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Contextualização e Saúde Pública - “A maternidade tem se constituído num dos mitos de nossa cultura, exercendo-se em seu nome forte manipulação sobre a mulher que, desde muito cedo, é bombardeada por estímulos para o exercício de tal mister como algo para o qual não cabe qualquer modalidade de opção” (SOIHET, 1986, p. 191). - A maternidade é compreendida como natural, enquanto a paternidade resultaria de processo de socialização e amadurecimento masculino; - Uma em cada cinco mulheres em idade reprodutiva (18 a 39 anos) já realizou um aborto (Sasso, Teles & Vieira, 2022). - O aborto é um fenômeno multifatorial (Boemer & Mariutti, 2003). - Ao longo da história, em diversas sociedades, etnias e séculos, a discussão sobre o aborto raramente teve a mulher no centro. Em vez disso, o aborto foi instrumentalizado por questões políticas, econômicas, morais e religiosas. Ele serviu como ferramenta de controle e poder sobre os corpos femininos, sendo permitido ou proibido para atender a interesses institucionais, mas quase nunca para garantir a autonomia e o bem-estar da mulher. - No século XIV, com as ideias de São Tomás de Aquino de que o feto não teria alma, ocorreu uma maior tolerância da Igreja quanto a essa questão; - Foi somente em 1869 que a Igreja Católica declarou que o feto possui alma, e por isto passou a condenar o aborto e os métodos contraceptivos. - Galeotti (2007), existe um marco divisório na história do aborto, que seria o século XVIII, principalmente após a Revolução Francesa. Nesse período passou-se a privilegiar o feto, pelo fato de este tornar-se um futuro trabalhador e soldado. - no início do século XIX houve um aumento no número de abortos devido ao êxodo rural, quando as pessoas tinham péssimas condições de vida na cidade. Nesse contexto o aborto representava uma ameaça à classe dominante, pois implicava uma redução da mão-de-obra para as indústrias. - no final do século XIX e início do século XX houve um avanço na ciência médica quando se descobriu a embriologia, de forma que a prática do aborto passou a ser vista como perigosa para a saúde da mulher. - Pode-se perceber que o aborto, ao longo da história, foi permitido ou proibido conforme os interesses econômicos e políticos de cada época. - Na Segunda Guerra Mundial, com a ascensão do nazifascismo, o aborto foi considerado um crime contra a nação, e sua proibição se manteve até a década de 1960 na maioria das nações europeias; - a perseguição ao aborto era muito mais uma questão de normatização da sexualidade e de interesses políticos e econômicos do que zelo pela vida de uma criança, uma vez que nessa época ainda não havia a preocupação com a criança existente nos dias atuais. - O aborto no Brasil Colonial feria a condição feminina, na verdade sua natureza, qual seja, a maternidade. Residia na maternidade. - o poder da mulher de redimir seus pecados, principalmente o pecado original, daí a grande responsabilidade que lhe cabia de, enquanto boa mãe, salvar o mundo inteiro. - No Brasil, durante muito tempo o aborto foi considerado pelas elites dominantes e pela Igreja Católica como um desregramento moral, e devido ao seu crescente número, surgiu a necessidade de criar uma legislação que proibisse sua prática. O primeiro código criminal que falava especificamente da proibição do aborto data de 1830. Esse código punia qualquer pessoa que tentasse realizá-lo ou fosse cúmplice na tentativa de fazê-lo. - o código criminal brasileiro teve forte influência dos ideais católicos, no sentido de que as leis sempre prezavam a conduta moral e os bons costumes da família e dos cidadãos, principalmente no que se refere à conduta da mãe, considerada na época a base da família cristã (Predebon, 2007). - foi somente na década de 1970, com a realização de estudos na área acadêmica sobre Saúde Pública, que o aborto passou a ser problematizado como um fato social, e não mais como um desvio moral. - a luta pela descriminalização do aborto tornou-se uma marca do movimento feminista no Brasil ao considerar o aborto como um direito individual e social (Scavone, 2008). - Some-se a isso, na década de 90, o alto índice de mortalidade materna devido ao aborto realizado na clandestinidade, o que fez com que este fosse considerado um problema de saúde pública, sendo qualificado como aborto inseguro. - a Justiça, desde 2004, conforme liminar do Supremo Tribunal Federal, tem decidido autorizar o aborto no caso de mulheres com diagnóstico de gravidez anencefálica (Diniz & Vélez, 2008). - Tal fato mostra uma abertura do Poder Judiciário a uma reforma da legislação sobre o aborto ao considerar que, passados mais de 60 anos do código penal de 1940, houve avanços nos valores e costumes da sociedade, e também, como referido anteriormente, avanços científicos e tecnológicos. Tal reforma, porém, é dificultada pelo Poder Legislativo, que ainda leva em consideração questões morais, culturais e religiosas num Estado que se diz laico. Definição e tipos de abortamento - Abortos podem ser classificados em seguros, menos seguros ou inseguros, depende do método utilizado para sua indução e do profissional responsável pela assistência; - Abortos seguros: Um aborto é considerado seguro quando é realizado por um profissional de saúde qualificado, usando um método recomendado pela OMS e que seja apropriado para a idade gestacional, em um ambiente com padrões médicos mínimos de higiene e segurança. O risco de complicações graves ou morte nesses procedimentos é insignificante. O aborto medicamentoso (com Misoprostol e Mifepristona) e os métodos cirúrgicos (como a aspiração a vácuo) realizados corretamente são exemplos de abortos seguros. - Abortos menos seguros: É realizado por um profissional de saúde qualificado, mas utilizando um método obsoleto ou inadequado (como a curetagem uterina). É realizado por uma pessoa não qualificada, mas que utiliza um método seguro (como o Misoprostol). - Abortos inseguros: Um aborto é classificado como inseguro quando é realizado por uma pessoa sem as habilidades necessárias, em um ambiente sem os padrões médicos mínimos, ou, o que é mais comum, a combinação dos dois fatores. Aqui, o risco de complicações graves, sequelas e até mesmo de morte é muito alto. Complicações comuns incluem infecções graves, hemorragias, perfuração uterina e lesões em órgãos internos. Métodos perigosos, como a introdução de objetos na vagina ou no útero e o uso de chás e misturas caseiras, se enquadram nessa categoria. Dados epidemiológicos no Brasil e no mundo - Entre 2010 e 2014, em nível global, ocorrência anual de 35 abortos inseguros por 1.000 mulheres entre 15-44 anos, e aproximadamente 7 milhões de internações por complicações de aborto em países em desenvolvimento em 2012; (Domingues et al., 2020) - No mundo estima-se que cinco milhões de mulheres são internadas por complicações pós-aborto, provocando 13% das mortes maternas, a maioria das quais em países em desenvolvimento. (WHO, 2006; WHO & Guttmacher Institute, 2007). - A restrição legal ao aborto não afeta a sua incidência. (WHO, 2006; WHO & Guttmacher Institute, 2007). - Estima-se que 68.000 mulheres morrem a cada ano por complicações pós-aborto provocado (aproximadamente oito por hora). (WHO, 2006; WHO & Guttmacher Institute, 2007). - Independentemente da posição socioeconômica, raça/cor, idade e credo religioso, mulheres recorreram ao aborto, mas práticas inseguras eram mais comuns entre jovens, com baixa escolaridade, sem companheiro, estudantes ou trabalhadoras domésticas 5; - O número de abortos clandestinos no Brasil em 2000 variou entre 750 mil e 1,4 milhão, o que se sabe não ser um dado real na medida em que esse número corresponde somente às mulheres internadas na rede pública (Santos & Diniz 2013). - Nas regiões Norte e Nordeste as taxas de abortamento são mais elevadas. Mulheres negras e pobres são as que mais realizam o aborto inseguro(Sasso, Teles & Vieira, 2022). - Destacam-se, persistentes diferenças entre regiões, estados e municípios do país; desigualdades sociais com maiores taxas entre mulheres de raça/cor não branca, de baixa renda e escolaridade; e de populações específicas, como jovens no início da vida reprodutiva; crianças, adolescentes e jovens em situação de rua, profissionais do sexo, usuárias de álcool e drogas e MVHA (mulheres que vivem com HIV/aids). - A figura da mulher como mãe que ama seus filhos acima de tudo, inclusive de si mesma, tendo que amar e proteger a criança; - O aborto rompe com diversas barreiras impostas na sociedade, sejam eles valores, juízos e preconceitos; - A mulher autora de um aborto é vista como uma pessoa fria, apática, criminosa e pecadora; - A decisão é enfrentada com muito medo e ansiedade por conta das opiniões da família, do parceiro, do julgamento da sociedade, das sequelas e morte. - 5°lugar de causas de mortes maternas; (Ministério da Saúde, 2022) - Provocar um aborto é muito doloroso e conflituoso, pois entra em choque com valores morais e religiosos, e também por ir o papel de maternidade destinado à mulher. - Principais motivações para a escolha do aborto vão desde questões financeiras até a responsabilidade de criar um filho sozinha. - De uma forma geral, as estatísticas do aborto no mundo, no Brasil e no RN apresentam semelhanças no sentido de que todas diminuíram muito nas últimas décadas, tendo em vista a atual tendência mundial de redução da taxa de natalidade em consequência da maior disseminação do uso de métodos contraceptivos, maior acesso a medicamentos e à assistência médica. Legislação brasileira - De acordo com o Código Penal, o aborto é considerado uma prática criminosa - Art 124: Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque e; Art 126: Provocar aborto com o consentimento da gestante. - No Código Penal o aborto não é considerado criminoso quando: é a única forma de salvar a vida da gestante e, também, quando a gravidez resulta de estupro ou de qualquer outro crime contra a dignidade sexual (Art 128); quando diagnosticada uma malformação fetal incompatível com a vida extrauterina (decisão do Supremo Tribunal Federal, proferida na ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) n. 54); - Viola os princípios fundamentais dos Direitos Humanos presente na Constituição Federal pois: afronta a dignidade das mulheres; fere de morte os princípios da autonomia e liberdade da vida privada e pro homine (Zaffaroni et al, 2003); - Viola os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres (Karan, 1995); - Os direitos sexuais e reprodutivos incluem os direitos de decisão sobre a quantidade, o intervalo e o momento de as pessoas terem seus filhos, de plena informação e meios para fazer a sua escolha, de acesso ao mais alto padrão de saúde sexual e reprodutiva e, ainda, o direito de tomar decisões relativas à reprodução sem discriminação, coerção ou violência (ONU, 1994). - “Mulheres e meninas são punidas duplamente por essas leis: tanto quando elas cumprem essas leis e ficam, portanto, sujeitas a condições precárias de saúde física e mental, como quando elas desrespeitam essas leis e ficam sujeitas ao encarceramento” (ONU, 2011). - Também enfatizaram a incompatibilidade entre a criminalização do abortamento e a necessidade de garantir a saúde das mulheres, pois o abortamento, é um grave problema de saúde pública, não um problema que pode ser enfrentado no âmbito repressivo dos sistemas penais; - Abordagem Psicológica e Social O processo de decisão e o impacto emocional - Este manual pretende, portanto, fornecer aos profissionais subsídios para que possam oferecer não só cuidado imediato às mulheres em situação de abortamento, mas também na perspectiva da integralidade desse atendimento, disponibilizando às mulheres alternativas contraceptivas e evitando o recurso a abortamentos repetidos. Para mulheres com abortamentos espontâneos, que desejem nova gestação, deve ser garantido atendimento adequado às suas necessidades. (pág. 8 - Manual) - Dessa forma, uma perspectiva fenomenológico-existencial, tal como a interpretamos, compreende o aborto como um fenômeno presente na vida/cotidiano de algumas mulheres e o entende como uma possibilidade entre as várias que permeiam a existência dessas mulheres. Deve-se levar em consideração que a vivência dessa possibilidade está perpassada pelo contexto histórico e cultural das mulheres enquanto seres-no-mundo. - percebe-se que esta prática está presente em todos os tempos e em todas as sociedades e que, independentemente de ser proibido ou legalizado e do significado que tenha, muitas mulheres o realizam. - Bonaventure (2000) afirma: “O aborto em si não existe. O que existe são pessoas que abortam em determinadas circunstâncias, pelos mais diversos motivos” (p. 10). - Em vez de focar no "ato", devemos focar nas pessoas e em suas histórias. Isso nos leva a considerar uma série de fatores que estão intrinsecamente ligados à decisão de abortar, como: a) Circunstâncias de vida: O aborto pode ser resultado de uma gravidez indesejada por violência sexual, falha de métodos contraceptivos, falta de recursos financeiros para criar um filho, ou por estar em um relacionamento abusivo. b) Motivos complexos: As razões são diversas e pessoais. Podem envolver a saúde física e mental da mulher, a estabilidade familiar, a busca por uma vida acadêmica ou profissional, ou simplesmente a não vontade de ser mãe naquele momento. - a experiência do aborto pode ser um momento de angústia existencial, um ponto de virada onde a mulher é forçada a confrontar sua liberdade e responsabilidade, potencialmente levando a uma escolha mais autêntica e "própria", ou seja, menos influenciada por normas e mais baseada em seu próprio ser. - Então, tendo em vista essa complexidade da existência e o fato de que não poderemos realizar tudo aquilo que desejamos, é sempre um desafio para a mulher contemporânea dar conta de tantos papéis (mãe, esposa, profissional, dona de casa. etc.), sendo o aborto sempre uma possibilidade a ser escolhida ou não. - As pesquisas mostram que o aborto afeta profundamente a existência de uma mulher e que sua vivência é perpassada por muitos sentimentos e emoções, muitas vezes opostos, podendo, em algumas situações, levar ao aparecimento de transtornos mentais como, por exemplo, a depressão. - Os principais sentimentos relatados em pesquisas são: culpa, tristeza, arrependimento, ansiedade, pensamentos suicidas, perda, medo, angústia, vazio, alívio e libertação (Lie, Robson & May, 2008; Nomura, Benute, Azevedo, Dutra, Borsari, Rebouças, Lucia & Zugaib, 2001). - Do ponto de vista da Dasein podemos dizer que a culpa presente na vivência de um aborto é sentida como uma dívida para com os valores morais e religiosos. - Não obstante, Heidegger (1927/1990) comenta que a culpa não é moral, isto é, ela não tem uma causa exterior; enquanto débito ela é existencial, portanto, inerente à condição de ser-no-mundo. Podemos pensar que a forma de retirar o peso da culpa das mulheres que abortaram não é o castigo, mas a compreensão da condição existencial de o seu ser estar em débito, ou seja, a compreensão de que elas sempre estarão em falta, independentemente do que tenham feito, façam ou deixem de fazer. - a mulher é preparada para a gravidez e para o parto e lhe são transmitidas inúmeras dicas e recomendações de profissionais e leigos, além da vasta literatura a respeito de gravidez e parto, mas não é preparada para o aborto, pois, assim como a morte, ele nunca é esperado. - Neste sentido, é de suma importância olharmos o mundo com outros olhos e aprendermos - como diz Heidegger (1959/2000) - a não nos fixar somente em um aspecto das coisas, para que não nos tornemos prisioneiros de uma representação e não caminhemos numa única via ou direção. O pós-abortamento O papel da Psicologiano cuidado Uma Análise de Gênero e Direitos Humanos Abortamento como questão de gênero Interseccionalidade Avanços e desafios dos movimentos sociais