de base e de vinculações de origem considerá-la também inaceitável a uma Educação cristã. Talvez essa tenha sido a razão pela qual Popular de cristã». grande desafio esses grupos estiveram algum tempo comprometi- que se propôs então a esses grupos estava justa- dos com uma ideologia ambígua que, ao nível dos mente no fato de que as interpretações de reali- princípios, defendia valores humanistas, mas que, dade de base humanista eram traduzidas em uma ao nível do compromisso concreto, revelavam-se teoria oposta aos valores capitalistas, mas também impregnados de ideologia burguesa. em uma prática que sustentava este sistema social. E sustentava-o por ser absorvida por ele na mesma Esta última afirmação pode ser compreendida em medida em que não podia ser integrada nas pro- dois sentidos. Primeiro a ideologia desses posições concretas de luta do proletariado urbano contém, algumas vezes, proposições de reformas e rural. sociais, mais do que de transformações de estru- turas sociais. que se pretende programaticamen- A continuidade da prática, e principalmente a vi- te então é reformar e modernizar a ordem capita- vência de alguns fracassos políticos, paralelos a lista vigente a fim de fazer com que o sistema sucessos pedagógicos, conduziu alguns grupos de organize relações mais e humanas». Segun- educadores populares à tomada de consciência de do essa ideologia pretende não conter valores de que: interesses dos grupos dominantes, como no primei- a) as classes populares e, mais especialmente, o ro caso, mas também não contém os das classes oprimidas. Esse ponto merece uma reflexão um proletariado possuem a sua própria ideologia ainda pouco mais completa. que ela não esteja sempre devidamente explicitada; b) qualquer outra ideologia que não se identifique Vamos ver mais adiante como a interpretação da com os verdadeiros interesses do proletariado ou realidade social feita pelo povo está impregnada é oposta a ela, e favorável à do- 36 37minante, ou, ainda que possa se identificar com "A educação... é o processo externo de adaptação supe- ela ao nível de proposições gerais, perde quase rior do ser humano física e mentalmente desenvolvido, toda a sua eficácia dada a sua indefinição frente livre e consciente, a Deus, tal como se manifestou no meio intelectual, emocional e volitivo do homem" (Herman Horse, a outros interesses expressos em outras ideologias; citado por Kneller, G. F. Introdução à filosofia da educa- ção, 35). c) mesmo com risco de comprometer partes essen- "A educação não é mais do que o desenvolvimento cons- ciais das crenças cristãs tradicionalmente adquiri- ciente e livre das faculdades inatas do homem" (Sciacca, das, a única maneira de se conscientizar com povo M. F. El problema de la educación, p. 38). é explicitar, com ele, a sua própria ideologia, ao 2 "Por técnicas sociais refiro-me a todos os métodos de longo da ação liberadora que ele desdobra na me- influenciar comportamento humano de maneira que este dida que se apossa dela. se enquadre nos padrões vigentes de interação e organiza- ção sociais... não apenas no exército, mas também na Foi essa passagem de uma ideologia fundada chamada. vida civil, as pessoas têm que ser condicionadas em princípios humanistas e interpretações cultura- e educadas para ajustarem-se aos padrões dominantes da listas, para uma ideologia proletária partida de vida social... padrão dominante pode ser democrático ou autoritário; a educação serve a ambos os sistemas. Ao análises sociais de cunho dialético momento mesmo tempo, ela é apenas uma das técnicas sociais des- de tomada de consciência mais radical operado tinadas à criação do tipo desejado de cidadão" (Mannheim, pelos próprios grupos «comprometidos com a cons- K. "A Educação como técnica social", in Foracchi, M. e cientização». Ela representou, como dissemos, Pereira, L. Educação e sociedade, 89). início de uma redefinição muito criativa da Edu- 3 Um dos poucos autores em que essa "evolução da educa- cação Popular em nosso continente. ção" é enfocada de modo crítico é educador argentino Gustavo F. G. Cirigliano. Remetemos o leitor a um dos Uma das expressões mais dignas de nota em toda seus livros: Fenomenologia da educação (Petrópolis, Vozes, essa «mudança de perspectiva» está contida na 1969). interpretação em termos de classe, do que era ante- riormente compreendido em termos de homem. As São vários os nomes com que se rotula esse modo de educação: Educação de Adultos, Educação Fundamental, páginas seguintes procuram ser uma entre muitas Educação de Base, e, para alguns, Educação Permanente. análises das bases sociológicas e psicológicas dessa Para nosso uso e simplificação terminológica, chamaremos passagem. de Educação de Adultos aos programas oficiais ou "oficial- mente patrocinados" de educação de populações adultas, de meio urbano ou rural e normalmente estendida "às classes menos favorecidas" da sociedade. Da mesma manei- ra reservamos o nome de Educação Popular para aquela que se desenvolve com base em proposições de luta trans- NOTAS DO CAPÍTULO 1 formadora semelhante às que desenvolvemos aqui nestes itens. 1 Algumas conceituações surpreendentemente recentes tra- duzem dualizante: sem equívocos essa perspectiva idealizada e indivi- 5 Talvez tenha sido Durkheim quem, entre os primeiros, chamou a atenção para caráter social da educação. Essa 38 39idéia, muito mencionada por filósofos e educadores ante- riores a ele, foi definida com clareza em alguns de seus controle social: função conservadora e função renovadora", escritos. "A educação é a ação exercida pelas gerações in Foracchi e Pereira, op. cit., p. 80-87. adultas sobre as gerações que não se encontram ainda preparadas para a vida social; tem como objeto suscitar e 10 Essa é uma das análises feitas por Durkheim. Consulte- desenvolver na criança certo número de estados físicos, se, por exemplo: Durkheim, E. "A Educação como processo intelectuais e morais reclamados pela sociedade política no socializador: função homogeneizadora e função diferencia- seu conjunto e pelo meio especial a que a criança se dora", in Foracchi e Pereira, op. cit., 34-48. destina" (Durkheim, E. Educação e sociologia, p. 25-26). 6 Quando usamos aqui a expressão liberação, queremos dar a ela um sentido muito concreto: 0 processo permanente através do qual homem procura organizar a sociedade de forma que sejam constantemente superadas as contra- dições de estruturas e relações que promovem qualquer ordem de dominação. 7 Propomos considerar educação escolar oficial aquela que é oferecida pela rede de escolas oficiais ou escolas par- ticulares submetidas a alguma forma de controle oficial a crianças, adolescentes e jovens através de uma seriação de turmas que em geral se distribuem pelos três níveis: primário, médio e superior. 8 Enquanto retardamento dos efeitos sociais da Educa- ção Escolar provoca uma atenção concentrada em aspectos mais "acadêmicos" e de análise psicopedagógica ou então puramente administrativa, a interferência mais imediata dos efeitos sociais da Educação de Adultos acentua a con- centração da atenção para análises e polêmicas de nature- za mais sócio-política. 9 O assunto é um dos mais controvertidos na atual Socio- logia da Educação. que fica evidente nessas interpreta- ções idealizadas da educação é que elas não podem chegar a mais do que algumas constatações "sem solução" porque, embora sejam capazes de pensar as relações entre a edu- cação e a sociedade, não são capazes de analisar critica- mente essas sociedades e os usos que alguns de seus grupos fazem da educação. Esse seria motivo pelo qual alguns intérpretes acreditam muito pouco nos efeitos sociais da educação, enquanto outros chegam perto de reduzir "as esperanças do homem" às possibilidades da Como exemplo de uma dessas interpretações pode ser con- sultado: Brookover, W. B. "A Educação como processo de 40 41

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