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Indaial – 2020 Formas Democráticas De ParticiPação social e a meDiação Familiar, escolar e comunitária Prof.ª Ângela Martins Rorato Prof.ª Cláudia Deitos Giongo 2a Edição Copyright © UNIASSELVI 2020 Elaboração: Prof.ª Ângela Martins Rorato Prof.ª Cláudia Deitos Giongo Revisão, Diagramação e Produção: Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri UNIASSELVI – Indaial. Impresso por: R787f Rorato, Ângela Martins Formas democráticas de participação social e a mediação familiar, escolar e comunitária. / Ângela Martins Rorato; Cláudia Deitos Giongo. – Indaial: UNIASSELVI, 2020. 182 p.; il. ISBN 978-65-5663-233-9 ISBN Digital 978-65-5663-231-5 1. Mediação. - Brasil. I. Giongo, Cláudia Deitos. II. Centro Universitário Leonardo Da Vinci. CDD 340 aPresentação Caro acadêmico, você está pronto para uma aventura na apreensão de novos conhecimentos? Realmente esperamos que sim, pois todo este conteúdo foi preparado com muito carinho. Antes de iniciarmos os estudos da disciplina Formas Democráticas de Participação Social e a Mediação Familiar, Escolar e Comunitária, apresentamos um breve currículo das professoras autoras deste livro didático. A prof.ª Cláudia Deitos Giongo é mestre em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2000). Possui graduação em Serviço Social pela Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1984). Atua como professora universitária desde 1989 em diferentes instituições de ensino, tanto na graduação quanto pós-graduação. Atua como professora e supervisora no DOMUS – Centro de terapia individual, casal e família – parceria com a Faculdade Mário Quintana. É coordenadora do curso de pós-graduação Trabalho Social com Famílias e Comunidades. É uma das coordenadoras do curso de extensão em Mediação com parceria da Defensoria Pública de Porto Alegre. É responsável técnica pelo Programa DOMUS/SUAS. Atua como Mediadora Judicial e Extrajudicial. Presta serviços de assessoria e capacitação a Prefeituras nas áreas de Gestão do SUAS, Modelo Assistencial e Gestão do Trabalho. Tem experiência em ensino, pesquisa, extensão universitária e consultoria nas áreas de política de assistência social, família, mediação e redes sociais. A prof.ª Ângela Martins Rorato é especialista em educação pela UNIFRA (1996) e possui graduação em Estudos Sociais (1989) pela mesma instituição. Atua como professora desde 1994. Dedica-se ao estudo e à prática dos métodos autocompositivos desde 2014, atuando como mediadora de conflitos familiares e empresarias e facilitadora de círculos conflitivos e não conflitivos, tanto no âmbito público quanto privado. Ministra cursos nas áreas de mediação e Justiça Restaurativa em cursos de pós-graduação e de extensão. É integrante do grupo de estudo e pesquisa em direito civil- constitucional, família, sucessões e mediações de conflitos da Faculdade de Direito da UFRGS. É membro atuante do grupo de mediação do SAJU/ UFRGS, em ambiente de extensão universitária. Também realiza pesquisa e faz palestras na área de comunicação, cujo tema principal é a comunicação não violenta. Possui certificação internacional de mediadora pelo ICFML (Instituto de Certificação de Formação de Mediadores Lusófonos) e IMAP (Instituto de Mediação e Arbitragem de Portugal). Iniciaremos os estudos da disciplina apresentando, na Unidade 1, a confluência de temas como participação, conflitos e comunicação. O Tópico 1 direciona o estudo para o tema participação social, cidadania e autonomia, buscando apresentar discussões conceituais e perspectiva histórica sobre como a população brasileira tem operado em termos de participação, considerando marcos legais que impulsionam para isto, mesmo que correlações de forças instituídas no país possam representar resistências. Os temas cidadania e autonomia estão correlacionados à ideia de participação da população em uma comunidade política, o que gera comprometimento autônomo e pertencimento social. O conteúdo apresenta discussões sobre a importância da internalização de normas partilhadas, para que diferenças possam ser superadas por meio de discussões públicas na ideia de bem comum. Disso advém a importância do Tópico 2, que discorre sobre diferentes entendimentos das relações humanas, cujo conflito é inerente a essas relações. Apresenta a Moderna Teoria de Conflitos, que propõe superar ideias preconcebidas de entendimento do conflito como algo a ser evitado. No Tópico 3, é apresentada a teoria da Comunicação Humana e a importância da comunicação não violenta. A discussão perpassa a ideia da dificuldade em estabelecer processos comunicacionais, com compreensão genuína sobre o que é dito, mesmo em um mundo onde os meios de comunicação expandiram as fronteiras de forma inimaginável. A Unidade 2 apresenta a Justiça Multiportas com o objetivo de oferecer possibilidades de conhecimento e análise para a busca de soluções mais adequadas, em um tempo histórico de excessiva litigiosidade e inseguranças jurídicas. O conteúdo do Tópico 1 apresenta dados que defendem a importância do entendimento da Justiça Multiportas no atual momento do país. No Tópico 2 são apresentados os meios heterocompositivos com seus dois caminhos de solução de conflitos: a Jurisdição e a Arbitragem. O texto ressalta a importância do reconhecimento de semelhanças e diferenças entre eles. Já no Tópico 3 são apresentadas informações sobre meios adequados para superação da cultura litigiosa e dados sobre os esforços empreendidos em diferentes contextos, para que possa ser reconhecida a importância de as pessoas em situação de conflito identificarem interesses e aplicarem esforços para o seu alcance. O Tópico apresenta informações sobre Negociação, Conciliação e Mediação. A Unidade 3 apresenta dados sobre contextos para utilização da mediação como meio para resolução adequada de conflitos. O Tópico 1 se ocupa com a Mediação Familiar, oferecendo a oportunidade de entendimentos sobre a dinâmica relacional da família que podem indicar a necessidade da utilização da Mediação Familiar como método para a superação de conflitos. Os Tópicos 2 e 3 se dedicam a apresentar dados sobre o espaço escolar e o espaço comunitário como espaços onde conflitos emergem cotidianamente, mas que podem ser espaços geradores de soluções. Dessa forma, apresenta a Mediação Escolar e a Mediação Comunitária como formas de construção de agentes para a solução de conflitos e fortalecimento de espaços de participação social. Boa leitura e bons estudos! Prof.ª Ângela Martins Rorato Prof.ª Cláudia Deitos Giongo Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há novi- dades em nosso material. Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura. O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova diagra- mação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo. Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente, apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilida- de de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador. Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assun- to em questão. Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas institucionais sobre os materiaispor isso, a convivência, essencial para a sobrevivência do ser humano, torna-se tão desafiadora. É a partir da necessidade humana de convivência e, ao mesmo tempo, deste estranhamento do outro, de visões diferentes de mundo, que os conflitos emergem. Segundo Jean-Marie Muller (2007), o conflito significa o confronto da vontade de um com a vontade do outro, pois cada um deseja vencer a resistência alheia, o que remete à rivalidade, competição. De modo geral, o conflito produz ideia de oposição, de divisão entre as pessoas, que passam a ser um obstáculo para a satisfação pessoal. Portanto, o conflito pode ser visto como uma crise, um impasse na relação com o outro. Se as diferenças fazem parte das relações e da própria condição humana, é possível afirmar que o conflito é inerente às relações humanas. Para Fernanda Tartuce (2018), a maioria das pessoas veem o conflito como embate, oposição, briga, luta e, por causa dessas nomenclaturas, o conflito costuma também ser sinônimo de “controvérsia”, “disputa”, “lide” e “litígio”, remetendo ao entendimento de crise nas interações. FIGURA 2 – O CONFLITO COMO SINÔNIMO DE DISPUTA FONTE: . Acesso em: 21 jan. 2020. Como vimos, as relações humanas são permeadas pelas diferenças, envolvendo percepções, valores, posições e interesses diversos. Dessa forma, é possível afirmar que o conflito é parte integrante dessas relações. Segundo Eduardo Vasconcelos (2014), é impossível uma relação interpessoal ser totalmente consensual, pois cada pessoa possui uma gama infinita de experiências, visões de mundo diferentes, construídas a partir de vivências únicas e, em alguma medida, mesmo nas relações mais afetivas, haverá discordância e, portanto, algum grau de conflito estará presente. TÓPICO 2 — RELAÇÕES DE CONFLITO 25 A Moderna Teoria do Conflito percebe o conflito como fato natural, um importante fenômeno inerente às relações, pois caso o conflito seja pensado como algo a ser combatido ou evitado, é possível que os envolvidos caiam na armadilha de impossibilitar a sua solução de maneira construtiva. O conflito visto como algo negativo impede o diálogo, a busca do entendimento, e acaba por fomentar a disputa, o confronto e, consequentemente, várias formas de violência. Nesse ponto de vista, é possível encarar o conflito em si como um acontecimento neutro, nem positivo nem negativo. É possível afirmar que, dependendo da maneira como se lida com o conflito, ele pode se tornar fonte de discussões, brigas e rompimentos, tornando-se, assim, negativo. Por outro lado, quando a partir dele, através do diálogo, houver a busca por soluções conjuntas para as questões postas, ele pode evoluir para a construção de novas combinações que possam satisfazer a todos os envolvidos, fortalecendo laços de convivência, tornando-se fonte de mudanças positivas. De acordo com John Paul Lederach (2012), o conflito é algo normal nos relacionamentos humanos e, assim, é encarado como motor de transformações e mudanças tanto nos relacionamentos interpessoais quanto num âmbito maior, estimulando a construção de comunidades mais saudáveis. A visão do conflito como algo a ser eliminado, suprimido da sociedade, como se a paz fosse a sua ausência, não se sustenta mais. Enxergar e compreender o todo, através de uma visão sistêmica, significa entender o conflito como uma situação que, quando bem conduzida, pode vir a trazer mudanças positivas e significativas, além da oportunidade de ganhos mútuos, tanto para o indivíduo quanto para a comunidade a qual pertence. Nesse sentido, Vasconcelos (2014, p. 25) aponta que os conflitos decorrem da convivência social do homem com suas contradições e pode ser dividido em quatro pontos que se incidem cumulativamente: • Conflitos de valores – morais, ideológicos, religiosos. • Conflitos de informação – informações incompletas, distorcidas, conotações negativas. • Conflitos estruturais – diferentes circunstâncias sociais, políticas e econômicas dos envolvidos. • Conflitos de interesses – reivindicação de bens e direitos de interesse comum e contraditório. Quando o conflito é tratado de modo destrutivo, ou seja, quando há enfraquecimento ou rompimento das relações devido à competitividade com que é tratado, na perspectiva de vencedores e perdedores, é possível perceber expansão do conflito em uma espiral crescente. Nesses casos, os envolvidos frequentemente perdem o foco das causas iniciais da questão. Por outro lado, quando encarado de forma construtiva, o conflito fortalece as relações. 26 UNIDADE 1 — PARTICIPAÇÃO SOCIAL, CIDADANIA, AUTONOMIA, RELAÇÕES DE CONFLITO E COMUNICAÇÃO ASSERTIVA Existem vários caminhos e estratégias para lidar com conflitos: negá-los, fugir deles, ignorá-los, ceder, barganhar etc. Por outro lado, é possível escolher cooperar, integrar as diferentes opiniões e construir algo novo a partir dessas divergências. Sendo assim, é possível afirmar que existem duas estratégias principais de tratamento dos conflitos: uma distributiva, baseada na competição e foco na escassez dos recursos, e outra integrativa, que visa “aumentar o bolo”, sendo que os envolvidos buscam a cooperação como estratégia principal. Quando a busca de soluções cooperativas e integrativas é a estratégia escolhida, as chances de fortalecimento dos laços interpessoais e comunitários tendem a aumentar, estreitando as relações, trazendo inúmeros benefícios aos envolvidos. Fato é que não existe uma forma única de tratamento dos conflitos, e a estratégia escolhida pode variar de acordo com o grau de envolvimento, a importância dada às relações e o próprio bem-estar dos envolvidos. David Bohn (2005) destaca que, caso as pessoas decidam cooperar necessitam criar algo que seja comum aos envolvidos no processo comunicacional, pois cada uma delas ouvirá a outra de acordo com o filtro de suas experiências pessoais. Para ele, estar aberto a novas ideias e pontos de vista pode ser bastante desafiador, mas possível. Importante enfatizar que, caso as pessoas realmente desejem viver em harmonia com elas próprias e com seus pares, resolvendo diferenças de maneira construtiva sem evitar o conflito, utilizando-o como mola propulsora de mudanças importantes, elas precisam ser capazes de comunicar de forma clara, estando atentas as suas próprias necessidades, bem como às necessidades dos outros, possibilitando, assim, a expressão e construção de diálogos mais saudáveis. 27 RESUMO DO TÓPICO 2 Neste tópico, você aprendeu que: • Os seres humanos são seres únicos, eminentemente sociais, estão o tempo todo interagindo uns com os outros e dessas interações emergem os conflitos. Isso acontece porque cada um tem vivências, valores e visões de mundo diferentes. Conviver com essas diferenças é um constante desafio. • O conflito é uma sinalização de que algo nas relações precisa ser revisto, repensado, recompactuado. • A moderna teoria do conflito encara o conflito como um evento neutro, nem bom, nem ruim. O que determinará sua essência será a forma como cada um lida com ele: ᵒ Se encarado de forma positiva, como fator de mudança de comportamentos e regras que não servem mais à sociedade e aos cidadãos, o conflito pode trazer transformações necessárias e possibilidade de ganhos múltiplos para os envolvidos, reforçando laços e abrindo espaço para a construção conjunta de mudanças necessárias. ᵒ Se encarado como uma competição sobre quem está certo e quem está errado, buscando estabelecer vencedores e vencidos, será atribuído um caráter destrutivo ao conflito. 28 1 Como o conflito pode ser definido? 2 Os conflitos decorrem da convivência social do homem com suascontradições. Liste e descreva os quatro pontos que incidem cumulativamente o conflito. 3 O conflito é consequência da discordância entre os indivíduos. É um componente básico das relações humanas, inevitável em tudo que envolve as relações interpessoais. Com base no exposto, assinale a alternativa CORRETA: Sendo assim, pode-se afirmar que (marque a alternativa CORRETA): a) ( ) É sempre negativo por ser uma ação que não contribui para o crescimento das relações. b) ( ) É positivo quando gera crescimento e auxilia na resolução de questões importantes para as pessoas. c) ( ) É positivo quando encarado como uma competição sobre quem está certo e quem está errado, pois estabelece claramente quem são os vencedores e quem são os vencidos. d) ( ) Quando encarado de forma positiva, como fator de mudança de comportamentos e regras que não servem mais à sociedade e aos cidadãos, o conflito não traz grandes transformações. AUTOATIVIDADE 29 TÓPICO 3 — UNIDADE 1 COMUNICAÇÃO ASSERTIVA 1 INTRODUÇÃO A maior parte das pessoas, em algum momento, experimentou falhar naquilo que queria comunicar, não foi compreendido na totalidade do que disse ou não conseguiu expor com clareza suas ideias, sonhos, valores ou desejos. Apesar de vivermos num mundo onde os meios de comunicação expandiram as fronteiras, cada dia mais ouvem-se queixas de como é difícil ser compreendido e compreender os outros. FIGURA 3 – COMUNICAÇÃO FONTE: . Acesso em: 21 jan. 2020. Nesses encontros e desencontros da comunicação, que muitas vezes é falha no aspecto relacional, cujas expectativas, crenças, sentimentos e necessidades nem sempre convergem, é que surgem os conflitos. Como visto no capítulo anterior, quando manejado de forma assertiva, buscando solucionar impasses e trazer mudanças vistas como necessárias, o conflito pode se tornar uma mola propulsora para construção de novos acordos e entendimentos. Para que haja possibilidade de harmonia nas relações e nas mais diversas formas de pensar a realidade, aceitando que existem maneira diferentes de encarar o mesmo fenômeno, é necessário que se busque uma forma de comunicação eficaz e sustentável. 30 UNIDADE 1 — PARTICIPAÇÃO SOCIAL, CIDADANIA, AUTONOMIA, RELAÇÕES DE CONFLITO E COMUNICAÇÃO ASSERTIVA 2 A COMUNICAÇÃO FIGURA 4 – HOMO SAPIENS FONTE: . Aces- so em: 21 jan. 2020. Entre 70 e 30 mil anos atrás o Homo sapiens começou a desenvolver a linguagem, o que proporcionou novas formas de pensar e de se comunicar. Esse fenômeno foi denominado Revolução Cognitiva (HARARI, 2018). Não é possível precisar ao certo o que causou essa revolução, cientistas acreditam que muito provavelmente mutações genéticas aleatórias tenham sido responsáveis pelo surgimento de novas conexões entre os neurônios, ao longo de milênios, possibilitando o surgimento de uma linguagem e uma forma própria de comunicação. Apesar de não estar clara a ideia do que causou essa revolução, visto que as relações sociais e linguísticas não deixam rastros, dificultando sua reconstrução, o fato é que a comunicação possibilitou ao ser humano conquistar o mundo. Todos os animais, incluindo insetos, possuem alguma forma de comunicação, mas o que há de diferente e especial na linguagem humana é a versatilidade, a forma como o ser humano pode compartilhar histórias, criar narrativas comuns e transmitir informações sobre o mundo que o rodeia. Como visto anteriormente, os seres humanos são essencialmente sociais e a cooperação entre os indivíduos foi primordial para garantir a perpetuação e a sobrevivência da espécie, sendo o compartilhamento e transmissão de informações um dos fatores mais relevantes na construção da civilização humana. Graças às habilidades comunicacionais desenvolvidas, os humanos puderam se expandir, evoluir e desenvolver uma forma de colaboração muito mais sofisticada e sólida do que outras espécies animais. TÓPICO 3 — COMUNICAÇÃO ASSERTIVA 31 Segundo Maturana e Varela (2001, p. 232), “o desenvolvimento da linguagem humana é a chave para a compreensão da capacidade de reflexão e consciência, pois é a linguagem que permite aos seres humanos descreverem a si mesmos e às circunstâncias vividas”. A Revolução Cognitiva trouxe novas habilidades, tal como a capacidade de transmitir quantidades maiores de informações sobre o que se passa, propiciando a elaboração de planos de ação complexos e conjuntos e criação de laços entre grandes grupos, o que acabou por evidenciar também as diferenças entre cada indivíduo, enfatizando dificuldades nessas interações. Com um olhar atento para os últimos 200 anos é possível perceber a enorme evolução na organização da sociedade humana. Sistemas sociais complexos, ordenamentos jurídicos e meios de comunicação sofisticados foram desenvolvidos e aperfeiçoados, mas a dissonância entre o pensamento, ideias e valores continuam a ser um desafio da comunicação. As tensões, conflitos e dilemas continuam a fazer parte da cultura e da condição humana e, como visto anteriormente, acabam por fomentar mudanças quando necessárias. Também nas últimas décadas é possível verificar que a expansão dos meios de comunicação experimentou um crescimento sem precedentes, construindo uma rede global de comunicação, pondo cada recanto do mundo em contato com o restante do planeta quase que instantaneamente. Advém dessa constatação a importância da reflexão sobre as relações humanas e a comunicação, visto que, aparentemente, aquilo que conecta os homens de forma mais concreta é também o que mais desafia a convivência social. Uma comunicação eficaz é uma das ferramentas mais poderosas na construção de relações sociais mais harmônicas. 2.1 TEORIA DA COMUNICAÇÃO HUMANA Partindo do pressuposto que a pessoa humana está o tempo todo interagindo com outras pessoas e, portanto, comunicando, é possível afirmar que comportamento é comunicação. É através do comportamento que valores, desejos, interesses, necessidades e sentimentos são expressos, muito além das palavras. Assim, mesmo com esforço, é impossível não comunicar. 32 UNIDADE 1 — PARTICIPAÇÃO SOCIAL, CIDADANIA, AUTONOMIA, RELAÇÕES DE CONFLITO E COMUNICAÇÃO ASSERTIVA FIGURA 5 – COMUNICAÇÃO NÃO VERBAL FONTE: . Acesso em: 21 jan. 2020. A comunicação pressupõe muito mais do que apenas palavras, mensagens são trocadas tempo todo. Quem nunca ouviu a expressão “o silêncio vale mais que mil palavras”? Alguma coisa é comunicada inclusive quando a pessoa se cala. Para Vasconcelos (2014), comportamento é comunicação e esta pode ser verbal ou não verbal, nem sempre ocorre de maneira intencional, consciente ou eficiente, mas faz parte das relações humanas e, portanto, dos sistemas sociais nos quais as pessoas estão inseridas. Existem alguns atributos que influenciam diretamente nas relações interpessoais e que causam efeitos nos comportamentos do indivíduo e seus semelhantes. A esses atributos ou regras chamamos axiomas da comunicação (WATZLAVICK; BEAVIN; JACKSON, 2002). São eles: 1º axioma: impossível não comunicar Todo comportamento é comunicação e, como não existe o “não comportamento”, da mesma forma não existe a não comunicação. Mesmo em silêncio, o comportamento tem influência e valor de mensagem para o outro. A escolha por não falar comunica implicitamente a vontade de não comunicar, ao passo que, aceitando a comunicação, respondemos de maneira lacônica, irônica ou agressiva, escolhendo mudar de assunto, falando frases desconexas, fingindo nãoentender, usando gestos ao invés de palavras. Tudo isso pode tornar a comunicação impossível, a vontade de não estabelecer comunicação será comunicada. 2º axioma: toda comunicação tem um aspecto de conteúdo e um aspecto de relação – metacomunicação Toda comunicação vai além do que é dito pelas palavras, vai além do significado, pois possui mais informações. Essas informações dão a entender TÓPICO 3 — COMUNICAÇÃO ASSERTIVA 33 a relação que os interlocutores mantêm entre si. O conteúdo da mensagem é influenciado pela entonação dada por quem fala, ou seja, a forma com que a mensagem é entregue ao interlocutor manifesta esse axioma, pois em toda comunicação é percebido o conteúdo e a relação entre os participantes, dando margem a interpretações do conteúdo de acordo com a relação entre os envolvidos no diálogo. A metacomunicação constitui a relação entre o conteúdo do que é comunicado com a forma com que é feito, um processo que o emissor tenta passar também através dos gestos, do tom de voz e de olhares a chave de como a mensagem falada deve ser interpretada. Dessa forma, é possível concluir que toda a comunicação vai além do significado das palavras, contém mais informações embutidas na maneira como os interlocutores interagem e dão a entender que tipo de relação mantém entre si. 3º axioma: a natureza da relação depende da pontuação dos parceiros nos processos de comunicação A natureza das relações depende da pontuação e das sequências comunicacionais entre os comunicantes, pois tanto o emissor como o receptor da comunicação estruturam essa comunicação de forma distinta e, assim, interpretam e modulam o seu próprio comportamento durante a comunicação dependendo ou relacionando à reação do outro. Um exemplo seria quando alguém diz para si mesmo, ao interpretar o comportamento de seu grupo de trabalho: “essa equipe não gosta de mim” e se afasta do grupo. Por sua vez, os componentes da equipe de trabalho se manterão distantes porque percebem o afastamento do colega e assim confirmam a expectativa do primeiro. É evidente que quem se afasta não percebe que está provocando a situação, pois se vê reagindo ao comportamento do grupo. Para Vasconcellos (2007), a busca de uma causa linear para o que acontece nas relações humanas é compreensível a partir do paradigma tradicional da ciência, é uma tendência das pessoas que possuem uma visão tradicional de mundo. Segundo o autor, naqueles indivíduos que já assumiram uma visão de mundo sistêmica, pautada nas relações e não nos indivíduos, as relações de causa e efeito já não estão tão presentes nas suas interações. A compreensão deste axioma é essencial quando o assunto é relacionamento, uma vez que toda a informação trocada chega com base nas próprias experiências dos interlocutores, o que faz com que conceitos básicos como amor, respeito e confiança, tenham significados distintos para cada um (VASCONCELLOS, 2007, p. 510). 34 UNIDADE 1 — PARTICIPAÇÃO SOCIAL, CIDADANIA, AUTONOMIA, RELAÇÕES DE CONFLITO E COMUNICAÇÃO ASSERTIVA 4º axioma: os seres humanos se comportam de forma digital e analógica Os seres humanos podem representar de duas formas as realidades ausentes: através de símbolos que fazem uma analogia ao objeto ou realidade que é descrita, portanto uma comunicação não verbal ou analógica, que pode ser composta pela linguagem corporal, pelos gestos, pelo silêncio e pelas onomatopeias, ou através da forma verbal ou digital formada pelas palavras, isto é, pelos símbolos linguísticos. Muitas vezes, na tradução do digital (palavras) para o analógico (gestos e sons) há alguma perda de comunicação, mas as trocas comunicacionais são complementares. É possível dizer que o conteúdo é basicamente transmitido através da comunicação digital e as relações são essencialmente analógicas. Por exemplo, quando alguém fala com alguém, está se comunicando verbalmente, mas também está se comunicando através de expressões faciais e gestos que podem ou não ser concordantes. 5º axioma: os padrões de interação são simétricos ou complementares O foco deste axioma está na importância dada à maneira como as pessoas se relacionam. Algumas vezes a relação se dá baseada em condições de igualdade, em outras está calcada a partir das diferenças. Watzlavick, Beavin e Jackson (2002) afirmam que as trocas comunicacionais são simétricas ou complementares porque se baseiam na igualdade ou na diferença, respectivamente. Quando os relacionamentos são simétricos, a interação entre os interlocutores se dá em condições de igualdade e um poder equivalente de permuta, mas não há complementação. Já nas relações complementares, como por exemplo, entre pais e filhos, professor e aluno, as condições são desiguais, apesar de aceitar-se o que possibilita a interação entre os participantes do diálogo. Quando esses cinco princípios ou axiomas são analisados, é possível concluir que a comunicação é muito mais complexa do que é possível imaginar, pois possui uma série de aspectos que precisam ser levados em consideração e que vão além da simples emissão e recepção de palavras. Segundo Carlos Eduardo Vasconcelos (2014), a comunicação verbal (digital) ou não-verbal (analógica) nem sempre ocorre intencionalmente, de forma consciente ou eficaz, mas mesmo assim é relacional, pressupondo ser, portanto, circular e recursiva, o que a torna inevitável, visto que os seres humanos, seres sociais, estão constantemente se relacionando uns com os outros e, portanto, se comunicando de alguma forma. IMPORTANTE TÓPICO 3 — COMUNICAÇÃO ASSERTIVA 35 Em situações relacionais é importante que sejam oferecidas outras formas de compreensão e resolução dos conflitos, muitas vezes causados por uma comunicação falha e ineficaz. Buscar a compreensão dos fatos, dos sentimentos e das necessidades de cada indivíduo, com foco no que eles possuem em comum entre si, e não nas suas diferenças, fomentando a construção de diálogos mais saudáveis, atendendo e acolhendo os interesses de cada um, pode proporcionar a solução das questões em pauta de maneira muito mais satisfatória e construtiva para todos os envolvidos. Em outras palavras, os cidadãos precisam desenvolver um olhar mais construtivo quando tratam dos conflitos interpessoais, uma vez que esses são inerentes às relações, indispensáveis para o crescimento e responsáveis por avanços importantes para a sociedade. Para que haja essa compreensão, é necessário que sejam desenvolvidas habilidades de comunicação construtiva, consciente e mais sustentável, não violenta, pautada no respeito e na escuta. Carlos Eduardo Vasconcelos (2014, p. 131) conceitua comunicação construtiva como: [...] um conjunto de habilidades que contribui para gerar confiança, empatia e colaboração no trato dos inevitáveis conflitos de convivência humana, pela validação de sentimentos a partir do reconhecimento da essencialidade e legitimidade do outro, enquanto coconstrutor e coinovador dos padrões relacionais que podem ajudar na identificação das necessidades vitais a serem contempladas em cada situação. Uma das formas possíveis para o desenvolvimento de uma comunicação mais sustentável e construtiva, o que possibilita diálogos mais produtivos, é através de um processo de comunicação apresentado pelo psicólogo americano Marshall Rosenberg (2006), denominada por ele de Comunicação Não violenta. 3 COMUNICAÇÃO NÃO VIOLENTA A comunicação não violenta (CNV) é um processo de comunicação cujo objetivo é estimular as pessoas a expressarem melhor suas necessidades além de ouvir e compreender melhor as necessidades dos outros, sistematizada pelo psicólogo e mediador deconflitos norte-americano, Marshall Rosenberg. É interessante compreender em que contexto ele passou a se ocupar do tema sobre comunicação e por que fez de sua vida um laboratório para sua pesquisa. Marshall Rosenberg, de origem judaica, nasceu no estado de Ohio e, no início da Década de 1940, ainda criança, mudou-se com sua família para Detroit, época de intensos e violentos conflitos raciais na cidade, em especial no bairro em que passaram a viver. No primeiro dia de aula, ao se apresentar, os colegas perceberam que ele era judeu e o esperaram ao final do turno para lhe darem uma surra. Com esse acontecimento ele descobriu que a origem do nome de alguém poderia ser tão perigosa quando a cor da sua pele. Desde aquele episódio, passou a se ocupar com duas questões cruciais para ele: o que acontece que desliga o 36 UNIDADE 1 — PARTICIPAÇÃO SOCIAL, CIDADANIA, AUTONOMIA, RELAÇÕES DE CONFLITO E COMUNICAÇÃO ASSERTIVA ser humano de sua natureza compassiva? O que permite que algumas pessoas permaneçam ligadas a sua natureza compassiva mesmo nas circunstâncias mais penosas? Cursou psicologia na Universidade de Michigan e, em 1961, concluiu seu doutorado em Psicologia Clínica na Universidade de Wisconsin-Madison. Buscando respostas para essas perguntas, Marshall Rosenberg percebeu que as explicações estavam ligadas à linguagem e ao uso das palavras. Passou, então, a desenvolver uma abordagem específica de comunicação baseada no falar e ouvir, que permite uma maior conexão entre as pessoas, tendo aspectos da não violência como base. FIGURA 6 – O DIÁLOGO – A ARTE DE CODIFICAR AQUILO QUE ESTÁ SENDO DITO FONTE: . Acesso em: 21 jan. 2020. É importante destacar que esse tipo de comunicação pode auxiliar no gerenciamento e resolução de conflitos tanto entre duas pessoas quanto num grupo familiar, ou entre equipes de trabalho, grupos escolares, empresas e mesmo entre nações. Essa proposta de comunicação foi desenvolvida com o intuito de lidar positivamente com os conflitos, e não de evitá-los. A CNV tem por objetivo resgatar o que há de mais humano na pessoa: suas emoções, valores e a capacidade de se expressar com honestidade, auxiliando os outros com profunda empatia e praticando uma escuta verdadeira do outro, mergulhando nas reais necessidades presentes em cada um. Muitas vezes, no cotidiano, é estabelecido um tipo de comunicação ineficaz, cheia de ruídos, vindos também da dificuldade pessoal de falar abertamente sobre vulnerabilidades pessoais, sobre necessidades reais. Há a tendência de colocar em quem escuta a responsabilidade pelas frustrações de quem fala. Uma linguagem coerciva, cheia de ameaças (veladas ou explícitas) e chantagens faz com que as pessoas se expressem com menos boa vontade, ainda que se submetam aos valores impostos – uma comunicação alienante, na definição de Rosenberg (2006). TÓPICO 3 — COMUNICAÇÃO ASSERTIVA 37 Falar sobre comunicação não violenta ou construtiva passa, necessariamente, por uma reflexão sobre o que é violência para cada pessoa. Violência não é apenas aquela explícita que se manifesta por socos, pontapés, xingamentos, tiros. Com um olhar atento é possível perceber que existe uma violência inconsciente e que ela é exercida através da fala, ou silêncio, contra a própria pessoa ou contra os outros – mesmo que não haja intenção consciente. Malvina Ester Muzkat (2008, p. 31), em seu livro Guia prático de mediação de conflitos em famílias e organizações, define violências como: [...] toda e qualquer forma de constrangimento, coerção ou subordinação exercida sobre outra pessoa por uso abusivo de ‘poder’. Quando os níveis de tolerância à frustração são muito baixos, o indivíduo, empenhado em defender-se de algum tipo de dano – real ou imaginário – reage com violência [...]. Seguindo a mesma lógica, Thomas D'Ansembourg (2018) refere que a violência é produto de uma comunicação não consciente, quando o indivíduo se expressa com o intuito de pressionar os envolvidos de forma afetiva, psicológica, moral, hierárquica ou institucional. Assim, a violência velada ou implícita é muito mais comum do que a explícita. Tanto Marshall Rosenberg quanto Thomas D'Ansembourg defendem a ideia de que a chave para a melhora da comunicação está na linguagem. Para eles, esta melhora pode operar uma transformação, tornando as relações menos agressivas e violentas. Os princípios de uma comunicação mais construtiva ou não violenta são aplicáveis em todos os níveis de relações interpessoais, no entanto Rosenberg (2006) alerta que não se trata de uma técnica de uso de palavras, visto que é muito mais abrangente e pode estar presente nos gestos, na expressão facial, na linguagem corporal ou mesmo no silêncio que, segundo ele, é uma característica do estar presente, estar disponível para ouvir e acolher. Quando a pessoa se torna mais consciente de como se comunica, ela pode ser mais clara e honesta ao manifestar reais e profundas necessidades. O autoconhecimento possibilita a percepção e o entendimento dos gatilhos de comportamentos e contextos que tocam e desestabilizam, afastando do estado natural de compaixão. Ao estudar os motivos pelos quais acontece o afastamento do estado natural de compaixão, Rosenberg identificou formas específicas da linguagem e da comunicação que contribuem para esse afastamento e fomentam os comportamentos violentos em relação aos outros e à própria pessoa. Rosenberg atribui a elas o nome de “comunicação alienante da vida”. São elas: 38 UNIDADE 1 — PARTICIPAÇÃO SOCIAL, CIDADANIA, AUTONOMIA, RELAÇÕES DE CONFLITO E COMUNICAÇÃO ASSERTIVA a) Julgamentos moralizadores Esses julgamentos estimulam a violência porque estimulam os sentimentos de culpa, depreciam, criticam, comparam, reduzem as pessoas ao que outros interpretam ou julgam que elas sejam. Esse tipo de comportamento traz a ideia de que quem não pensa e age de acordo com os valores esperados está errado ou é ruim. Analisar e interpretar os outros acaba por expressar quem é este que analisa e interpreta, quais suas necessidades e seus valores. Nas palavras de Rosenberg (2006, p. 39): Estou convicto que todas essas análises de outros seres humanos são expressões trágicas dos nossos próprios valores e necessidades. São trágicas porque, quando expressamos nossos valores e necessidades de tal forma, reforçamos a postura defensiva e a resistência a eles nas próprias pessoas cujos comportamentos nos interessam. Ou, se essas pessoas concordam em agir de acordo com nossos valores porque aceitam nossa análise de que estão erradas, é provável que o façam por medo, culpa ou vergonha. Julgamentos moralizantes são diferentes de julgamentos de valor. Enquanto o primeiro faz uma análise crítica de pessoas e comportamentos que diferem dos seus, o segundo reflete aquilo que é valorizado na sua vida. A pessoa humana é estimulada, desde muito cedo, a analisar, tomar decisões baseadas na racionalidade, rotular, separar e criar categorias distintas, mas é pouco estimulado a se conhecer, a expressar seus sentimentos e ouvir com atenção ao outro. Disso resulta que a pessoa julga rapidamente situações e pessoas, sem aprofundar sua percepção e essa interpretação superficial acaba sendo estabelecida como realidade, o que colabora para que a comunicação fique prejudicada na interação com o outro. b) Fazer comparações Para Rosenberg (2006), comparações são outra forma de julgamento que também bloqueia a capacidade que temos de nos conectarmos e impede relacionamentos saudáveis. c) Negação da responsabilidade Na visão de Marshall, algumas atitudes como autorresponsabilização e pensamentos são cruciais para que se estabeleça uma comunicação construtiva. Creditarao outro o poder de fazer alguém feliz ou entristecer-se é fugir da responsabilidade pelos próprios sentimentos e delegar ao outro um poder que não lhe pertence. Quando uma pessoa diz: “estou triste porque você...”, ela não está assumindo a responsabilidade pelo que sente, ao invés disso, está delegando ao outro a culpa pelas suas dores ou frustrações. A comunicação não violenta substitui a fala que deixa explícita ou implícita a falta de escolha por outra que reconheça que tem possibilidades de TÓPICO 3 — COMUNICAÇÃO ASSERTIVA 39 escolha. Por exemplo, alguém que diga que começou a fumar porque todos os amigos fumavam, deposita no grupo a responsabilidade pelo seu ato. Começar a fumar ou não será sempre uma escolha pessoal. d) Comunicar desejos como exigências Outra forma alienante de comunicação é manifestar desejos em forma de exigência, ameaçando, punindo ou culpando o outro caso não sejam atendidos. D’Ansembourg (2018) diz que é habitual pensar que o bem-estar pessoal é responsabilidade da pessoa com quem se convive, não da própria pessoa. Assim, também, pensa-se ser capaz de suprir as necessidades dos outros com suas atitudes e exige-se que o outro faça aquilo que se quer para poder ficar satisfeito. Esse pensamento é alienante porque frequentemente gera culpa e dependência daquilo que o outro faz ou deixa de fazer. e) Sistema binário ou dualidade Há uma tendência recorrente de se classificar tudo em categorias de certo e errado, positivo e negativo, bom e mau, justo e injusto e assim por diante. Essa tendência diminui a riqueza e a diversidade de nuances que um ser humano pode ser capaz de possuir, desagregando ao invés de somar, gerando violência sobre as pessoas. Como visto anteriormente, os seres humanos evoluíram enquanto espécie porque desenvolveram capacidade de cooperar uns com os outros, Rosenberg (2006) diz que é da natureza humana dar e receber com compaixão, entretanto os seres humanos são ensinados a se comunicarem de modo a bloquear essa capacidade, ao que ele classifica como “comunicação alienante da vida”. Esse tipo de comunicação se origina de sociedades baseadas na hierarquia e dominação, na classificação dualista entre “certo” e “errado”, “bem” e “mal”, na não aceitação da pluralidade de pensamento. Segundo o autor, quando a pessoa entra em contato estreito e consciente com seus sentimentos e necessidades, deixa de ser subserviente. “Aprendemos muitas formas de ‘comunicação alienante da vida’ que nos levam a falar e a nos comportar de maneiras que ferem aos outros e a nós mesmos” (ROSENBERG, 2006, p. 48). A comunicação não violenta apresenta dois eixos principais: a empatia e a autenticidade. A empatia é a habilidade de um se colocar no lugar do outro, a forma como escuta e compreende os sentimentos e necessidades das pessoas. Já a autenticidade tem a ver com a habilidade com que cada um expressa seus sentimentos e necessidades de forma construtiva, para que o outro possa escutar e compreender de verdade. 40 UNIDADE 1 — PARTICIPAÇÃO SOCIAL, CIDADANIA, AUTONOMIA, RELAÇÕES DE CONFLITO E COMUNICAÇÃO ASSERTIVA Quando um compreende respeitosamente o que os outros estão vivenciando, pode dizer que está sendo empático. Por outro lado, quando oferece conselhos, encoraja ou explica seu ponto de vista, está bloqueando a empatia. A autenticidade tem a ver como um indivíduo trata a si mesmo nas situações adversas. Ao aprender a identificar e aceitar seus próprios sentimentos e necessidades, a pessoa pode compreender melhor o que se passa com os outros quando se trata dos sentimentos e necessidades alheias. A linguagem do lobo e a linguagem da girafa Quando usamos uma linguagem desconectada de nossos sentimentos e necessidades, carregada de julgamentos e interpretações, a CNV chama de “linguagem do lobo” – feroz e impiedosa. Por outro lado, quando nos comunicamos conscientes e conectados com nossos sentimentos e necessidades, essa seria a “linguagem da girafa” – compassiva, assertiva e mais sustentável. INTERESSANTE 4 A IMPORTÂNCIA DA ESCUTA PARA UMA COMUNICAÇÃO CONSTRUTIVA FIGURA 7 – CAPACIDADE DE ESCUTA FONTE: . Acesso em: 21 jan. 2020. TÓPICO 3 — COMUNICAÇÃO ASSERTIVA 41 A comunicação tem dois estágios: falar e escutar. Como o lado ativo da comunicação se dá pelo ato da fala, muitas vezes a importância da escuta é minimizada. Algumas vezes é possível pensar que falar alto e claramente garante a escuta. Isto pode estar tão enraizado na forma como se dá a comunicação que o ato de escutar não é valorizado. A escuta é um dos fatores cruciais para alcançar a empatia e, consequentemente, conectar e compreender melhor o que o outro comunica. Somente aquele que se sente verdadeiramente escutado terá predisposição para escutar verdadeiramente também. Escutar é diferente de simplesmente ouvir o que foi dito, está diretamente relacionado a estar atento à linguagem não verbal, aquela que é comunicada através do tom de voz, dos gestos, do olhar. Tenha claro que escutar ativamente não é apenas ouvir. É identificar- se, compassivamente, sem julgamentos. [...] Escutar, portanto, é, antes de tudo, atitude e reconhecimento; essa necessidade básica de todos nós nas relações interpessoais” (VASCONCELOS, 2014, p. 135). Ouvir e escutar possuem significados distintos. Ouvir é um fenômeno biológico que está associado à capacidade de distinguir sons em interações com o meio, já escutar é mais profundo. Apesar de fazer parte do fenômeno biológico, a escuta pertence ao campo do domínio da linguagem e está associado à interpretação e à interação social entre as pessoas. O ato de escutar é muito importante para o processo comunicacional. Dessa forma, praticar uma escuta verdadeira e profunda estimula a empatia e é um dos eixos fundamentais para uma comunicação construtiva. 42 UNIDADE 1 — PARTICIPAÇÃO SOCIAL, CIDADANIA, AUTONOMIA, RELAÇÕES DE CONFLITO E COMUNICAÇÃO ASSERTIVA Segundo o professor e pesquisador do Massachusetts Institute of Technolo- gy, Otto Scharmer (2010), a escuta possui quatro níveis diferentes de consciência: • Nível 1 – Dowloading – é a escuta mais superficial e se manifesta em respostas auto- máticas ou quando uma pessoa concorda sem prestar atenção ao que foi falado. • Nível 2 – Open mind – quando o julgamento é desligado e é aberta a mente para es- cutar os fatos sem alterá-los com a percepção ou expectativas pessoais. Para que esse nível de escuta ocorra é necessário que a pessoa esteja concentrada no que está sendo dito e aberta para acolher a percepção ou ponto de vista do outro. • Nível 3 – Open heart – este nível é o da escuta empática, quando a pessoa abre o co- ração para buscar compreender a visão de mundo do outro, que pode ser radicalmente diferente da sua. Ao ouvir empaticamente, são abertos a mente e o coração para esta- belecer uma conexão com o outro, o que pode proporcionar um entendimento mais profundo do que está sendo dito. • Nível 4 – Open Will – é o nível mais profundo de escuta e se dá quando uma pessoa é capaz de entender como a outra está criando seu pensamento, alcançando assim um grau de profundidade que possibilita compreender e se conectar com os sentimen- tos e necessidades das pessoas com as quais está se comunicando. Possibilita que se pratique a empatia e que seja capaz de criar junto ao outro novos pensamentos, novas ideias e novos projetos. FONTE: Adaptado de . Acesso em: 13 dez. 2019. IMPORTANTE Para Rosenberg (2006) a empatia é a compreensão respeitosa, através de uma escuta qualificada do outro e só pode ocorrer quando se esvazia a mente de todos os julgamentos e ideias preconcebidas. Ao prestarmos mais atenção ao modo como escutamos e passarmos a praticar uma escuta cada vez maisconsciente, vamos poder notar com mais facilidade o efeito dessa habilidade nas relações e na construção de uma comunicação mais eficaz. ATENCAO No processo da comunicação não violenta, as palavras utilizadas pelas pessoas ao se expressarem não são o mais importante. Imprescindível é escutar atentamente o que os outros estão observando, sentindo, necessitando e pedindo para além do que é dito, para que, assim, se abram oportunidades de construção de diálogo e maior conexão entre as pessoas. TÓPICO 3 — COMUNICAÇÃO ASSERTIVA 43 O porquê da CNV ser considerada a língua das girafas Rosenberg (2006) usou a metáfora da girafa para ilustrar como as intenções, palavras e ações contribuem para a vida ou alienam dela. A girafa é o mamífero terrestre com o maior coração do reino animal. O seu coração irriga o sangue pelo seu pescoço até o cérebro, com um coração tão grande assim, a ideia é de que as girafas “ouvem” com o coração, não fazendo julgamentos de valor, apenas observando, com empatia e uma presença afetuosa. O longo pescoço representa a visão, a capacidade de ver claramente a questão. Além disso, as girafas se alimentam de acácia, uma planta com muitos espinhos. Assim, podemos aprender com as girafas como atravessar os desafios e dificuldades das relações encontrando o prazer e a nutrição que sustentam e dão sentido à vida. INTERESSANTE Na essência da comunicação não violenta estão quatro componentes que garantem um diálogo mais produtivo e sustentável, baseado na empatia e na autenticidade, e que são conhecidos como os quatro componentes ou passos da CNV. 5 OS QUATRO COMPONENTES PARA A CONSTRUÇÃO DE AVANÇOS NOS PROCESSOS COMUNICACIONAIS – OS QUATRO PASSOS DA CNV A comunicação humana, como visto anteriormente, é algo muito mais dinâmico que simplesmente a aplicação de uma fórmula. Entretanto, para fins de aprendizagem, Rosenberg (2006) assinala quatro passos que, quando aplicados, podem facilitar o processo. Cada um desses passos ou componentes constrói uma parte da mensagem que comunicará aos interlocutores sentimentos e necessidades, possibilitando a busca de soluções conjuntas das questões tratadas através do diálogo. São eles: observação, sentimentos, necessidades, pedido. 5.1 OBSERVAÇÃO É um componente importante no processo proposto por Rosenberg e é diferente de avaliação. Quando alguém se propõe a utilizar a comunicação não violenta, deve ter em mente que, ao observar uma situação, deve descrever clara e honestamente aquilo que aconteceu, o que viu, o que sentiu. Segundo 44 UNIDADE 1 — PARTICIPAÇÃO SOCIAL, CIDADANIA, AUTONOMIA, RELAÇÕES DE CONFLITO E COMUNICAÇÃO ASSERTIVA Rosenberg (2006), quando alguém faz uma observação, acaba colocando sua interpretação naquilo que aconteceu. E é este, para ele, o ponto mais importante desse componente: a diferença entre observação e avaliação. Observações são os fatos, as ações, o que houve. Observação não acarreta julgamento, avaliação, diagnóstico ou interpretação do que aconteceu. Para Rosenberg (2006, p. 57), “a CNV é uma linguagem dinâmica que desestimula generalizações estáticas. Em vez disso, as observações devem ser feitas de modo específico, para um tempo e um contexto determinado”. AUTOATIVIDADE Para exercitar a habilidade de observar sem avaliar, será apresentado um exercício. Marque apenas as afirmações que contemplem uma observação, sem nenhuma avaliação relacionada. Afirmações a) ( ) Na reunião de hoje, Carla estava irritada comigo sem motivo. b) ( ) Hoje de manhã, Luiz levou sua xícara para a pia e a lavou. c) ( ) Meu chefe é uma boa pessoa. d) ( ) Minha mãe trabalha muito. e) ( ) Melissa frequentemente se atrasa para as reuniões de sexta. f) ( ) Carla fala muito. g) ( ) Marcelo não pegou a lista do supermercado. h) ( ) Marcelo sempre esquece a lista do supermercado. i) ( ) Susana me disse que não devo deixar as pastas fora de ordem. j) ( ) Valéria está muito nervosa. 5.2 SENTIMENTOS O segundo passo ou componente da CNV é a expressão de sentimentos. Se ao observar, normalmente, já se inicia o processo de avaliação das atitudes, atribuindo culpa a outra pessoa, a interpretação leva por caminhos ainda mais tortuosos. Dessa forma, expressar sentimentos pode ser bem desafiador. Os indivíduos não são estimulados a tomar consciência do que sentem, tampouco a expressarem sentimentos com clareza. TÓPICO 3 — COMUNICAÇÃO ASSERTIVA 45 FONTE: . Acesso em: 21 jan. 2020. FIGURA 8 – A RODA DOS SENTIMENTOS Muitas vezes determinada situação é mal interpretada, o que acaba por despertar sentimentos ruins, já que a pessoa acredita que o outro é culpado, sendo a ela direcionada a frustração. Este ordenamento acaba por convencer a pessoa que aquele sentimento foi causado pelo outro, ou seja, a culpa pelo que um sente é creditada ao outro. A projeção é feita de fora para dentro, o que para Rosenberg (2006) significa: o que os outros fazem pode ser um estímulo para o que se sente, mas não a causa. Outro ponto importante no segundo componente da CNV é diferenciar pseudossentimentos de sentimentos. Os pseudossentimentos são carregados de julgamento e culpa. Segundo Rosenberg (2006), os sentimentos não são claramente expressos quando é usada a palavra “sentir” seguida de termos como que, como, como se. Por exemplo: “Sinto que Marcos tem sido muito exigente comigo.” “Sinto-me como um idiota.” “Sinto como se ela me ignorasse.” “Sinto que não consegui um acordo justo.” Quando realmente expressamos um sentimento, não precisamos dessas expressões. Veja a seguir: “Estou muito alegre com a nova fase da minha vida.” “Sinto-me frustrada por não conseguir conversar com ele.” “Estou triste por não poder viajar no feriado.” “Estou me sentido frustrado com o acordo que fiz.” 46 UNIDADE 1 — PARTICIPAÇÃO SOCIAL, CIDADANIA, AUTONOMIA, RELAÇÕES DE CONFLITO E COMUNICAÇÃO ASSERTIVA O uso de palavras como ameaçado, ignorado, pressionado, traído ou usado, interpreta o que a pessoa entende que os outros fazem com ela. Quando cada um se responsabiliza pelos seus sentimentos e não se vitimiza, pode se tornar mais consciente de seus sentimentos e consegue se expressar com maior autenticidade. O segundo componente da CNV questiona: O que você sentiu ou como está se sentindo diante dessa situação? Segundo Rosenberg (2006), é necessária a construção de um vocabulário mais rico para expressar sentimentos, usando palavras que expressem emoções de forma mais específica e menos genérica. Um exemplo dado por ele diz respeito a quando, em resposta a uma pergunta, a pessoa diz “estou me sentindo bem”. Para ele, essa palavra “bem” pode ter muitos significados, tais como alegre, satisfeito, aliviado, entre outras. Essa palavra tem um significado muito amplo, o que acaba por impedir uma conexão real com o que a pessoa está sentindo. A seguir, a lista de sentimentos, compiladas por Rosenberg (2006, p. 72- 73), identificáveis quando necessidades são atendidas: à vontade absorto agradecido atônito ávido bem-humorado calmo carinhoso complacente compreensivo concentrado confiante confiável consciente contente criativo curioso despreocupado emocionado empolgado encantado encorajado engraçado entretido alegre alerta aliviado entusiasmado envolvido equilibrado esperançoso esplêndido estimulado excitado extasiado exuberante exultante falante fascinado feliz glorioso gratificado grato inspirado interessado livre maravilhado maravilhoso alegre alerta aliviado entusiasmado envolvido equilibrado esperançoso esplêndido estimulado excitado extasiado exuberante exultante falante fascinado feliz glorioso gratificado grato inspirado interessado livre maravilhado maravilhoso TÓPICO 3 — COMUNICAÇÃO ASSERTIVA 47 A seguir,uma lista de sentimentos identificáveis quando necessidades não são atendidas, segundo Rosenberg (2006, p. 74 -75): abandonado abatido aflito agitado alvoroçado amargo amargurado amedrontado angustiado ansioso apático apavorado desiludido desolado despreocupado encabulado encrencado enojado entediado envergonhado exagerado exausto fraco frustrado fulo furioso hesitante horrorizado hostil impaciente impassível incomodado apreensivo arrependido assustado aterrorizado atormentado austero bravo cansado carregado cético chateado chocado indiferente infeliz inquieto inseguro insensível instável irado irritado letárgico magoado mal-humorado melancólico monótono mortificado nervoso obcecado oprimido perplexo perturbado pesaroso ciumento confuso consternado culpado deprimido desapontado desatento desconfiado desconfortável descontente desesperado desencorajado pessimista péssimo preguiçoso preocupado rancoroso receoso rejeitado relutante ressentido segregado sem graça sensível solitário sonolento soturno surpreso taciturno temeroso tenso triste AUTOATIVIDADE Apresentamos outro exercício para testar o alinhamento acerca da verbalização dos sentimentos. Marque as afirmações que estão sendo expressas verbalmente. Afirmações a) ( ) Sinto que você não me respeita. b) ( ) Estou triste porque você está indo embora. c) ( ) Fico decepcionado quando ouço você me dizer essas coisas. d) ( ) Quando você passa por mim e me ignora, sinto-me abandonada. e) ( ) Estou feliz com a sua vinda. f) ( ) Você é um egoísta. 48 UNIDADE 1 — PARTICIPAÇÃO SOCIAL, CIDADANIA, AUTONOMIA, RELAÇÕES DE CONFLITO E COMUNICAÇÃO ASSERTIVA g) ( ) Sinto muita raiva quando você me diz essas coisas. h) ( ) Sinto-me mal compreendido nessa situação. i) ( ) Sinto-me contente a respeito do que você fez por mim. j) ( ) Estou irritada e nervosa com o seu atraso. FONTE: Rosenberg (2006) 5.3 NECESSIDADES O terceiro componente da CNV diz respeito ao reconhecimento e expressão das necessidades de forma clara e, assim, à capacidade de assumir a responsabilidade pelos sentimentos, pois o que os outros dizem ou fazem pode ser um “gatilho” para o que é sentido, mas nunca a causa. Para Marshall, sentimentos são gerados por necessidades atendidas ou não. Por exemplo, se alguém tem necessidades relacionadas à alimentação, sono e afeto atendidas poderá se sentir confortável, satisfeito, alegre etc. Caso não tenha suas necessidades de conforto, pertencimento ou aceitação atendidas, a pessoa poderá se sentir triste, frustrada, infeliz. Muitas vezes não é possível entender claramente as necessidades para poder expressar sentimentos. Isso acontece porque existe a tendência de responsabilizar e culpar o outro pelo contexto do conflito e pelos sentimentos desencadeados. Assim, o outro poderá se sentir atacado pela forma de comunicação. Segundo Rosenberg (2006, p. 95), quando a comunicação não é realizada de forma positiva, há quatro opções possíveis de recepção da mensagem emitida: 1) A pessoa culpa a si mesma. 2) Culpa os outros. 3) Percebe seus próprios sentimentos e necessidades. 4) Percebe os sentimentos e necessidades ocultos por trás da mensagem negativa da outra pessoa. Como foi visto anteriormente, a pessoa, ao julgar, criticar, fazer diagnósticos e interpretações das atitudes dos outros, segundo Rosenberg (2006), realiza expressões alienantes e trágicas de suas necessidades. Quando necessidades são expressas indiretamente, através do uso de avaliações, interpretações e imagens, muito provavelmente a pessoa escutará como uma crítica, tendendo a agir na defensiva ou, ainda, contra-atacando o que foi dito. Quando existe desejo de realizar conexões compassivamente com o outro, é necessária a expressão clara do que se passa e, assim, será aberta possibilidade de que o outro reaja com compaixão. TÓPICO 3 — COMUNICAÇÃO ASSERTIVA 49 A pessoa humana está habituada a pensar no que há de errado no comportamento dos outros sempre que suas necessidades não são atendidas. Assim, se existe o desejo de que a casa esteja em ordem, os tênis no lugar certo, por exemplo, é possível rotular os filhos de preguiçosos por deixá-los na sala ao invés de falar sobre os sentimentos de ver os calçados fora do lugar e da necessidade não atendida. Marshall ressalta que, em sua experiência, quando as pessoas começam a conversar sobre o que precisam, ao invés de falar do que está errado, a possibilidade de encontrar maneiras de atender às necessidades de todos aumenta. Caso não se preste atenção às próprias necessidades, há o risco de que os outros também não as reconheçam. Eis alguns exemplos de necessidades humanas que todos compartilham, às quais Rosenberg se refere em seu livro (2006, p. 86-88): Autonomia: • escolher os próprios sonhos, objetivos e valores; • escolher seu próprio plano para realização desses sonhos, objetivos e valores. Celebração: • celebrar a vida e os sonhos realizados; • elaborar perdas de entes queridos, sonhos etc. (luto). Integridade: • autenticidade; • autovalorização; • criatividade; • significado. Interdependência: • aceitação; • amor; • apoio; • apreciação; • calor humano; • compreensão; • comunhão; • confiança; • consideração; • contribuição para o enriquecimento da vida (exercitar o poder de cada um, doando aquilo que contribui para vida); • empatia; • encorajamento; • honestidade (a honestidade que nos fortalece, capacitando-nos a aprender com nossas limitações); • proximidade; 50 UNIDADE 1 — PARTICIPAÇÃO SOCIAL, CIDADANIA, AUTONOMIA, RELAÇÕES DE CONFLITO E COMUNICAÇÃO ASSERTIVA • respeito; • segurança emocional. Lazer: • diversão; • riso. Comunhão espiritual: • beleza; • harmonia; • inspiração; • ordem; • paz. Necessidades físicas: • abrigo; • água; • alimento; • ar; • descanso; • expressão sexual; • movimento, exercício; • proteção contra formas de vida ameaçadoras: vírus, bactérias, insetos, predadores; • toque. O terceiro componente da CNV apresenta um questionamento: Do que cada um necessita? Quais necessidades não foram atendidas nessa situação? AUTOATIVIDADE Faça este exercício para testar seu entendimento acerca da verbalização das necessidades. Marque as afirmações que estão sendo expressas verbalmente. Afirmações a) ( ) Você me irrita profundamente quando fica falando por horas a fio ao telefone. b) ( ) Fico com raiva quando você faz isso porque quero sua atenção depois de um dia longo de trabalho. c) ( ) Quando você marca um encontro e não vem, fico muito frustrada. d) ( ) Estou frustrada porque meu chefe apresentou o projeto e não disse que fui eu quem o desenvolveu. e) ( ) Fiquei desapontada porque você disse que iria buscar as crianças e não foi. f) ( ) Estou triste porque você não veio, precisava de companhia. g) ( ) Estou muito feliz com a aprovação do seu plano de carreira. TÓPICO 3 — COMUNICAÇÃO ASSERTIVA 51 h) ( ) Fico com medo quando você levanta o tom de voz. i) ( ) Estou grata por você ter trazido os documentos para a reunião. j) ( ) Estou motivada porque sinto que estou progredindo nos meus estudos. FONTE: Rosenberg (2006) 5.4 PEDIDO O último e mais importante passo ou componente da CNV diz respeito a como fazer um pedido de maneira clara e específica. Como é possível expressar pedidos de modo que os outros estejam mais dispostos a responder compassivamente a essas necessidades? A CNV é utilizada para escutar as necessidades de outra pessoa, mas geralmente acaba-se por utilizá-la para expressar as próprias necessidades. Em geral a comunicação é realizada para mostrar ao outro no que ele está “errando” e pedir algo que muitas vezes ele não compreende. O pedido precisa ser positivo e ainda mais específico do que a expressão de sentimentos e necessidades. Por exemplo, se alguém quer o respeito de alguém, oque essa pessoa precisa fazer para que a outra se sinta respeitada? Quais são as ações que são esperadas de uma pessoa para que outra pessoa se sinta respeitada? Os pedidos precisam ser claros, detalhados, para que o outro possa compreender e escolher se pode atender ou não. Fazer um pedido, e não uma exigência, de maneira clara e específica, auxilia a expressar aquilo que se precisa de modo que os outros se sintam mais dispostos a responder compassivamente às necessidades expressas. Importante enfatizar que, mesmo no pedido de algo, os sentimentos do outro devem ser considerados, bem como a busca por estratégias que estejam alinhadas com as necessidades de ambos. Exigências disfarçadas de pedidos são aquelas em que o ouvinte acredita que será punido de alguma forma caso não atenda o que lhe foi solicitado. É importante usar uma linguagem de ações positivas, dizer aquilo de que se precisa ou quer, e não aquilo que não se quer. É possível identificar quando está se fazendo uma exigência (ou um “não pedido”) quando não se consegue aceitar um “não”. Ao não aceitar o “não” como resposta, estará sendo feita uma exigência. Um pedido verdadeiro acontece quando se aceita uma negação ao que é pedido, pois somente assim se estará oferecendo um “sim” para a necessidade do outro. O quarto componente da CNV questiona: Que pedido pode ser feito a essa pessoa? Como é possível tornar esse pedido mais específico? Há outras estratégias possíveis? 52 UNIDADE 1 — PARTICIPAÇÃO SOCIAL, CIDADANIA, AUTONOMIA, RELAÇÕES DE CONFLITO E COMUNICAÇÃO ASSERTIVA AUTOATIVIDADE Mais uma vez é apresentado um exercício para o desenvolvimento de habilidades para formatar pedidos. Identifique em quais das afirmações a seguir as pessoas estão se expressando claramente ao fazer um pedido. Afirmações a) ( ) Preciso que você me ame verdadeiramente. b) ( ) Gostaria que você me dissesse uma atitude concreta que eu fiz e que te deixou satisfeita. c) ( ) Gostaria que você demonstrasse mais respeito por mim. d) ( ) Quero que você pare de beber. e) ( ) Eu mereço mais tempo de folga. f) ( ) Preciso de mais espaço no nosso relacionamento. g) ( ) Quero que você seja um pai mais presente. h) ( ) Gostaria que você se responsabilizasse por fazer a janta duas vezes por semana, na segunda e na quarta, pois nesses dois dias tenho aula de francês. i) ( ) Você precisa ser mais profissional. j) ( ) Eu gostaria que você elogiasse também minhas conquistas ao invés de me dar feedback apenas quando eu erro. FONTE: Rosenberg (2006) Como estratégia para complementar o aprendizado, indicamos os seguintes filmes: Preciosa (Lee Daniels, 2009) – O filme conta a história de Claireece Preciosa Jones – mais conhecida como Preciosa, uma garota de 16 anos, grávida do próprio pai pela segunda vez e vítima de abuso de sua mãe. Preciosa descobre uma nova chance para mudar sua vida com a ajuda da professora de sua nova escola, sra. Rain. DICAS TÓPICO 3 — COMUNICAÇÃO ASSERTIVA 53 Gandhi (Richard Attenborough, 1982) – Este filme, baseado em uma história real e decisiva para a Índia, demonstra o quanto a não violência tem a capacidade de gerar grandes transformações. A trama conta os acontecimentos mais importantes da vida de Mohandas Gandhi, o líder indiano que enfrentou o domínio britânico sobre seu país através da paz e do diálogo. Eu, Daniel Blake (Ken Loach, 2016) – O filme conta a história de Daniel Blake, um senhor desempregado e incapacitado de trabalhar por causa de uma doença. Em busca de uma recolocação no mercado de trabalho, ele tem uma série de diálogos com diferentes profissionais ao longo da trama, por exemplo, assistentes sociais. É interessante perceber como nenhuma dessas pessoas com quem ele conversa consegue, de fato, escutá-lo e compreender suas necessidades. https://www.google.com/search?rlz=1C1GCEU_pt-BRBR887BR887&q=Richard+Attenborough&stick=H4sIAAAAAAAAAOPgE-LUz9U3MDKwzMhS4gAxs4tM47XEspOt9NMyc3LBhFVKZlFqckl-0SJWkaDM5IzEohQFx5KS1Lyk_KL80vSMHayMAD4eP_lJAAAA&sa=X&ved=2ahUKEwivvZrF49jnAhWfDrkGHdtqDi0QmxMoATAfegQIERAL 54 UNIDADE 1 — PARTICIPAÇÃO SOCIAL, CIDADANIA, AUTONOMIA, RELAÇÕES DE CONFLITO E COMUNICAÇÃO ASSERTIVA Extraordinário (Stephen Chbosky, 2017) – O filme acompanha a vida de Auggie Pullman, um garoto que nasceu com uma deformidade facial e está indo para uma escola regular pela primeira vez, onde enfrentará grandes desafios em uma realidade diferente da qual ele cresceu. A Vida é Bela (Roberto Benigni, 1997) – Este filme retrata, com humor e leveza, a empatia e a compaixão de um pai por seu filho. Em plena Segunda Guerra Mundial, ambos são levados para um campo de concentração nazista, no qual o pai precisa usar sua imaginação para convencer o filho de que tudo a sua volta é uma grande brincadeira, afastando-o do verdadeiro horror de sua realidade. Como leitura complementar, sugerimos os seguintes livros: DICAS TÓPICO 3 — COMUNICAÇÃO ASSERTIVA 55 D'ANSEMBOURG, T. Como se relacionar bem usando a comunicação não violenta. Rio de Janeiro: Sextante, 2018. BROWN, B. A coragem de ser imperfeito. Rio de Janeiro: Sextante, 2016. ROSENBERG, M. B. A Linguagem da paz em um mundo de conflitos. São Paulo: Palas Athena, 2005. ROSENBERG, M. B. Comunicação Não Violenta: técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais. São Paulo: Ágora, 2006. ROSENBERG, M. B. Vivendo a comunicação Não Violenta. Rio de Janeiro: Sextante, 2019. KRZNARIC, R. O poder da empatia: a arte de se colocar no lugar do outro para trans- formar o mundo. Rio de Janeiro: Zahar, 2015. 56 UNIDADE 1 — PARTICIPAÇÃO SOCIAL, CIDADANIA, AUTONOMIA, RELAÇÕES DE CONFLITO E COMUNICAÇÃO ASSERTIVA LEITURA COMPLEMENTAR A importância do diálogo e da comunicação não violent no desenvolvimento do líder Vivian Correa Este artigo busca a compreensão e identificação do diálogo como importante característica de líderes de equipes, sejam eles supervisores, coordenadores ou gerentes. Aqui, a proposta é falar de um estilo de comunicação útil ao líder no seu dia a dia, independentemente das características da comunicação interna formal da empresa. Para tanto, busca insights na teoria de Marshall B. Rosenberg, que trata do tema comunicação não violenta, conhecida pela sigla CNV. Segundo essa proposta, para a obtenção de bons resultados no trabalho, devemos utilizar o diálogo para melhorar a nossa convivência, além de aumentar nosso respeito e tolerância ao outro. Este ensaio busca observar uma situação bem específica em que o diálogo acontece nas organizações: o momento do feedback. Os líderes são porta-vozes das empresas, agentes capazes de identificar problemas ainda em sua fase inicial. É por essa razão que a comunicação entre líderes e suas equipes deve apresentar clareza e coerência para as necessidades corporativas fluírem de forma eficaz. O líder que não consegue tornar a comunicação eficaz perde tempo, conhecimento, investimento e ainda pode gerar um clima de desconfiança e falta de credibilidade. O estilo de liderança e a personalidade do líder muitas vezes se sobrepõem aos objetivos estratégicos, podendo trazer muitos problemas para a equipe. Um líder que impõe suas formas de atuação, por exemplo, pode trazer inúmeros problemas, como o medo de as equipes oferecerem um feedback honesto sobre seus superiores. A importância do feedback O feedback não é uma opinião que expresse um sentimento ou emoção, mas sim um retorno que valida ou invalida um dado comportamento ou realização com base em parâmetros claros, objetivos e verificáveis. Feedbacks versam sobre desempenho, conduta e resultados obtidos através de ações realizadas. TÓPICO 3 — COMUNICAÇÃO ASSERTIVA 57 O objetivo fundamental do feedback é ajudar as pessoas a melhorarem seu desempenho e performance por meio do fornecimento de informações, dados, críticas e orientações que permitam reposicionar suas ações em um maior nívelde eficiência, eficácia, efetividade e excelência. Para alcançar o nível de uma equipe preparada, é necessário que o líder tenha como base alguns valores primordiais, como foco em resultados, saber ouvir, dar e receber feedback, reflexão e percepção do outro, conviver com as diferenças e saber compartilhar opiniões. Desenvolvendo essas habilidades, o líder estará preparado, inclusive, para gerenciar situações que venham a desencadear problemas emocionais. Estar atento com os sentimentos e tudo que possa estar vinculado às necessidades de cada pessoa fazem com que nos tornemos mais propensos a conectarmos com o outro. Ao liderar uma equipe é comum nos depararmos com situações inesperadas e problemas de relacionamento entre os integrantes da equipe e até mesmo com os pares de outros setores. A ausência de feedback torna a comunicação deficiente e geradora de conflito, de um modo geral as pessoas não se comprometem em dar retorno, seja por falta de familiaridade ou negligência. O feedback é um processo que promove mudanças de comportamento e atitudes e, para que seja eficaz, ele precisa ajudar a pessoa a ter melhora em seu desempenho. A comunicação não violenta As diferenças culturais, de valores e de crenças já são, por si sós, fatores que inevitavelmente podem gerar conflitos durante a vida profissional de um líder. Algumas habilidades como saber trabalhar em equipe, analisar e identificar problemas, sempre com coerência com o que a empresa tem como premissa, de forma clara, ouvindo sempre os dois lados, facilita muito o entendimento das partes envolvidas, tendo o respeito e a empatia como fator norteador numa comunicação não violenta. De acordo com Rosenberg (2006) nossa capacidade de oferecer empatia pode nos permitir continuar vulneráveis, desarmar situações de violência em potencial, ajudar a ouvir a palavra “não” sem tomá-la como rejeição, reviver uma conversa sem vida e até a escutar os sentimentos e necessidades expressos através do silêncio. Repetidas vezes, as pessoas transcendem os efeitos paralisantes da dor psicológica, quando elas têm suficiente contato com alguém que as possa escutar com empatia. 58 UNIDADE 1 — PARTICIPAÇÃO SOCIAL, CIDADANIA, AUTONOMIA, RELAÇÕES DE CONFLITO E COMUNICAÇÃO ASSERTIVA Quando o líder não consegue criar essa empatia, cria-se um obstáculo para que a boa comunicação aconteça. No lugar delas, o que vemos são resistências que, com o tempo, começam a gerar o que Rosenberg chama de comunicação violenta: ações impostas e falta de participação da equipe na tomada de decisões. No ambiente corporativo, a falta da relação de interação entre líderes e suas equipes são os principais responsáveis pela maioria das crises de gestão, desacertos gerenciais e conflitos interpessoais. É importante que, necessariamente, se separe observação de avaliação. Quando combinamos observações com avaliações, os outros tendem a receber isso como crítica e resistir ao que dizemos. A CNV é uma linguagem dinâmica que desestimula generalizações estáticas. O líder precisa administrar suas avaliações de forma imparcial, pontuando as situações de maneira a não generalizar e estereotipar o funcionário. Alguns componentes de apreciação que Rosenberg destaca são distinguidos de três formas: a primeira por ações que contribuem para o nosso bem-estar, a segunda por necessidades específicas que foram atendidas e, a terceira, por sentimentos agradáveis gerados pelo atendimento das nossas necessidades. Diálogo Passamos a vida acreditando que viver em harmonia é sinônimo de ausência de conflitos e, por isso, fugimos do embate. Quando acontece uma discussão e o outro nos apresenta uma ideia diferente da nossa, não sabemos ouvir. Para conviver com o colega de trabalho, é preciso aprender a não apontar o dedo como forma de defesa das nossas ideias, mas sim ter a flexibilidade e tolerância para acolher as diferenças. O apego às nossas ideias impede que outras soluções e alternativas apareçam. Conviver pressupõe abertura para ouvir e ser ouvido, para saber que o outro traz uma bagagem de vida diversa da nossa. A dificuldade de encontrar soluções para os problemas ligados à falta de comunicação está na ausência de uma educação norteada pelo diálogo e pela reflexão em grupo. Precisamos respeitar a diversidade, seja cultural ou ideológica, para consolidar um ambiente agradável de convivência entre as diferenças. Os líderes que não se comprometem com a cultura do diálogo não conseguem refletir sobre os valores e praticar a tolerância. Em fins do século 5 a.C., um sujeito feioso e esfarrapado, com salientes olhos de batráquio, andava pelas ruas de Atenas interpelando seus concidadãos com um desafio aparentemente simples: queria que as pessoas lhe explicassem o significado das palavras que usavam. Não inquiria a respeito de assuntos etéreos, TÓPICO 3 — COMUNICAÇÃO ASSERTIVA 59 mas sobre a matéria comum do dia a dia, aquilo que a maioria das pessoas pensava conhecer perfeitamente. Aos juízes e advogados, perguntava o que era justiça; aos guerreiros, indagava o significado da palavra coragem; quanto aos supostos sábios, exigia que lhe dissessem exatamente o que é a sabedoria. A conclusão de Sócrates – pois ele é o nosso personagem – foi a seguinte: na maior parte do tempo, os seres humanos não sabem lá muito bem sobre o que estão falando. E há apenas um jeito de colocarem-se no caminho da viável verdade: contrapondo suas ignorâncias individuais, para aprenderem com os erros e os acertos uns dos outros. O diálogo socrático é a busca do conhecimento por meio do confronto irrestrito de mentes, crenças e palavras, mas, aqui, temos de fazer uma distinção importantíssima. Hoje, insistimos em entender “confronto” como uma forma acanhada de ódio ou, ao menos, de beligerância. É a tendência que vem se agravando: de uns tempos para cá, deu-nos na veneta interpretar toda discórdia como afronta pessoal. “Precisamos dialogar” virou um sinônimo secretamente intimidador de “você é obrigado a concordar comigo”. Para Sócrates, pelo contrário, o confronto era uma forma possível da amizade. Isso porque, do ponto de vista filosófico, somos todos criaturas imperfeitas; é de se esperar que nossas ideias individuais sejam, em geral, incompletas. Para conseguirmos nos aproximar da verdade – diz-nos Sócrates, à distância de 24 séculos – precisamos comparar nossos fragmentos de realidade e ver como se encaixam. Só existe diálogo quando há discórdia, mas uma discórdia sem fúria (BOTELHO, 2015, p. 26-27). Conforme Rosenberg (2006, p. 50) destaca, o primeiro componente da comunicação não violenta (CNV) acarreta necessariamente que se separe observação de avaliação. Quando combinamos observações com avaliações, os outros tendem a receber isso como crítica e resistir ao que dizemos. A CNV é uma linguagem dinâmica que desestimula generalizações estáticas. Em vez disso, as observações devem ser feitas de modo específico, para um tempo e um contexto determinado. O líder precisa administrar suas avaliações de forma imparcial, pontuando as situações de maneira a não generalizar e estereotipar o funcionário. Ao realizar um elogio ou agradecimento, não pode utilizar tal ferramenta como método de manipulação. Agradecer na comunicação não violenta significa celebrar o que foi alcançado como bom resultado sem gerar o sentimento de superioridade ou falsa humildade. Outro autor que trata do diálogo e que possui total relação com o tema é o físico Bohm (2005), que diz que o diálogo só flui quando há a suspensão de opiniões e pressupostos. Assim, segundo esse autor, observar os acontecimentos de forma participativa possibilita o estabelecimento de uma consciência compartilhada. Bohm trabalhou duranteanos com o mestre indiano Jiddu Krishnamurti na técnica que chamou de diálogo. Ele diz que, para que algo aconteça, é necessário que abandonemos a defesa de nossas posições. Ao “baixarmos” a guarda, acontece o abrandamento, pois opiniões são naturalmente limitadas e, para chegar-se no todo, precisamos chegar ao consenso do que eu penso e do que o outro pensa. 60 UNIDADE 1 — PARTICIPAÇÃO SOCIAL, CIDADANIA, AUTONOMIA, RELAÇÕES DE CONFLITO E COMUNICAÇÃO ASSERTIVA Considerações finais Liderar é um exercício de empatia, de respeito ao trabalho do outro e de conhecer não só as limitações, mas também o potencial das pessoas e seus pontos de vista. O que define um líder não é o seu cargo e sim suas atitudes perante a equipe que lidera. Fazer com que a equipe se submeta a suas vontades sem a oportunidade da participação não rende bons frutos. Permitir a expressão da equipe, com a garantia de que não acontecerão punições, é um começo para inverter a realidade e alcançar os objetivos das organizações com novas ideias. Estar disposto a ouvir e falar sem filtros e conviver com grau de opiniões diferentes faz toda a diferença nos resultados. Os problemas de comunicação entre líderes e suas equipes são os principais responsáveis pela maioria das crises e conflitos interpessoais. Um líder com a comunicação voltada para o diálogo, evitando o conflito, fortalece a integração e a responsabilização mútua para superar desafios e atingir metas. Dessa forma, todos os colaboradores devem assumir uma postura empreendedora e dinâmica dentro das instituições em que atuam. A partir dessa iniciativa surgem novas ideias para os negócios. As lideranças e organizações já se conscientizaram sobre o exercício do pensamento crítico e reflexivo, de forma individual e coletiva. Precisamos buscar o favorecimento desse exercício a favor da construção de uma realidade empresarial mais humana. FONTE: CORREA, V. A importância do diálogo e da comunicação não-violenta no desenvolvi- mento do líder. 2016. Disponível em: https://casperlibero.edu.br/wp-content/uploads/2016/09/ Artigo-Ebook_A-import%C3%A2ncia-do-di%C3%A1logo-e-da-comunica%C3%A7%C3%A3o-n%- C3%A3o-violenta-no-desenvolvimento-de-um-l%C3%ADder_Vivian-Correa.pdf. Acesso em: 27 fev. 2020. 61 RESUMO DO TÓPICO 3 Neste tópico, você aprendeu que: • A comunicação é um fator muito importante para as relações interpessoais e para o manejo dos conflitos. Quando são desenvolvidas estratégias que estabelecem possibilidades de uma comunicação mais construtiva e eficiente, é aberto caminho para uma sociedade mais pacífica, respeitosa e menos violenta. • Comunicação vai muito além das palavras, está no modo como as pessoas se comportam, na forma com gesticulam e na maneira com escutam o outro. Emitir e decodificar mensagens é uma tarefa que demanda atenção e presença. • Como ferramenta para melhorar a comunicação, o psicólogo americano Marshall Rosenberg sistematizou um processo comunicacional ao qual deu o nome de Comunicação Não Violenta, que também pode ser chamada de comunicação assertiva, construtiva, sustentável. • A Comunicação Não Violenta (CNV) é composta por quatro passos que didaticamente foram descritos pelo autor: ᵒ Observação: diz respeito à descrição dos fatos presenciados, evitando interpretações e julgamentos sobre o que aconteceu. ᵒ Sentimentos: tem a ver com a observação dos fatos e a identificação dos sentimentos suscitados pela observação feita. ᵒ Necessidade: os sentimentos ensinam sobre necessidades atendidas ou não. ᵒ Pedido: quando as necessidades são identificadas é possível fazer pedidos de ações concretas. Ficou alguma dúvida? Construímos uma trilha de aprendizagem pensando em facilitar sua compreensão. Acesse o QR Code, que levará ao AVA, e veja as novidades que preparamos para seu estudo. CHAMADA 62 1 Descreva os cinco axiomas da comunicação. 2 Marshall Rosenberg (2006) identificou formas específicas da linguagem e da comunicação que contribuem para o afastamento e fomentam os comportamentos violentos em relação aos outros e à própria pessoa. Ele atribui a isso o nome de comunicação alienante da vida. Disserte a respeito destas formas. 3 Liste e descreva os quatro níveis de escuta elaborados pela teoria U, de Otto Scharmer. 4 Assinale a alternativa correta: a) ( ) A comunicação é um fator que pode colaborar para as relações interpessoais, mas não tem tanta relevância no manejo dos conflitos. b) ( ) Quando são desenvolvidas estratégias que estabelecem possibilidades de uma comunicação mais construtiva e eficiente, ficamos mais longe de uma sociedade mais pacífica, respeitosa e menos violenta. d) ( ) Comunicação vai muito além das palavras, está no modo como as pessoas se comportam, na forma com gesticulam e na maneira com escutam o outro. Emitir e decodificar mensagens é uma tarefa que demanda atenção e presença. e) ( ) Na comunicação os interlocutores sempre têm certeza da mensagem que estão enviando. AUTOATIVIDADE 63 UNIDADE 2 — OS MEIOS QUE COMPÕEM O SISTEMA DE JUSTIÇA MULTIPORTAS OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de: • compreender o significado da Justiça Multiportas no contexto do sistema judiciário; • identificar e reconhecer os caminhos da heterocomposição para a solução de conflitos; • reconhecer diferenças e semelhanças entre negociação, conciliação e me- diação, enquanto métodos autocompositivos, para viabilizar escolha ade- quada em situações de disputa. Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado. TÓPICO 1 – JUSTIÇA MULTIPORTAS TÓPICO 2 – MEIOS HETEROCOMPOSITIVOS TÓPICO 3 – MEIOS AUTOCOMPOSITIVOS Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações. CHAMADA 64 65 UNIDADE 2 1 INTRODUÇÃO Como já apresentado, viver em sociedade exige o desenvolvimento de capacidades para lidar com desentendimentos, conflitos de interesses e, quem sabe, discórdias, visto que as pessoas são únicas, diferentes umas das outras e, por isso mesmo, podem almejar coisas diferentes e dessas diferenças podem surgir relações de conflitos. Para cada um desses conflitos, são acionadas diferentes formas de resolução, cada qual com suas especificidades. Neste tópico será apresentada a Justiça Multiportas, com o objetivo de que outros métodos possam ser analisados e explorados, já que podem apresentar soluções mais adequadas nesse tempo de excessiva litigiosidade e inseguranças jurídicas. 2 DEFINIÇÕES PRELIMINARES A expressão multiportas é uma metáfora utilizada para figurar as muitas portas de acesso à Justiça, de modo que, a partir da análise da demanda apresentada, as pessoas envolvidas possam ser encaminhadas para a porta que melhor atenda às suas necessidades: porta da justiça estatal, mediação, conciliação ou arbitragem. A ideia geral da Justiça Multiportas, ou sistema de múltiplas portas, é a de que o litígio judicial não é o único meio, tampouco a principal opção para a resolução de um conflito, existindo outras possibilidades que consideram a ideia de pacificação social. Assim, para cada tipo de litígio existe uma forma mais adequada de solução. A jurisdição estatal é apenas mais uma dessas opções. O sistema multiportas, assim, deixa de ser lugar onde apenas se julga, para ser um local de resolução de conflitos, cujas partes podem e devem sair satisfeitas com o resultado para suas controvérsias. Em outras palavras, nosso sistema jurídico paulatinamenteimpressos, para que você, nossa maior prioridade, possa continuar seus estudos com um material de qualidade. Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes – ENADE. Bons estudos! NOTA Olá, acadêmico! Iniciamos agora mais uma disciplina e com ela um novo conhecimento. Com o objetivo de enriquecer seu conhecimento, construímos, além do livro que está em suas mãos, uma rica trilha de aprendizagem, por meio dela você terá contato com o vídeo da disciplina, o objeto de aprendizagem, materiais complemen- tares, entre outros, todos pensados e construídos na intenção de auxiliar seu crescimento. Acesse o QR Code, que levará ao AVA, e veja as novidades que preparamos para seu estudo. Conte conosco, estaremos juntos nesta caminhada! LEMBRETE sumário UNIDADE 1 — PARTICIPAÇÃO SOCIAL, CIDADANIA, AUTONOMIA, RELAÇÕES DE CONFLITO E COMUNICAÇÃO ASSERTIVA ................................................................................. 1 TÓPICO 1 — PARTICIPAÇÃO SOCIAL, CIDADANIA E AUTONOMIA ............................... 3 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................... 3 2 VISITANDO O TEMA DA PARTICIPAÇÃO SOCIAL ............................................................... 3 2.1 PARTICIPAÇÃO SOCIAL NO BRASIL ....................................................................................... 4 2.2 ONDE A PARTICIPAÇÃO PRECISA SER FOMENTADA ...................................................... 6 2.3 ESPAÇOS DE PARTICIPAÇÃO SOCIAL .................................................................................... 8 2.4 MARCOS NORMATIVOS REFERENTES À PARTICIPAÇÃO SOCIAL................................ 9 3 CIDADANIA: ENTENDIMENTO CONCEITUAL ................................................................... 11 3.1 CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA NO BRASIL...................................................................... 13 4 AUTONOMIA: COMPREENSÃO CONCEITUAL E CONTEXTUAL .................................... 16 4.1 CONSTITUIÇÃO DE UM SUJEITO AUTÔNOMO ................................................................. 17 RESUMO DO TÓPICO 1..................................................................................................................... 19 AUTOATIVIDADE .............................................................................................................................. 21 TÓPICO 2 — RELAÇÕES DE CONFLITO ...................................................................................... 23 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 23 2 MODERNA TEORIA DO CONFLITO .......................................................................................... 23 RESUMO DO TÓPICO 2..................................................................................................................... 27 AUTOATIVIDADE .............................................................................................................................. 28 TÓPICO 3 — COMUNICAÇÃO ASSERTIVA ................................................................................ 29 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 29 2 A COMUNICAÇÃO ......................................................................................................................... 30 2.1 TEORIA DA COMUNICAÇÃO HUMANA ............................................................................. 31 3 COMUNICAÇÃO NÃO VIOLENTA............................................................................................. 35 4 A IMPORTÂNCIA DA ESCUTA PARA UMA COMUNICAÇÃO CONSTRUTIVA .......... 40 5 OS QUATRO COMPONENTES PARA A CONSTRUÇÃO DE AVANÇOS NOS PROCESSOS COMUNICACIONAIS – OS QUATRO PASSOS DA CNV ............................... 43 5.1 OBSERVAÇÃO ............................................................................................................................. 43 5.2 SENTIMENTOS............................................................................................................................. 44 5.3 NECESSIDADES ........................................................................................................................... 48 5.4 PEDIDO .......................................................................................................................................... 51 LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................ 56 RESUMO DO TÓPICO 3..................................................................................................................... 61 AUTOATIVIDADE .............................................................................................................................. 62 UNIDADE 2 — OS MEIOS QUE COMPÕEM O SISTEMA DE JUSTIÇA MULTIPORTAS ..... 63 TÓPICO 1 — JUSTIÇA MULTIPORTAS ......................................................................................... 65 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 65 2 DEFINIÇÕES PRELIMINARES ...................................................................................................... 65 3 COMPREENSÃO HISTÓRICA ...................................................................................................... 66 4 LEGISLAÇÃO RELACIONADA .................................................................................................... 68 RESUMO DO TÓPICO 1..................................................................................................................... 73 AUTOATIVIDADE .............................................................................................................................. 74 TÓPICO 2 — MEIOS HETEROCOMPOSITIVOS ........................................................................ 75 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 75 2 JURISDIÇÃO ...................................................................................................................................... 75 3 ARBITRAGEM – CONCEPÇÃO HISTÓRICA ............................................................................ 78 3.1 DEFINIÇÕES PRELIMINARES .................................................................................................. 79 3.2 PRINCÍPIOS E PROCEDIMENTO ............................................................................................ 80 3.3 ÁRBITRO ........................................................................................................................................ 81 RESUMO DO TÓPICO 2..................................................................................................................... 82 AUTOATIVIDADE .............................................................................................................................. 83 TÓPICO 3 — MEIOS AUTOCOMPOSITIVOS ............................................................................. 85 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................. 85 2 LEGISLAÇÃO RELACIONADA .................................................................................................... 85 2.1 RESOLUÇÃO 125/2010 CNJ ........................................................................................................ 86 2.2 CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL 2015 ........................................................................................ 86 3 NEGOCIAÇÃO .................................................................................................................................está a consolidar a mudança da perspectiva unidimensional da justiça para uma perspectiva pluridimensional, com enfoque na tutela adequada, tempestiva e efetiva dos direitos. TÓPICO 1 — JUSTIÇA MULTIPORTAS UNIDADE 2 — OS MEIOS QUE COMPÕEM O SISTEMA DE JUSTIÇA MULTIPORTAS 66 3 COMPREENSÃO HISTÓRICA Nas sociedades primitivas quando havia riscos para pessoas envolvidas em conflitos, uma terceira pessoa, respeitada pela comunidade, era incumbida de facilitar o consenso, para que não fosse necessário recorrer à justiça pelas próprias mãos. Com esse dado é possível dizer que os métodos consensuais de solução de conflitos precederam a jurisdição estatal. Só mais tarde foi consolidado o poder no Estado no surgimento do processo judicial, que com o tempo mostrou todas as suas fraquezas. As fraquezas ou insuficiência da tutela estatal fez com que se instaurasse um processo de mudança com enfoque nos métodos consensuais de solução de conflitos. Segundo Richa e Lagrasta (2016), o sistema de múltiplas portas ou multiportas teve seu início em uma abordagem elaborada por Frank E. A. Sander, em 1976, sendo que esse professor de Harvard se debruçou sobre a crescente demanda nos tribunais dos Estados Unidos, constatando uma insatisfação da população com o sistema judiciário. A proposta apresentada por ele previa programas diferenciados de solução de controvérsias, diversas da adjudicada, tanto dentro quanto fora dos tribunais. Essas propostas se davam a partir de um diagnóstico das causas e encaminhamentos para meios mais adequados. A intencionalidade da proposta, já na gênese, visava reduzir ou eliminar descontentamentos e agilizar o trabalho, preenchendo lacunas nos serviços de administração da justiça. Nasceu de forma experimental e avançou para propostas reconhecidas como Alternative Dispute Resolution (ADR), mecanismo paraestatal conhecido no Brasil por “meios alternativos de resolução de disputas”. Comprovado o êxito das experiências iniciais, os métodos foram se diversificando e, então, consolidados e estruturados por volta dos anos de 1980 e 1990. Eles conformam diferentes possibilidades de atuação nas demandas relacionadas a conflitos, tanto antes do ingresso no Poder Judiciário quanto a qualquer tempo após o ajuizamento das demandas, de forma a propiciar melhor qualidade de solução. São diferentes métodos que incluem conciliação, mediação, arbitragem, serviços sociais e governamentais, cada qual mediante técnicas abalizadas para auxiliar a solução dos conflitos de maneira que melhor possam atender à natureza das demandas, ao mesmo tempo em que constroem novas aptidões sociais para os litigantes. Na cultura americana, nos anos 1980 a 1990, os métodos de tratamento adequado do conflito enraizaram-se de forma a propiciar melhor qualidade de solução. No Brasil, a história seguiu os mesmos passos, porém mais tardiamente. As mesmas críticas identificadas nos EUA sobre o funcionamento do poder judiciário também se fizeram presentes, desencadeando transformações legislativas e estruturais, em busca de uma maior efetividade. O ápice do movimento aconteceu com a reforma do Poder Judiciário, que teve início em 1992 e foi concretizada pela Emenda Constitucional nº 45, de 30/12/2004. TÓPICO 1 — JUSTIÇA MULTIPORTAS 67 No Brasil, ainda predomina a cultura do litígio. A população em geral, quando se vê diante de um conflito, tem a tendência de buscar o Judiciário a fim de que esse resolva a questão. Inclusive, dentro da própria estrutura edificada em torno do saber jurídico, é comum considerar a necessidade de pronta judicialização da questão em pauta. Mesmo tendo predomínio, é possível citar pelo menos duas razões pelas quais o excesso de judicialização é um problema no país. Primeiro, pelo aumento das demandas judiciais, sendo que o Poder Judiciário não consegue, sozinho, resolver os problemas das pessoas que o procuram diariamente. O resultado da cultura do litígio é facilmente comprovado, já que é difícil obter a prestação jurisdicional de maneira que atenda às necessidades. Um segundo ponto diz respeito à satisfação alcançada com a decisão de um juiz, já que nem sempre os envolvidos ficam satisfeitos ou cumprem o que foi judicialmente determinado; ou seja, além de não trazer a pacificação, a sentença formalizada em longo processo (na denominada fase de conhecimento), para ser cumprida, ainda passa por outra nova e longa etapa até que seja efetivada (na denominada fase de cumprimento de sentença). Custo, lentidão e complexidade dos processos judiciais são as maiores reclamações dos jurisdicionados, e o cenário do Poder Judiciário brasileiro é desanimador. Temos, hoje, cerca de 76,7 milhões de processos em tramitação, e um crescimento do estoque acumulado de 31,2% nos últimos sete anos, conforme diagnóstico formulado na edição de 2017 do relatório Justiça em Números do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) (2018, p. 334). FONTE: Rodas et al. (2018) ATENCAO Fato é que vivemos num sistema jurídico aberto e incompleto e, justamente por isso, o direito configura uma realidade complexa, não havendo uma solução expressa para cada determinado caso. Disso resulta, segundo Silva (2009), a paulatina consolidação do entendimento de que o direito à justiça é mais amplo do que acesso ao Poder Judiciário, razão pela qual o Estado deve disponibilizar ao cidadão não somente a forma adjudicada de solução de conflito, mas também os métodos extrajudiciais. A discussão acerca da aplicação do direito pelo Poder Judiciário deve ser considerada apenas como um dos aspectos a problematizar no cotidiano nacional. São, hoje, uma preocupação entres os atores do meio jurídico as dificuldades UNIDADE 2 — OS MEIOS QUE COMPÕEM O SISTEMA DE JUSTIÇA MULTIPORTAS 68 procedimentais (número e qualidade dos controles jurisdicionais) e substantivas (qualidade dos direitos a tutelar) do acesso e correspondente resolução de conflitos no âmbito judicial. O número excessivo de demandas judiciais no Brasil pode ser atribuído a mudanças importantes relacionadas à condução da garantia de direitos: • A Constituição Federal de 1988, prioritariamente no artigo XXXV, assegura amplo acesso à justiça e permite a postulação da tutela jurisdicional preventiva ou reparatória, assistência judiciária integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos. • A Lei 9.099/95 trata do direito de ação sem a presença de advogados, de forma gratuita e com procedimentos mais simples. • Estruturação da Defensoria Pública. • Código de Defesa do Consumidor. • Controle do Poder Judiciário nas atribuições de outros poderes. • A constituição preconiza também ideais democráticos e faz inserção da consensualidade (o que avança ainda em passos lentos). É notório que a Constituição de 1988 avança em termos de garantia de direitos a partir do acesso à justiça, entretanto ela também aponta para a superação da postura de embate ao preconizar ideais democráticos materializados na consensualidade. Isso aponta para ações que privilegiem a prevenção dos litígios e desjudicialização das demandas. 4 LEGISLAÇÃO RELACIONADA Didaticamente, a par de outras tantas classificações e estudos doutrinários, pode-se dizer que a legislação está subdivida em duas grandes categorias: a das normas substantivas (direito material) e das normas adjetivas (direito processual), as quais convivem harmonicamente, no mais das vezes, no mesmo texto normativo, como é o caso do Código de Defesa do Consumidor. Estudar e conhecer o Código de Defesa do Consumidor (CDC) facilita o reconhecimento de um conjunto de normas que estabelece como deve ser a relação entre fornecedor e cliente e, especialmente, conhecer onde termina o direito da empresa e começa o direitodo consumidor. Atente para a problematização sobre práticas comuns de propagandas enganosas, abusivas, que podem causar danos para as pessoas que consomem determinado produto. Favor acessar o site: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078.htm. Boa Leitura! DICAS TÓPICO 1 — JUSTIÇA MULTIPORTAS 69 Na primeira categoria estão as leis que regulam e afetam aspectos materiais da vida cotidiana, criando, modificando e/ou extinguindo direitos e obrigações nas relações em sociedade. São exemplos dessa classificação a Lei do Divórcio, a Lei das Sociedades Anônimas, o Estatuto do Desarmamento e o Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte. Na segunda categoria estão as normas que estatuam as ferramentas procedimentais para acesso à jurisdição, à formalização de determinado pedido a partir do modo, forma e prazo legalmente estatuído, regulando-se por meio da norma adjetiva (direito processual) todas as formalidades para fazer cumprir as normas substantivas (direito material), a exemplo do Código de Processo Civil. Convidamos você a conhecer o Código de Processo Civil ou Código de Processo Penal na integra. O Novo CPC (Novo Código de Processo Civil), NCPC, ou Lei 13.105 de 2015, regulamenta o Direito Processual Civil brasileiro. O texto revogou a Lei 5.925 de 1973, trazendo importantes mudanças em vários dispositivos. Preste especial atenção à prerrogativa de que, nas ações de família, deverão ser empreendidos esforços para a solução consensual da controvérsia e o juiz poderá dispor do auxílio de profissionais de outras áreas para a realização de mediação e conciliação. Favor acessar o site: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13105.htm. DICAS Ao fim e ao cabo, é por meio do processo, um complexo de direitos e deveres contrapostos entre os sujeitos envolvidos em uma lide, que o Estado entrega a jurisdição. O processo, assim, está aqui concebido como instrumento para exercício do direito de provocar o Estado a exercer a função jurisdicional, de modo a oferecer àquele que promove a ação judicial uma solução para o caso concreto, pela atuação da vontade da lei. A mudança que ora se desenha está no reconhecimento de que a função jurisdicional, ainda que predominantemente exercida pelo Estado- juiz (magistrados, individualmente, ou colegiados julgadores, no caso dos tribunais), pode ocorrer também por entidades ou sujeitos de natureza não estatal, precisamente em razão da possibilidade de que a pacificação dos conflitos seja fomentada e realizada não apenas por meio do processo judicial, mas por métodos consensuais. UNIDADE 2 — OS MEIOS QUE COMPÕEM O SISTEMA DE JUSTIÇA MULTIPORTAS 70 Nesse sentido, o Conselho Nacional de Justiça, atento à necessidade de implementação de mecanismos adequados de resolução de disputas como forma de melhorar a justiça brasileira, editou em 29 de novembro de 2010 a Resolução nº 125/10, que trata da Política Judiciária Nacional de Tratamento Adequado de Conflitos de Interesses no âmbito do Poder Judiciário e dá outras providências. Por essa Política, buscou assegurar a todos o direito à solução dos conflitos por mecanismos adequados à sua natureza e complexidade, com vista à boa qualidade dos serviços judiciários e à disseminação da cultura da pacificação social, por meio da criação de uma estrutura física e pessoal própria, capaz de gerir as controvérsias de forma racional e profissional. Essa estrutura idealizada é composta pelo Conselho Nacional de Justiça, que fica responsável, no âmbito nacional, por implementar o programa com a participação de rede constituída por todos os órgãos do Poder Judiciário e por entidades públicas e privadas parceiras, inclusive universidades e instituições de ensino, pelos Núcleos Permanentes de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos (NUPEMECs), que tratam dessa Política Judiciária no âmbito dos Tribunais Estaduais e Federais, e pelos Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (CEJUSCs), responsáveis pela execução da Política Judiciária de tratamento adequado dos conflitos. Nesse contexto, os Centros assumem a função de verdadeiros “tribunais multiportas”, na medida em que são os responsáveis por oferecer as diversas opções de meios adequados de resolução dos conflitos, e, ainda, prestam serviços de orientação e informação ao cidadão. Assim, o interessado pode se dirigir ao Centro para a solução pré- processual do conflito, por meio da realização de sessões de conciliação ou de mediação, conforme o caso, ou para tentar resolver consensualmente conflitos já judicializados, bem como para obter serviços de cidadania. Trata-se, pois, de órgão do Poder Judiciário criado para efetuar a triagem, o tratamento e a resolução adequada dos conflitos de interesses. É importante enfatizar que, no sistema de múltiplas portas, segundo o Novo Código de Processo Civil, “a conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial” (parágrafo § 3º do artigo 3º da Lei nº 13.105/2015) (BRASIL, 2015). Fato é que, sendo do Estado o exercício da função jurisdicional, a ele compete não apenas a aplicação do direito com o escopo de realizar e manter a paz e harmonia social, como também a função de estimular a pacificação por meio de outros métodos que não a solução adjudicada. Sistematicamente, os objetivos da Política Judiciária Nacional são: TÓPICO 1 — JUSTIÇA MULTIPORTAS 71 I- Acesso à Justiça como “acesso à ordem jurídica justa”. II- Mudança de mentalidade dos operadores do Direito e das próprias partes, diminuindo a resistência de todos em relação aos métodos consensuais de solução de conflito. III- Qualidade dos serviços prestados por conciliadores e mediadores, que envolve sua capacitação. Convidamos você a conhecer a Resolução que trata dos Meios Adequados de Solução de Conflitos que dispõe sobre a Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses no âmbito do Poder Judiciário e dá outras providências. Atente prioritariamente ao Capítulo II, que apresenta as Atribuições do Conselho Nacional de Justiça, e ao Capítulo III, que apresenta as Atribuições dos Tribunais. Acesse: https://atos. cnj.jus.br/atos/detalhar/atos-normativos?documento=156. DICAS O sistema multiportas deixa de ser lugar onde apenas se julga para ser um local de resolução de conflitos, cujas partes podem e devem sair satisfeitas com o resultado para suas controvérsias. Quanto às vantagens do sistema multiportas é possível elencar, segundo Peixoto e Peixoto (2018, p. 118): a) o cidadão assume o protagonismo da solução de seu problema, com maior comprometimento e responsabilização acerca dos resultados; b) estímulo à autocomposição; c) maior eficiência do Poder Judiciário, porquanto cabe à solução jurisdicional apenas os casos mais complexos, quando inviável a solução por outros meios ou quando as partes assim o desejarem; d) transparência, ante o conhecimento prévio pelas partes acerca dos procedimentos disponíveis para a solução do conflito. Dessa forma, falar em Justiça Multiportas é demasiado importante para compreender e acionar o adequado meio para abordagem e resolução de conflitos, seja pelos meios heterocompositivos ou meios autocompositivos, assuntos que serão abordados mais adiante. UNIDADE 2 — OS MEIOS QUE COMPÕEM O SISTEMA DE JUSTIÇA MULTIPORTAS 72 Sugerimos a leitura de alguns textos, para que você possa analisar o novo contexto processual, no qual existe uma convergência mundial em prol de novos méto- dos de solução de conflitos, fazendo com que a Justiça Multiportas já seja uma realidade. • Justiça multiportas:mediação, conciliação, arbitragem e outros meios de solução adequada para conflitos. (http://www5.trf5.jus.br/novasAquisicoes/sumario/justica_multiportas_186-2018_sumario.pdf). • Tribunal multiportas: investindo no capital social para maximizar o sistema de solu- ção de conflitos no Brasil. (http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/10361/Tribunal%20Multipor- tas.pdf?sequence=1). • Acesso à justiça: do modelo competitivo de estabilização dos conflitos à estratégia cooperativa. (https://repositorio.ufsc.br/xmlui/bitstream/hand- le/123456789/167979/339460.pdf?sequence=1&isAllowed=y). DICAS 73 Neste tópico, você aprendeu que: • A importância de se pensar em Justiça Multiportas se deve ao fato do excesso de judicialização do poder judiciário e ao fato dele não poder, sozinho, resolver os problemas de quem o aciona, bem como: ᵒ falta de satisfação com os resultados impostos pelo juiz; ᵒ falta de cumprimento dos acordos firmados; ᵒ a judicialização não viabiliza pacificação social. • São vantagens do sistema multiportas: ᵒ estímulo à autocomposição e protagonismo na solução do conflito; ᵒ maior eficiência do Poder Judiciário; ᵒ transparência e conhecimento prévio pelas partes acerca dos procedimentos que podem ser acionados. • O novo Código de Processo Civil (CPC, 2015) normatiza que juízes, advogados, defensores e membros do Ministério Público devem estimular métodos consensuais de resolução de conflitos. RESUMO DO TÓPICO 1 74 1 O Código de Processo Civil adota o modelo multiportas, de modo que cada demanda possa ser submetida à técnica ou método mais adequado para a sua solução, devem também ser adotados todos os esforços para que as partes cheguem a uma solução consensual do conflito. Em regra, apenas se não for possível a solução consensual, o processo seguirá para a segunda fase, a litigiosa, voltada para instrução e julgamento adjudicatório do caso. Com base no exposto, assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) Certo. b) ( ) Errado. 2 Há uma cultura do litígio enraizada na sociedade, cuja tendência é resolver os conflitos de forma adversarial. Nessas circunstâncias, os denominados meios alternativos de resolução de conflitos apresentam especial importância, na medida em que possuem os seguintes objetivos, EXCETO: a) ( ) Aliviar o congestionamento do judiciário. b) ( ) Promover a pacificação social. c) ( ) Democratizar o acesso à justiça. d) ( ) Promover a autocomposição da solução de controvérsias. e) ( ) Garantir a legitimidade dos ritos judiciais. AUTOATIVIDADE 75 UNIDADE 2 1 INTRODUÇÃO O método heterocompositivo, também chamado de impositivo, é aquele que conta com juiz ou árbitro, como terceiro imparcial, para decidir de forma impositiva a solução de um conflito. Através desse método, a vontade das partes envolvidas em uma controvérsia é substituída pela decisão de uma terceira pessoa alheia ao conflito de interesses gerador da discórdia. Na heterocomposição há dois caminhos de solução de conflitos: a Jurisdição e a Arbitragem. Conforme o caminho escolhido, a resposta poderá se dar através de sentença ou de laudo arbitral. Importante analisar cada um desses caminhos, a fim de que se possa compreender diferenças e semelhanças existentes entre eles. 2 JURISDIÇÃO Para falar em Jurisdição é necessário mencionar o Estado, visto que aquela constitui função típica deste em dirimir conflitos que lhe são apresentados, quando da aplicação da lei. Entendida como a atividade e o poder do Estado de aplicar as normas do ordenamento jurídico em relação ao caso concreto, seja expressando autoritativamente o preceito, seja realizando efetivamente o que o preceito estabelece (PEIXOTO; PEIXOTO, 2018). É pela jurisdição que o Estado substitui os titulares dos interesses em conflito, dizendo o direito a partir de cada caso concreto. Segundo José Osmir Fiorelli, Maria Rosa Fiorelli e Marcos Julio Olivé Malhadas Junior (2008, p. 51), os métodos heterocompositivos “[...] recebem essa denominação porque se deixa a solução nas mãos de um terceiro; fica a responsabilidade dele determinar o que as partes devem ou não fazer”. Ainda em uma perspectiva conceitual, segundo Cintra, Grinover e Dinamarco (2003, p. 131), Jurisdição: TÓPICO 2 — MEIOS HETEROCOMPOSITIVOS 76 UNIDADE 2 — OS MEIOS QUE COMPÕEM O SISTEMA DE JUSTIÇA MULTIPORTAS [...] é uma das funções do Estado, mediante a qual este se substitui aos titulares dos interesses em conflito para, imparcialmente, buscar a pacificação do conflito que os envolve, com justiça. Essa pacificação é feita mediante a atuação da vontade do direito objetivo que rege o caso apresentado em concreto para ser solucionado; e o Estado desempenha essa função sempre mediante o processo, seja expressando imperativamente o preceito (através de uma sentença de mérito), seja realizando no mundo das coisas o que o preceito estabelece (através de uma execução forçada). É através da pessoa do juiz que o Estado presta a tutela jurisdicional aos cidadãos que a procuram. Essa continua sendo a opção mais adotada pelos que se encontram em situação de conflito de interesses, uma vez que não há mais a possibilidade de fazer uso da autotutela. A generalização do processo como método heterocompositivo de resolução de controvérsias, a cargo da justiça privada ou pública, representou induvidosamente uma das maiores conquistas civilizatórias da humanidade, porquanto ensejou a gradual substituição da violência e da força bruta, que grassavam na aurora dos corpos sociais, por um mecanismo mais racional e apto a preservar ou resgatar a paz entre os membros da coletividade envolvidos na disputa de um bem da vida ou por esta afetados direta ou indiretamente (LIMA, 2013, p. 75-76). Mesmo sendo importante e necessária, muitas vezes a Jurisdição não consegue atingir a finalidade a que se destina por diferentes motivos. Um deles diz respeito à subjetividade dos envolvidos que podem manter mágoas e ressentimentos devido ao resultado da lide. É necessário ter sempre presente que a solução dada pelo juiz irá pôr fim ao processo, mas não necessariamente à situação de litígio, que poderá perdurar no tempo. Isso significa que a sentença pode acabar com a relação processual entre as duas partes, determinando que um ganha e o outro perde, entretanto o desconforto gerado pelo conflito irá se manter, não sendo alcançada e saciada por nenhuma decisão que provenha de uma terceira pessoa. Quando uma ou as duas partes se mostrarem insatisfeitas com o resultado há previsão de interposição de recurso para uma instância superior àquela que definiu a decisão. Esta possibilidade tem como vantagem a oportunidade de a decisão passar por outra análise e, assim, ser mantida ou alterada. Entretanto, tem também desvantagens, visto que perpetua a tramitação dos processos nos tribunais, o que reflete na morosidade, valor e muitas vezes em ineficácia da prestação jurisdicional. Uma segunda questão a ser considerada é que a perda de um prazo ou a inobservância de algum critério considerado indispensável pode levar a parte que tem razão a não ter seu direito reconhecido e, ainda, ter que pagar custas judiciais e honorários sucumbenciais. É importante referir que, no Judiciário, TÓPICO 2 — MEIOS HETEROCOMPOSITIVOS 77 é estabelecida uma série de regras e procedimentos, algumas vezes bastante formais, mas que devem ser observadas por quem bate à sua porta. Essas regras e procedimentos são necessários para diminuir as inseguranças jurídicas. A Importância do Judiciário se expressa em situações em que as partes tenham acessado outros métodos, mas não tenham tido êxito, prioritariamente em conflitos que só podem ser resolvidos pelo Judiciário, como quando se tratade conflitos sobre direitos indisponíveis, não havendo como ser negociados livremente por seus titulares. Direitos indisponíveis, como o termo sugere, são direitos sobre os quais há ingerência (intromissão) do Estado sobre a decisão. As ações que versam sobre alimentos fazem parte desses direitos. Para exemplificar, pode ser apresentada uma situação na qual um pai, cujos filhos estão sob cuidados e guarda da mãe, ajuíza ação de oferta de alimentos para fixar valores que dará aos filhos. Na inicial, apresenta uma realidade de dificuldades econômicas e refere poder pagar apenas meio salário mínimo, de acordo com o binômio necessidade/possibilidade. A mãe, que se diz conhecedora da realidade econômica do pai e sabedora de que o valor ofertado é muito aquém do necessário para manter os filhos, somado o fato de estar desempregada, procura um advogado. Esse profissional perde o prazo de contestar a ação do pai. Nessa situação, seria o caso de ser decretada revelia dos requeridos. Entretanto, em razão de o direito de alimentos das crianças ser indisponível, os fatos referidos pelo pai não terão presunção de veracidade, o que significa que a revelia não produzirá seus efeitos. Na Jurisdição o papel do magistrado é indispensável. É ele que precisa ser convencido sobre quem tem ou não tem razão. Segundo Márcio Ricardo Staffen (2012, p. 89): “compete ao julgador ater-se à imparcialidade, ao equilíbrio das manifestações via ampla defesa e contraditório, dando fluência ao devido processo legal, aos direitos e garantias fundamentais”. O juiz detém o poder das decisões, entretanto elas precisam ser fundamentadas no processo legal que encontra respaldo na Constituição Federal (1988), no artigo 5º, inciso LIV, que preceitua: Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] 7 LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; [...] Dessa forma, para a definição de sentença, o magistrado e demais envolvidos na lide deverão seguir regras e procedimentos preestabelecidos e com consequências predefinidas. Além disso, a imparcialidade do juiz é uma 78 UNIDADE 2 — OS MEIOS QUE COMPÕEM O SISTEMA DE JUSTIÇA MULTIPORTAS condição para o exercício profissional. Cabe a ele oferecer tratamento igualitário aos envolvidos. Ao julgar, não deve considerar suas noções, crenças e valores pessoais, bem como visões religiosas ou filosóficas. 3 ARBITRAGEM – CONCEPÇÃO HISTÓRICA Utilizar a arbitragem como meio de solução de controvérsias é fato desde a antiguidade, fundamentada na ideia de que o povo é corresponsável pela condução da justiça na vida cotidiana. Nos últimos anos, entretanto, o Estado, buscou encontrar e desenvolver alternativas para a solução de controvérsias, a exemplo da instituição dos Juizados Informais de Conciliação e os Juizados Especiais de Pequenas Causas, sendo que, a partir da Constituição de 1988, instituiu também os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, visando agilizar processos e facilitar o acesso à justiça. Para Rubia Fiamoncini Bértoli e Saul José Busnello (2017), a arbitragem é um dos avanços jurídicos mais utilizados na atualidade, muito devido às exigências do comércio internacional. “Sua implantação originou a estimulação de estudos doutrinários e a criação de instituições que oferecem serviços aos comerciantes para organizar os diferentes tipos de arbitragem, e da mesma forma orientou as câmaras de comércio”. FONTE: . Acesso em: 29 jul. 2019. NOTA Na arbitragem, tanto quanto numa decisão judicial, um terceiro imparcial definirá de forma vertical qual a solução será pertinente. A diferença está, primeiramente, no fato de que o árbitro ou árbitros são eleitos em uma convenção de natureza privada, ou seja, as partes interessadas assinam um instrumento em que a escolha pela arbitragem é formalizada. Outra diferença está no fato de que a sentença proferida pelos árbitros não comporta recurso, em tudo equivalente à decisão judicial. TÓPICO 2 — MEIOS HETEROCOMPOSITIVOS 79 Nesse sentido, Rubia Fiamoncini Bértoli e Saul José Busnello ensinam que “Enquanto na Jurisdição, quem “perde” tem a possibilidade de interpor recursos, na Arbitragem isso não é admissível. As partes que desejam submeter seu conflito de interesses a um árbitro, sabem, de antemão, que a sua decisão, também chamada de sentença ou laudo arbitral, é definitiva, constituindo título executivo judicial conforme o artigo 515, inciso VII do Código de Processo Civil e que não há a possibilidade de interposição de recursos”. FONTE: . Acesso em: 29 jul. 2019. NOTA Há outras peculiaridades da arbitragem, as quais estão abordadas nos itens seguintes. 3.1 DEFINIÇÕES PRELIMINARES Trata-se de método de resolução de conflitos sem a participação do poder judiciário. No Brasil, a Arbitragem é regida pela Lei nº 9.307/96, abrangendo direitos patrimoniais disponíveis, seja em relação a conflitos de interesses pessoais de pequena monta, como também grandes controvérsias empresariais ou estatais, desde que não estejam restritos pela legislação. Recentemente foi dada, pelo jurista René David, a seguinte definição: “arbitragem é a técnica que visa a dar solução de questão interessando às relações entre duas ou várias pessoas, por uma ou mais pessoas, o arbitro ou os árbitros – as quais têm poderes resultantes de convenção privada, e decidem, com base nessa convenção, sem estar investidos dessa missão pelo Estado”. FONTE:. Acesso em: 22 jul. 2019. NOTA Arbitragem, para José de Albuquerque Rocha (2003, p. 96-97) é: “um meio de resolver litígios civis, atuais ou futuros, sobre direitos patrimoniais disponíveis, através de árbitro ou árbitros privados, escolhidos pelas partes, cujas decisões produzem os mesmos efeitos jurídicos das sentenças proferidas pelos órgãos do 80 UNIDADE 2 — OS MEIOS QUE COMPÕEM O SISTEMA DE JUSTIÇA MULTIPORTAS Poder Judiciário”. A arbitragem, portanto, é um método de resolução de conflitos por meio de entidades privadas, as quais aplicarão a lei por meio de uma decisão denominada sentença arbitral. Em princípio, as sentenças arbitrais são finais e vinculativas. Elas só podem ser objeto de recurso e questionadas em tribunal em circunstâncias excepcionais. Por exemplo, isso se aplica aos casos em que as partes nunca acordaram validamente em estabelecer uma arbitragem. Sentenças arbitrais podem ser aplicadas na maioria dos países em todo o mundo. Caracterizada pela informalidade, a arbitragem é um método alternativo ao Poder Judiciário que oferece decisões ágeis e técnicas para a solução de controvérsias. Só pode ser usada por acordo espontâneo das pessoas envolvidas no conflito, que automaticamente abrem mão de discutir o assunto na Justiça. A escolha da arbitragem pode ser prevista em contrato (ou seja, antes de ocorrer o litígio) ou realizada por acordo posterior ao surgimento da discussão. Como se trata de um método privado, são as partes envolvidas no conflito que elegem um ou mais árbitros, geralmente um ou três, imparciais e com experiência na área da disputa, para analisar o caso. Os árbitros normalmente tentam ajudar as partes a entrar em acordo. Se não houver acordo, eles emitem a decisão, chamada laudo ou sentença arbitral, que tem força de sentença judicial. 3.2 PRINCÍPIOS E PROCEDIMENTO A arbitragem é orientada pelos seguintes princípios: • autonomia das partes; • contraditórioe ampla defesa concentrados; • igualdade das partes; • imparcialidade do árbitro; • convencimento, conciliação, boa-fé e confidencialidade. Do ponto de vista do procedimento, pressupõe que seja contratado por pessoas maiores e capazes e por pessoas jurídicas, admitindo-se que apenas sejam submetidos os conflitos patrimoniais disponíveis. Qualquer processo de arbitragem é baseado em um acordo por escrito entre as partes (convenção de arbitragem). Nesse aspecto, pode ser originado por meio de cláusula compromissória, em que a pactuação ocorre antes da ocorrência do litígio, ou por meio de compromisso arbitral, o qual é estipulado após a ocorrência do litígio. TÓPICO 2 — MEIOS HETEROCOMPOSITIVOS 81 Além disso, a arbitragem fornece, aos árbitros e às partes, significativa liberdade e flexibilidade. As partes podem escolher os árbitros, o local da arbitragem e/ou a língua do processo. As partes podem, portanto, negociar sobre a estrutura e duração de suas arbitragens. As partes, porém, não podem desviar- se dos princípios da equidade e da igualdade, do direito à oitiva e do direito de ser representado por um advogado. Existem dois tipos de arbitragem: institucionais e ad hoc. Na arbitragem institucional, a instituição assume funções administrativas específicas, tais como entrega de intimações etc. O grau de envolvimento pode variar de uma instituição para outra, mas a disputa em si sempre será decidida pelo tribunal arbitral. Na Arbitragem ad hoc, essas funções administrativas são assumidas pelo próprio tribunal ou delegadas a terceiros. A "Hamburger Freundschaftliche Arbitrage" (Arbitragem amigável de Hamburgo) é uma forma especial de arbitragem ad hoc desenvolvida a partir de práticas do comércio local, as quais estão determinadas na Seção 20 das Platzusancen für den Hamburgischen Warenhandel (Práticas Locais no Comércio de Mercadorias de Hamburgo) e foram publicadas no Amtlicher Anzeiger (Diário Oficial) n º 237 de 13 de outubro de 1958. Adicionalmente, vários árbitros praticando em Hamburgo formaram o Hamburg Arbitration Circle (HAC – Círculo de Arbitragem de Hamburgo), uma associação voltada à organização de palestras e apoio à promoção de Hamburgo como local para realização de arbitragens. O processo de arbitragem, segundo Sales (2010), é bastante diferente dos processos de negociação, conciliação e mediação, visto ser um processo formal, que exige regras processuais legais que definem requisitos para que tenha validade. 3.3 ÁRBITRO A pessoa que se propõe a atuar como árbitro, necessariamente, precisa ter mais que 18 anos, ter discernimento e condições de expressar sua vontade e precisa ter a confiança das pessoas envolvidas no conflito. O árbitro não precisa ser advogado, mas é bom que tenha conhecimentos sobre direito, já que a arbitragem envolve o uso de muitos conceitos legais. Assim como o juiz, o árbitro não pode ser amigo ou parente das partes, nem trabalhar para elas ou ter algum interesse pessoal no julgamento da causa. Segundo a lei, o árbitro deve ser independente e imparcial. É importante enfatizar que o arbitro é um juiz de fato e de direito, por isso precisa ter conhecimentos específicos na área relacionada ao conflito e o cumprimento de suas decisões, pelas partes, é obrigatório. Ele precisa ter desenvolvido competências para dar conta da crescente demanda por esse método, e ser qualificado e consciente da responsabilidade de suas intervenções na construção de um futuro mais justo e pacífico para as futuras gerações. http://www.hamburg-arbitration.de/ 82 RESUMO DO TÓPICO 2 Neste tópico, você aprendeu que: • No método heterocompositivo as soluções ficam sob responsabilidade de um terceiro que decide sobre o que as partes devem ou não fazer. • É através da pessoa do juiz que o Estado presta a tutela jurisdicional aos cidadãos que a procuram. Esta segue sendo a opção mais adotada pelos que se encontram em situação de conflito de interesses. • A sentença coloca fim ao processo, mas a situação de litígio poderá perdurar. • A importância do Judiciário se expressa em situações em que as partes tenham acessado outros métodos, mas não tenham tido êxito, ou quando se trata de direitos indisponíveis. • Na definição da sentença, o juiz e demais envolvidos na lide deverão seguir as regras e procedimentos preestabelecidos e em consequências predefinidas. • A imparcialidade do juiz é uma condição para o exercício profissional. • Por meio da convenção de arbitragem, as partes elegem a arbitragem em primeiro plano, preterindo-se a solução por meio judicial. • Na arbitragem, um dos avanços jurídicos mais utilizados na atualidade, a resolução dos conflitos se dá por meio de entidades privadas, cujas decisões produzem os mesmos efeitos jurídicos das sentenças proferidas pelos órgãos do Poder Judiciário. • A arbitragem é comum em contratos comerciais, especialmente nos contratos relativos às transações internacionais. • A arbitragem: ᵒ é estabelecida pelo acordo entre as partes; ᵒ pode ser utilizada em qualquer controvérsia envolvendo direito patrimonial disponível; ᵒ possibilita a conciliação durante o processo; ᵒ possui um caráter decisório técnico (os envolvidos escolhem o árbitro de sua confiança, com profundo conhecimento sobre o objeto do conflito; ᵒ pode repercutir em economia processual; ᵒ garante sigilo no procedimento; ᵒ dispensa homologação judicial da sua sentença; ᵒ é irrecorrível perante o Poder Judiciário, a não ser nos casos em que a lei prevê s nulidade da sentença arbitral. 83 1 Na relação entre jurisdição e arbitragem é CORRETO afirmar que: I- Na jurisdição, o papel do magistrado é indispensável. É ele quem precisa ser convencido sobre quem tem ou não tem razão. II- O juiz detém o poder de decisão para a definição de sentença, mas precisa seguir regras e procedimentos preestabelecidos e com consequências predefinidas. III- O juizado Especial Cível e Criminal sempre existiu, desde a antiguidade. O que é atual é a possibilidade de utilizar a Arbitragem como meio de solução de controvérsias. IV- Em uma decisão judicial, um terceiro imparcial definirá de forma vertical a solução pertinente. Já na arbitragem, a forma é horizontal. V- A arbitragem é um método de resolução de conflitos sem a participação do poder judiciário. Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA: a) ( ) V – F – F – F – F. b) ( ) F – V – V – F – V. c) ( ) V – V – F – F – V. d) ( ) F – F – V – V – F. 2 Sobre a figura do árbitro, assinale a alternativa INCORRETA. a) ( ) O árbitro é uma terceira pessoa, de confiança das partes e escolhida por essas para conduzir a solução do conflito. b) ( ) O árbitro não precisa ter formação jurídica. c) ( ) As partes podem escolher o árbitro de acordo com a especialidade técnica que seja mais útil à solução da questão em concreto. d) ( ) O árbitro, na arbitragem judicial, será o próprio juiz da causa. 3 Analise as sentenças a seguir: I- O árbitro poderá ser recusado pelas partes a qualquer tempo e por qualquer motivo. II- Estão impedidos de funcionar como árbitros as pessoas que tenham, com as partes ou com o litígio que lhes for submetido, algumas das relações que caracterizam os casos de impedimento ou suspeição de juízes, aplicando- se-lhes, no que couber, os mesmos deveres e responsabilidades, conforme previsto no Código de Processo Civil. III- As pessoas indicadas para funcionar como árbitro têm o dever de revelar, antes da aceitação da função, qualquer fato que denote dúvida justificada quanto à sua imparcialidade e independência. AUTOATIVIDADE 84 a) ( ) As alternativas I e II estão corretas. b) ( ) As alternativas I e III estão corretas. c) ( ) As alternativas II e III estão corretas. 85 UNIDADE 2 1 INTRODUÇÃO O Brasilcaminha em passos ainda lentos para mudanças dos paradigmas relacionados à forma como lida com conflitos. A cultura litigiosa mostra-se enraizada no íntimo das pessoas, tanto que, mesmo em suas residências ou comunidades, ainda parece prevalecer a lei de Talião com a famosa expressão “olho por olho, dente por dente”. Para superar essa cultura litigiosa, têm sido empreendidos esforços em diferentes contextos para que as pessoas se reconheçam como protagonistas na identificação de interesses e nos esforços para o seu alcance. No que se refere ao judiciário, desde a década de 90 vêm sendo adotados projetos de atividades pré- processuais em vários setores (civil, penal, familiar, previdenciário, entre outros), na busca de implementar a prevenção de demandas. Esses projetos atingiram os objetivos esperados, o que resultou na criação de uma resolução com indicadores sobre como proceder nessas prevenções. Em novembro de 2010, o Conselho Nacional de Justiça instituiu a Política Judiciária Nacional de Tratamento Adequado dos Conflitos de Interesses no Âmbito do Poder Judiciário, o que tende a estimular e assegurar a solução de litígios por meio do consenso entre as partes (Resolução nº 125, de 29/11/2010). É importante assinalar que a adoção de outros métodos de resolução de conflitos não implica a exclusão do Poder Judiciário. Ao contrário, eles funcionam como complementos à atividade jurisdicional estatal. Nesse sentido, Petrônio Calmon (2008, p. 49) ressalta que “os meios alternativos não excluem ou evitam um sistema judicial caótico, mas põem-se interativamente ao lado da jurisdição estatal, devendo-se valer do critério da adequação entre natureza do conflito e o meio de solução que entenda mais apropriado”. 2 LEGISLAÇÃO RELACIONADA A Resolução nº 125/2010 do Conselho Nacional de Justiça e o Código de Processo Civil de 2015 representam um marco no direito brasileiro por viabilizarem a construção de um processo civil e sistema de justiça multiportas, que indicam método ou técnica mais adequados para a solução de conflitos. Espera-se de o Judiciário constituir-se em espaço de resolução de disputas, local de onde os envolvidos em conflitos possam sair satisfeitos com o resultado. TÓPICO 3 — MEIOS AUTOCOMPOSITIVOS 86 UNIDADE 2 — OS MEIOS QUE COMPÕEM O SISTEMA DE JUSTIÇA MULTIPORTAS 2.1 RESOLUÇÃO 125/2010 CNJ Em novembro de 2010 foi aprovada a Resolução 125 do Conselho Nacional de Justiça. art. 1º - Fica instituída a Política Judiciária Nacional de tratamento dos conflitos de interesses, tendente a assegurar a todos o direito à solução dos conflitos por meios adequados à sua natureza e peculiaridade. Parágrafo único: Aos órgãos judiciários incumbe, além da solução adjudicada mediante sentença, oferecer outros mecanismos de solução de controvérsias, em especial os chamados meios consensuais, como a mediação e a conciliação, bem assim prestar atendimento e orientação ao cidadão. Os objetivos estão relacionados a seguir: I) Instituir a Política Judiciária Nacional de tratamento dos conflitos de interesses, por meios adequados à sua natureza e peculiaridade. II) Disseminar a cultura da pacificação social e estimular a prestação de serviços autocompositivos qualidade (art. 2º). III) Reafirmar a função de agente apoiador da implantação de políticas públicas do CNJ (Art. 3º). IV) Incentivar os tribunais a se organizarem e planejarem programas amplos de autocomposição (art. 4º). 2.2 CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL 2015 O Novo Código de Processo Civil, com amparo constitucional, bem como do CNJ, representa uma conquista para os métodos adequados de resolução de conflitos. Como exemplo: art. 3º - Não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito. § 1º É permitida a arbitragem, na forma da lei. § 2º O Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos. § 3º A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial. 3 NEGOCIAÇÃO A negociação é o meio mais simples, rápido, básico e elementar para a resolução de controvérsias. As pessoas negociam o tempo todo, em casa, no trabalho, com amigos, nos mais diferentes espaços por onde andam e vivem, porque é uma forma básica de conseguir o que se quer dos outros. Ela pode TÓPICO 3 — MEIOS AUTOCOMPOSITIVOS 87 ser entendida como uma atividade na qual duas ou mais partes “tentam criar um acordo que resolva o conflito estabelecido entre eles, de forma diferente de recorrer à força ou à decisão de um terceiro” (HIDAL; SAMPAIO, 2016, p. 337). Uma importante fonte de construção de conhecimentos sobre negociação advém de décadas de pesquisas realizadas em Harvard, e passou a ser conhecida como Método de Negociação Baseado em Princípios, que busca interesses comuns e benefícios mútuos. Em qualquer situação esse método pode ser utilizado, desde situações cotidianas do espaço privado até processos de trabalho profissional. Segundo Fisher e Ury (2014), não se deve negociar com base em posições, visto que elas podem produzir acordos ineficientes, insensatos e podem ameaçar o relacionamento dos envolvidos. Os autores defendem como alternativa a negociação baseada em interesses. Para que a negociação produza o resultado esperado, atenção especial para a valorização do ser humano, da palavra, e da continuidade da relação. ATENCAO 3.1 DEFINIÇÕES PRELIMINARES Como já foi assinalado, a negociação está presente no cotidiano de todas as pessoas. Entretanto entender a negociação conceitualmente e metodologicamente pode facilitar que os envolvidos na negociação possam alcançar melhores resultados. “Negociação é um processo de comunicação bilateral com o objetivo de se chegar a uma decisão conjunta” (FISHER; URY; PATTON, 2005, p. 50). Nessa definição, a ênfase está na comunicação, na ideia da tomada de decisão conjunta. A comunicação na negociação não pode ser subestimada. Dessa forma, o momento da negociação, a escuta dos envolvidos e como é conduzida a fala são aspectos fundamentais para uma comunicação objetiva. “Negociação é o uso da informação e do poder com o fim de influenciar o comportamento dentro de uma rede de tensão” (COHEN, 1980, p. 14). Já na definição apresentada por Cohen, são destacados comportamentos de influência, ficando subtendido um contexto de comunicação com base no poder e na informação. 88 UNIDADE 2 — OS MEIOS QUE COMPÕEM O SISTEMA DE JUSTIÇA MULTIPORTAS Cada vez que pessoas trocam ideias com o intuito de modificar suas relações, cada vez que chegam a um acordo, estão negociando. A negociação depende da comunicação e ocorre entre pessoas que representam a si ou a grupos organizados (NIERENBERG, 1991, p. 16). O destaque desse conceito está na troca de ideias com o objetivo de comprometer as relações com o outro visando acordo. “Negociação é um processo em que duas ou mais partes, com interesse comuns e antagônicos, se reúnem para confrontar e discutir propostas explícitas (comunicação) com o objetivo de alcançar um acordo” (CARVALHAL, 2012, p. 68). Essa conceituação caracteriza tanto o processo quanto as partes, tipos de interesses orientados para um acordo. Todo conflito e toda negociação envolvem esferas de poder, regras e interesses. Focar nas duas primeiras pode fazer o conflito escalar e dificultar a satisfação dos envolvidos. Já focar na esfera dos interesses pode funcionar melhor porque, para cada interesse, existem muitas e diversas posições, e alguma delas pode satisfazer os envolvidos, e as pessoas tendem a adotar as posições mais óbvias possíveis. Quando o negociador possibilita que os envolvidosabandonem a posição inicial e passem a olhar para os interesses que os motivam, possivelmente será possível encontrar uma opção que possa satisfazer ambas as partes. A prerrogativa pressupõe que os envolvidos lidem com a controvérsia como um problema mútuo, entretanto encontrar interesses comuns não é tarefa fácil. Nessa perspectiva, pode-se conceituar a negociação como “um meio básico de conseguir o que se quer de outrem. É uma comunicação bidirecional concebida para chegar a um acordo, quando você e o outro lado têm alguns interesses em comum e outros opostos” (FISHER, URY, PATTON, 2005, p. 15) Nas vivências cotidianas, para os autores acima, podem ser identificadas duas formas de negociar. A primeira, baseada na empatia, que faz com que o negociador faça diversas concessões, a fim de evitar o conflito. A segunda, baseada no rigor e com foco no objetivo, que leva a um comportamento por vezes áspero, de quem deseja vencer a qualquer custo, sem abrir mão da sua posição. Essa posição prejudica a concretização do acordo e influencia futuros relacionamentos entre os negociadores. A ideia da Escola de Negociação de Harvard foi justamente conciliar essas duas maneiras de negociar, desenvolvendo e difundindo uma nova forma de agir: a negociação baseada em princípios, a qual se baseia no conceito do “ganha- ganha”. TÓPICO 3 — MEIOS AUTOCOMPOSITIVOS 89 O método da negociação baseada em princípios, desenvolvido no Projeto de Negociação de Harvard, consiste em decidir as questões a partir de seus méritos, e não através de um processo de regateio centrado no que cada lado se diz disposto a fazer e não fazer. Ele sugere que você procure benefícios mútuos sempre que possível e que, quando seus interesses entrarem em conflito, você insista em que o resultado se baseie em padrões justos, independentes da vontade de qualquer dos lados. O método da negociação baseada em princípios é rigoroso quanto aos méritos e brando com as pessoas. Não emprega truques nem a assunção de posturas (FISHER; URY; PATTON, 2005, p. 15). A intencionalidade da negociação é alcançar um resultado que satisfaça ambas as partes, o que pressupõe que o outro não seja visto e tratado como oponente, mas, sim, como parceiro e colaborador na realização do acordo. A Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Novo Código de Processo Civil) tratou da negociação, no parágrafo 3º. do art. 166, in verbis: “admite-se a aplicação de técnicas negociais, com o objetivo de proporcionar ambiente favorável à autocomposição”. Uma das máximas deste método é criar valor antes de distribuir tais valores entre os envolvidos no processo de negociação. Siouf Filho (2012) apresenta a imagem de um bolo e afirma que se deve aumentar o bolo para, só então, cortá-lo e distribuí-lo. Assim, para o autor, quanto maior o bolo, maior a possibilidade de satisfação entre os participantes, e maior será a chance de se chegar a um acordo. É importante enfatizar que conflitos podem surgir em todos os aspectos da vida, e a negociação pode ser, então, uma técnica importante e viável para a resolução desses conflitos. Teoricamente, os conflitos mais adequados à negociação direta são aqueles em que as pessoas possuem condições de dialogar mesmo sem a intervenção de um terceiro para facilitar esse diálogo – normalmente de ordem material, patrimonial. IMPORTANTE 3.2 PRINCÍPIOS E PROCEDIMENTOS A ideia da negociação é buscar a maximização de ganhos mútuos, e isso só é possível na medida em que os envolvidos em um conflito se concentrem em criar valor em vez de dividi-lo. 90 UNIDADE 2 — OS MEIOS QUE COMPÕEM O SISTEMA DE JUSTIÇA MULTIPORTAS A negociação baseada em princípios possui quatro princípios gerais que permitem resultados ganha-ganha pautados nos interesses: 1º – separar as pessoas do problema; 2º - focar nos interesses dos envolvidos, e não nas suas posições; 3º – criar opções de ganho mútuo; e 4º – mapear critérios objetivos para legitimar a escolha das opções. Atente para os princípios que nunca podem ser esquecidos na condução de uma negociação: • Pessoas: separe as pessoas dos problemas. • Interesses: concentre-se nos interesses, não nas posições. • Opções: crie uma variedade de possibilidades antes de decidir o que fazer. • Critérios: insista em que o resultado tenha por base algum padrão objetivo. FONTE: Fisher, Ury e Patton (2005, p. 28) ATENCAO 1º princípio: separar as pessoas do problema A prerrogativa de um negociador eficaz é que ele possa ser capaz de distinguir o conflito e as pessoas nele envolvidas. Desta forma, na negociação não deve prevalecer o hábito de fazer acusações pessoais, mas o exercício de um se colocar no lugar do outro, com foco no objetivo a ser atingido. As chances de acordo estão diretamente relacionadas à atmosfera favorável ao diálogo. É necessário ter claro que os envolvidos na negociação são seres humanos, que possuem sentimentos e desejos. Dessa forma, o aspecto emocional da negociação é de extrema importância e não pode ser negligenciado. Em uma disputa, as emoções envolvidas fazem com que o outro seja visto como parte do problema, e não como parte em uma negociação em que é possível buscar colaboração. Os autores defendem que é importante manter o foco nas questões a serem tratadas, e não nas pessoas envolvidas. O problema, para eles, deve ser tratado com dureza, já as pessoas precisam ser tratadas com afeto. Esse princípio considera que as pessoas não necessariamente fazem parte do problema. Ou seja, trabalhar para a superação de um problema e manter uma boa relação não precisam ser objetivos que conflitam entre si. 2º princípio: concentrar-se em interesses, não em posições Nas disputas, os envolvidos devem superar o costume de se concentrar nas posições. As posições obscurecem os reais interesses das pessoas. O que está envolvido em uma negociação são as necessidades, desejos, preocupações e TÓPICO 3 — MEIOS AUTOCOMPOSITIVOS 91 temores. Esses sentimentos precisam ser explicitados e explorados. Quando isso é realizado, do processo podem emergir interesses comuns. É importante considerar que posições opostas podem esconder interesses comuns e compatíveis. Muitas vezes esses interesses podem não ser explicitados e, para serem conhecidos, uma técnica básica consiste em uma atitude empática de pensar na “escolha do outro” (perguntar “por quê?”, “por que não?”) com o intuito de reconhecer os interesses do outro como parte do problema, olhando para frente (futuro), e não somente para trás (passado). Dessa forma, esse princípio preconiza que para ser possível uma boa negociação, os interesses dos envolvidos precisa ser reconhecido, para poder atender a seus desejos, evitando- se a disputa por posições. Um exemplo bastante conhecido, provavelmente abordado pela primeira vez no Curso do Projeto de Negociação de Harvard, é a disputa de duas crianças por uma única laranja. A anedota apresenta duas crianças que brigavam havia horas para ter a única laranja que havia em casa. A mãe, imbuída do desejo de terminar com a briga das filhas e solucionar o impasse da forma mais justa que ela entendia ser possível, simplesmente dividiu a laranja ao meio, dando metade para cada uma das filhas. Essa, de fato, parece ser a solução mais óbvia, que aparentemente parece ser a mais correta e que a maioria das pessoas tomaria. Entretanto, mais tarde, essa mãe descobriu o quanto essa solução era insatisfatória e não resolvia o problema de nenhuma das filhas, pois uma filha queria a laranja para fazer suco e a outra queria apenas a casca para brincar. Quando a laranja foi partida ao meio, ambas saíram perdendo, mesmo que no caso pudessem ter tido os seus interesses integralmente satisfeitos, dado que não queriam a mesma coisa. Suas posições eram antagônicas,mas os interesses eram compatíveis. 3º princípio: inventar opções de ganhos mútuos Utilizar a criatividade para criar diferentes opções, antes de tomar decisão, pode facilitar a construção de um acordo cujos ganhos podem ser mútuos. Segundo os autores, o julgamento prematuro, a busca por uma resposta única e o entendimento de que os problemas do outro são de responsabilidade deles, podem se constituir obstáculos para se chegar a um acordo. Para que se seja capaz de inventar opções criativas, é importante: buscar todas as opções possíveis sem avaliá-las; buscar ampliar o número de opções possíveis, rompendo com a ideia de que existe apenas uma resposta para o problema; buscar possibilidades de ganhos mútuos; harmonizar os interesses discrepantes e facilitar a decisão da outra parte criando opções que levem em conta suas necessidades. Inventar opções criativas (brainstorming) pode ser feito tanto individualmente quanto conjuntamente pelas partes, e pode se constituir como uma atividade muito útil para encontrar opções de ganho mútuo. 92 UNIDADE 2 — OS MEIOS QUE COMPÕEM O SISTEMA DE JUSTIÇA MULTIPORTAS 4º princípio: buscar critérios objetivos Critérios objetivos favorecem que as soluções possam ser consideradas justas pelas partes. Esses critérios dizem respeito à vontade das partes, que podem decorrer do valor de mercado, de opinião especializada, costumes, previsão legal, precedente de um tribunal, entre outros. Os critérios, que não precisam ser únicos, devem partir de discussões, argumentações e independem da vontade de qualquer dos lados. Para a discussão de procedimento, é importante apresentar o Método dos Sete Elementos, desenvolvido na Escola de Direito da Universidade de Harvard (HIDAL; SAMPAIO, 2016, p. 341). O método prescreve os elementos: comunicação, relacionamento, alternativas, interesses, opções, critérios e compromisso. • Comunicação: os negociadores precisam falar a mesma linguagem. Dificuldades comunicacionais podem levar a desentendimentos que não são necessários. • Relacionamento: a confiança está diretamente relacionada a relações próximas e amigáveis. Quando há confiança, as pessoas revelam interesses latentes, que de outra forma não seriam revelados. • Alternativas: a identificação da MASA é a escolha da melhor alternativa dentre as possíveis. Isso é feito antes do início da negociação e será utilizado em caso de não haver acordo. • Interesses: quando se identifica os interesses é possível aumentar o “todo”, que depois será distribuído na negociação. • Opções: identificação de possíveis soluções construídas a partir da revelação de interesses subjacentes às posições. • Critérios: utilização de padrões objetivos, gerais e independentes da vontade das partes. • Compromisso: documentação do acordo, de forma a deixar o combinado claro e registrado. 3.3 FASES DA NEGOCIAÇÃO Segundo Fisher, Ury e Patton (2005), em uma negociação podem ser identificadas três fases: análise, planejamento e discussão. A fase da análise pressupõe fazer o diagnóstico da situação, reunir informações, organizá-las e fazer reflexão sobre elas. Nessa fase é importante levar em conta a percepção, sentimentos e emoções das pessoas que estão envolvidas no conflito, e também identificar os interesses dos envolvidos. A próxima fase é o planejamento, no qual é decidido como será feita a negociação, considerando a análise realizada, os mais significativos e importantes interesses identificados, bem como os objetivos mais realistas. TÓPICO 3 — MEIOS AUTOCOMPOSITIVOS 93 A terceira fase é a fase da discussão, na qual os envolvidos se comunicam diretamente. Nesse momento é necessário que o ambiente possa facilitar o diálogo, e que todos tenham a oportunidade de expressar os seus sentimentos e interesses. Cada parte envolvida é incentivada a compreender os interesses e as necessidades do outro. Quando isso é alcançado, os envolvidos poderão trabalhar em conjunto para construir opções de ganho mútuo, buscando firmar um acordo com base em padrões objetivos para conciliar os interesses. 3.4 O NEGOCIADOR A teoria de Harvard apresenta a figura do negociador como uma pessoa cooperativa, que atua baseada em princípios que buscam o ganha-ganha ao invés de preocupação em vencer no enfoque ganha-perde. O negociador ganha-ganha busca possibilidades de soluções criativas, que agreguem valor às questões e que favoreçam a manutenção de relacionamentos. Cabe ao negociador conduzir a negociação através de uma conversa franca, investir na boa-fé das partes e no envolvimento de todos para alcançar uma solução. Quando o negociador consegue que isso aconteça, dificilmente o acordo será descumprido. Para aprofundar essa temática, sugerimos a leitura do livro Como chegar ao sim. Uma das mais importantes obras da área de negócios, Como chegar ao sim já ajudou milhões de pessoas a adotarem uma forma mais inteligente, amistosa e eficaz de negociar. Baseado no trabalho do Projeto de Negociação de Harvard, grupo que estuda e atua em todos os tipos de negociações, mediações e resoluções de conflitos, ele oferece um método direto e prático para obter acordos que satisfaçam todas as partes envolvidas. DICAS FIGURA – LIVRO COMO CHEGAR AO SIM FONTE: . Acesso em: 24 mar. 2020. 94 UNIDADE 2 — OS MEIOS QUE COMPÕEM O SISTEMA DE JUSTIÇA MULTIPORTAS Selecionamos alguns filmes para aprofundamento sobre o tema. Não são ligados diretamente ao tema, mas apresentam conteúdo que envolve muita habilidade de comunicação e negociação. Ponte dos Espiões (Steven Spielberg, 2015) – Em plena Guerra Fria, o advogado especializado em seguros James Donovan (Tom Hanks) aceita uma tarefa muito diferente do seu trabalho habitual: defender Rudolf Abel (Mark Rylance), um espião soviético capturado pelos americanos. Mesmo sem ter experiência nesta área legal, Donovan torna-se uma peça central das negociações entre os Estados Unidos e a União Soviética ao ser enviado a Berlim para negociar a troca de Abel por um prisioneiro americano, capturado pelos inimigos. FONTE: . Acesso em: 13 nov. 2019. Hotel Ruanda (Terry George, 2004) – Em 1994 um conflito político em Ruanda levou à morte de quase um milhão de pessoas em apenas cem dias. Sem apoio dos demais países, os ruandenses tiveram que buscar saídas em seu próprio cotidiano para sobreviver. Uma delas foi oferecida por Paul Rusesabagina (Don Cheadle), que era gerente do hotel Milles Collines, localizado na capital do país. Contando apenas com sua coragem, Paul abrigou no hotel mais de 1200 pessoas durante o conflito. FONTE: . Acesso em: 17 fev. 2019. DICAS FIGURA – FILME PONTE DOS ESPIÕES FIGURA – FILME HOTEL RUANDA FONTE: . Acesso em: 24 mar. 2020. FONTE: . Acesso em: 24 mar. 2020. TÓPICO 3 — MEIOS AUTOCOMPOSITIVOS 95 4 CONCILIAÇÃO A Lei Federal 7.244/84 foi a grande impulsionadora para a projeção da conciliação como forma autocompositiva de resolução de conflitos. A Lei rompeu paradigmas ao introduzir no cenário jurídico nacional propostas de pacificação social, deu ênfase à conciliação e criou a figura do conciliador como facilitador na resolução de conflitos. Essa lei foi substituída pela Lei 9.099/95, que dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, definindo critérios para a criação de um espaço formal para a atuação do conciliador. Atualmente a Resolução 125/2010 dá ordenamento jurídico aos mecanismos consensuais de resolução de conflitos no Brasil, consolidando-os como política pública judiciária, e tem o propósito de incentivar, aperfeiçoar e assegurar tratamento adequado aos conflitos. A conciliação é um método para dirimir adversidades e investir na busca de interesses que satisfaçam os envolvidos nãosó na área jurídica, mas também em outras dimensões de relações conflituosas. 4.1 DEFINIÇÕES PRELIMINARES A definição histórica da palavra “conciliação” tem origem latina e significa conciliatione. É traduzida como “ato ou efeito de conciliar; ato de harmonizar disputantes ou pessoas com vontades opostas; acordo; entendimento; concordância” (Santos, 2008). A conciliação, ou autocomposição, é realizada quando duas ou mais pessoas buscam pôr fim às divergências existentes entre elas de uma maneira consensual. As próprias partes são incentivadas a buscar uma solução de forma conjunta e participativa. 96 UNIDADE 2 — OS MEIOS QUE COMPÕEM O SISTEMA DE JUSTIÇA MULTIPORTAS Juridicamente falando, a conciliação tem suas definições enraizadas, de acordo com conhecimento transmitido pelo Conselho Nacional de Justiça, no sentido de autocomposição das partes. Conforme esclarece o CNJ, conciliação se traduz em “um meio alternativo de resolução de conflitos em que as partes confiam a uma terceira pessoa (neutra), o conciliador, a função de aproximá-las e orientá-las na construção de um acordo”. No caso da conciliação judicial, o procedimento é iniciado pelo magistrado ou por requerimento da parte, com a designação de audiência e a intimação das partes para o comparecimento. Na conciliação pré-processual, a parte comparece à unidade do Poder Judiciário apta a atendê-la (no caso, as unidades de conciliação já instaladas ou os Juizados Especiais), que marca uma sessão na qual a outra parte é convidada a comparecer. Na efetivação do acordo, o termo da audiência se transforma em título judicial. Na falta de acordo, é dado o encaminhamento para o ingresso em juízo pelas vias normais. FONTE: . Acesso em: 13 out. 2019. IMPORTANTE A possibilidade de conciliação está prevista em diversas leis e regulamentos como, por exemplo: Ano Lei Número E Artigos 1943 Consolidação das Leis do Trabalho CLT DL-005.452-1943 (artigos 764, 831, 847 e 850) 1973 Código de Processo Civil Artigos 125, IV, 269, III, 277 e outros 1990 Código de Defesa do Consumidor Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990 (artigos 5º, IV, 6º, VII, e 107) 1995 Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais Lei 9.099, de 26 de setembro de 1995 (art. 2º) 1996 Lei de Arbitragem Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996 (artigos 21, §4º, e 28) 2001 Lei dos Juizados Especiais Federais Lei nº 10.259, de 12 de julho de 2001 2002 Resolução 2.002/12 da ONU. Princípios básicos para utilização de programas de justiça restaurativa em matéria criminal Resolução 2.002/12 de 24 de julho de 2002 2002 Código Civil Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Art. 840 QUADRO 1 – CONCILIAÇÃO E LEIS TÓPICO 3 — MEIOS AUTOCOMPOSITIVOS 97 2009 Lei dos Juizados Especiais da Fazenda Pública Lei nº 12.153, de 22 de dezembro de 2009 2010 Política Judiciária Nacional de Tratamento Adequado dos Conflitos de Interesses Res. nº 125, de 29 de novembro de 2010 FONTE: Material apresentado em sala de aula – Curso de Mediação Domus (2019). Na atualidade, com base na política pública preconizada pelo Conselho Nacional de Justiça e consolidada em resoluções e publicações diversas, pode-se afirmar que a conciliação, no Poder Judiciário, busca: I- além do acordo, uma efetiva harmonização social das partes; II- restaurar, dentro dos limites possíveis, a relação social das partes; III- utilizar técnicas persuasivas, mas não impositivas ou coercitivas, para se alcançarem soluções; IV- demorar suficientemente para que os interessados compreendam que o conciliador se importa com o caso e a solução encontrada; V- humanizar o processo de resolução de disputas; VI- preservar a intimidade dos interessados sempre que possível; VII- visar a uma solução construtiva para o conflito, com enfoque prospectivo para a relação dos envolvidos; VIII- permitir que as partes sintam-se ouvidas; IX- utilizar-se de técnicas multidisciplinares para permitir que se encontrem soluções satisfatórias no menor prazo possível. FONTE: . Acesso em: 24 mar. 2020. Na conciliação, os envolvidos procuram a resolução de seus conflitos com a presença do conciliador, que interfere no processo visando à obtenção de um acordo. É esperado que o conciliador ofereça sugestões sobre possíveis soluções e melhores alternativas para o problema e acordo a ser construído. Esse parecer é dado a partir de uma avaliação criteriosa das vantagens e desvantagens para cada um dos envolvidos, que podem ou não acatar as sugestões recebidas. 4.2 PROCEDIMENTO FIGURA 1 – CONCILIAÇÃO FONTE: . Acesso em: 18 fev. 2020. 98 UNIDADE 2 — OS MEIOS QUE COMPÕEM O SISTEMA DE JUSTIÇA MULTIPORTAS Os conflitos mais adequados para a utilização de meio são aqueles esporádicos, nos quais os envolvidos não têm vínculo continuado, nem afetivo, tampouco emocional. Segundo Hidal e Sampaio (2016), são questões em que as relações são casuais e superficiais, nas quais o interesse material se sobrepõe ao relacional. As diferentes etapas da conciliação, apresentadas por Sampaio e Braga Neto (2007), podem ser divididas em quatro: abertura, esclarecimentos, criação de opções e acordo. Em relação às etapas, vale a observação de Lia Regina Castaldi Sampaio e Adolfo Braga Neto no sentido de que não se trata de uma “receita culinária, em que são usados determinados ingredientes e marcas que resultarão, na maioria das vezes, se bem seguidas pelo usuário, em um alimento a ser consumido” (SAMPAIO; BRAGA NETO, 2007, p. 46-47). ATENCAO Etapa de abertura Na abertura, o conciliador fala sobre o procedimento que será realizado, faz os esclarecimentos iniciais e fala das implicações legais referentes ao acordo. Tavares Filho e Tavares (2016, p. 349) ao se referirem à etapa da apresentação, salientam a importância da criação de um ambiente de acolhimento que possa conquistar os participantes e dar legitimidade a este meio autocompositivo. Estes autores listam itens a serem seguidos pelo conciliador nesta etapa. • cumprimenta as partes e seus advogados; • anota os respectivos nomes e pergunta como cada qual prefere ser chamado; • faz a sua apresentação pessoal, ressaltando o dever ético de imparcialidade e neutralidade; • destaca seu papel de facilitador do diálogo, não de julgador; • fala sobre a voluntariedade e informalidade dessa prática; • confirma o interesse das partes em participar e parabeniza pela escolha; • esclarece sobre os objetivos da conciliação e as implicações da celebração (ou não) do acordo • realça as vantagens dessa forma de solução de conflitos. TÓPICO 3 — MEIOS AUTOCOMPOSITIVOS 99 Etapa de Esclarecimento Tavares Filho e Tavares (2016) agregam a terminologia Investigação ao nome da etapa. Nela cabe ao conciliador buscar esclarecimentos por parte dos envolvidos sobre ações, atitudes e iniciativas que geraram o conflito. O conciliador convida os envolvidos a relatarem a controvérsia. É nesta etapa que são identificados os temas, interesses e posições dos envolvidos. Cabe ao conciliador identificar os pontos convergentes e divergentes do conflito através de uma escuta ativa, sem interrupções. Momento de realizar perguntas sobre o fato e a relação entre eles para incentivar a comunicação e identificar a pretensão de cada parte envolvida no conflito. Etapa de criação de opções de solução A terceira etapa pressupõe a criação de opções que pode se dar por uma sugestão apresentada pelo conciliador ou mesmo propostas construídas pelos envolvidos para a solução do conflito. O foco, segundo Tavares Filho e Tavares (2016, p. 350) “é o incentivo à criatividade das partes, na busca da solução da disputa, tendo em vista que quanto mais proposta forem discutidas, maiores as perspectivas deum ajuste consistente”. Os autores Tavares Filho e Tavares (2016) incluem uma outra etapa, antes da etapa final, chamada por eles de avaliação e escolha das opções de solução. Avaliação e escolha das opções de solução A tarefa do conciliador é auxiliar na análise das opções construídas na fase três, com vistas a selecionar as opções que possam ser viáveis e atender os interesses das partes. Nesta etapa, que é mais objetiva, pode ser necessária a presença de um advogado, pois não é prerrogativa do conciliador orientar quanto a exequibilidade das soluções propostas. Acordo Trata-se na lavratura do termo final, o acordo. Segundo Tavares Filho e Tavares (2016, p. 352) é importante que na escrita possam ser considerados os seguintes aspectos: • forma escrita; • redigido na presença das partes, advogados e conciliador; • modo simples, claro, preciso; • fazer constar exatamente o que ficou combinado; • ter o tratamento jurídico necessário; • deixar assinalado quem vai fazer o que, porque, quando, como, onde e quando. 100 UNIDADE 2 — OS MEIOS QUE COMPÕEM O SISTEMA DE JUSTIÇA MULTIPORTAS 4.3 TÉCNICAS Vamos apresentar as técnicas de conciliação descritas por Tavares Filho e Tavares (2016). Estas técnicas também são utilizadas em outros métodos de solução de conflitos, como a mediação e a negociação. Cabe ao conciliador decidir pela melhor técnica em resposta ao que busca resolver. Escuta ativa ou escuta dinâmica A escuta ativa pode ser entendia como uma técnica que implica dar àquele que fala sua mais completa atenção e capacidade de compreensão. A prerrogativa é a necessidade de construção de um espaço propício para a comunicação, onde os envolvidos possam se sentir confortáveis para expressar ideias e sentimentos. Para compreensão do que é assinalado pelas partes, o conciliador utiliza perguntas exploratórias, que ajudam a elucidar o que é dito. Técnica da recontextualização ou parafraseamento A técnica pressupõe que o conciliador construa um resumo reformulado do que foi dito pelas partes, extraindo a conotação negativa e enfatizando pontos positivos e comuns. O conciliador, com essa técnica, tem a chance de confirmar se entendeu bem o que foi dito e as partes têm a possibilidade de ouvir a sua própria fala. Técnica: concentrar-se nos interesses A proposta da técnica é facilitar, por meio de perguntas, que os envolvidos no conflito possam sair de suas posições e possam expressar seus interesses. Quando as partes iniciam a sessão, têm a tendência de se manter nas posições, sendo a competição entre as partes o foco. Técnica do reforço positivo Técnica que visa a valorização do comportamento da parte ou do advogado que apresenta propostas positivas. O conciliador elogia, estimula e encoraja posturas positivas. Técnica do teste de realidade e enfoque prospectivo Cabe ao conciliador, no momento da escolha da solução, questionar se o que está sendo combinado pode realmente ser exequível. TÓPICO 3 — MEIOS AUTOCOMPOSITIVOS 101 O relato da experiência apresentada a seguir pode ajudar no entendimento da importância da conciliação, enquanto método que constrói possibilidades de pacifi- cação social. Ele foi extraído do Manual de Mediação e Conciliação da Justiça Federal (2019, p. 74). [...] Considerando minha experiência com a conciliação/mediação na Justiça Federal, ressalto um caso especial que me vem à memória. Uma ação de indenização por danos morais e materiais, em razão de vícios de construção em imóvel do Programa “Minha Casa, Minha Vida”, faixa 1 (PAR). A autora ajuizou ação contra a Caixa Econômica Federal e a em- presa responsável pela construção do imóvel (casa popular) solicitando indenização por danos materiais e morais causados em razão de uma tempestade que ocorreu na cidade, alagando sua casa, danificando seus poucos móveis e tornando a residência praticamente inabitável. No laudo pericial restou demonstrado que os danos sofridos pela autora decor- reram de vícios de construção. Na audiência de conciliação/mediação, após a declaração de abertura, a autora foi instada a relatar os fatos. Embora as fotos constantes no laudo pericial demonstrassem o estado de miserabilidade da autora, bem como as condições insalubres de sua moradia, a autora ainda apresentou outras fotos que haviam sido retiradas posteriormente, mostrando a piora na condição do imóvel. Não obstante a situação digna de compaixão, a autora relatou, com muito bom humor, simplicidade e demonstrando resignação, que tinha dois filhos (gêmeos) adolescentes, ambos deficientes, e que, como eles não andavam, passavam o dia brincando no chão, mas com as chuvas, com o barro que tinha entrado na casa e com todo o mofo eles não estavam muito bem de saúde e não tinham como brincar direito e que, com a chuva, perdeu os poucos móveis, eletrodomésti- cos e até os colchões. Nesse ponto da audiência, o rumo da conversou mudou. Passamos a trazer para a mesa de negociação outras questões que não constavam no processo e que subjaziam à pretensão da autora de ressarcimento pelos danos morais e materiais. Fosse por compaixão ou mesmo por estratégia de atuação processual, mas o efeito foi além do esperado e o acordo alcançou não só o ressarcimento pelos danos alegados e o reparo da moradia, mas também previu: doação de duas cadeiras de rodas para os filhos da autora, auxílio médico-hospitalar, esclarecimentos sobre possível direito a recebimento de benefí- cio assistencial para os filhos, encaminhamento para atermação. [...] Geovana Faza da Silveira Fernandes Diretora do Centro Judiciário de Conciliação da Subseção Judiciária de Juiz de Fora FONTE: . Acesso em: dez. 2019 INTERESSANTE 102 UNIDADE 2 — OS MEIOS QUE COMPÕEM O SISTEMA DE JUSTIÇA MULTIPORTAS 5 MEDIAÇÃO Mediar é uma estratégia de resolução de conflitos que viabiliza a compreensão dos problemas na perspectiva de cultura de paz, permitindo aos envolvidos a construção de decisões que melhor lhes favoreçam. A mediação avança não somente no judiciário, mas na resolução de conflitos em ambientes escolares, prisões, empresas, comunidades e em muitos espaços que lidam com relacionamentos sociais. Essa estratégia oferece alternativas às propostas de judicialização dos conflitos, tão vigentes em nossa sociedade. Não só no Brasil, mas em muitos e diferentes países, tem aumentado consideravelmente o número de profissionais: advogados, assistentes sociais, médicos, psicólogos interessados em buscar capacitação na área. São diversas as ofertas de cursos, tanto do âmbito privado quanto acadêmico, que têm por objetivo capacitar profissionais para atuar como mediadores e proporcionar uma atuação diferenciada, menos adversarial e mais colaborativa, no desenvolvimento, na prática, de sua profissão de origem. Para tanto, faz-se necessário mais do que uma apreensão de conteúdos teóricos, uma qualificação que contemple o self do profissional, atentando para sua implicação no processo. 5.1 DEFINIÇÕES PRELIMINARES Falar em mediação é falar em estratégia autocompositiva para resolução de conflitos judiciais e extrajudiciais, que confere às pessoas a autoria de suas próprias decisões, a partir de reflexão e ampliação de alternativas. Segundo Almeida (2013, p. 46), “é um processo não adversarial dirigido à desconstrução dos impasses que imobilizam a negociação, transformando um contexto de confronto em contexto colaborativo”. Para Warat (2018), mediação é a forma ecológica de resolução dos conflitos sociais e jurídicos. Segundo ele, “essa prática substitui a aplicação coercitiva e terceirizada de uma sanção legal” (2018, p. 17), “apontando86 3.1 DEFINIÇÕES PRELIMINARES .................................................................................................. 87 3.2 PRINCÍPIOS E PROCEDIMENTOS ........................................................................................... 89 3.3 FASES DA NEGOCIAÇÃO ........................................................................................................ 92 3.4 O NEGOCIADOR ......................................................................................................................... 93 4 CONCILIAÇÃO ................................................................................................................................. 95 4.1 DEFINIÇÕES PRELIMINARES .................................................................................................. 95 4.2 PROCEDIMENTO ........................................................................................................................ 97 4.3 TÉCNICAS .................................................................................................................................... 99 5 MEDIAÇÃO ...................................................................................................................................... 102 5.1 DEFINIÇÕES PRELIMINARES ................................................................................................ 102 5.2 A PESSOA DO MEDIADOR ..................................................................................................... 103 5.3 FUNÇÕES DO MEDIADOR ..................................................................................................... 105 5.4 REGRAS E PRINCÍPIOS DA MEDIAÇÃO ............................................................................. 105 5.5 ESCOLAS OU MODELOS DA MEDIAÇÃO .......................................................................... 106 5.6 PROCEDIMENTOS .................................................................................................................... 107 5.7 TÉCNICAS PARA A CONDUÇÃO DE UMA MEDIAÇÃO ............................................... 109 LEITURA COMPLEMENTAR .......................................................................................................... 113 RESUMO DO TÓPICO 3................................................................................................................... 116 AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................ 117 UNIDADE 3 — PROCESSOS DE MEDIAÇÃO: FAMILIAR, ESCOLAR E COMUNITÁRIA .......119 TÓPICO 1 — MEDIAÇÃO FAMILIAR .......................................................................................... 121 1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................... 121 2 PERSPECTIVA HISTÓRICA DA MEDIAÇÃO FAMILIAR ................................................... 121 3 FAMÍLIAS E FAMÍLIAS CONTEMPORÂNEAS ...................................................................... 123 3.1 CONCEITOS ............................................................................................................................... 123 3.2 DINÂMICA RELACIONAL DA FAMÍLIA ............................................................................ 127 3.3 DIVÓRCIO E SUAS FASES ....................................................................................................... 129 4 TEMAS PARA MEDIAÇÃO .......................................................................................................... 130 4.1 DIVÓRCIO ................................................................................................................................... 130 4.2 PENSÃO ALIMENTÍCIA DOS FILHOS, TAMBÉM CHAMADA DE ALIMENTOS AOS FILHOS ......................................................................................................................................... 131 4.3 GUARDA E PARENTALIDADE FUTURA DOS FILHOS .................................................... 131 4.4 CUIDADO DE IDOSOS/DOENTES ......................................................................................... 131 4.5 RECONHECIMENTO DE PATERNIDADE ........................................................................... 131 5 ÂMBITO DE ATUAÇÃO DA MEDIÇÃO FAMILIAR ............................................................. 132 6 PARTICULARIDADES DA MEDIAÇÃO FAMILIAR ............................................................ 133 7 TÉCNICAS DE MEDIAÇÃO FAMILIAR ................................................................................... 135 8 MEDIABILIDADE ........................................................................................................................... 136 RESUMO DO TÓPICO 1................................................................................................................... 139 AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................ 140 TÓPICO 2 — MEDIAÇÃO ESCOLAR ........................................................................................... 141 1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................... 141 2 ESPAÇO ESCOLAR ......................................................................................................................... 141 2.1 CONFLITOS NO AMBIENTE ESCOLAR ............................................................................... 143 3 DIMENSÕES E FINALIDADES DA MEDIAÇÃO ESCOLAR .............................................. 145 3.1 TÉCNICA DE INTERVENÇÃO NA GESTÃO E RESOLUÇÃO DOS CONFLITOS ....... 148 3.2 METODOLOGIA DE DESENVOLVIMENTO PESSOAL E SOCIAL .................................. 149 3.3 ESTRATÉGIA INTEGRADA DE PREVENÇÃO ................................................................... 149 4 A ESTRUTURA DE UM PROJETO DE MEDIAÇÃO ESCOLAR ......................................... 151 4.1 DIAGNÓSTICO – LEVANTAMENTO DE DADOS .............................................................. 151 4.2 PLANO DE AÇÃO ..................................................................................................................... 152 4.3 SENSIBILIZAÇÃO ...................................................................................................................... 152 4.4 FORMAÇÃO: CAPACITAÇÃO TEÓRICA E PRÁTICA ...................................................... 153 4.5 INSTITUCIONALIZAÇÃO ....................................................................................................... 153 RESUMO DO TÓPICO 2................................................................................................................... 157 AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................ 158 TÓPICO 3 — MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA ............................................................................... 159 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 159 2 RELAÇÕES DE PARTICIPAÇÃO COMUNITÁRIA NA RESOLUÇÃO DE CONFLITOS ...... 159 2.1 PERSPECTIVA CONCEITUAL ................................................................................................. 160 3 BREVE HISTÓRICO DA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA ..................................................... 161 4 CARACTERÍSTICAS DA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA .................................................... 162 5 FUNÇÕES DA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA ......................................................................... 164 6 FASES DA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA ................................................................................ 167 7 O PAPEL DO MEDIADOR COMUNITÁRIO ........................................................................... 167 LEITURA COMPLEMENTAR ..........................................................................................................para a realização da autonomia das partes envolvidas” (2018, p. 19). A mediação também pode ser definida como uma negociação, que tem um terceiro como facilitador, por meio da qual pessoas em disputa, ou que podem se colocar em situação de disputa, são auxiliadas por uma terceira pessoa a construir alternativas autocompositivas. A proposta investe na ideia de mobilizar os envolvidos a compreender suas próprias posições, tanto quanto as da outra parte, para que, assim, possam criar o novo. A mediação tem como produto idealizado a superação de um judiciário sobrecarregado e demorado, de forma que os envolvidos nos conflitos consigam, em menos tempo, com baixo custo e com a possibilidade da manutenção dos relacionamentos, construir soluções que beneficiem a todos. TÓPICO 3 — MEIOS AUTOCOMPOSITIVOS 103 São muitos e diversos os campos de atuação da mediação, e ela pode ser realizada tanto na esfera pública quanto privada: escolas, prisões, comunidades, foros, sempre oferecendo uma alternativa aos processos litigiosos e visualizando cultura de paz. Vezzulla (1998) postula o reconhecimento da mediação como uma proposta de organização social, de convivência humana. Segundo ele, a mediação pode viabilizar a humanização da justiça e a restauração de valores sociais que foram sobrepostos por valores individualistas e competitivos do neoliberalismo. A mediação se configura como uma prática social consolidada por três fundamentos: respeito à lei, respeito ao outro e respeito a si próprio. Segundo a autora, além de se constituir de forma interdisciplinar, possibilita construções transdisciplinares. São elementos preponderantes da mediação: 1. Protagonismo e autonomia dos interessados na busca de uma solução que satisfaça a ambos; 2. Papel do mediador como condutor do diálogo, o que demanda a sua capacitação em técnicas específicas para essa função; 3. Duplo escopo do procedimento, direcionando não somente à resolução da controvérsia que gerou o processo, mas também à restauração da comunicação entre os litigantes, hábil à prevenção de novos litígios. IMPORTANTE 5.2 A PESSOA DO MEDIADOR O mediador não é um observador externo, mas um participante ativo. Atua e dirige, joga e treina. Sua vontade e interesses precisam desaparecer para que as vontades e interesses das partes submerjam. Desde a acolhida isso se manifesta, pela forma como ele acolhe genuinamente os envolvidos e pela maneira como se expressa, antes de acolher o conflito que o traz ao espaço de trabalho. Para definir a pessoa do mediador, Vezzulla (1998) refere que uma das formas mais efetivas é dizer o que ele não é. O mediador não é um juiz, pois não cabe a ele julgar, tampouco dar vereditos. O mediador não é um negociador, cujo interesse direto é o resultado, visto que o sucesso da mediação não está atrelado ao fato dos mediandos chegarem a um acordo. Também não é um árbitro que emite laudos e decisões. O mediador é um terceiro que atua, como já foi assinalado, de forma neutra, conduzindo sem decidir. Ainda segundo Vezzulla, o mediador é como o marisco que fica na pior das posições, entre o mar e a rocha. Mediador é como a parteira, que ajuda a dar à luz os reais interesses dos envolvidos. 104 UNIDADE 2 — OS MEIOS QUE COMPÕEM O SISTEMA DE JUSTIÇA MULTIPORTAS Segundo Haynes e Marodin (1996), o mediador é alguém que não está comprometido com qualquer uma das partes em particular, está equilibrado entre as partes, controla o processo, e não o conteúdo (este é controlado pelos participantes), não aceita definições unilaterais, trabalha pelas construções de opções, não guarda segredos uns dos outros e viabiliza para que o “não dito” possa, em ambiente protegido, ser dito. O que os autores referidos apontam é a importância da pessoa do mediador no trabalho que realiza. Na sua atuação, valores, crenças, prismas pessoais podem, em algum momento, entrar em conflito com suas crenças, valores, prismas profissionais. Sua formação como mediador precisa capacitá-lo a reconhecer o conflito e concentrar-se na relação profissional que mantém com ele e com as pessoas que o vivenciam. O mediador assume uma posição neutra na condução do processo de mediação. Isso não significa dizer que o mediador não tem sua posição pessoal sobre o conflito. Ele a tem, e isso interfere diretamente no trabalho que realiza. Essa posição tem como fundamentação epistemológica o pensamento sistêmico, que é coerente com as características da ciência contemporânea emergente. Conhecer o fenômeno passa diretamente por conhecer o observador. Disso resulta que, para viabilizar a postura neutra do mediador, prevista na Lei da Mediação e no Novo Código de Processo Civil, Art. 2º da Lei nº 13.140/15 e Art. 166 da Lei nº 13.105/15, envolve a necessidade de que ele reconheça sua visão de mundo e de seus limites pessoais e profissionais. Para facilitar a consolidação dessa postura neutra e imparcial, faz-se necessária a autorreflexão que, segundo Vezzulla (1998), traz consciência ao mediador para analisar as próprias sensações e reações, e confere caminhos para acessar as melhores ferramentas que darão suporte à condução produtiva em prol de objetivos satisfatórios. Para ele, o mediador necessita estar vigilante e estar convicto de que as pessoas buscam ajuda porque não conseguem enxergar a posição do outro, estão mergulhadas em sua posição. A produção de William Ury (2015) muito contribui para reforçar o que está sendo problematizado. Ele apresenta uma metáfora interessante para o aprofundamento da discussão. Sugere que o mediador se sente à mesa de jantar com os seus próprios medos, emoções, sentimentos, a fim de entender melhor o modo como funcionam. Segundo ele, essa postura pode auxiliar na construção de relacionamentos mais saudáveis em diferentes âmbitos. Isso se dá, também, nos relacionamentos construídos no espaço da mediação. O método de autoconhecimento proposto por Ury (2015), composto por seis passos, é, segundo ele, uma forma de chegar ao sim consigo mesmo. O primeiro passo refere-se à proposta de colocar-se no seu próprio lugar, ouvindo com empatia suas necessidades básicas. O segundo refere-se ao compromisso de tornar-se responsável pela sua própria vida, assumindo o cuidado dos seus próprios interesses. O terceiro indica a necessidade de mudar a forma como TÓPICO 3 — MEIOS AUTOCOMPOSITIVOS 105 vê a vida. Já o quarto passo indica que se mantenha no presente. O quinto, a necessidade de respeitar os outros e terminar com a indicação de saber dar e receber, mudando a abordagem do jogo de tomar para dar. O autoconhecimento, considerando o que já foi assinalado, é uma das prerrogativas para a formação profissional. Entretanto, a grande maioria das escolas de formação tem priorizado o desenvolvimento de competências e habilidades, em detrimento de estratégias para o desenvolvimento do self do profissional. 5.3 FUNÇÕES DO MEDIADOR O mediador tem a função de ser o catalizador do processo, para que cada mediando possa responsabilizar-se por si e pelo relacionamento no qual está envolvido. O envolvimento do profissional é para facilitar processos emancipatórios e programação do devir. Como apresenta Valéria Warat (1999, p. 122-123) o mediador precisa ser capaz de: a) ouvir e tranquilizar as partes, fazendo-as compreender que ele entende o problema; b) passar confiança às partes; c) explicitar a sua imparcialidade; d) mostrar às partes que seus conceitos não podem ser absolutos; e) fazer com que as partes se coloquem uma no lugar uma da outra, entendendo o conflito por outro prisma; f) auxiliar na percepção de caminhos amigáveis para a solução do conflito; g) ajudar as partes a descobrir soluções alternativas, embora não deva sugerir o enfoque; h) compreenderque, ainda que a mediação se faça em nome de um acordo, esse não é o único objetivo. É preciso ser dito que é papel fundamental do mediador ser agente de transformação, viabilizando possibilidade de empoderamento dos envolvidos, através de perguntas que visam a reflexões e esclarecimentos. O mediador esforça-se para que os mediandos compreendam o que ocorre e como está sendo conduzindo o encontro. 5.4 REGRAS E PRINCÍPIOS DA MEDIAÇÃO Uma das principais características é ser um processo voluntário, que oferece àqueles que estão vivenciando uma situação de conflito a oportunidade e o espaço adequados para buscar soluções, preservando laços de convivência. Outra característica é ser um processo que respeita o sigilo e intimidade dos envolvidos, de forma a promover a recuperação da autonomia e controle da vida pessoal, social e produtiva. 106 UNIDADE 2 — OS MEIOS QUE COMPÕEM O SISTEMA DE JUSTIÇA MULTIPORTAS Para além das características de voluntariedade e confidencialidade, a mediação postula a participação de um terceiro, que atua com imparcialidade. Um acordo construído e aceito pelos participantes pode ser um dos resultados possíveis. • Princípios – baseiam-se na Resolução nº 125/2010 do CNJ. Eles definem o comportamento. • Regras – são normas de conduta a serem observadas pelos mediadores. Princípios Regras Confidencialidade Informações Decisão informada Autonomia de vontade das partes Competência Ausência de obrigação de resultado Imparcialidade Desvinculação da profissão de origem Independência e Autonomia Compreensão quanto à conciliação e à mediação Respeito à ordem pública e às leis vigentes Empoderamento Validação QUADRO 2 – PRINCÍPIOS E REGRAS FONTE: Material apresentado em sala de aula – Curso de Mediação (2019) 5.5 ESCOLAS OU MODELOS DA MEDIAÇÃO São três modelos que orientam a atuação do profissional: o Modelo de Harvard, que inspira os demais modelos, prioritariamente por ter sido o primeiro; o Modelo Transformativo, cujo foco está na interação; e o Modelo Circular Narrativo, que foca na desestabilização. O Modelo de Harvard é um modelo negocial, com procedimentos estruturados. Nesse modelo não está prevista nenhuma indicação de sugestão pelo mediador, e ele se baseia nos princípios de Negociação de Harvard. O Modelo Transformativo tem seu foco no empoderamento e no reconhecimento. Parte do pressuposto de que, quando as pessoas estão em situação de conflito, elas têm percepção de que são frágeis e não são reconhecidas pelo que dizem ou fazem. Dessa forma, o modelo busca o empoderamento e o reconhecimento através da apropriação pelos mediandos de seus próprios objetivos, recursos, opções e preferências. As perguntas feitas pelos mediadores são voltadas ao empoderamento, sem direcionamento: “Como vocês querem gerir o processo?”; “Como gostariam de ser tratados?”; “Onde querem chegar?”; “Querem momentos individuais?” TÓPICO 3 — MEIOS AUTOCOMPOSITIVOS 107 QUADRO 3 – PROCEDIMENTOS O Modelo Circular Narrativo tem como objetivo desestabilizar as histórias que definem o comportamento dos envolvidos de forma a complexificar e ressignificar a narrativa de cada envolvido. O mediador precisa saber que tipo de efeitos está a provocar no diálogo, consciente de que o conflito está enraizado em histórias dominantes. A história domina as partes, e o foco dessa escola está na atenção à construção discursiva das histórias, para autonomização das pessoas por meio da investigação e desconstrução da perspectiva que se tem do conflito. 5.6 PROCEDIMENTOS Pré-mediação ⇓ Acolhimento ⇓ Declaração de Abertura ⇓ Narrativas ⇓ Resumo ⇓ Pauta ⇓ Sessões privadas ⇓ Geração de opções ⇓ Teste de Realidade ⇓ Acordo ⇓ Encerramento FONTE: Os autores Com base no Manual de Mediação Judicial elaborado pelo Conselho Nacional Justiça, o processo de Mediação inicia com a Sessão de Abertura ou Declaração de Abertura. Essa seção tem como propósito deixar as partes “a par do processo de mediação, estabelece um tom ameno para o debate das questões por elas suscitadas, faz com que o mediador ganhe a confiança das partes e desde já, explicite as expectativas quanto aos resultados do processo que se está a iniciar” (BRASIL, 2016, p. 162-163). 108 UNIDADE 2 — OS MEIOS QUE COMPÕEM O SISTEMA DE JUSTIÇA MULTIPORTAS A segunda fase, também com base no Manual de Mediação Judicial, é a fase de Reunião de Informações. É o momento no qual os mediandos apresentam seus relatos, percepções e sentimentos acerca dos motivos que os trouxeram à mediação e têm a oportunidade de ouvir e serem ouvidos de forma respeitosa e empática. Ao final dessa fase, é esperado que o mediador apresente um resumo dos relatos dos mediandos, abarcando questões principais, interesses subjacentes e sentimentos em comum, checando com os mediandos se compreendeu o que foi dito por ambos. Logo em seguida, caso seu entendimento dos relatos seja aprovado pelos mediandos, é feita uma pauta conjunta que norteará o trabalho de resolução das questões controversas (BRASIL, 2016, p. 150-151). No seguimento, cabe ao mediador decidir se realizará, ou não, sessões individuais. Essas são indicadas pelo manual como um recurso que o mediador deve empregar, sobretudo, no caso de as partes não estarem se comunicando de modo eficiente. Também quando forem identificadas animosidades, dificuldades de expressão de interesses, particularidades e expectativas quanto aos resultados a serem alcançados. Ao término da fase de esclarecimento de questões, interesses e sentimentos, a próxima etapa, segundo o referido manual, é uma sessão conjunta com os mediandos, que tem por objetivo apresentar os progressos alcançados durante a mediação e dar prosseguimento à negociação entre as partes. A Construção do acordo, quando possível, é considerada a fase final, e tem por meta a objetivação do compromisso entre as partes, sendo ou não formalizado através de documento escrito, caso os envolvidos no processo cheguem a algum entendimento. Com relação a esse tema, é imperioso destacar que o acordo não é o objetivo da mediação. Segundo Gisela Betina Warat (2018, p. 99) “pode-se considerar de sucesso uma mediação quando ajudou as partes a aclararem as suas metas e suas necessidades, as alternativas que possuíam, a tomarem decisões, e a outorgarem reconhecimento.” É importante enfatizar que essas fases, mesmo sendo apresentadas como um guia e passíveis de flexibilização, na prática, o que se observa é um certo formalismo e cobrança na sua utilização quando a mediação é realizada pelo Poder Judiciário. TÓPICO 3 — MEIOS AUTOCOMPOSITIVOS 109 O que as pessoas mais desejam é alguém que as escute de maneira calma e tranquila. Em silêncio. Sem dar conselhos. Sem que digam: “Se eu fosse você”. A gente ama não é a pessoa que fala bonito. É a pessoa que escuta bonito. A fala só é bonita quando ela nasce de uma longa e silenciosa escuta. É na escuta que o amor começa. E é na não escuta que ele termina. Não aprendi isso nos livros. Aprendi prestando atenção. Rubem Alves INTERESSANTE 5.7 TÉCNICAS PARA A CONDUÇÃO DE UMA MEDIAÇÃO Quando se fala em técnicas, é possível pensar que o procedimento da mediação pode ser conduzido por alguém que domine um número significativo de técnicas. Na verdade, é muito mais do que isso. Na mediação, técnica não é sinônimo de ferramenta por si só, mas um conjunto de procedimentos que podem ser acionados na interação teórico-prática. Uma outra discussão interessante é que, além de conhecer, é importante definir qual a melhor técnica para atender à demanda que se apresenta e qual o melhor momento de utilizá-la. A autora mencionada anteriormente fala que as técnicas na mediação são “recursos comunicacionais” que visam a provocar mudanças efacilitar que objetivos sejam alcançados. Segundo Tania Almeida (2011), os mediadores reúnem as técnicas, os procedimentos e as atitudes utilizados pelos diferentes modelos, colocando-as em uma “caixa de ferramentas” (tool box), de forma a utilizarem-nas de acordo com a situação, a ocasião, o estilo do mediador e o perfil dos mediandos. Essa é uma tendência universal, relativa não somente à prática da mediação, mas também a outras práticas, em que o melhor de cada pensamento é reunido em prol da natureza da intervenção, sem privilegiar um único modelo teórico em particular. FONTE: . Acesso em: 1º nov. 2019. IMPORTANTE 110 UNIDADE 2 — OS MEIOS QUE COMPÕEM O SISTEMA DE JUSTIÇA MULTIPORTAS A caixa de ferramentas é acessada conforme a demanda e necessidade advinda dos mediandos. O grande desafio do mediador, ao acionar as ferramentas da mediação, é estimular que as partes possam desenvolver posturas colaborativas, na busca de um entendimento recíproco. Segundo o Manual de Mediação Judicial (BRASIL, 2016, p. 234), são estas as ferramentas para provocar mudanças: • Recontextualização (ou paráfrase): técnica segundo a qual o mediador estimula a busca de um enfoque positivo das questões, dando outra perspectiva ao fato. Reformulação, pelo mediador, de frases ditas pelas partes, a fim de sintetizá- las ou reformulá-las sem alterar seu conteúdo. Dessa maneira, estimula-se a parte a considerar ou entender uma questão, um interesse, um comportamento ou uma situação de forma mais positiva, para que, assim, as partes possam extrair soluções também positivas. • Audição de propostas implícitas: esforço para que os mediandos possam escutar propostas que eles próprios apresentam, mas que nem eles reconhecem como propostas, devido ao estado de ânimo exaltado com o qual se comunicam. • Afago (ou reforço positivo): reforço, por parte do mediador, a um comportamento ou postura positiva dos envolvidos para a mediação. • Silêncio: o uso do silêncio pelo mediador pode facilitar que os envolvidos no conflito possam refletir sobre o conteúdo da comunicação na sessão de mediação, questionamentos, expressão de sentimentos, falas. • Sessões privadas ou individuais (caucus): encontros privados com cada um dos mediandos, especialmente na fase de negociações, para acalmar os ânimos, para que possam expressar algo que não o fariam na frente da outra parte, e construir possibilidades de acordo, reunir informações úteis, entre outros. • Inversão de papéis: técnica que estimula que cada um dos envolvidos possa entender a situação do ponto de vista do outro. Dessa forma, a técnica estimula a empatia. Usada prioritariamente nas sessões privadas com cada um dos envolvidos. • Geração de opções/perguntas orientadas à geração de opções: técnica que estimula, por meio de perguntas de cunho reflexivo, que os mediandos possam construir novas alternativas visando ao benefício de todos os envolvidos. • Normalização: técnica que normaliza o conflito, que cria a noção de que estar em conflito é algo comum às pessoas. Estimula os mediandos a perceberem que o que está em pauta pode oportunizar melhoria na relação. • Organização de questões e interesses: técnica que facilita que se estabeleça com clareza uma relação entre as questões a serem debatidas e os interesses reais que as partes tenham. • Enfoque prospectivo: está relacionado à lide sociológica. Técnica utilizada para desconstruir um discurso que busca culpados e projetar para o futuro. • Teste de realidade: técnica utilizada nas sessões privadas, em que o mediador busca checar com os mediandos se as combinações propostas funcionarão na prática. • Validação de sentimentos: a técnica é utilizada para o reconhecimento dos sentimentos decorrentes do conflito, afirmando os aspectos de normalidade desses sentimentos. A validação de sentimentos semelhantes deve ser feita em conjunto. Já para situações unilaterais, é indicado utilizar sessões privadas. TÓPICO 3 — MEIOS AUTOCOMPOSITIVOS 111 A condução da mediação é flexível. Cabe ao mediador conhecer as técnicas e poder decidir quais e quando devem ser utilizadas, para que o processo possa ser produtivo. Além de aprender sobre técnicas, deve investir no desenvolvimento de sensibilidade para compreender os conflitos, suas concepções e possíveis transformações. Para aprofundar essa temática, sugerimos que leiam os livros: Mediação nos Conflitos Civis, de Fernanda Tartuce, e Em nome do acordo: a mediação no Direito, de Alberto Luis Warat. DICAS Para aprofundar essa temática, sugerimos que assistam aos seguintes filmes a seguir: Sete anos (Roger Gual, 2016) – É a história de quatro amigos e sócios fundadores de uma empresa que uma noite são forçados a encontrar uma solução que pode salvar sua amizade e a si mesmos. Eles devem enfrentar uma decisão complicada: quem deve sacrificar a sua liberdade para salvar o resto da ruína pessoal e financeira. O filme é um drama policial com Paco León, Juana Acosta e Alex Brendemühl como protagonistas de uma perturbadora história filmada em uma única etapa. FONTE: . Acesso em: 21 jan.2020. DICAS FIGURA – FILME SETE ANOS FONTE: . Acesso em: 24 mar. 2020. 112 UNIDADE 2 — OS MEIOS QUE COMPÕEM O SISTEMA DE JUSTIÇA MULTIPORTAS A Chegada (Denis Villeneuve, 2016) - Quando seres interplanetários deixam marcas na Terra, a Dra. Louise Banks (Amy Adams), uma linguista especialista no assunto, é procurada por militares para traduzir os sinais e desvendar se os alienígenas representam uma ameaça ou não. No entanto, a resposta para todas as perguntas e mistérios pode ameaçar a vida de Louise e a existência de toda a humanidade. FONTE: . Acesso em: 21 jan. 2020. FIGURA – FILME A CHEGADA FONTE: . Acesso em: 24 mar. 2020. TÓPICO 3 — MEIOS AUTOCOMPOSITIVOS 113 LEITURA COMPLEMENTAR O texto indicado como leitura complementar é parte de um artigo intitulado: Mediação de conflitos: um meio de prevenção e resolução de controvérsias em sintonia com a atualidade, escrito por Tania Almeida. O artigo integra uma coletânea organizada por José Ricardo Cunha em Poder Judiciário – Novos olhares sobre gestão e jurisdição, obra publicada pela Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro, em 2010. A opção por este texto decorre da importância de todo o acadêmico ocupar- se com a teoria que orienta a prática a ser desenvolvida. As bases teóricas do rito da mediação e de suas técnicas Tania Almeida Além do quadrante de negociação da Escola de Harvard, a Mediação recebe contribuições de outros saberes e se caracteriza pela interdisciplinaridade. Teorias de comunicação contribuem com numerosos aportes e sustentam algumas das técnicas utilizadas na Mediação. A comunicação humana é uma das vigas mestras de sustentação da dinâmica da Mediação e precisa ser decifrada pelo mediador, a cada momento, de forma a servir de referencial para a identificação do timing e da intervenção a ser utilizada. Mais voltadas para o pragmatismo da comunicação humana ou para as narrativas e a análise dos discursos e de sua subjetividade, as contribuições são inúmeras. Em comum, tais contribuições têm a concepção de considerar a linguagem como um cenário onde se constroem os sujeitos, sua forma de expressão e de ação, sempre relacionais, ou seja, referida ao outro. O olhar sistêmico, outro pilar, contribui para que a Mediação reconheça os componentes multifatoriais dos desacordos – legais, psicológicos, sociológicos, financeiros, entre outros – e os maneje segundo sua prevalência, de forma a atender aos interesses e necessidades dosmediandos. Também como resultado do olhar sistêmico, mediadores entendem que o fato trazido à Mediação integra uma cadeia de acontecimentos passados e futuros e que sua intervenção provocará alterações na lógica de desenvolvimento dessa cadeia, com repercussões sobre um conjunto de pessoas. Mediadores comprometem-se com o curso e com o resultado da Mediação, agindo cuidadosamente na condução de sua dinâmica, avaliando, continuamente, a adequação de sua atuação, pois a consideram parte do sistema de resolução. Eles sabem que sua intervenção poderá contribuir para a construção ou para a desconstrução de impasses futuros. A contribuição da sociologia foi decisiva para se entender o valor das redes sociais nos processos negociais. Mediadores estão atentos à negociação, em paralelo, que os mediandos precisam fazer com os seus interlocutores – advogados, amigos, parentes, colegas de trabalho ou de crença religiosa, entre outros. Com essas pessoas são estabelecidas alianças e construídas leituras 114 UNIDADE 2 — OS MEIOS QUE COMPÕEM O SISTEMA DE JUSTIÇA MULTIPORTAS sobre o desacordo e sobre o oponente, assim como soluções e posições a serem defendidas. Os mediandos não podem, em determinados momentos, progredir em uma negociação, em função do compromisso de fidelidade estabelecido com suas redes de pertinência. Por vezes, é preciso auxiliá-los a negociar com essas redes, dentro ou fora do processo de Mediação, para que a desavença possa resultar em autocomposição. A Mediação estimula o diálogo dos mediandos com suas redes de pertinência e permite que essas ganhem a sala de negociações quando são identificadas como geradoras de impasses à fluidez do processo, ou, ainda, quando se constituem suporte para o cumprimento do acordado. A Mediação inspira-se no direito ao abraçar o propósito de auxiliar pessoas a resolverem seus conflitos, norteadas pelo parâmetro da solução justa, atentas a não ferirem as margens legais oferecidas por sua cultura – a solicitação de revisão legal do acordado, antes de sua assinatura pelos mediandos, sempre que a matéria assim o exigir, cumpre uma norma ética na Mediação. O instituto atende plenamente ao que o desembargador Kazuo Watanabe (1988) denomina de acesso à ordem jurídica justa, quando este se dá de forma adequada, tempestiva e efetiva. Nessa concepção, a Mediação potencializa o acesso à justiça na medida em que é: (i) adequada – quando eleita entre outros métodos, por possuir especial propriedade de abordagem e de resolução em relação ao tema do conflito; (ii) tempestiva – porque ocorre no tempo dos mediandos, uma vez que ditam o período de duração do processo, em muito influenciado por suas habilidades e capacidade negocial; (iii) efetiva – porque a solução é construída pelas próprias pessoas envolvidas no desacordo, tendo como parâmetros a satisfação e o benefício mútuos, a partir do atendimento de suas necessidades. Da psicologia, a Mediação importa leituras teóricas sobre o funcionamento emocional humano e valoriza, como componente constitutivo dos desentendimentos, as emoções. Das emoções, a Mediação cuida, indiretamente, ao se dispor a trabalhar a pauta subjetiva, anteriormente mencionada, e ao se propor a incluir o restauro da relação social dos envolvidos, como objeto de cuidado. As abordagens que incluem o relacionamento humano como foco não podem deixar de considerar a presença invariável da emoção. À semelhança do que pensava Foucault sobre a existência de um jogo de poder nas relações – tomava-o como certo e dedicava- se, exclusivamente, a pensar em como o poder era manejado –, a presença da emoção nos jogos relacionais é inequívoca, restando identificar, somente, como está sendo manejada. Da filosofia, além de Foucault, preciosas inspirações alimentam o processo de Mediação. Entre elas encontra-se o principal instrumento de trabalho do mediador, as perguntas, que devem ser oferecidas como na maiêutica socrática. Filho de uma parteira, Sócrates desejava, pela maiêutica, que as pessoas “parissem” as próprias ideias, após refletirem, em lugar de repetirem, indiscriminadamente e sem análise crítica, pensamentos e ideias do senso comum. Esse é o principal TÓPICO 3 — MEIOS AUTOCOMPOSITIVOS 115 objetivo das perguntas na Mediação: gerar informação para os mediandos – aqueles que têm poder decisório e serão os autores das soluções – de forma a provocar reflexão. Dessa maneira, pode-se auxiliar os mediandos a flexibilizarem as ideias trazidas na fase inicial do processo, momento em que as reais necessidades e interesses do outro não estão sendo ainda levados em consideração. FONTE: ALMEIDA, T. As bases teóricas do rito da mediação e de suas técnicas. [s.d.]. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2011/02/Artigo%20Tania-86_Dez-31_Media- cao_de_Conflitos_Um_meio_de_prevencao_e_resolucao_de_controversias_em_sintonia_ com.pdf. Acesso em: 12 dez. 2019. 116 RESUMO DO TÓPICO 3 Neste tópico, você aprendeu que: • A Resolução nº 125/2010 do Conselho Nacional de Justiça e o Código de Processo Civil de 2015 viabilizaram a construção da justiça multiportas, que indicam método ou técnica mais adequada para a solução de conflitos. • A ideia da Escola de Negociação de Harvard difundiu uma nova forma de agir: a negociação por princípios, que se baseia no conceito do “ganha-ganha”. • A negociação baseada em princípios busca criar valor na negociação e possui quatro princípios gerais que permitem resultados ganha-ganha pautados nos interesses: 1º – separar as pessoas do problema; 2º – focar nos interesses dos envolvidos, e não nas suas posições; 3º – criar opções de ganho mútuo e 4º – mapear critérios objetivos para legitimar a escolha das opções. • Na negociação podem ser identificadas três fases: análise, planejamento e discussão. • Na conciliação é esperado que o terceiro – conciliador – interfira no processo da discussão, sugerindo um possível acordo, apontando possíveis soluções. • O conciliador atua de forma ativa, em conflitos pontuais, em casos nos quais não existe relacionamento continuado entre as partes. Ele sugere possíveis soluções. • A mediação se dá, preferencialmente, em casos em que exista algum vínculo anterior entre os envolvidos no conflito, em casos de relações continuadas. • A mediação tem como produto idealizado a superação de um judiciário sobrecarregado e demorado, de forma que os envolvidos nos conflitos consigam, em menos tempo, com baixo custo e com a possibilidade da manutenção dos relacionamentos, construir soluções que beneficiem a todos. • São procedimentos da mediação: pré-mediação ou acolhimento, declaração de abertura, narrativas, resumo, pauta, sessões privadas (quando necessário), geração de opções, teste de realidade, acordo, encerramento. Ficou alguma dúvida? Construímos uma trilha de aprendizagem pensando em facilitar sua compreensão. Acesse o QR Code, que levará ao AVA, e veja as novidades que preparamos para seu estudo. CHAMADA 117 1 Métodos alternativos de resolução de conflitos funcionam como complementos à atividade jurisdicional estatal, colocando-se interativamente ao lado dela e valendo-se do critério da adequação entre a natureza do conflito e o meio de solução. Sobre os objetivos da adoção, no Brasil e em outros países, de métodos alternativos de resolução de conflitos, assinale a alternativa INCORRETA: a) ( ) Excluir o Poder judiciário, considerando a forma hierárquica como resolve controvérsias. b) ( ) Compor a atividade jurisdicional como complemento. c) ( ) Colocar-se ao lado da jurisdição. d) ( ) Valer-se do critério da adequação para encontrar o meio mais apropriado. e) ( ) Disseminar a cultura da pacificação social.2 A negociação baseada em princípios possui quatroprincípios gerais que permitem resultados ganha- ganha pautados nos interesses. Assinale a alternativa que não apresenta um dos princípios norteadores da negociação. 2 A negociação baseada em princípios possui quatro princípios gerais que permitem resultados ganha-ganha pautados nos interesses. Assinale a alternativa que não apresenta um dos princípios norteadores da negociação. a) ( ) Separar as pessoas do problema. b) ( ) Entender quem e por que buscou a negociação. c) ( ) Focar nos interesses dos envolvidos, e não nas suas posições. d) ( ) Criar opções de ganho mútuo. e) ( ) Mapear critérios objetivos para legitimar a escolha das opções. 3 Avalie as asserções a seguir e a relação proposta entre elas. I- Com relação ao tema mediação é necessário destacar que o acordo não é o objetivo da mediação. POR QUE II- Pode-se considerar sucesso de uma mediação quando ajudou as partes a aclararem as suas metas e suas necessidades, as alternativas que possuíam, a tomarem decisões, e a outorgarem reconhecimento. Assinale a alternativa CORRETA. a) ( ) As asserções I e II são proposições verdadeiras, e a II é uma justificativa da I. b) ( ) As asserções I e II são proposições verdadeiras, mas a II não é uma justificativa da I. AUTOATIVIDADE 118 c) ( ) A asserção I é uma proposição verdadeira, e a II é uma proposição falsa. d) ( ) A asserção I é uma proposição falsa, e a II é uma proposição verdadeira. e) ( ) As asserções I e II são proposições falsas. 119 UNIDADE 3 — PROCESSOS DE MEDIAÇÃO: FAMILIAR, ESCOLAR E COMUNITÁRIA OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de: • compreender diferentes contextos para a utilização da mediação, como meio para a resolução adequada de conflitos; • reconhecer elementos da dinâmica relacional da família que podem indi- car disfunções e possibilidades da utilização da mediação como método para a superação do impasse; • identificar o papel social das escolas e meios adequados para lidar com os conflitos que se expressam nesse contexto; • compreender os contextos comunitários como espaços de conflito e de construção de agentes de solução desses conflitos. • relacionar a mediação comunitária como instrumento de fortalecimento da democracia. Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado. TÓPICO 1 – MEDIAÇÃO FAMILIAR TÓPICO 2 – MEDIAÇÃO ESCOLAR TÓPICO 3 – MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações. CHAMADA 120 121 UNIDADE 3 1 INTRODUÇÃO Famílias “normais” têm problemas e, cotidianamente, se esforçam para sua superação, sendo que algumas delas precisam de ajuda quando não conseguem superar desafios sozinhas. Famílias que vivenciam mudanças importantes na sua composição, como é o caso de separação, recasamentos, familiares doentes ou idosos, podem demandar auxílio para definição de aspectos da dinâmica de suas relações. Definições sobre quem cuida de quem, quando cuida, participação financeira, são alguns dos aspectos que, historicamente, são decididos em espaços do judiciário. Já que as relações familiares se apresentam como relações continuadas, a mediação familiar pode ser um método adequado para facilitar o processo de comunicação entre os envolvidos e, dessa forma, auxiliar na transição da situação vivenciada pela família. Apresentar dados da história da mediação familiar, particularmente como é incorporada no sistema jurídico e extrajurídico, apresentar informações sobre situações que podem demandar a utilização deste método, viabilizar problematizações sobre família e sobre a dinâmica de seus relações e, por fim, apresentar ponderações sobre perspectivas metodológica da mediação familiar, são os objetivos deste tópico. 2 PERSPECTIVA HISTÓRICA DA MEDIAÇÃO FAMILIAR A partir de mudanças sociais, culturais e familiares surgidas nas décadas de 1960, 1970 e seguintes do século passado, com impactos em vários níveis (por exemplo, o expressivo aumento de divórcios e demais conflitos familiares), foram geradas necessidades de encontrar abordagens apropriadas para o enfrentamento desses problemas. TÓPICO 1 — MEDIAÇÃO FAMILIAR UNIDADE 3 — PROCESSOS DE MEDIAÇÃO: FAMILIAR, ESCOLAR E COMUNITÁRIA 122 O sistema jurídico (e judicial), alicerçado em leis dirigidas para a regulação de relações jurídicas familiares relativamente estáveis, é confrontado com uma diversidade de conflitos familiares que requerem a revisão desta estrutura e organização. FONTE: . Acesso em: 15 ago. 2019. NOTA Essas tensões podem ter sido determinantes para o surgimento de soluções inovadoras que permitiram a (re)invenção do processo de mediação familiar como método extrajudicial de resolução de conflitos familiares. Conhecimentos da Psicologia, do Direito e de outras Ciências Sociais foram incorporados para a construção de estruturas de conhecimento que puderam dar base teórica e metodológica a esse método. O entendimento sobre a forma como a mediação familiar foi se estruturando pode ser alcançado através da análise de alguns conceitos. A mediação familiar está incluída no campo dos meios complementares e alternativos de resolução de conflitos familiares, podendo acontecer antes, durante ou após um processo judicial. De um modo geral, a mediação familiar é um “método de resolução de conflitos, alternativo ou complementar ao sistema judicial, que visa a alcançar um acordo conjunto, melhorar a comunicação, reduzir a área de conflito e tomar decisões autônomas”. Na mesma direção, Parkinson (2008, p. 16) define mediação familiar como sendo um processo “no qual duas ou mais partes em litígio são ajudadas por uma ou mais terceiras partes imparciais (mediadores) com o fim de comunicarem entre elas e de chegarem a sua própria solução, mutuamente aceite, acerca da forma como resolver os problemas em disputa”. As definições anteriores têm em comum a prerrogativa de que as famílias podem, em algum momento de sua trajetória, necessitar de ajuda de um terceiro, para lidar com conflitos, melhorando a comunicação entre seus membros, de forma a viabilizar a proteção de que necessitam. TÓPICO 1 — MEDIAÇÃO FAMILIAR 123 Mediação de família pode também ser definida como um processo autocompositivo, segundo o qual as partes em disputa são auxiliadas por um terceiro neutro ao conflito, ou um painel de pessoas, sem interesse na causa, para auxiliá-las a chegar a uma composição dentro de conflitos característicos de dinâmicas familiares e, assim, estabilizarem de forma mais eficiente um sistema familiar. FONTE: . Acesso em: 10 nov. 2019. NOTA Mediação familiar é um processo pelo qual uma terceira pessoa imparcial ajuda os que estão envolvidos numa ruptura familiar, em especial casais em vias de separação ou divórcio, a comunicarem-se melhor entre eles e atingirem, de comum acordo e com base em informações adequadas, as suas próprias decisões sobre algumas ou todas as questões relativas à separação, divórcio, filhos, finanças, propriedades, entre outras. 3 FAMÍLIAS E FAMÍLIAS CONTEMPORÂNEAS Antes de apresentar reflexões sobre o processo teórico-metodológico da mediação familiar, é importante focar na família e na dinâmica de suas relações, visto que são elas que materializam o objeto de trabalho da mediação. 3.1 CONCEITOS É importante, para a compreensão do conceito de família, tomar como ponto de partida o imaginário social, que tende a postular família como um modelo único de instituição, em paradoxal relação com os dados histórico- sociais, cujas evidências demonstram que apenaso vocábulo “família” apresenta similitude no tempo e no espaço da vida em sociedade. Portanto, se é fato que existe família tanto quanto existe o ser humano, fato indisfarçável é que família tem muitos conteúdos e formas. Nessa linha de raciocínio, quando se está diante da instituição família, Osório (2014) esclarece que é possível descrever as várias estruturas ou modalidades assumidas pela família através dos tempos, mas não é possível conceituá-la. Do mesmo modo que não é possível encontrar modelos únicos e que atendam a idealizações. UNIDADE 3 — PROCESSOS DE MEDIAÇÃO: FAMILIAR, ESCOLAR E COMUNITÁRIA 124 São muitas as variáveis culturais, ambientais, sociais, econômicas, políticas, religiosas, que determinam as diferentes composições familiares. Por isso, é imprescindível conhecer ditas variáveis para compreensão e descrição da instituição família. A propósito desse tema, Sluski (1997) refere que se surpreende toda vez que se conecta com a representação social de família na modernidade, a famosa família constituída por pai-mãe-filhos (do pai trabalhador, mãe do lar, filhos cuidados pela mãe), visto que esse modelo idealizado de família não tem mais do que duzentos anos. Ocorre que dito modelo foi tão fortemente registrado no imaginário social da população, que qualquer outro modelo tende a ser entendido como desajustado, desorganizado, disfuncional, entre outros predicados. E é justamente por isso que Vezzulla (1998) chama a atenção para o fato de que não existe um conceito que sirva única e exclusivamente para família, entendendo família como todos aqueles que se apresentam como família. Tal compreensão está diretamente vinculada à percepção dos avanços da cultura humana. Vezzulla diz que, de alguma maneira, sentimentos de união, segurança e solidariedade mantêm um diálogo crescente com o que se entende por família, porque nossa sociedade contemporânea, cada vez mais, restringe o conceito de comunidade a partir da vivência do que seja família, enquanto espaço de proteção, de segurança, de reconhecimento. Essas afirmações foram expostas no Curso de Formação em Mediação Emancipadora e Responsável, ministrado pelo Professor Juan Carlos Vezzulla no período de 15/2/2018 a 28/2/2018. AJURIS, Porto Alegre/RS. NOTA Nesse sentido, Vezzulla ressalta a importância de, hoje, colocar em pauta outros temas a partir do estudo do que seja família, tal como a fertilização, os relacionamentos homoafetivos, os ciclos de fertilidade alterada etc. A ciência, nesse aspecto, tem produzido profundas alterações nos cotidianos nas relações. Às vezes, o filho é mais novo que os netos, o sobrinho é mais velho que os tios, o que torna necessário ampliar a concepção. Assim, mudando a sociedade, mudam seus conceitos. Pensar ou falar sobre maternidade, por exemplo, não explica, por si só, o que está contido nesse papel. Mulheres com 60 anos, por exemplo, atualmente podem gestar. Por isso, apesar do imaginário social sobre o que seja mãe, não se explica maternidade pura e simplesmente por seu vocábulo, porque já não estamos mais diante da maternidade/paternidade de outrora. TÓPICO 1 — MEDIAÇÃO FAMILIAR 125 Além desses atravessamentos da atual realidade social, para compreensão do sentido do que seja família, é importante saber que toda pessoa entende a família a partir de suas autorreferências. É impossível pensar família e não se reportar a essas questões subjetivas. Em outras palavras, falar em mãe começa, necessariamente, no falar sobre a “minha mãe”. Eu me conecto com essa representação para compreender quem é aquela mãe a quem observo ou com quem estou a interagir. Falar em família, portanto, segundo Minuchin (1990), é falar em “matriz da identidade” ou “núcleo identitário”, termos que representam a ideia de pertencimento, dentro da ideia de construto da identidade. Supondo, por exemplo, que tenhamos Joana da Silva entre nós, antes de ser Joana, esta pessoa é “da Silva.” Assim, o nome representa não somente o registro de identidade perante os outros (Joana), perante a família, perante a comunidade, enquanto pessoa específica e separada do todo, como também representa, desde aquele minúsculo universo intrauterino, o pertencimento a um determinado núcleo que lhe é ascendente (da Silva) e que o absorve dentro de um determinado tronco familiar. De outro lado, não se pode pensar família descolada de seu contexto social, porque esse contexto lhe confere determinadas especificidades. O jeito de ser, aquilo em que se acredita, como se responde a este ou aquele comportamento. Esse convívio, e as tensões que dele decorrem, explicitam a complementaridade da família por sua função social. No desenho da forma, conteúdo e normas de cada família, o meio social não apenas alimenta de sentido, como também é balizador de responsabilidades. Isso porque, se antes o Estado se prestava a constituir, validar e proteger prioritariamente o interesse particular de cada cidadão, a partir da ótica da tutela de liberdades, atualmente se vive o modelo social de Estado, segundo o qual cada indivíduo precisa ser considerado em sua função social, já que “em toda sociedade deve haver uma solidariedade que implique que a atuação de cada um tenha reflexos na ordem global” (FACHIN, 2011, p. 11). Dentre as configurações familiares conhecidas na contemporaneidade, Vezzulla (1998) chama a atenção para a descrição de “família monoparental”, porque, de qualquer modo, “o pai esteve”, “a mãe esteve” naquela família, mesmo que atualmente ausente. Entende, portanto, que ainda que estejamos categorizando e ampliando a compreensão do que seja família, o termo monoparental parece inadequado. Meramente uma descrição aparente. UNIDADE 3 — PROCESSOS DE MEDIAÇÃO: FAMILIAR, ESCOLAR E COMUNITÁRIA 126 De acordo com Szymanski (2010), podemos distinguir nove tipos de compo- sição familiar ou de família na contemporaneidade: 1) Famílias nucleares: são as famílias formadas por pai, mãe e filhos biológicos, ou seja, formadas por apenas duas gerações. 2) Famílias extensas: são as famílias formadas por pai, mãe, filhos, avós e netos ou outros parentes, isto é, a família formada por três ou quatro gerações. 3) Famílias adotivas temporárias: são famílias (nuclear, extensa ou qualquer outra) que adquirem uma característica nova ao acolher um novo membro, mas temporariamente. 4) Famílias adotivas: são as famílias formadas por pessoas que, por diversos motivos, aco- lhem novos membros, geralmente crianças, que podem ser multiculturais ou birraciais. 5) Famílias de casais: são as famílias formadas apenas pelo casal sem filhos. 6) Famílias monoparentais: são as famílias chefiadas só pelo pai ou só pela mãe. 7) Famílias de casais homossexuais (com ou sem criança): são as famílias formadas por pessoas do mesmo sexo, vivendo maritalmente. 8) Famílias reconstruídas após o divórcio: são famílias formadas por pessoas (apenas um ou o casal) que foram casadas, que podem ou não ter crianças do outro casamento. 9) Famílias de várias pessoas vivendo juntas, sem laços legais, mas com forte compro- misso mútuo: são famílias formadas por pessoas que moram juntas e que, mesmo sem ter a consanguinidade, são ligadas fortemente por laços afetivos. IMPORTANTE Nesse sentido, há sempre a inclusão do terceiro, e para Vezzulla é muito importante a existência da terceiridade (o terceiro, o filho). Daí que a monoparentalidade representaria, a seu entender, um equívoco de concepção, dado que, em alguma medida, houve um pai e houve uma mãe que estão presentes na ausência. Por isso mesmo, a organização familiar está diretamente relacionada ao sistema comunicacional das pessoas envolvidas. Cada família constitui, na sensível compreensão de Carter e McGoldrick (2012, p. 9), um subsistema emocional que reage aos relacionamentos passados, presentes e antecipa os futuros, compreendendo, por isso mesmo, um sistema emocional maior, em que a vida de cada partícipe está ligada a diferentes gerações, seja qualfor a estrutura familiar. A rigor, um bom começo de um desfecho para este tópico é pensar que família não “é”, e sim que “famílias são”, vez que o plural abarca dentro do vocábulo “família” toda a diversidade de arranjos familiares existentes hoje. TÓPICO 1 — MEDIAÇÃO FAMILIAR 127 3.2 DINÂMICA RELACIONAL DA FAMÍLIA Por que formamos família? É algo natural no ser humano, na cultura, na civilização? Para problematizar esta questão, é importante referir que pensar contemporaneidade implica pensar em constantes mudanças e transições sociais. A família participa desse processo transicional, o que significa dizer que ela também muda, mas segue com a função de manter algum nível de proteção para seus membros, porque a condição neotênica do ser humano faz com que ele necessite de cuidados, e a família, a menor unidade da sociedade, é quem tem oferecido dito cuidado, independentemente da configuração com que se organiza. Sem dúvida, as famílias refletem e reforçam o sistema – um sistema que se organiza, em primeiro lugar, para manter a si mesmo. Mas é nas famílias e entre amigos que as pessoas adquirem um significado e um valor muito particulares, sentindo-se individuais e únicas; em condições favoráveis, sentindo-se, inclusive, íntimas (ANTON, 1998, p. 24). São muitas e, como já assinalado, diversas as conceituações de família. Para Minuchin (1990), a família é um sistema aberto, em constante transformação com outros sistemas extrafamiliares. Referir-se a família em termos de sistema pode auxiliar a compreender o quão dinâmicas podem ser as interações dos diferentes subsistemas que o compõem, bem como os que com ele interagem. Subsistemas são “agrupamentos familiares baseados em gerações, gêneros e interesses comuns” (NICHOLS; SCHARTZ, 2007, p. 184), por exemplo, subsistema conjugal, parental, fraternal e filial, cada um deles desenvolvendo papéis e funções diferentes que regulam os relacionamentos entre si. Ao descrever as funções da família, toma-se Minuchin (1990) por referência, visto que ele apresenta duas funções básicas, complementares entre si: função nutritiva e função normativa. A primeira diz respeito ao cuidado, apego, alimentar, vestir, acalentar, dar ao sujeito um sentido de pertencimento. O sobrenome está relacionado ao exercício dessa função, o “jeito” especial e único do grupo familiar ser e cuidar dos seus. Como já foi mencionado, complementando a função nutritiva existe a função normativa que, como o nome já diz, relaciona-se a regras, normas, socialização dos sujeitos. Cabe à família preparar seus membros a atuarem socialmente, irem, aos poucos, encontrando formas de ser e agir no mundo, segundo suas próprias escolhas. Nenhuma família cumpre suas funções se não deixa seus filhos “irem”, “voarem”. As famílias, considerando suas características, são ou mais nutritivas ou mais normativas. Algumas priorizam as relações internas, o estar junto, compartilhando o máximo possível momentos e experiências. Outras investem na individuação dos seus membros, favorecendo que cada um possa buscar projetos individuais, baseados em suas próprias escolhas. Um importante indicador para o desempenho da parentalidade são as fronteiras, que definem como se dá essa proteção e diferenciação dos indivíduos. As fronteiras podem ser classificadas como nítidas, difusas e rígidas. As nítidas são aquelas em que a UNIDADE 3 — PROCESSOS DE MEDIAÇÃO: FAMILIAR, ESCOLAR E COMUNITÁRIA 128 família consegue determinar funções e espaços de cada integrante. Já as fronteiras difusas demonstram que não existem limites entre os subsistemas, os membros tendem a manter uma postura mais intrusiva uns com os outros. Segundo Minuchin (1990), as famílias que apresentam fronteiras difusas podem ser chamadas de famílias emaranhadas ou aglutinadas, por possuírem indiferenciação entre os subsistemas. O que acontece a um dos seus membros interfere diretamente na vida do outro. Famílias com este tipo de fronteira tendem a apresentar falta de diferenciação entre os subsistemas, o que acaba por dificultar a autonomia dos seus membros. Por fim, há famílias que possuem fronteiras excessivamente rígidas entre os subsistemas. A comunicação entre os membros dessas famílias fica dificultada, bem como a função protetiva. Nessas famílias, os vínculos são frágeis, caracterizando distanciamento emocional e reduzido sentimento de pertencimento. A compreensão sobre fronteiras familiares está relacionada à ideia de que a família mantém unidade para apoiar seus membros, e tem sob sua responsabilidade, basicamente, essas duas funções: nutrir e normatizar. Resumidamente, a ideia de nutrir está relacionada a dar colo, comida, aconchego, oferecendo ao sujeito o sentimento de pertença, de ser partícipe de determinado grupo social. A ideia de normatizar é oferecer ao sujeito a possibilidade de se individuar, de fazer escolhas, de atender a valores, normas, socializar, de ir a um só tempo se separando, mas pertencendo. Uma nota sobre a tarefa do cuidado e proteção é que, se na modernidade a família nuclear conseguia viabilizar o cumprimento das funções de nutrir e normatizar, as mudanças na contemporaneidade evidenciam a necessidade de ampliação da rede de apoio. Não se pensa, portanto, apenas na família nuclear, mas na família enquanto rede, incluindo tanto as pessoas da família nuclear quanto da família extensa, ou pessoas sem relação consanguínea, mas que são significativas e que importam ao cuidado integral daquele partícipe. Retomando o que já foi anteriormente explicitado, historicamente tem havido uma divisão de funções relacionadas ao universo feminino e masculino: fusão, dependência e complemento costumam estar associadas a funções do universo feminino, enquanto separação, emancipação e normatização costumam estar associadas ao universo masculino. Todas as funções maternas estão relacionadas ao espaço privado, do lar, ao que acontece entre as paredes, no interior da casa. Já as funções paternas estão relacionadas ao que acontece no espaço social. Essa divisão está tão presente no imaginário social que ainda nos surpreendemos quando mães referem que seus filhos ficarão mais bem atendidos pelo pai. Ou com mães que decidem priorizar trabalho e ascensão profissional. TÓPICO 1 — MEDIAÇÃO FAMILIAR 129 Ilusoriamente, na função materna a criança não é independente. Forma-se uma dependência funcional geradora de vida, de um desenvolvimento erógeno, que permite a construção do registro mental que interage entre o sujeito e o mundo exterior (leia-se: enquanto ser sensível). Dar de comer gera um registro de necessidade (fome) que se atende de determinada forma (alimento). Na satisfação das necessidades, se produz a inscrição mental da necessidade. Essa interdependência, essa gravidez representacional, forma parte da função materna que é exercida por todos os adultos que cuidam da criança. É o movimento integrador da criança, a continuidade da gestação extrauterina. Os elementos problematizados estão inter-relacionados e os membros da família, na dinâmica de suas relações, lidam com eles, considerando seu sistema de crenças e valores, etapa do ciclo evolutivo que estão vivenciando, bem como a rede de pertencimento social com que mantêm relações. É importante considerar o quão exigido é dos adultos “darem conta” das tarefas que lhes são atribuídas, especialmente pelos atravessamentos sociais, que frequentemente perpassam as fronteiras da família. 3.3 DIVÓRCIO E SUAS FASES O divórcio é apresentado, neste texto, como um processo que pode ocorrer durante o ciclo vital da família, desafiando sua estrutura e sua dinâmica relacional. Desafiar não significa acabar com a família, mas, sim, transformá-la. Em outras palavras, a estrutura se altera com a dissolução da conjugalidade, mas a família, enquanto organização, mantém-se. O divórcio pode representar, para os envolvidos, um evento de vida estressante, ou um momento de crise, por exigir sucessivasmudanças, adaptações e reequilíbrios no funcionamento familiar. Ele é um processo singular, haja vista que ele terá maior ou menor impacto nas pessoas envolvidas, dependendo de alguns fatores (econômico, social, cultural, religioso) e, ainda, das redes de apoio que se estabelecem ou não. Não há dúvidas sobre o aumento no número de divórcios. Quanto aos fatores etiológicos relacionados à sua incidência, Peck e Manocherian (2001) relacionam: a diferença de status socioeconômico, quando a mulher ganha mais do que o homem; instabilidade de renda e do emprego do marido; o menor grau de instrução do homem (quando comparado com a sua esposa); a idade dos cônjuges (quanto mais jovens, mais alta é a incidência); a ocorrência de gravidez pré-nupcial; a diferença racial; questões de gênero. Cada divórcio é particular, assim como são únicas as pessoas que se separam. Entretanto é possível assinalar padrões gerais sobre esta transição e como as pessoas lidam com o processo. Em um sentido amplo, é possível referir três fases de transição pelas quais passam as pessoas envolvidas no divórcio: a primeira compreende o primeiro ano após a separação, conformando um período UNIDADE 3 — PROCESSOS DE MEDIAÇÃO: FAMILIAR, ESCOLAR E COMUNITÁRIA 130 de caos, confusão e crise; a segunda, o realinhamento, caracteriza-se por ser uma fase de transição, em que as questões econômicas, sociais e extrafamiliares vão sendo reorganizadas entre o segundo e terceiro ano após a separação; na fase da estabilização pode-se dizer que, com efeito, há uma reorganização do sistema familiar. As fases de transição do divórcio, em sentido mais restrito, podem ser compreendidas através de seis momentos: luto, negação, rancor, negociação, vergonha e celebração. Esses momentos não seguem, naturalmente, uma ordem preestabelecida, e nem ocorrem em momentos distintos. Os envolvidos podem vivenciar duas ou mais fases em um único momento. Quanto à fase do luto, ela diz respeito a tudo o que poderia ter sido. Saber que o casamento acabou e aceitar que não voltará mais com a mesma pessoa é um processo realmente difícil. Significa a perda de algo importante que esteve presente na vida dos envolvidos. A fase da negação é representada por tentativas de recuperar o relacionamento, mesmo já sabendo que tudo já acabou. Acaba sendo uma forma inconsciente dos envolvidos se protegerem, negando o que está acontecendo. A próxima é referida como a fase do rancor. Existe um sentimento de rancor experienciado pelo próprio sujeito, pelo outro e pelo mundo em geral. Sentimento de injustiça, raiva e culpa são acionados em uma tentativa de diminuição da ansiedade para encontrar justificativas do término da relação. Na fase seguinte, a negociação, é evidenciado o fato de que o casamento é um contrato. Dessa forma, os envolvidos aceitam que o contrato que fizeram foi quebrado, e as cláusulas não foram respeitadas por ambos, ou talvez tenham simplesmente expirado. Outra fase pela qual os envolvidos passam é a vergonha, em que o sentimento de incompetência e frustração aparece muito forte. Por fim, a fase da celebração, quando é possível visualizar uma nova vida pela frente. Quando todas as fases do divórcio são superadas, a aceitação real aparece, o que pode oferecer à pessoa um sentimento de satisfação. 4 TEMAS PARA MEDIAÇÃO A mediação de família pode ser aplicada em diferentes situações vivenciadas cotidianamente por muitas famílias, entre as quais: divórcio; pensão alimentícia dos filhos, também chamada de alimentos aos filhos; guarda e parentalidade futura dos filhos; cuidado de idosos/doentes; e reconhecimento de paternidade. 4.1 DIVÓRCIO Muitos casais podem se sentir ameaçados pelas mudanças ocorridas com o divórcio e podem ter dificuldades para gerenciar questões relacionadas à partilha de bens, relacionamentos com família extensa, uso do nome, entre outros. TÓPICO 1 — MEDIAÇÃO FAMILIAR 131 4.2 PENSÃO ALIMENTÍCIA DOS FILHOS, TAMBÉM CHAMADA DE ALIMENTOS AOS FILHOS É obrigação de ambos os pais proverem o sustento de seus filhos. Por exemplo, a pessoa que tem a guarda (seja ele pai ou mãe) não pode renunciar à pensão a que os filhos têm direito, mesmo que, no momento, não estejam precisando. Como no Brasil não existam parâmetros predefinidos para determinar o valor dos alimentos, estes devem ser fixados com base no binômio necessidade do filho vs possibilidade dos pais. 4.3 GUARDA E PARENTALIDADE FUTURA DOS FILHOS Parentalidade é entendida por “todas as decisões que afetam a criação dos filhos: sua residência, acesso a cada um dos pais, escolaridade, saúde, relacionamentos com família extensa e assim por diante” (HAYNES, MARODIN, 1996, p. 77). Alguns temas que podem ser levantados nas sessões de mediação são: guarda, residência, tomada de decisões, visitação, calendários, acesso durante a enfermidade dos filhos, feriados, dia dos pais/mães, férias de verão e escolares, acesso telefônico aberto, direitos e obrigações da família extensa, relocalizações geográficas, manter o nome da família, mudanças futuras etc. 4.4 CUIDADO DE IDOSOS/DOENTES As relações de conflitos familiares envolvendo idosos que dependem de cuidados acontecem, muitas vezes, pelas dificuldades quanto à distribuição e administração dos cuidados – quando são os próprios familiares que tomam a tarefa para si –, ou na dificuldade da contratação de um cuidador e da divisão das despesas – quando se delega a função para um profissional. 4.5 RECONHECIMENTO DE PATERNIDADE Muitas crianças não têm assegurado o direito de obter o registro do nome do pai na sua identidade, bem como o direito de poder contar com relações de cuidado por parte do progenitor. UNIDADE 3 — PROCESSOS DE MEDIAÇÃO: FAMILIAR, ESCOLAR E COMUNITÁRIA 132 Para aprofundamento deste tópico, fica a sugestão da leitura do Programa Pai Presente, vista a possibilidade da utilização da mediação familiar na execução desse programa, o que pode facilitar a construção da relação pai-filho. O Programa foi criado em 2010 pela Corregedoria Nacional de Justiça, realizada em parceria com os tribunais de Justiça de todo o país, buscando garantir o cumprimento da Lei nº 8.560/1992. Essa lei visa ao fomento e à regularização do vínculo familiar e ao estímulo dos pais que não registraram seus filhos na época do nascimento a assumirem essa responsabilidade, mesmo que tardiamente. A Lei determina que, no momento do registro, o registrador indague à mãe o nome do suposto pai, sempre que uma criança for registrada sem indicação de paternidade. Quando isso acontece, o oficial do cartório de registro civil deve encaminhar o expediente ao juiz da comarca para que ele convoque o suposto pai a se manifestar sobre a paternidade. Em caso positivo, o reconhecimento é formalizado, e o nome do pai é incluído na certidão de nascimento. Caso o suposto pai se recuse a comparecer à audiência, ou mesmo a se submeter ao exame de DNA, o juiz pode aplicar a presunção, considerando o direito indisponível da criança em saber do seu vínculo de paternidade (SZUMANSKI, 2010). DICAS 5 ÂMBITO DE ATUAÇÃO DA MEDIÇÃO FAMILIAR Como já assinalado, a família se constitui em sistema vivo, o que a deixa vulnerável para diversas situações de crise, vivenciadas por um ou alguns de seus integrantes. Tais situações podem necessitar de intervenção através de mediação, que pode ser acionada em diferentes âmbitos: I- Mediação de família judicial; II- Prática privada da mediação de família; III- Agências, secretarias, clínicas e programas comunitários, ONGs, Núcleos de Prática Jurídica, entre outros. O mediador não busca quem está certo ou errado. Ele acolhe, reconhece, legitima as duas partes envolvidas. ATENCAO TÓPICO 1 — MEDIAÇÃO FAMILIAR 133 6 PARTICULARIDADES DA MEDIAÇÃO FAMILIAR Possivelmente, em decorrência da cultura jurídico-penal brasileira, a população está acostumada a enxergar responsabilidade como culpa, principalmente os pais, queacabam assumindo para si esse sentimento sobre qualquer problema que acontece no cotidiano familiar. A mediação verdadeiramente emancipadora procura quebrar esse paradigma, trabalhando com o conceito de responsabilidade integral, que compreende a responsabilidade funcional e a responsabilidade social. A responsabilidade funcional insere-se no âmbito relacional dos mediandos, e traz a ideia de que a função assumida por cada um deles (função paterna, função materna etc.) traz consigo uma responsabilidade. Contudo, o não atendimento dessa função não deve ser castigado (culpa = Direito Penal), mas, sim, reparado, atendido, restaurado (responsabilidade funcional). A responsabilidade social introduz a ideia de uma consciência permanente de que toda e qualquer atitude ou escolha produz reflexos na sociedade, de forma constante. Nessa ordem de ideias, a mediação se propõe a ser um espaço de reflexão dos mediandos sobre o que estão fazendo com as suas próprias vidas e com as vidas daqueles com os quais convivem. O mediador, nesse contexto, deve auxiliar os mediandos a tomarem consciência dos seus atos (passagem do ilusório para o simbólico), responsabilizando-se por eles e buscando a reparação/restauração. Especialmente no que tange às crianças e adolescentes, o conceito de responsabilidade integral se torna de suma importância para a mediação, pois traz a ideia de que a responsabilidade pelas crianças e adolescentes não é somente da família, mas também da escola, da comunidade e, inclusive, do Estado. Ou seja, os pais são responsáveis não só por seus filhos, mas pelos filhos de todos. O mediador deve auxiliar os pais, dentro da mediação, a identificarem as necessidades dos filhos, para, consequentemente, reconhecerem suas identidades como pessoas. Esse trabalho configura-se como algo extremamente importante dentro do conceito de responsabilidade integral, na medida em que a família que está em conflito vai, posteriormente, retornar à sociedade de uma determinada maneira, produzindo efeitos permanentes na comunidade. Em mediações familiares, não há como se tratar o conflito objetivo sem tratar do conflito subjetivo, nos quais as emoções influenciam sobremaneira os envolvidos. Quando as situações envolvem casais que têm filhos, não há como trabalhar a relação do casal sem que os filhos sejam envolvidos. Igualmente, não há como trabalhar as questões atinentes aos filhos sem trabalhar o casal. Quando se trata dos filhos, os pais devem ser auxiliados a percebê-los como sujeitos, com habilidades e competências a serem desenvolvidas. É papel do mediador auxiliar os pais a reconhecerem essas habilidades e capacidades nos seus filhos, para que possam ser adequadamente estimuladas e desenvolvidas. UNIDADE 3 — PROCESSOS DE MEDIAÇÃO: FAMILIAR, ESCOLAR E COMUNITÁRIA 134 Os pais têm desejos inconscientes sobre o que esperam dos seus filhos. Na verdade, esses desejos são construídos mesmo antes das crianças nascerem. Um indivíduo pode projetar a sua concepção ideal no filho, pode deslocar para ele sua frustração ou desejar que ele seja um espelho. Entretanto é necessário que os pais abandonem eventuais concepções dos filhos como coisas (auxiliares, reféns, mensageiros), passando a identificá-los como pessoas, com identidade própria, detentores de suas próprias necessidades materiais e emocionais. Ou seja, os pais deverão perceber que os filhos não estão ali, por exemplo, para realizar os sonhos não alcançados por eles, para suprir suas frustrações e carências, ou para levar recados ou notícias de um para o outro. Não é bom que os filhos sejam usados para dirimir questões dos pais. O que o mediador faz para que isso não aconteça é resgatar os filhos pelos filhos, e não pelos pais. A emancipação que se busca na mediação não acontece se os mediandos continuarem a considerar os filhos como seus auxiliares. O mediador deve tentar averiguar se os pais estão falando da imagem que criaram dos filhos ou dos filhos reais, como são. Para trazer os filhos como sujeitos, trabalha-se com questões como a maneira pela qual escolhem a escola do filho, quais questões levam em consideração para isso, e que atendimentos estão dando a ele. Questiona-se como foi o dia, como foi o fim de semana, como organizam a rotina para que possam reconhecer gostos e necessidades das crianças. Quando os pais vêm à mediação com ideias e percepções muito distintas sobre os filhos, não se deve tentar dirimir essas noções. Deve-se legitimar os dois e entender por que essa diferença de percepção existe, legitimar suas preocupações. O mediador não deve se prender aos “rótulos” usados pelos mediandos em relação aos filhos ou ao outro. Não se deve entrar nesses jogos de disputa por pontos de vista distintos. Para Vezzulla, mesmo se alguém mente, deve-se considerar que mentira é uma maneira de contar a verdade daquela pessoa que narra. Não há por que se preocupar. Deve-se legitimar as duas versões. São duas pessoas e o mediador está ali para atender as duas. É necessário romper com a ideia de que um tem razão e outro não, de que um está certo e outro errado. Quando o indivíduo é escutado e respeitado, nessa escuta podem ser esclarecidas muitas coisas. Com questionamentos, a mediação busca alcançar maior informação e sensibilidade por parte dos pais, para perceberem que, desde que nascem, os filhos são sujeitos. Em geral, os pais simplificam as questões pensando que as crianças não notam o que está acontecendo, que não compreendem, e que vão se acostumar com qualquer coisa que os pais decidam. O trabalho do mediador consiste em auxiliar os mediandos a enxergarem o que realmente acontece com os filhos. Precisamos falar dos filhos para fazê-los presentes na mediação. TÓPICO 1 — MEDIAÇÃO FAMILIAR 135 Cria-se, assim, o espaço para que surja o reconhecimento dos fi lhos como sujeitos, e não meros auxiliares ou objetos. A lógica deve ser a de atender às necessidades dos fi lhos, não os fi lhos atenderem às necessidades dos pais. O mediador tem o papel de fazer com que os fi lhos sejam vistos como sujeitos, mas, para isso, é necessário acolher as falas dos pais para que possa surgir o fi lho “verdadeiro”, para que se revele quem é o fi lho. 7 TÉCNICAS DE MEDIAÇÃO FAMILIAR As técnicas utilizadas na mediação familiar já foram apresentadas no subtópico técnicas de mediação da Unidade 2 deste livro. Algumas são especialmente utilizadas em situações de confl itos familiares, como é o caso do parafraseamento. Em casos de divórcio, por exemplo, a comunicação entre o casal pode fi car bastante prejudicada e muitas informações podem ser entendidas de forma equivocada. O uso do parafraseamento na sessão de mediação pode oportunizar o esclarecimento de diversos pontos, e deixar as opiniões de cada um mais claras e de fácil entendimento para o outro. Uma técnica específi ca da mediação familiar é o genograma, que é utilizado preferencialmente em sessões privadas. O genograma é uma representação resumida e simbólica das relações entre os membros de uma família. Diferem do desenho das árvores genealógicas, pois demonstram não só os graus de parentesco como padrões de comportamento, atitudes e doenças físicas e psíquicas. FIGURA 1 – PRINCIPAIS SÍMBOLOS DO GENOGRAMA FONTE: . Acesso em: 31 mar. 2020. Esse instrumento pode ser utilizado para a coleta de dados dos diferentes membros da família e dos relacionamentos entre eles. Também pode ser utilizado para coletar dados sobre problemas que afl igem os envolvidos e o enfrentamento desses problemas. Na mediação familiar, a utilização do genograma pode facilitar processos refl exivos, visto que, grafi camente, fi cam visíveis dados da dinâmica familiar. Ele demonstra, por exemplo, que as relações parentais se mantêm mesmo depois do divórcio e da conformação de dois núcleos distintos, que têm as crianças como pontos em comum,além de incluir outros membros da família extensa, UNIDADE 3 — PROCESSOS DE MEDIAÇÃO: FAMILIAR, ESCOLAR E COMUNITÁRIA 136 conformando pelo menos três gerações, e o quanto essas pessoas podem interferir na dinâmica familiar pós-divórcio. Todos esses dados ficam visíveis e representam um convite à reflexão. 8 MEDIABILIDADE O entendimento de mediabilidade diz respeito às características de determinada situação fazerem com que seja passível ou não de encaminhamento para a mediação. Mesmo que a mediação possa ser utilizada para uma grande quantidade de situações, existem algumas que não são passíveis desse encaminhamento, como casos que envolvem violência doméstica, por exemplo. Violência doméstica não é mediável, bem como abuso ou violência contra menores, dependência química e doença mental – passível de interdição. Entretanto, situações que envolveram violência no passado, mas em que ela não persiste e que não haja nenhuma possibilidade de ser retomada, podem ser mediadas (não a violência em si, mas outras questões familiares, como sustento, visitas, partilha de bens etc.). Acadêmico, para aprofundar seus conhecimentos, sugerimos a leitura dos livros a seguir: PARKINSON, L. Mediação Familiar. Ministério da Justiça – Gabinete para a Resolução Alternativa de Litigios. Lisboa: Agora Comuniicação, 2008. O livro é um guia prático e fundamentado que não só expressa os princípios e o processo da mediação familiar como também a coloca no contexto de um renomado sistema de justiça de família e sua interação com outros profissionais e procedimentos. Uma publicação essencial para todos os profissionais do Direito de Família. DICAS FIGURA – MEDIAÇÃO FAMILIAR FONTE: . Acesso em: 9 abr. 2020. TÓPICO 1 — MEDIAÇÃO FAMILIAR 137 BARBOSA, Aguida, A. Mediação Familiar Intedisciplinar. São Paulo: Atlas, 2008. A obra está organizada em seis partes. Aborda os aspectos históricos, teóricos, legislativos, destacando-se a sexta parte, que traz várias hipóteses de aplicação da técnica da mediação na prática, a partir de relatos de casos, assim como a análise da prática aplicada por um mediador. A integração desses fragmentos dá-se por intermédio de artigos, contendo os marcos teóricos da mediação especializada no âmbito dos conflitos familiares. Merece destaque, ainda, a abordagem interdisciplinar da organização do conceito e da prática da mediação. Obra recomendada para advogado, promotor de justiça, magistrado, defensor público, psicólogo, psicanalista e assistente social. Leitura complementar para a disciplina Mediação dos cursos de graduação e pós-graduação em Direito, além de cursos de formação de mediador familiar. FIGURA – MEDIAÇÃO FAMILIAR INTERDISCIPLINAR FONTE: . Acesso em: 9 abr. 2020. Acadêmico, para aprofundar seus conhecimentos, sugerimos os filmes a seguir: Relatos Selvagens (Damián Szifron, 2014) – Diante de uma realidade crua e imprevisível, os personagens desse filme caminham sobre a linha tênue que separa a civilização da barbárie. Uma traição amorosa, o retorno do passado, uma tragédia ou mesmo a violência de um pequeno detalhe cotidiano são capazes de empurrar esses personagens para um lugar fora de controle. DICAS FIGURA – RELATOS SELVAGENS FONTE: . Acesso em: 9 abr. 2020. UNIDADE 3 — PROCESSOS DE MEDIAÇÃO: FAMILIAR, ESCOLAR E COMUNITÁRIA 138 Kramer vs. Kramer (Robert Benton, 1979) – O filme conta a história de um divórcio, relatando seu impacto sobre a vida dos envolvidos, com foco nas nuances da briga judicial pela guarda do filho do ex-casal, ainda criança. Para Ted Kramer, o trabalho vem antes da família, e Joanna, sua mulher, descontente com a situação, sai de casa, deixando Billy, o filho do casal, com o pai. Ted então tem que se preocupar com o menino, dividindo-se entre o trabalho, o cuidado com o filho e as tarefas domésticas. Quando consegue se ajustar a essas novas responsabilidades, Joanna reaparece exigindo a guarda da criança. Ted, porém, se recusa, e os dois vão para o tribunal lutar pela custódia de Billy. História de um casamento (Noah Baumbach, 2019) – Nicole (Scarlett Johansson) e seu marido Charlie (Adam Driver) estão passando por muitos problemas e decidem se divorciar. Os dois concordam em não contratar advogados para tratar do divórcio, mas Nicole muda de ideia após receber a indicação de Nora Fanshaw (Laura Dern), especialista no assunto. Surpreso com a decisão da agora ex-esposa, Charlie precisa encontrar um advogado para tratar da custódia do filho deles, o pequeno Henry (Azhy Robertson). FIGURA – KRAMER VS KRAMER FIGURA – HISTÓRIA DE UM CASAMENTO FONTE: . Acesso em: 9 abr. 2020. FONTE: . Acesso em: 9 abr. 2020. http://www.adorocinema.com/personalidades/personalidade-41958/ http://www.adorocinema.com/filmes/filme-261015/ 139 Neste tópico, você aprendeu que: • Para entender a dinâmica relacional da família, é possível se valer de alguns indicadores: configuração, funções e papéis, ciclo evolutivo, mitos e segredos, relações de pertencimento, entre outros. • Mudanças sociais e culturais surgidas especialmente nas décadas de 1960 e 1970 impactaram a dinâmica relacional da família. Essas mudanças geraram necessidades da consolidação de meios adequados para o enfrentamento de problemas nas relações familiares. A mediação familiar é um desses meios. • No divórcio podem ser identificadas três fases de transição, pelas quais passam os envolvidos: período de caos, confusão e crise, fase de realinhamento e fase de estabilização, compreendidos através de seis momentos: luto, negação, rancor, negociação, vergonha e celebração. • Mediação de família pode ser definida como um processo autocompositivo, segundo o qual as partes em disputa são auxiliadas por um terceiro neutro ao conflito a chegar a uma composição. • A mediação familiar propicia a capacidade de compreensão dos problemas na perspectiva de harmonização das disputas. Também permite aos membros da família a construção de decisões que melhor lhes favoreçam, desde que orientadas. • A mediação, além de possibilitar a solução dos conflitos que se prolongam por anos, tem a intenção de reorganizar a família, considerando que os envolvidos necessitam de uma tomada de consciência com vistas à superação de seus desajustes. • A mediação familiar viabiliza, em primeiro lugar, a comunicação entre as partes, a fim de que se possa estabelecer um plano de ação, respeitados os pontos de vista de cada um. • São temas para a mediação familiar: divórcio, pensão alimentícia dos filhos, guarda e parentalidade, cuidado de idosos doentes, reconhecimento de parentalidade, entre outros. • O genograma é uma técnica específica da mediação familiar que pode auxiliar os envolvidos em um conflito a compreender, de forma gráfica, o tipo de relação que estabelecem entre si e possíveis alternativas de superação. • Situações onde há nítida expressão de poder de uma parte sobre a outra não são mediáveis. São exemplos: violência familiar, abuso de menores, doença mental e drogadição. RESUMO DO TÓPICO 1 140 1 (Questão FGV/2019 – DPE-RJ) Nos litígios familiares, a solução jurídica distante da emocional conduz à perpetuação do conflito. Com o objetivo de promover a economia processual e desenvolver a autonomia dos envolvidos em seus conflitos, o sistema judiciário tem valorizado o método no qual uma terceira pessoa reabre o diálogo entre as partes, para que elas próprias componham a resolução de suas controvérsias. Com base no exposto, assinale a alternativa CORRETA referente a este método: FONTE: . Acesso em: 9 abr. 2020. a) ( ) Círculo dinâmico. b) ( ) Escola de pais. c) ( ) Psicoterapia breve. d) ( ) Mediação familiar. e) ( ) Constelação familiar. 2 (FUNCAB, 2014) A mediação de conflitos170 RESUMO DO TÓPICO 3................................................................................................................... 172 AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................ 173 REFERÊNCIAS .................................................................................................................................... 175 1 UNIDADE 1 — PARTICIPAÇÃO SOCIAL, CIDADANIA, AUTONOMIA, RELAÇÕES DE CONFLITO E COMUNICAÇÃO ASSERTIVA OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de: • compreender o significado de participação social, cidadania e autonomia na sociedade brasileira em uma perspectiva histórica; • compreender a relação entre participação, cidadania, autonomia e rela- ções de conflito; • compreender a nova teoria do conflito; • identificar e reconhecer conceitos relacionados à comunicação e comuni- cação não violenta; • reconhecer a importância da comunicação humana no tratamento positi- vo do conflito. Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado. TÓPICO 1 – PARTICIPAÇÃO SOCIAL, CIDADANIA E AUTONOMIA TÓPICO 2 – RELAÇÕES DE CONFLITO TÓPICO 3 – COMUNICAÇÃO ASSERTIVA Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações. CHAMADA 2 3 TÓPICO 1 — UNIDADE 1 PARTICIPAÇÃO SOCIAL, CIDADANIA E AUTONOMIA 1 INTRODUÇÃO No cenário atual, o Brasil se apresenta como um dos países com os mais altos níveis de desigualdade social. O cenário tem-se mantido mesmo com o longo processo de transformações tecnológicas, culturais, econômicas e sociais. Essas transformações geram, a cada dia, novas situações e necessidade de envolvimento da população para construção de outras formas de convívio e relações. A importância de garantir discussões sobre conceitos de participação social, cidadania e autonomia tem sido cada vez mais relevante, considerando o aumento de possibilidades de inclusão da população nas decisões sobre políticas públicas no Brasil, prioritariamente a partir da Constituição de 1988. O grande desafio é o fortalecimento da mobilização da população para o fomento e disseminação da preocupação com o bem-estar comunitário e social, visto que diferentes conflitos e questionamentos a respeito da falta de diálogo e de compreensão entre as pessoas têm provocado o distanciamento entre elas e, muitas vezes, o fortalecimento do pensamento individualista. 2 VISITANDO O TEMA DA PARTICIPAÇÃO SOCIAL São distintas as terminologias utilizadas para tratar de participação social, tais como: inclusão social, participação de cidadãos, participação popular, participação democrática, participação comunitária ou só participação, sendo que práticas similares podem ser nominadas de diversas formas ou uma terminologia pode representar práticas distintas. Independentemente do nome, a ideia de participar mais ativamente nos processos de tomadas de decisão coletivas sempre foi um anseio da própria população. Quando se agrega o adjetivo “social” à palavra “participação”, resulta um termo muito difundido, que diz respeito à construção de espaços que criam interconexões entre os gestores e a sociedade. Ele pode representar uma conquista da população pela busca da democratização e tem significado histórico para países que viveram em regimes autoritários. Pela luta, a participação tornou-se um direito do cidadão. UNIDADE 1 — PARTICIPAÇÃO SOCIAL, CIDADANIA, AUTONOMIA, RELAÇÕES DE CONFLITO E COMUNICAÇÃO ASSERTIVA 4 2.1 PARTICIPAÇÃO SOCIAL NO BRASIL No Brasil, só foi possível romper com a Ditadura Militar pela ampla e efetiva mobilização e participação da população. Esta reação, segundo Gohn (2005), possibilitou novo significado para o que era entendido como sociedade civil, fundando sua atuação na contraposição ao regime ditatorial, com o objetivo de construir bases democráticas na sociedade política brasileira. Desta mobilização/ participação social decorreram mudanças importantes, considerando os espaços representativos e institucionalizados de participação social e de alterações da relação desta sociedade com o Estado. “A Constituição Federal de 1988 é o marco da legalidade da questão social, um avanço na gestão das cidades, uma nova forma que na teoria exibe que o poder de decisão não mais se restringe a pequenos grupos com poder econômico e político, mas também a sociedade civil” (GARBELINE, 2017, p. 4). IMPORTANTE As alterações na Constituição permitiram, como já foi assinalado, a participação popular, que representa as múltiplas ações que diferentes forças sociais desenvolvem para influenciar a construção, execução, fiscalização e avaliação das políticas públicas. Nessa perspectiva, convém assinalar como deliberação da Constituição a formação dos conselhos gestores de políticas públicas, espaços públicos que fazem parte da gestão pública, sendo permanentes. Como exemplos temos os Conselhos de Assistência, de Saúde, de Educação etc. É importante assinalar que, embora ligados à estrutura do Poder Executivo, não são subordinados a ele. Isto é, são autônomos nas suas decisões. Os conselhos são constituídos por representantes da sociedade civil e do Estado, não pertencendo a nenhum desses segmentos, isto é, tanto os representantes da sociedade civil quanto do Estado, são corresponsáveis pelas decisões tomadas. FONTE: . Acesso em: 29 nov. 2019. NOTA TÓPICO 1 — PARTICIPAÇÃO SOCIAL, CIDADANIA E AUTONOMIA 5 Os Conselhos Gestores atuam como instâncias para promover uma mudança na gestão das políticas públicas a partir de "um novo padrão de relação entre Estado e sociedade, criando formas de contrato social, por meio da ampliação da esfera social pública" (GOHN, 2004). O cidadão, com uma nova consciência, pode exercer controle social, interferindo diretamente na evolução das políticas públicas na medida em que exige e promove transparência e uso adequado de recursos públicos. Para Jardim (2017, p. 95), “todos os avanços societários que tivemos até então na construção de esferas e contextos democráticos foram caminhos de participação que, por sua vez, ampliaram as bases democráticas numa relação de contínua interdependência”. Nessa perspectiva, a participação social tenciona, segundo a autora, uma gestão democrática, cujo Estado se ocupa em atender a interesses coletivos e incide nas desigualdades fundadas, fundantes e nascedouras do capitalismo. A população realmente se implica com a participação social quando reconhece a impossibilidade de avanços societários em um momento histórico em que se enaltecem valores individualistas e mercantis que se sobrepõem à dignidade do ser humano. Segundo Machado (2016, p. 184), a participação da população, [...] como processo de incidência social e política, deve estar comprometida com alguns pressupostos da existência humana, contribuindo para o desenvolvimento do ser humano enquanto ser social, pois todos os homens devem ter condições de viver para poder fazer história. Participar não se limita a uma atitude de aderir a alguma proposta ou projeto, pressupõe o compartilhar, colocar-se em movimento. Desta forma, participação pode ser um qualificativo da convivência, uma forma de compreender os fenômenos de forma ampliada, que inclui posicionar-se nas decisões que lhe dizem respeito (BRASIL, 2009). Esta compreensão de participação social direciona o olhar para a perspectiva de direitos, sejam elesno divórcio de casais com filhos procura, potencialmente, servir aos interesses das crianças, pois: FONTE: . Acesso em: 9 abr. 2020. a) ( ) É preciso fazê-las compreender que os adultos não são confiáveis e nem honestos. b) ( ) É uma técnica psicoterapêutica que visa à elaboração da sensação de desamor, rejeição e abandono. c) ( ) A qualidade das relações entre pais e filhos será favorecida se houver uma boa relação entre os pais após a separação. d) ( ) A perda da convivência diária com um dos pais deixa os filhos à mercê dos interesses do progenitor responsável pela guarda. 3 (TRT, 2013) A mediação integra as ADRs (alternativas de solução ou de condução de conflitos e disputas) e pode ser utilizada em qualquer tipo de conflito, se guardadas as condições de voluntariedade, capacidade de compreensão e: FONTE: . Acesso em: 9 abr. 2020. a) ( ) desequilíbrio amoroso entre as partes. b) ( ) desequilíbrio de poder entre as partes. c) ( ) equilíbrio amoroso entre as partes. d) ( ) equilíbrio de poder entre as partes. e) ( ) ausência de labilidade entre as partes. AUTOATIVIDADE https://www.qconcursos.com/questoes-de-concursos/questoes/cbaa11a9-65 https://www.qconcursos.com/questoes-de-concursos/provas/funcab-2014-seds-to-analista-em-defesa-social-psicologia https://www.qconcursos.com/questoes-de-concursos/provas/funcab-2014-seds-to-analista-em-defesa-social-psicologia https://www.qconcursos.com/questoes-de-concursos/questoes/dcf7fee9-11 141 UNIDADE 3 1 INTRODUÇÃO O ambiente escolar é palco das mais diferentes relações sociais e, portanto, bastante propício a manifestações de conflito. Em conversas cotidianas, notícias de jornais e revistas, bem como em pesquisas acadêmicas, é comum ouvir que o maior problema do Brasil é a educação, sendo que a pauta de discussão é o contexto escolar e como se estrutura a educação em valores no país. A mediação escolar, uma nova modalidade no cenário das instituições de ensino, pode se constituir como mecanismo eficaz para prevenir conflitos, gerenciar situações que afetam a convivência pacífica da comunidade estudantil e, acima de tudo, instituir uma educação em valores, pautada sobretudo nas atitudes das pessoas e na sua relação com o mundo, visando a uma cultura de paz. O papel do mediador é favorecer que a escola construa e desenvolva estratégias para soluções pacíficas em situações de divergências, criando um ambiente colaborativo, que contribua para a formação de cidadãos com visões mais justas e solidárias. A principal ferramenta para a mediação é o diálogo entre os envolvidos. 2 ESPAÇO ESCOLAR A escola é pensada tanto como espaço de apreensão de conhecimentos quanto espaço onde se adquire e se solidificam valores. Também é reconhecida como espaço onde é possível desenvolver capacidade de autonomia, responsabilidade e comunicação, de forma a construir relações abertas e saudáveis baseadas no reconhecimento e compreensão do outro. A ideia de escola está diretamente relacionada à educação. Para Ovejero e Rodriguez (2005) o objetivo principal da educação é possibilitar a formação de pessoas competentes socialmente, que possam sentir-se valorizadas como pessoas e, ao mesmo tempo, possam contribuir para o desenvolvimento humanizado de outras pessoas. A educação, como a vejo, é uma atenção à diferença e um processo de produção da diferença. A pergunta pela educação é uma pergunta pelo outro. Transformar a educação não é outra coisa senão uma alteração do modo como vejo TÓPICO 2 — MEDIAÇÃO ESCOLAR 142 UNIDADE 3 — PROCESSOS DE MEDIAÇÃO: FAMILIAR, ESCOLAR E COMUNITÁRIA o outro, não requer outra coisa do que uma firme vontade de arriscar-se a pensar de outro modo minha relação como os outros, que não deixa de ser uma forma de arriscar-se a pensar de outro modo a mesmidade. Metamorfose? No fundo, sim. Educar é ajudar ao outro em um permanente processo de metamorfose (WARAT, 2003, p. 35). Para o mediador Warat (2003), o processo de educar precisa proporcionar respeito às diferenças, valorização do contato com o outro e, sobretudo, promoção à responsabilidade mútua entre as pessoas. Segundo ele, somente a partir do reconhecimento e respeito ao outro como semelhante poderá ser possível o entendimento dos direitos humanos. Os objetivos desse tipo de educação para Rovira (1992) são: a construção de um pensamento moral autônomo, justo e solidário; aquisição das competências dialógicas que predispõem ao acordo justo e à participação democrática; compromisso com a compreensão crítica da realidade pessoal e social; conhecimento da informação que tenha relevância moral; reconhecimento e assimilação de valores universalmente desejáveis; desenvolvimento de um conhecimento adequado de si mesmo para facilitar projeto de vida; construção de comportamentos coerentes com o juízo moral; e compreensão e respeito de normas de convivência que regulem a vida coletiva. A proposta da educação, apresentada por Rovira (1992) foca em valores e, assim, presta sua atenção às necessidades dos alunos, foca na necessidade de conhecer o que é importante para eles, o que pensam da vida, quais são seus valores, conflitos que enfrentam (prioritariamente os que se dão nas relações com os grupos), suas preocupações e também as vivências em suas famílias e comunidades. A educação, na perspectiva apresentada, pressupõe uma mudança cultural de todos os envolvidos. O cenário das escolas é onde precisa acontecer o processo de mudança. Pensar em ambiente escolar é considerar diferentes atores sociais com interesses, desejos e necessidade diversas que podem, em diferentes oportunidades, verem-se envolvidos em conflitos. Esses conflitos podem se manifestar de muitas maneiras, sendo uma delas a violência. As escolas têm sido palco para uma crescente onda de manifestações de violência, o que pode ser assustador, visto que o ambiente escolar é tratado, desde sempre, como um espaço seguro, onde se dão relações de proteção e cuidado. O que se tem visto nas escolas nada mais é do que o reflexo do que acontece na sociedade em geral. Tanto os aspectos positivos das relações sociais estabelecidos na sociedade quanto os negativos acabam por se apresentar na comunidade educativa. TÓPICO 2 — MEDIAÇÃO ESCOLAR 143 Investigadores da realidade educativa espanhola postulam que a forma como a violência se apresenta nas escolas é um fenômeno jamais visto nesse contexto, o que se traduz em uma percepção pública de insegurança (TORREGO; MORENO, 2003). INTERESSANTE Estudiosos apresentam justificativas para o cenário de violência praticado, inclusive, por crianças e jovens: interculturalidade, novas tecnologias, assédio moral, relações baseadas na competitividade, individualismo, ênfase na conquista pessoal e pouco investimento em relações de pertencimento familiar e comunitário. Tudo isso pode reverberar nessa forma, nem um pouco solidária, de relações interpessoais. 2.1 CONFLITOS NO AMBIENTE ESCOLAR O conflito é inerente às relações humanas, portanto não é possível entender que possa existir uma escola sem conflitos e litígios. Ainda mais no ambiente escolar, propício à pluralidade, constituído de crianças e adolescentes de diferentes características, etnias, religiões, gostos, interesses, opiniões e perspectivas. Lidar com conflitos nesse espaço é um desafio permanente. Os conflitos entre os alunos, ou mesmo entre alunos e professores, diretores e auxiliares, acabam por destruir vínculos existentes entre essas pessoas, tornando-as mais individualistas e pouco atentas às necessidades do próximo. As concepções sobre conflitos, apontadas por educadores, podem ser divididas em dois grandes grupos. Um que contempla a visão tradicional, na qual os conflitos são vistos como negativos e,portanto, as escolas lidam com ele através de diferentes direções: a primeira, tentando evitá-los, através de regras e controle de comportamento. Outra maneira de lidar é transferindo o problema para a família ou especialistas. Uma terceira direção é a ausência de intervenção, com a tendência de ignorar os conflitos ou dar a eles pouca ou nenhuma atenção. Outra concepção é uma visão mais construtivista, na qual os conflitos são compreendidos como sendo naturais e necessários. Dessa forma, são vistos como potenciais para efetuar mudanças (TELMA; FERREIRA; MARQUES, 2019). IMPORTANTE 144 UNIDADE 3 — PROCESSOS DE MEDIAÇÃO: FAMILIAR, ESCOLAR E COMUNITÁRIA A tipologia de conflitos no âmbito escolar, proposta por Cirena (2004), pode facilitar um entendimento mais complexo do fenômeno. Para ele, os conflitos nas escolas podem ser classificados em quatro tipos: 1. Conflitos de relacionamento (surgem da relação entre alunos e professores, entre alunos, entre professores e pais). 2. Conflitos de rendimento (na ótica do aluno, surgem quando não consegue alcançar os resultados escolares esperados ou vistos como aceitáveis e, na ótica dos professores, surgem quando eles pensam que não conseguem transmitir os conhecimentos para que haja aprendizagem por parte dos alunos). 3. Conflitos de identidade (fatores pessoais relacionados com as expectativas e motivação dos alunos sobre os seus estudos e com a autopercepção dos professores sobre o seu trabalho). 4. Conflitos de poder (derivam da escola enquanto instituição que possui vários papéis, entre os quais destacamos os de aluno e de professor). A diversidade de fontes que podem potencializar os conflitos precisa ser considerada para possibilitar transcender leituras reducionistas e, então, definir qual via será acionada para a gestão construtiva do conflito na escola. Para Moore (1998, p. 62), os conflitos podem ser classificados em estruturais, de valor, de relacionamento de interesse e quanto aos dados. TIPOS DE CONFLITO CAUSAS DOS CONFLITOS Estruturais Padrões destrutivos de comportamento ou interação; controle, posse ou distribuição desigual de recursos; poder e autoridade desiguais; fatores geográficos, físicos ou ambientais que impeçam a cooperação; pressões de tempo. De valor Critérios diferentes para avaliar ideias ou comportamentos; objetivos exclusivos intrinsecamente valiosos; modos de vida, ideologia ou religião diferentes. De relacionamento Emoções fortes; percepções equivocadas ou estereótipos; comunicação inadequada ou deficiente; comportamento negativo – repetitivo. De interesse Competição percebida ou real sobre interesses fundamentais (conteúdo); interesses quanto a procedimentos; interesses psicológicos. Quanto aos dados Falta de informação; informação errada; pontos de vista diferentes sobre o que é importante; interpretações diferentes dos dados; procedimentos de avaliação diferentes. QUADRO 1 – TIPOS E CAUSAS DOS CONFLITOS FONTE: Chrispino (2007, p. 18) TÓPICO 2 — MEDIAÇÃO ESCOLAR 145 Isso significa que não é expectativa e que a mediação escolar não trabalha para que não existam conflitos ou litígios nas escolas, pois esses são intrínsecos à essência humana e constituem elementos do desenvolvimento. Como já foi dito, as escolas são, por excelência, espaços de diversidade, local de pluralidade de opiniões, divergências de perspectivas e, portanto, locais que têm como desafio encontrar estratégias e técnicas apropriadas para lidar com os conflitos. Em abril de 2014, foi dado um passo importante para o enfrentamento desse fenômeno no Brasil, com a realização do Congresso Ibero-americano sobre a Violência nas Escolas, do qual resultou a Carta de Brasília - Por uma escola sem violências. O documento apresenta algumas propostas, entre as quais: incentivar a criação de espaços institucionalizados de diálogo em estabelecimentos e redes escolares, envolvendo todos os atores da escola e incentivar, também, o desenvolvimento de pedagogias cooperativas que facilitem projetos de mediação. Uma forma de atender ao que está preconizado na Carta de Brasília é a consolidação da mediação escolar como importante e necessária ferramenta para o enfrentamento das diferentes violências que acontecem nas escolas, bem como a contribuição para o fomento da cultura da paz, cujo percurso se dá pelo reconhecimento do conflito como possibilidade de mudança e do investimento no diálogo. Sugerimos a leitura na íntegra da Carta de Brasília – Por uma escola sem violências. São 20 itens de propostas e linhas de ação para todos os setores da sociedade, que preconizam a luta contra as violências nas escolas. FONTE: . Acesso em: 9 out. 2019. DICAS 3 DIMENSÕES E FINALIDADES DA MEDIAÇÃO ESCOLAR A partir do reconhecimento da escola como espaço de formação pessoal e profissional e local onde o conflito sempre vai existir, a mediação escolar pode ser entendida como uma possibilidade para a educação em valores, a educação para a paz e para uma nova visão acerca dos conflitos. Munné e Mac-Cragh (2006) destacam princípios basilares que orientam a mediação: • humildade em admitir a necessidade de ajuda externa; • responsabilidade pelos atos e suas consequências; • procura por satisfazer os próprios desejos, necessidades e valores; • necessidade de privacidade nos momentos difíceis; 146 UNIDADE 3 — PROCESSOS DE MEDIAÇÃO: FAMILIAR, ESCOLAR E COMUNITÁRIA • reconhecimento de momentos de dificuldade e de conflitos como algo inerente ao ser humano; • capacidade para aprender nos momentos críticos; • compreensão de desejos, necessidades e valores do outro; • compreensão do sofrimento que produz o conflito; • importância de potencializar a criatividade com uma base realista; e • crença nas próprias possibilidades e nas da outra parte. Ancorada nesses princípios, a mediação escolar possibilita a difusão de um novo jeito de compreender e transformar os conflitos e desenvolver fundamentos mais sólidos da cultura de paz. As características da mediação escolar, segundo Torrego (2000), são a voluntariedade, o processo educativo e a confidencialidade. O princípio da voluntariedade define que são as partes que decidem se querem ou não iniciar o procedimento, e que podem interrompê-lo a qualquer momento. O princípio do processo educativo assinala que a mediação escolar faz com que os envolvidos coloquem em ação competências sociais, atitudes comunicativas e desenvolvam a criatividade na busca por soluções. Já o princípio da confidencialidade apregoa que tanto o mediador escolar quanto as partes se comprometem a guardar sigilo sobre o conteúdo apresentado nas sessões. A mediação escolar se coloca como um convite à aprendizagem e ao aperfeiçoamento da habilidade de cada um na negociação e na resolução de conflitos, baseada no modelo ‘ganha-ganha, onde todas as partes envolvidas na questão saem vitoriosas e são contempladas nas resoluções tomadas (BATTAGLIA, 2003). FONTE: . Acesso em: 8 abr. 2020. ATENCAO https://encontroacp.com.br/material/textos/mediacao-escolar-uma-metodologia-de-aprendizado-em-administracao-de-conflito/ https://encontroacp.com.br/material/textos/mediacao-escolar-uma-metodologia-de-aprendizado-em-administracao-de-conflito/ TÓPICO 2 — MEDIAÇÃO ESCOLAR 147 Como já foi trabalhado, as pessoas não nascem solidárias e tolerantes umas com as outras, elas precisam desenvolver conhecimentos e habilidades para agir desse modo. A mediação escolar, por suas características que envolvem a escuta ativa e a construção de diálogo pacificador, baseado no respeito ao outro, possibilita que os atores sociais que compõem o quadro dos ambientes escolares, principalmente crianças e adolescentes que estão em fase de formação, sejam educados em valoresbaseados na solidariedade e possam, no futuro, disseminá- los. Pensar em mediação escolar é entender a necessidade de educar para a paz, o que vai muito além de trabalhar na busca de formas adequadas de solução do conflito, visto que contempla a prevenção de futuras divergências. A mediação configura perspectivas alargadas de intervenção para a melhoria pessoal e social dos sujeitos, nos seus contextos socioeducativos, promovendo novas formas de sociabilidade e de (re)construção de laços interpessoais. Ela não ocorre simplesmente para responder a conflitos existentes na escola, mas assume-se como um processo de promoção da convivência cidadã, segundo diversas lógicas: resolutiva, reparadora, educativa, preventiva e inclusiva. FONTE: Costa, Torrego e Martins (2018) ATENCAO A proposta privilegia a formação para a participação social dos estudantes, comprometidos com sua realidade familiar, social, política, econômica e social. A advogada e doutora em Direito Lília Sales (2010, p. 90) apresenta objetivos da mediação escolar, quando ela acontece com os atores da escola. São eles: • desenvolver uma comunidade na qual os alunos desejem e sejam capazes de praticar uma comunicação aberta; • ajudar no desenvolvimento de uma melhor compreensão da natureza dos sentimentos, capacidades e possibilidades humanas; • contribuir para que os alunos compartilhem seus sentimentos e sejam conscientes de suas qualidades e dificuldades; • possibilitar aos alunos o fortalecimento da autoconfiança; • desenvolver no aluno a capacidade de pensar criativamente sobre problemas e de começar a prevenir e solucionar conflitos. 148 UNIDADE 3 — PROCESSOS DE MEDIAÇÃO: FAMILIAR, ESCOLAR E COMUNITÁRIA Já Munné e Mac-Cragh (2006), ao apresentarem os objetivos da mediação escolar, discutem a sua repercussão em um viés temporal. Segundo eles, a curto prazo, o ensino do civismo aos alunos e a promoção de competências de pensamento crítico e, a longo prazo, o fomento da responsabilidade para a disciplina, ajudam a melhorar a comunicação e produzir ambientes de disciplina escolar positivos e seguros. A prerrogativa quanto aos resultados é alcançar uma comunidade estudantil na qual os envolvidos possam desejar e serem capazes de utilizar uma comunicação aberta, que possam reconhecer e compartilhar seus sentimentos, e possam também reconhecer suas qualidades e dificuldades, além de pensar criativamente sobre seus problemas de forma a poder prevenir e solucionar conflitos. A mediação está assentada em três vertentes: • técnica de intervenção na gestão e resolução de conflitos; • metodologia integrada de prevenção: primária, secundária e terciária; • estratégia de prevenção. FONTE: Costa, Torrego e Martins (2018) IMPORTANTE 3.1 TÉCNICA DE INTERVENÇÃO NA GESTÃO E RESOLUÇÃO DOS CONFLITOS Essa vertente apresenta a mediação escolar como meio adequado para facilitar processos de resolução de conflitos no quotidiano escolar. Tem como pressuposto superar medidas de caráter repressor e punitivo que são frequentemente utilizadas nas escolas. Nessa perspectiva, o processo de mediação assume como objetivo atender aos conflitos de maneira a reduzir a sua frequência, prevenir comportamentos inadequados e diminuir o número de processos disciplinares. O papel do mediador, profissional que tem habilitação teórico-prática, é facilitar que os envolvidos em conflitos possam refletir, interiorizar e compreender tanto suas ações, quanto as consequências em nível pessoal e social. A construção de um acordo materializa a solução do conflito. Segundo Costa, Torrego e Martins (2000), é importante considerar dados da literatura que apresentam algumas críticas a essa vertente, por considerar TÓPICO 2 — MEDIAÇÃO ESCOLAR 149 que os objetivos da mediação escolar são bem mais amplos que a resolução de problemas pontuais, e que este tipo de mudança não se mantém, especialmente, se advir de um processo rápido e centrado no conflito aparente. Entretanto os mesmos autores referem que a literatura apresenta aspectos positivos da vertente: • o fato de a escola aceitar a existência do conflito e ver nele possibilidade de mudança e crescimento é um fator a ser considerado, visto transcender o modelo de gestão impositivo e punitivo; • o fato dela desenvolver uma responsabilidade proativa, sustentada numa reflexão-ação quer visa à resolução do conflito, a reparação do dano e a reconciliação entre as partes envolvidas; • estabelece ações tanto formais, quanto informais; • possibilita mudanças de atitudes entre os envolvidos, rompendo com a postura ganha-perde; • o fato de os acordos firmados terem maior chance de serem cumpridos. 3.2 METODOLOGIA DE DESENVOLVIMENTO PESSOAL E SOCIAL Para além da transmissão de conhecimentos, como já foi referido, é papel da escola formar o aluno em uma dimensão integral, o que significa promover a formação de indivíduos com consciência crítica, proativos e compromissados com o seu próprio desenvolvimento. Essa vertente preconiza que a mediação no ambiente escolar constitui ferramenta para o desenvolvimento de competências sociais e relacionais. Ao formar alunos mediadores, Crawford e Bodine (1996) indicam cinco habilidades a serem desenvolvidas. São elas: habilidades de tomada de perspectiva; habilidades de comunicação; habilidades emocionais; habilidades de pensamento criativo; e habilidades de pensamento crítico. Essas habilidades, quando integradas às competências relacionais, contribuem para o enfrentamento de situações divergentes e concebidas como incompatíveis. Para essa vertente, o objetivo principal da mediação escolar é incluir nos alunos mediadores uma gama de habilidades para que isso possa fazer parte de seus repertórios pessoais. Essas habilidades poderão ser úteis tanto para auxiliar outras pessoas, quando envolvidas em conflito, como para auxiliar a si próprios. 3.3 ESTRATÉGIA INTEGRADA DE PREVENÇÃO Como sugere o título, essa vertente está relacionada à ideia de prevenção, o que não significa repressão, evitamento do conflito ou sua possível erradicação. Trata-se de buscar a compreensão do fenômeno de forma contextualizada, uma 150 UNIDADE 3 — PROCESSOS DE MEDIAÇÃO: FAMILIAR, ESCOLAR E COMUNITÁRIA forma de investigação e identificação dos elementos interpessoais, intragrupais e organizacionais que esteja na base da dinâmica do conflito, assim como desafiar a criação de condições em termos interpessoais, intragrupais e organizacionais que fomentem contextos geradores positivos e proativos, com forte efeito preventivo. A autora Elisabete Costa (2018) apresenta três níveis de prevenção: primário, secundário e terciário. No primeiro nível, prevenção primária, o desafio é a criação de condições para antecipar o melhor, acomodar o surgimento do conflito. No segundo nível, prevenção secundária, o desafio é viabilizar intervenção precoce, tomando medidas para conter situações de conflito, bem como sua progressão. Significa atuar o mais rápido possível nos desvios identificados. Já na prevenção terciária, a atuação se dá quando os fenômenos já estão acontecendo. PREVENÇÃO PRIMÁRIA PREVENÇÃO SECUNDÁRIA PREVENÇÃO TERCIÁRIA Atividades de sensibilização sobre o conflito e a mediação. Planos de aula sobre o conflito e a mediação. Programas educativos sobre a gestão e mediação de conflitos. Mudanças estruturais e organizacionais ao nível da gestão de conflitos (projeto educativo, projeto curricular da escola e regulamento interno). Programas de formação específica em mediação e para ser mediador de conflitos, para alunos, professores, assistentes operacionais e encarregados de educação. Participação dos alunos, professores, assistentes operacionais e encarregados de educação na equipe de mediação (como mediadores formais ou preferencialmente como mediadores informais). Gabinete de mediação de conflitos: participação de professores e dos técnicos com formação específicae/ou especializada em mediação de conflitos. QUADRO 2 – PREVENÇÃO PRIMÁRIA – SECUNDÁRIA – TERCIÁRIA FONTE: Costa, Torrego e Martins (2018, p. 113) TÓPICO 2 — MEDIAÇÃO ESCOLAR 151 4 A ESTRUTURA DE UM PROJETO DE MEDIAÇÃO ESCOLAR A elaboração deste item foi baseada na Cartilha de Mediadores, um material muito interessante, que está disponível em: https://www.slideshare.net/tatyathaydes/ cartilha-de-mediadores. Acesso em: 16 out. 2019. DICAS Pensar na proposta de aplicação da mediação em uma escola exige, inicialmente, que possa ser identificado o real interesse de um ou mais segmentos da comunidade escolar em executar a proposta. A direção da escola precisa estar engajada, bem como professores, alunos, pais e funcionários. A ideia da aplicação da proposta pode surgir de qualquer interessado, entretanto a direção precisa estar ciente e desejar que isso aconteça. A partir do reconhecimento do interesse, a próxima etapa é a constituição da equipe de apoio, responsável pela coordenação do projeto. Essa equipe deve ser composta por representantes dos diferentes segmentos/setores da escola. Quanto mais representação, maior probabilidade de alcance e sucesso da proposta. Essas pessoas ingressam de forma voluntária e precisam ter interesse no tema. Não há indicação de número mínimo e máximo de participantes, apenas que a equipe seja renovada anualmente. São atribuições da equipe de apoio: 1. Acompanhamento dos primeiros passos. 2. Capacitação dos jovens e definição dos seus limites de ação. 3. Monitoramento e apoio dos trabalhos, quando necessário. É importante salientar que a equipe de apoio não realiza mediações, para que, assim, possam ser garantidos os princípios basilares da mediação, imparcialidade, voluntariedade e confidencialidade. Após a constituição da equipe, seguem as atividades, na sequência apresentada nos subtópicos a seguir. 4.1 DIAGNÓSTICO – LEVANTAMENTO DE DADOS Levantar dados é a primeira etapa do processo de implantação da mediação escolar, momento no qual se reconhecem os conflitos mais comuns da escola, quando se identificam suas características e diferenciais. A etapa funciona como um reconhecimento de campo, quando é realizada a sondagem do local em que se pretende desenvolver o trabalho. São informações a serem levantadas: 152 UNIDADE 3 — PROCESSOS DE MEDIAÇÃO: FAMILIAR, ESCOLAR E COMUNITÁRIA • tamanho da escola: número de alunos, professores, funcionários, turnos de aula etc.; • perfil da escola: região em que a escola está inserida, idade dos alunos, formação dos professores e dos pais dos alunos etc.; • principais conflitos da escola – quais são, como ocorrem, principais envolvidos etc. Para uma melhor compreensão sobre os conflitos, a equipe de apoio pode entender que seja necessária a elaboração de um questionário, que pode ser aplicado de forma aleatória. Segundo os organizadores da cartilha, uma mostra de 5% a 10% é suficiente. 4.2 PLANO DE AÇÃO A proposta dessa etapa é a elaboração de um cronograma para a execução do projeto, a definição de etapas, metas a serem alcançadas e temas a serem abordados. No seguimento é necessário definir as atividades a serem desenvolvidas, o responsável pela atividade e respectivas necessidades, bem como selecionar e elaborar material a ser disponibilizado nas apostilas: leituras de apoio, dinâmicas, oficinas, palestras etc. Para a apresentação e problematização, podem ser convidadas pessoas que não fazem parte da escola, mas que possuem conhecimentos aprofundados sobre os temas. 4.3 SENSIBILIZAÇÃO Como já foi assinalado, a mediação escolar não tem como único objetivo capacitar alunos para mediar conflitos. Um dos grandes objetivos é viabilizar a introdução, no ambiente escolar, de esforços para a construção de uma cultura de paz, através da resolução adequada de conflitos. Dessa forma, a etapa da sensibilização precisa envolver todos os integrantes da escola: dirigentes, pessoal de apoio teórico e administrativo, professores, pais de alunos, bem como pessoas da comunidade onde a escola está inserida. Podem ser utilizadas diferentes estratégias para a sensibilização: palestras, uso de cartazes, oficinas, cartas dirigidas às famílias etc. O importante é que a informação possa chegar a todos, mobilizando para adesão na proposta de mediação na escola. A sensibilização deve garantir que todos se sintam convidados a participar. Os eventos devem abordar assuntos relacionados a temas como: direitos humanos, violência (especialmente a violência nas escolas), conflitos e formas de lidar com eles, como a própria mediação de conflitos. TÓPICO 2 — MEDIAÇÃO ESCOLAR 153 4.4 FORMAÇÃO: CAPACITAÇÃO TEÓRICA E PRÁTICA A etapa da capacitação pressupõe que alunos tenham se sensibilizado e se inscrito para aplicar a mediação. É importante salientar que todos os alunos podem participar, mas é indicado contar especialmente com aqueles que demonstram facilidade em se comunicar, observar, escutar, que tenham perfil de liderança, paciência e que sejam neutros. Definidos os participantes, é o momento da capacitação, entendida como preparação teórico-prática dos alunos para aplicar a mediação. Ela deve priorizar a oferta de exercícios que proporcionem vivências relacionadas a temas específicos da mediação de conflitos: escuta ativa, aprender a se colocar no lugar do outro, ter cuidado com as palavras e aprender a trabalhar em duplas. A sugestão dos organizadores da cartilha é ofertar o curso com uma carga horária de vinte horas, divididas em dez encontros de duas horas cada. Sugerem também que as aulas sejam conduzidas por uma dupla de monitores, e que a turma não tenha número maior que vinte alunos. Quanto aos monitores, a proposta é que possam ser pessoas com conhecimentos em mediação, para que possam repassar sua experiência aos alunos. Mesmo que a capacitação seja especialmente para os alunos, demais interessados devem poder ter acesso a material bibliográfico ou outras fontes de pesquisa. A ideia é capacitar o maior número possível de pessoas no tema. 4.5 INSTITUCIONALIZAÇÃO Logo após concluída a etapa da capacitação, e certificado que os alunos desenvolveram habilidades e competências para o enfrentamento de situações reais, a institucionalização da prática de mediação deve acontecer. A divulgação do início das práticas de mediação pode acontecer através de cartazes ou flyers, ou mesmo pelos próprios alunos capacitados. Eles podem passar nas salas de aula para apresentar e divulgar a proposta. 154 UNIDADE 3 — PROCESSOS DE MEDIAÇÃO: FAMILIAR, ESCOLAR E COMUNITÁRIA Grandes motivos para realizar o programa de mediação: • a capacitação em resolver conflitos valoriza o tempo; • a capacitação em resolver conflitos ensina várias estratégias úteis; • a capacitação em resolver conflitos ensina aos alunos consideração e respeito para com os demais; • a capacitação em resolver conflitos reduz o estresse; • possibilidade de aplicar as novas técnicas em casa, com familiares e amigos; • a capacitação em resolver conflitos pode contribuir para a prevenção do uso do álcool e de drogas; • possibilidade de sentir a satisfação de estar contribuindo com a paz do mundo (CHRIS- PINO, 2007). IMPORTANTE Os conflitos fazem parte do cotidiano de qualquer espaço, mas podem ser tratados de forma positiva. Assim sendo, ações criativas baseadas nos princípios da mediação são bem-vindas, considerando que disseminar a cultura da paz é a meta maior. Para finalizar, é importante enfatizar que a mediação escolar constitui prática alternativa, atual e inovadora de resolução de conflitos nesse contexto. Para isso, é fundamental que os atores da comunidade escolar possam estar convictos de seus papéis nos programas de mediação, para que através desses programas possam suscitar nova cultura nas escolas, a cultura da paz. A mediação escolar pode possibilitar uma educação em valores, educação para a paz e para nova visão acerca dosconflitos. NOTA TÓPICO 2 — MEDIAÇÃO ESCOLAR 155 Para aprofundar seus conhecimentos sugerimos alguns filmes. Não são filmes específicos da mediação escolar, entretanto podem auxiliar na compreensão da perspectiva e objetivos a serem atingidos por este tipo de mediação. DICAS Pro Dia Nascer Feliz (João Jardim, 2005) – As situações que o adolescente brasileiro enfrenta no precário sistema de educação público do país, envolvendo preconceito, precariedade, violência e esperança. Adolescentes de locais dos mais variados tipos de três estados diferentes, de classes sociais distintas, falam de suas vidas na escola, seus projetos e inquietações. As Melhores Coisas do Mundo (Laís Bodanzky, 2010) – O filme se passa num colégio de classe média em São Paulo, e narra o período de um mês da vida de "Mano", um jovem que vive os altos e baixos da adolescência, como conflitos familiares e "a primeira vez", sofrendo crises da adolescência aos 15 anos. FIGURA – FILME PRO DIA NASCER FELIZ FIGURA – FILME AS MELHORES COISAS DO MUNDO FONTE: . Acesso em: 9 abr. 2020 FONTE: . Acesso em: 9 abr. 2020. https://pt.wikipedia.org/wiki/S%C3%A3o_Paulo_(estado) http://www.adorocinema.com/filmes/filme-193379/ 156 UNIDADE 3 — PROCESSOS DE MEDIAÇÃO: FAMILIAR, ESCOLAR E COMUNITÁRIA A Onda (Dennis Gansel, 2009) – Rainer é um professor a quem foi designada a tarefa de instruir seus estudantes de Ensino Médio sobre o Estado Autocrático durante uma sessão às lições longas. Um professor favorito entre as crianças, Rainer decide deixar seus alunos desenvolverem o assunto e pede a eles que construam sua própria autocracia. No entanto, quando as crianças formam um Estado-nação similar com o da Alemanha nazista, os professores não sabem o que fazer. FIGURA – FILME A ONDA FONTE: . Acesso em: 9 abr. 2020. http://google.com/search?tbm=isch&q=Die+Welle 157 RESUMO DO TÓPICO 2 Neste tópico, você aprendeu que: • Mediação escolar é uma nova abordagem que vem se inserindo nos contextos das instituições de ensino, visto serem ambientes que acolhem relações sociais diversas e, portanto, propícias à eclosão de conflitos. • O cenário de violência nas escolas tenciona discussões sobre a necessidade de uma educação pautada em valores, que dê atenção às necessidades, interesses, projetos de vida e relações sociais estabelecidos pelos estudantes. • São objetivos da mediação escolar: ᵒ desenvolver uma comunidade na qual os alunos desejem e sejam capazes de praticar uma comunicação aberta; ᵒ ajudar no desenvolvimento de uma melhor compreensão da natureza dos sentimentos, capacidades e possibilidades humanas; ᵒ contribuir para que os alunos compartilhem seus sentimentos e sejam conscientes de suas qualidades e dificuldades; ᵒ possibilitar aos alunos o fortalecimento da autoconfiança; ᵒ desenvolver no aluno a capacidade de pensar criativamente sobre problemas e de começar a prevenir e solucionar conflitos. • As características da mediação escolar são a voluntariedade, o processo educativo e a confidencialidade. • A mediação escolar está assentada em vertentes: a) técnica de intervenção na gestão e resolução de conflitos; b) metodologia integrada de prevenção: primária, secundária e terciária; c) estratégia de prevenção. • Procedimentos para implementação da mediação escolar: ᵒ reconhecimento do interesse por parte da direção da escola; ᵒ constituição da equipe de apoio; ᵒ diagnóstico/levantamento de dados; ᵒ plano de ação; ᵒ sensibilização; ᵒ formação: capacitação teórica e prática. ᵒ institucionalização. 158 1 A mediação escolar é uma forma consensual de resolução de controvérsias, em que as partes envolvidas têm a oportunidade de solucionar seus conflitos, com a participação de um mediador. Com base na definição de mediação escolar, analise as sentenças a seguir: I- A mediação escolar tem como um dos objetivos a prevenção de conflitos. A mediação estimula um comportamento de comunicação pacífica. Quando os indivíduos conhecem o processo de mediação e percebem que essa forma de resolução é adequada e satisfatória, passam a utilizá-lo com mais frequência. II- A mediação escolar exige das partes envolvidas a discussão aberta sobre os problemas, comportamentos, direitos e deveres de cada um. III- A mediação reforça a cultura do conflito, na medida em que abre espaço para que as pessoas falem o que pensam, expondo abertamente todos os seus sentimentos negativos. IV- São princípios da mediação escolar: (1) liberdade das partes; (2) não competitividade; (3) poder de decisão das partes; (4) participação do terceiro imparcial (mediador); (5) competência do mediador; (6) informalidade dos processos; e (7) confidencialidade do processo. Assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) Apenas as afirmativas I, II e IV estão corretas. b) ( ) Apenas as afirmativas III e IV estão corretas. c) ( ) Apenas as afirmativas I e IV estão incorretas. d) ( ) Apensas a afirmativa I está correta. e) ( ) Todas as afirmativas estão corretas. AUTOATIVIDADE 159 UNIDADE 3 1 INTRODUÇÃO O tema participação social vem sendo uma discussão presente nos mais diferentes contextos sociais, considerando que dela advém possibilidades de avanços na construção de práticas democráticas e políticas de direitos. A mediação comunitária se apresenta como uma das possibilidades de viabilizar o envolvimento de cidadãos, tanto na compreensão das dificuldades que levam as pessoas a vivenciarem conflitos, quanto na possibilidade de atuarem como agentes que buscam alternativas de resolução desses conflitos. A compreensão da forma como a mediação comunitária se instaura no contexto brasileiro demonstra a necessidade de vontade política em abrir caminhos para outras formas de resolução de conflitos que instiguem e incluam a comunidade, por serem seus moradores quem realmente conhece formas de resolução, mas que precisam acreditar nesse protagonismo. Outra necessidade é o entendimento da mediação comunitária enquanto método autocompositivo, como deve ser implementada e quais os atores sociais necessários para atender às suas prerrogativas. 2 RELAÇÕES DE PARTICIPAÇÃO COMUNITÁRIA NA RESOLUÇÃO DE CONFLITOS TÓPICO 3 — MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA FIGURA 2 – DINÂMICA DAS RELAÇÕES SOCIAIS FONTE: . Acesso em: 20 set. 2019. 160 UNIDADE 3 — PROCESSOS DE MEDIAÇÃO: FAMILIAR, ESCOLAR E COMUNITÁRIA A imagem anterior chama a atenção para duas formas de se pensar a dinâmica das relações sociais. É meta de a mediação comunitária facilitar a transposição da primeira organização para a segunda, de forma a viabilizar fortalecimento de relações comunitárias e sociais. Em diferentes partes do mundo globalizado e, prioritariamente, em países com desigualdade social crescente, como é o caso do Brasil, são identificados conflitos de toda ordem, oriundos das transformações políticas, sociais, econômicas e culturais. O crescimento populacional urbano, desemprego estrutural, déficit na oferta de políticas públicas da saúde, educação, moradia, acesso à justiça, redes de apoio e sustento ineficazes são alguns dos fatores geradores de exclusão social. Nesse cenário, toda desavença, por mais simples que possa parecer, dificulta práticas comunicacionais e promove a incidência da violência. Intolerância e desrespeito ao outro também são gerados pela ausência de comunicação. A necessidade de convivência e trocas sociais faz parte do cotidiano dos cidadãos, nenhum projeto societário inclusivo poderá acontecer se perseguido de forma individualizada e isolada. A participação e cidadania são conceitos interligados e referem-se à apropriação pelos indivíduos do direito de construção democrática do seu próprio destino. Participação é a forma pela qual processos democráticos poderão ser construídos. Dessa forma, em um contexto social regido pela lei do mercado,com cidadãos tencionados a engajarem-se prioritariamente em lógicas individualistas e competitivas, com preocupações exclusivas com seu próprio bem-estar, e que aplicam na acumulação seus maiores esforços, práticas que façam resistência a essa lógica dominante são ao mesmo tempo desafiadoras e instigantes. A mediação comunitária é uma dessas práticas, por constituir-se como alternativa para a resolução dos conflitos em contextos comunitários. 2.1 PERSPECTIVA CONCEITUAL A mediação comunitária tem natureza democrática, tendo em vista que procura prevenir e resolver conflitos de maneira pacífica e inclusiva, sempre por meio do diálogo. Para Sales (2007), a mediação comunitária é uma política pública que exerce função humana e pacífica para construir cidadania e fortalecer valores morais. Segundo ela, a mediação busca, prioritariamente, o empoderamento dos envolvidos, por efetivar a dignidade da pessoa humana e o acesso à justiça. Assim, enquanto método consensual de resolução de conflitos, proporciona uma restauração à cultura de paz na comunidade. TÓPICO 3 — MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA 161 A contribuição da mediação, enquanto meio democrático, participativo e inclusivo na resolução de conflitos, para a cidadania e para a dignidade humana, implica em relacionar as características de sua prática (inclusão social, valorização do ser humano, empatia) e os seus efeitos (conscientização dos direitos e deveres, prevenção à má administração dos conflitos, pacificação social) (CARVALHO, 2010, p. 2). Todo o processo é regido na perspectiva de investimento em sentimentos de colaboração, de mútua ajuda e de confiança entre as pessoas. A proposta é que os envolvidos possam se sentir valorizados e autorizados a resolver autonomamente seus desafios. 3 BREVE HISTÓRICO DA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA Pensar na mediação em uma perspectiva histórica é reconhecer que ela faz parte de quase todas as culturas. Em se tratando de comunidades religiosas, por exemplo, era comum os líderes religiosos serem procurados para o desempenho do papel de mediadores, tanto em situações de conflito religioso quanto questões civis. O confucionismo desempenhou um importante papel na evolução e no desenvolvimento da mediação no âmbito comunitário. De acordo com essa filosofia, a harmonia entre os homens só pode ser conseguida quando as pessoas suportam mutuamente a natureza individual de cada um. Confúcio ensinava que preservar essa harmonia é dever de todos, e só quando a comunidade reconhece ser incapaz de realizar essa tarefa é que se deve recorrer ao direito positivo e à regulação. A alternativa à solução judicial é o compromisso obtido na mediação, no qual pessoas virtuosas da própria comunidade estimulam as partes para que elas mesmas restabeleçam a harmonia comunitária e, com isso, alcancem também a harmonia individual (PERKOVICH, 1996). NOTA As correntes migratórias do século XIX também desempenharam uma importante participação no histórico da mediação comunitária, visto que os conflitos internos eram resolvidos através de câmaras de mediação. Foi o desenvolvimento das elites, com a consequente necessidade de proteção dos interesses individuais, que acabou por favorecer a supremacia da lei e aculturação dos imigrantes, devido à sua desagregação. No Brasil, a história da mediação comunitária, no modelo apresentado neste texto, ainda é recente. Entretanto emergem, tanto por parte de tribunais quanto por parte de organizações comunitárias, iniciativas para a sua implantação. 162 UNIDADE 3 — PROCESSOS DE MEDIAÇÃO: FAMILIAR, ESCOLAR E COMUNITÁRIA Um grande marco para a instauração da mediação comunitária no Brasil foi a experiência institucional concebida no ventre do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios. Para os que conceberam a ideia, os fundamentos da mediação comunitária indicam que ela não pode se limitar a uma técnica de resolução de conflitos, o desenho precisa estar atrelado a três eixos de sustentação: a educação para os direitos, a mediação como rito de solução de conflitos e a animação de redes sociais. A primeira atividade visa à democratização do acesso à informação sobre os direitos dos cidadãos. Busca romper com práticas colonialistas que oferecem uma linguagem de difícil compreensão para o sujeito que acessa a justiça e com práticas que não têm por base a socialização de informações sobre direitos que podem ser acessados. O segundo eixo é a mediação para a resolução dos conflitos, momento em que as pessoas envolvidas no conflito são convidadas a refletir sobre a complexidade de fatores que envolvem o problema e pensar nas possíveis formas de solução que contemplem os interesses e necessidades das partes envolvidas. O terceiro eixo de atividades envolve atores da comunidade na mobilização popular e criação de redes solidárias para o mapeamento e o reconhecimento tanto das dificuldades quanto dos recursos que a comunidade pode oferecer. 4 CARACTERÍSTICAS DA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA A mediação comunitária é realizada nos bairros da periferia, local onde o conflito se instaura e, também, local onde se apresenta a possibilidade de resolução desse conflito. Quando a mediação acontece na própria comunidade, são considerados os valores, crenças, atitudes e comportamentos das pessoas que residem em tal lugar, e podem ser potencializados os recursos para o fortalecimento de uma cultura democrática e de paz social. Em seu aspecto mais formal e técnico sobre a mediação comunitária, Lília Maia de Morais Sales (2007, p. 134) afirma que: A mediação, por sua própria definição, é designada a criar laços entre os indivíduos, resolvendo e prevenindo conflitos. Ela é realizada por um terceiro independente que visa a levar à comunidade o sentimento de inclusão social através da possibilidade de solução de seus conflitos por eles mesmos. Cria vínculos, laços e fortalece o sentimento de cidadania e de participação da vida social. Especificamente quanto à mediação comunitária, existem algumas características que a diferenciam das demais práticas de mediação: momento de inserção no conflito, flexibilidade processual da mediação comunitária, inserção do mediador na comunidade, estímulo à autonomia e ao empoderamento da comunidade e execução dos acordos obtidos. TÓPICO 3 — MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA 163 A apresentação das características da mediação comunitária a seguir foi baseada no site, e acessá-lo será a oportunidade do aprofundamento do estudo: http:// www.arcos.org.br/livros/estudos-de-arbitragem-mediacao-e-negociacao-vol2/terceira- parte-artigo-dos-pesquisadores/o-perfil-da-mediacao-comunitaria-acesso-a-justica-e- empoderamento-da-comunidade. ATENCAO Momento de inserção no conflito Quando mais cedo ocorre a intervenção no conflito, tanto melhor para a sua resolução. A mediação comunitária oferece a possibilidade de ser utilizada em um estágio inicial. Assim o mediador tem mais facilidade para estabelecer uma comunicação eficiente e produtiva, antes que os envolvidos no conflito acessem outros meios, não suficientemente engajados em propostas pacificadoras. Flexibilidade processual da mediação comunitária A forma como é conduzida a mediação depende do espaço, do tempo, dos envolvidos e do próprio mediador. Tradicionalmente, inicia com a declaração de abertura por parte do mediador, momento em que são estabelecidas as regras a serem respeitadas durante o procedimento. No seguimento, cada uma das partes apresenta sua versão relacionada à disputa. Nesse momento, o mediador identifica as questões, os interesses e os sentimentos de cada parte e, a partir de então, começa a aplicar técnicas específicas visando à resolução do conflito. As sessões privadas são aplicadas com frequência. Elas devem ser utilizadas sempre que se entender necessário, tanto para ouvir questões cujos mediadores não desejam que a outra parte saiba quanto para geração de opções que visem um eventual acordo. Inserção do mediador na comunidadeComo já foi referido, os mediadores são, preferencialmente, membros da própria comunidade, sendo que eles realizam capacitação específica para realizar a mediação de conflitos e voluntariamente decidem dedicar parte de seu tempo ao bem-estar de toda a comunidade. Autonomia e empoderamento da comunidade A mediação comunitária tem como objetivo maior o empoderamento das pessoas envolvidas em disputas e autonomia da própria comunidade. A ideia é fortalecer laços de pertencimento e de compromissos comunitários. 164 UNIDADE 3 — PROCESSOS DE MEDIAÇÃO: FAMILIAR, ESCOLAR E COMUNITÁRIA Execução dos acordos obtidos na mediação As pessoas envolvidas em mediação comunitária se sentirão mais satisfeitas se houver boa execução dos acordos. 5 FUNÇÕES DA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA A mediação comunitária tem como função utilizar métodos adequados de solução de conflitos sociais pelos membros da própria comunidade. Dessa forma, a mediação contribui para prevenir conflitos e possibilitar que as pessoas, de forma consciente, participem da compreensão e solução dos conflitos, construindo um sentimento de inclusão social. • Desenvolver autonomia e determinação da comunidade. • Promover inclusão pela responsabilidade e condução cooperativa. • Reconhecer e legitimar a identidade da comunidade, a partir de seus próprios critérios de realidade. • Participar ativamente, na base da cooperação e da responsabilidade, para a superação de seus problemas. FONTE: . Acesso em: 17 nov. 2019. IMPORTANTE No entendimento de Jean Six (2001, p. 171), a primeira mediação a fazer é a de devolver confiança às cidades e aos subúrbios, estudando-se a fundo sua realidade e potencialidades, [...] criar uma democracia urbana, pesquisar novas maneiras de os cidadãos tornarem-se cidadãos de fato, de responsabilizarem-se por sua cidade, por seu subúrbio, de criarem novos projetos para si. Nesse âmbito, a mediação favorece uma maior responsabilidade e participação da comunidade na solução dos seus conflitos, o que pode contribuir para a preservação e fortalecimento das relações, com satisfação dos interesses dos envolvidos, bem como economia de custos de tempo e dinheiro na solução do conflito. TÓPICO 3 — MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA 165 A mediação comunitária pode funcionar como mediadora de políticas públicas, dado o fato de que os grupos com menor ou quase nenhuma representatividade social e política conseguem, por meio da criação de espaços dialogais, demandar seus interesses e suas necessidades coletivas. Aspecto esse que toca, de certa forma, na questão da alteridade, já que é pensada como forma de reconhecimento e respeito pelo outro, uma vez que gera espaços que oportunizam a reaproximação de pessoas e de grupos, (re) estabelecendo uma comunicação transformadora, capaz de dar à vida comunitária um sentido sustentável. FONTE: . Acesso em: 15 set. 2019. IMPORTANTE Nessa perspectiva, a mediação comunitária tem como pressuposto tornar os cidadãos conscientes do seu poder para resolverem conflitos através do diálogo produtivo, buscando a construção de relações cooperativas entre os membros da comunidade. Essa proposta pode abrir caminhos para a transformação sociocultural por investir na participação ativa dos membros da comunidade na vida social. Sales (2003, p. 135), a respeito dos objetivos da mediação comunitária, relata que: a mediação comunitária possui como objetivo desenvolver entre a população valores, conhecimentos, crenças, atitudes e comportamentos conducentes ao fortalecimento de uma cultura político-democrática e uma cultura de paz. Busca ainda enfatizar a relação entre os valores e as práticas democráticas e a convivência pacífica e contribuir para um melhor entendimento de respeito e tolerância e para um tratamento adequado daqueles problemas que, no âmbito da comunidade, perturbam a paz. É importante enfatizar que a mediação comunitária não se atém à busca exclusiva do acordo, pois incentiva a reconstrução de relações sociais que, de alguma forma, ficaram fragilizadas devido à ocorrência do conflito, bem como o reconhecimento das diferenças e das possibilidades de conviver com essas diferenças. https://siaiap32.univali.br/seer/index.php/nej/article/view/10632/5969 166 UNIDADE 3 — PROCESSOS DE MEDIAÇÃO: FAMILIAR, ESCOLAR E COMUNITÁRIA Preste muita atenção nos objetivos da mediação comunitária: • desenvolver autonomia e determinação da comunidade; • promover inclusão pela responsabilidade e condução cooperativa; • reconhecer e legitimar a identidade da comunidade, a partir de seus próprios critérios de realidade; • participar ativamente, na base da cooperação e da responsabilidade, para a superação de seus problemas. FONTE: . Acesso em: 20 set. 2019. ATENCAO Um dos grandes benefícios da mediação comunitária é a prevenção da violência, visto que os membros da comunidade aprendem a se envolver na resolução dos conflitos e não esperar que um terceiro que, na grande maioria das vezes, desconhece a realidade vivenciada pelos mediandos. A mediação supera o ganha-perde, não existem perdedores, pois a mediação termina quando os envolvidos se sentem satisfeitos com a resolução encontrada para o conflito. É possível entender que a mediação comunitária oferece uma possibilidade para o fomento à cidadania e participação, por incentivar a participação ativa na busca de soluções para os conflitos relacionais entre os membros de uma família, da vizinhança, relações comerciais, com o meio-ambiente e tantas outras. Os cidadãos que, por diferentes motivos, vivenciam situações de exclusão social, passam a se sentir responsáveis pelas escolhas e decisões de suas próprias vidas e exercitam a inclusão social. A prática da mediação estabelece a participação ativa das pessoas nas soluções dos conflitos, passa-se a não somente se discutir sobre questões individuais, mas questões de natureza coletiva também. As experiências brasileiras em mediação, especialmente aquelas realizadas nas periferias dos municípios, têm revelado mudanças de comportamento das pessoas: tornam-se mais participativas nas decisões individuais e coletivas (luta e conquista de cursos de alfabetização para adultos, cursos jurídicos, cursos sobre planejamento familiar, discussões sobre ressocialização da pena ao se receber para auxiliar nos trabalhos administrativos dos centros de mediação pessoas condenadas à prestação de serviços) (SALES, 2007, p. 38-39). A mediação tem uma função educativa, visto que capacita as pessoas a utilizarem processos comunicacionais pacíficos, estimulando a constituição de parcerias e redes colaborativas em torno de objetivos comuns. Isso aponta para práticas democráticas. TÓPICO 3 — MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA 167 6 FASES DA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA A mediação comunitária está inserida em um ciclo virtuoso que ostenta os seguintes componentes: • conhecimento – da comunidade e da rede social (por meio do mapeamento social e da Educação para os Direitos); • criação de novas conexões – na comunidade, entre si e com as instituições (por meio da Animação de Redes Sociais); • transformação das relações – individuais, sociais e institucionais, por meio do desenvolvimento de novas habilidades e técnicas de comunicação (pela mediação de conflitos); • promoção de coesão social – autonomia e emancipação social (resultado do processo de construção da mediação comunitária). 7 O PAPEL DO MEDIADOR COMUNITÁRIO • A comunidade deve fazer o seu diagnóstico. • A escuta ativa do mediador comunitário é essencial para a comunidade se expressar e aprender a se escutar. •Ajuda a comunidade a construir sua identidade e definir suas necessidades. • Opera com o reconhecimento e respeito, bases da cooperação e da responsabilidade. FONTE: . Acesso em: 17 nov. 2019. NOTA A pessoa do mediador comunitário representa a figura de um terceiro neutro, imparcial e que não tem papel decisório, só facilita que pessoas consigam tratar do conflito, no qual estão envolvidos, de forma que as satisfaça. Morador do local, deve ser escolhido pela comunidade ou se voluntaria para prestar o serviço. Precisa, para tanto, ter reconhecimento comunitário, como sendo pessoa com valores éticos e que age com postura justa e honesta. Cabe a ele articular oportunidades para que os moradores da comunidade apreendam a identificar, compreender e desejar dar um tratamento adequado aos conflitos. 168 UNIDADE 3 — PROCESSOS DE MEDIAÇÃO: FAMILIAR, ESCOLAR E COMUNITÁRIA O que se pedia aos mediadores cidadãos? Deve ser, por sua presença, sua colhida, sua escuta, alguém que permitirá avançar no tratamento do problema - no qual não vê a decisão tomar – que existe com outro, na sua família, na empresa, no bairro. [...]18. O mediador deve zelar pela privacidade do que é tratado dentro do espaço, deve ser neutro e imparcial, não podendo sentenciar, nem indicar uma “saída”, deve acima de tudo, deixar que as partes conflitantes resolvam seu conflito (SPENGLER, 2010, p. 232-324). Quanto às habilidades a serem desenvolvidas, é importante que possa estabelecer um rapport com as partes, o que significa que possa realmente “escutar” os envolvidos, relacionar-se de forma horizontal e comunicar de forma a ser entendido. Além das habilidades descritas, o mediador comunitário precisa de capacitação teórica e prática, e atua com supervisão de mediadores com maior experiência. O conteúdo da capacitação deve versar sobre conflitos e suas manifestações, procedimentos sobre os passos da mediação e precisa desenvolver capacitação técnica para a apreensão das técnicas, como ferramentas para a função. Para Spengler (2010), existem diferenças entre os mediadores institucionais e os mediadores cidadãos. Para ela, além de possuírem origens diferentes, têm maneiras de agir diferentes. Os institucionais são especialistas, com formação para atender a um problema específico, pelo qual terão que responder. Já os mediadores cidadãos têm como prerrogativa investir no fortalecimento da cidadania e democracia, facilitar o acesso à justiça, esclarecendo aos cidadãos seus direitos e deveres. Esses mediadores se envolvem na construção da solução, através do desenvolvimento da cultura do diálogo e da participação, para conjuntamente promoverem a inclusão social. TÓPICO 3 — MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA 169 Acadêmico, para aprofundar seus conhecimentos sugerimos a leitura dos seguintes livros: DICAS SPINGLER, Fabiana M. Fundamentos Políticos da Mediação Comunitária. Ijuí, Editora Unijui, 2012. CAMPOS, Regina Helena de F. Psicologia Social Comunitária: Da altoridade à autonomia. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. FIGURA – FUNDAMENTOS POLÍTICOS DA MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA FIGURA – PSICOLOGIA SOCIAL COMUNITÁRIA FONTE: . Acesso em: 20 jan. 2020. FONTE: . Acesso em: 20 jan. 2020. 170 UNIDADE 3 — PROCESSOS DE MEDIAÇÃO: FAMILIAR, ESCOLAR E COMUNITÁRIA LEITURA COMPLEMENTAR Por que falar de mediação de conflitos em tempos de Covid-19? Maíra Lopes de Castro Professora, Mediadora e Advogada Sócia da Mediação LFG São Luís/MA Mestre em Direito pela UFMA Desde de que fora noticiado a primeira vez, no final do ano passado (2019), na cidade de Wuhan, na China, o corona vírus, ou, conforme nomenclatura oficial da Organização Mundial de Saúde (OMS), o Covid-19, vem fazendo vítimas, que apresentam diversos sintomas, desde de febre e dificuldades respiratórias, até síndromes respiratórias agudas e insuficiência renal. Vivencia-se, portanto, uma pandemia que tem atingido diversos países, em intensidades diversas. O Brasil não ficou imune, e até a data de hoje (20 de março de 2020) foram contabilizados pelas secretarias estaduais de Saúde 649 casos confirmados de novo coronavírus (Sars-Cov-2) no país e sete mortes. Não precisamos fazer um grande esforço para ver os impactos sociais e econômicos decorrentes da crise sanitária motivada pelo Covid-19. Mas, para fins ilustrativos, vamos citar os casos de quebras e revisões contratuais, paralisação de atividades em razão da adoção do regime preventivo de quarentena, superlotação de hospitais e clínicas públicas e particulares, dentre vários outros espectros da pandemia. Tem sido um grande desafio para micro e pequeno empreendedores gerenciar a quantidade de reclamações, e pedidos de cancelamentos dos serviços contratados. Além da observância do período de quarentena, que tem levado muitos estabelecimentos a optar pelo não funcionamento das suas unidades físicas. Aqui está um efeito nefasto da pandemia que poderá gerar a falência de muitas empresas: a falta de ferramentas adequadas para a gestão desses conflitos. Não custa rememorar que esse conflito que nasce embrionariamente aqui, provavelmente vai ser gestado no Poder Judiciário, somando-se aos 78,7 milhões de processos que lá já estão em tramitação . Ademais, conforme dados do Conselho Nacional de Justiça, “mesmo que não houvesse ingresso de novas demandas e fosse mantida a produtividade dos magistrados e dos servidores, seriam necessários aproximadamente 2 anos e 6 meses de trabalho para zerar o estoque” , o que per si já demonstra a dificuldade que o Poder Judiciário terá em ofertar respostas céleres as demandas decorrentes da pandemia do Covid-19. É por isso que precisamos pensar em formas menos traumáticas de gerir esses conflitos. TÓPICO 3 — MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA 171 Luis Alberto Warat já enunciava em suas obras que a sensibilidade é um dos grandes temas do Direito na virada do milênio, nesse sentido, é necessário ultrapassar a noção cínica do paradigma jurídico moderno, que se apoia em um “individualismo possessivo e ignorante do outro”. A mediação propõe ao Direito portanto, “uma concepção do mesmo que seja eticamente comprometida com outro e com a vida”. Nos parece então que não há momento mais oportuno para vivenciar essa transformação do que o momento de crise humanitária no qual nos encontramos. Façamos então da crise uma oportunidade. Afinal, esse poder de ressignificar os conflitos é algo inerente a mediação. A mediação “consiste no meio consensual de abordagem de controvérsias em que um terceiro imparcial atua para facilitar a comunicação entre os envolvidos e propiciar que eles possam, a partir da percepção ampliada dos meandros da situação controvertida, protagonizar saídas produtivas”. Alcance-se, portanto, por meio da mediação, o aspecto humano do conflito. Sabe-se que grande parte das conflitivas decorrentes do Covid-19, tem por motivação um fator que foge da previsibilidade das partes, e que, por isso, gera impasse no momento de atribuição de responsabilidades. Em situações de crise, o Direito não pode ser lido sem o compromisso com o outro. É necessário escuta ativa, identificação de interesses, exercício da empatia, e sobretudo criatividade na geração de opções, benefícios esses encontrados na mediação enquanto ferramenta de gestão de conflitos. Para micro e pequenos empreendedores, o investimento nesses métodos autocompositivos apresenta-se como uma opção de fácil acesso, baixo custo, e sobretudo célere e adequada. Adotar posturas colaborativas, que visem a resolutividade das demandas, é também reflexo do respeito a responsabilidade social da empresa. Nesse sentir, visando diminuir os impactos já assombrosos da pandemia do Covid-19, propõe-se a utilização da mediação, bem como dos demais meios adequados de resolução dosconflitos, para abordagem desses resíduos conflitivos. REFERÊNCIAS CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça em Números 2019. Brasília: CNJ, 2019. TARTUCE, F. Mediação nos conflitos cíveis. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2016. WARAT, L. A. O ofício do mediador. Florianópolis: Habitus, 2001. 172 RESUMO DO TÓPICO 3 Neste tópico, você aprendeu que: • A mediação comunitária tem natureza democrática, considerando que procura resolver e prevenir os conflitos de maneira pacífica e inclusiva, por meio do diálogo. • Os pressupostos da mediação comunitária são: o respeito ao outro, a construção de parcerias, participação ativa e responsabilidade dos mediandos pela solução do conflito. • A mediação comunitária acontece prioritariamente com pessoas e em espaços periféricos da sociedade. • São características específicas da mediação comunitária: ᵒ os mediadores são integrantes da própria comunidade, podem já ocupar posição de liderança, atuam de forma voluntária; ᵒ acontece a partir de vinculação ou parcerias com universidades, organizações não governamentais, órgão públicos governamentais; ᵒ capacitação prévia dos mediadores realizada pelas instituições com as quais os núcleos de mediação estão vinculados; ᵒ local da realização com estrutura simples, se utiliza das dependências de associações de moradores, escolas e igrejas, normalmente locais cedidos; ᵒ os mediadores desempenham atividades agregadoras, com ênfase no coletivo. • São fases da mediação comunitária: conhecimento da realidade da comunidade, criação de novas conexões, transformação das relações e promoção da coesão social. • A mediação comunitária, além de buscar que os envolvidos em litígio possam chegar a um acordo, tem a intenção de desenvolver autonomia e determinação da comunidade; promover inclusão; reconhecer e legitimar a identidade da comunidade. Ficou alguma dúvida? Construímos uma trilha de aprendizagem pensando em facilitar sua compreensão. Acesse o QR Code, que levará ao AVA, e veja as novidades que preparamos para seu estudo. CHAMADA 173 1 Avalie as asserções a seguir: I- A mediação comunitária identifica o indivíduo enquanto protagonista na gestão de seus conflitos, POR QUE II- O indivíduo tem a capacidade para solucionar seus problemas, sejam esses conflitos de origem pessoal e/ ou comunitária. Assinale a alternativa CORRETA. a) ( ) As asserções I e II são proposições verdadeiras, e a II é uma justificativa da I. b) ( ) As asserções I e II são proposições verdadeiras, mas a II não é uma justificativa da I. c) ( ) A asserção I é uma proposição verdadeira, e a II é uma proposição falsa. d) ( ) A asserção I é uma proposição falsa, e a II é uma proposição verdadeira. e) ( ) As asserções I e II são proposições falsas. 2 Há alguns requisitos para as pessoas que deverão compor a equipe de mediação de conflitos comunitários. Com relação a esses requisitos, analise as sentenças a seguir: I- Ser integrante da própria comunidade, ser escolhido por ela ou se voluntariar. II- Ter reconhecimento comunitário. III- Passar em concurso próprio para a função. IV- Ter curso de formação profissional para a função. Assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) As sentenças I e II estão corretas. b) ( ) As sentenças I, II, III e IV estão corretas. c) ( ) As sentenças I, II e V estão corretas. d) ( ) Todas as sentenças estão corretas. 3 Considerando os elementos que compõem o espaço adequado para a mediação comunitária, assinale a afirmação CORRETA: a) ( ) Devem contar com infraestrutura para sediar as mediações: cadeiras apropriadas, mesa redonda, computadores, sala de recepção com água e, se possível, café. Não deve ser um equipamento próprio. b) ( ) O espaço adequado para a mediação comunitária pode ser criado aproveitando a estrutura de uma instituição pública, de organizações da sociedade civil ou outro espaço existente na própria comunidade. AUTOATIVIDADE 174 175 REFERÊNCIAS ALMEIDA, T. Mediação de conflitos para iniciantes, praticantes e docentes. Salvador: Juspodium, 2019. ALMEIDA, T. Caixa de ferramentas na mediação: aportes práticos e teóricos. São Paulo: Dash, 2013. ANTON, I. L. C. A Escolha do cônjuge: um entendimento sistêmico. Porto Alegre: Artmed, 1998. ARENDT, H. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. AUN, J. G.; MALDONADO, M. T.; COELHO, S. V. Atendimento sistêmico de famílias e redes sociais. Belo Horizonte: Ophicina da Arte & Prosa, 2007. AVRITZER, L. Impasses da democracia no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016. BATTAGLIA, M. do C. L. Mediação escolar: uma metodologia de aprendizado em administração de conflitos. 2003. 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Direitos esses que vão se expandindo na medida em que determinada fatia da sociedade tem força e legitimidade para acessar a eles [...] (COUTO, 2006, p. 37). UNIDADE 1 — PARTICIPAÇÃO SOCIAL, CIDADANIA, AUTONOMIA, RELAÇÕES DE CONFLITO E COMUNICAÇÃO ASSERTIVA 6 Os direitos civis foram consolidados no século XVIII, e estão diretamente relacionados às liberdades individuais, tais como liberdade de expressão, de pensamento, de imprensa e de fé, direito de ir e vir, de associação e reunião, à propriedade privada e ao trabalho. Em outras palavras, o direito à justiça. No seguimento, foram consolidados os direitos políticos que garantem a participação social no poder político comunitário. Esse grupo de direitos permite ao cidadão votar e ser votado, direito à associação e organização. Esses direitos passaram a cobrir uma quantidade crescente de membros da comunidade cívica. Quanto à consolidação dos direitos sociais, estes se dão pelo reconhecimento de que as desigualdades sociais são gestadas no capitalismo. A concretização dos direitos sociais é responsabilidade do Estado, eles são fundamentados pelo ideal de igualdade e expressam o direito à educação, à saúde, ao trabalho, à assistência e à previdência. No intuito de aprofundamento teórico sobre o tema “direitos sociais”, é necessário considerar que são fundamentais para viabilizar vida digna para a população. São eles que “[...] permitem aos cidadãos uma participação mínima na riqueza material e espiritual criada pela coletividade” (BOBBIO, 2004, p. 19). Nos períodos de maior autoritarismo vivenciados no Brasil, foram os movimentos sociais que se apresentaram resistentes, com destaque para o período da Ditadura Civil-Militar, de 1964 a 1985. Nesse período, a participação e ampliação da democracia foram interrompidas. Os anos de 1980 foram marcados pela ampliação das mobilizações sociais. A promulgação da Constituição, em 1988, representou uma conquista para o fortalecimento dos direitos sociais e da democracia. Dessa forma, qualquer alusão à participação social pressupõe compreender ampliação de relações de solidariedade e atenção às necessidades dos outros. Entretanto, não se pode esperar mudanças societárias apenas com a participação no plano micro, mas é a partir dele que se instauram processos de mudança (GOHN, 2005). Pequenas ações de resistência podem impactar nas determinações estruturais que têm impacto direto na vida cotidiana. 2.2 ONDE A PARTICIPAÇÃO PRECISA SER FOMENTADA A palavra participação é recorrente nas falas de diferentes grupos e parece ser a palavra de ordem dos dias atuais. Entretanto, quando se olha para o cotidiano, é possível perceber que a participação não depende unicamente do desejo e disposição pessoal, ela pode estar relacionada à estrutura conjuntural que determina quem e como participa. TÓPICO 1 — PARTICIPAÇÃO SOCIAL, CIDADANIA E AUTONOMIA 7 Mafalda foi uma tira escrita e desenhada pelo cartunista argentino Quino. As histórias, que apresentam uma menina (Mafalda) preocupada com a humanidade e a paz mundial, e que se rebela com o estado atual do mundo, apareceram de 1964 a 1973, usufruindo de uma altíssima popularidade na América Latina e Europa. DICAS FIGURA – MAFALDA FONTE: . Acesso em: 6 jan. 2019. Nas atividades humanas e sociais, segundo Guareschi in Silveira (2008), participar pode significar atitudes diferentes para diferentes pessoas. Também é possível identificar tipos prioritários de participação: participação no planejamento, participação na execução e participação nos resultados. Quanto à participação na execução, Guareschi in Silveira (2008) afirma que o povo brasileiro executa muito, trabalha muito. Diferentemente do que é divulgado e parece fazer parte das representações sociais, pode ser possível indicar, com alguma certeza, que é um dos povos que fica envolvido com trabalho por mais horas, se comparado a outros países. Quanto à participação nos resultados, ela é extremamente desigual no Brasil. O brasileiro é o povo com pior distribuição de renda do mundo e, dessa forma, participa muito pouco dos resultados. Resta discutir a participação no planejamento, sendo ela que decide quem faz e quem fica com os resultados. Quanto à participação nos resultados, na realidade brasileira, a maioria das pessoas é excluída. Mesmo que através do voto sejam eleitos os representantes do povo e, através da democracia participativa, os eleitos passem a decidir pelo povo, essas são práticas muito precarizadas e não se pode concluir que haja participação no planejamento. Qualquer alteração na perspectiva de participação nos resultados não se dá sem embates efetivos no campo da gestão, que é o espaço onde se decidem prioridades políticas. É necessária, e mesmo imprescindível, a participação da sociedade civil nessa disputa. https://pt.wikipedia.org/wiki/Argentina https://pt.wikipedia.org/wiki/Quino https://pt.wikipedia.org/wiki/Humanidade https://pt.wikipedia.org/wiki/1964 https://pt.wikipedia.org/wiki/1973 https://pt.wikipedia.org/wiki/Am%C3%A9rica_Latina https://pt.wikipedia.org/wiki/Europa UNIDADE 1 — PARTICIPAÇÃO SOCIAL, CIDADANIA, AUTONOMIA, RELAÇÕES DE CONFLITO E COMUNICAÇÃO ASSERTIVA 8 A importância da participação da sociedade civil se faz nesse contexto não apenas para ocupar espaços antes dominados por representantes de interesses econômicos encravados no Estado e seus aparelhos. A importância se faz para democratizar a gestão da coisa pública, para inverter as prioridades das administrações no sentido de políticas que atendam não apenas às questões emergenciais, a partir do espólio de recursos miseráveis destinados às áreas sociais (GOHN, 2005, p. 78). É necessário, no entanto, ressaltar que a participação não tem um fim nela própria, isto é, a participação não se esgota em si. Assim, o ato de participar adquire sentido quando está vinculado à construção de um projeto de sociedade. Atente para a importância da Participação Social e o que pode decorrer dela nos espaços comunitários: • As decisões do governo ficam mais próximas dos desejos e necessidades da população. • O controle da população sobre as ações do governo aumenta, colaborando com a fiscalização sobre o uso dos recursos públicos e as decisões das políticas do Estado. • Abre-se espaço para negros, mulheres, população de rua e outros grupos vulneráveis que historicamente estiveram afastados dos processos decisórios. • Evita-se que somente aqueles que possuem canais privilegiados de acesso incidam sobre os tomadores de decisão. FONTE: Adaptado de . Acesso em: 3 dez. 2019. ATENCAO 2.3 ESPAÇOS DE PARTICIPAÇÃO SOCIAL A participação social faz parte do cotidiano dos cidadãos que, de uma maneira ou de outra, sentem a necessidade de unir forças na busca de objetivos que dificilmente seriam alcançados caso fossem perseguidos de maneira isolada. No Brasil, ela pode se apresentar a partir de importantes vertentes: a participação institucionalizada e a não institucionalizada (AVRITZER, 2016). A primeira diz respeito à atuação de entidades e órgãos, como categorias sindicais, conselhos (saúde, educação, assistência social, entre outros), conferências e assembleias nos orçamentos participativos.Espanha, n. 2001, p. 12-14, 1992. SAES, D. A república do capital: capitalismo e processo político no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2001. SALES, L. M. de M. Mediare: um guia prático para mediadores. Rio de Janeiro: GZ, 2010. SALES, L. M. de M. Mediação de conflitos: família, escola e comunidade. Florianópolis: Conceito Editorial, 2007. 181 SALES, L. M. de M. Justiça e mediação de conflitos. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. SAMPAIO, L. R. C.; BRAGA NETO, A. O que é mediação de conflitos. São Paulo: Brasiliense, 2007. SANTOS, R. G. 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Numa cidade como Porto Alegre, onde essa prática já possui uma dezena de anos, dentre os 700 mil votantes, 200 mil chegam a participar diretamente nas decisões do orçamento. Ano a ano ele discutem e rediscutem sua vida, suas práticas e tomam decisões (SILVEIRA et al., 2020). NOTA A participação social pode ser reconhecida nas diferentes instâncias de poder: Legislativo, Judiciário e Executivo. No Legislativo, os cidadãos podem participar por meio do voto. Votar significa eleger representantes e confiar que eles atuarão na perspectiva de luta pelos direitos. No poder Judiciário, ela pode ocorrer na convocação para participação em júri popular, participando no julgamento de crimes dolosos contra a vida. Já a participação popular no poder Executivo pode ocorrer através dos conselhos e comitês gestores de políticas públicas, sendo que grande parte das políticas e programas implementados pelo Governo têm como exigência o controle social, tanto para garantir sua gestão quanto o acesso das pessoas para as quais os programas existem. 2.4 MARCOS NORMATIVOS REFERENTES À PARTICIPAÇÃO SOCIAL Buscar respaldo no aparato legal pode ajudar a compreender o esforço empreendido para que a população tenha possibilidades reais de participar. Jardim (2017, p. 98) apresenta uma retrospectiva histórica da Política de Assistência Social quanto ao fomento à participação. Ele destaca que “no Artigo 5º da NOB/ SUAS (2012) constam como diretrizes estruturantes da gestão o fortalecimento da relação democrática entre Estado e sociedade civil, o controle social e participação popular”. Já no Art. 3º do documento é mencionado que “as organizações de usuários são sujeitos coletivos, que expressam diversas formas de organização e de participação caracterizadas pelo protagonismo do usuário”. Nesse mesmo documento, segundo discussão de Jardim (2017, p. 100), há a apresentação da normativa que estabelece: Instâncias de mobilização e organização dos usuários para a sua participação na política, que também, consecutivamente, qualificarão a sua participação institucionalizada nas instâncias deliberativas do controle social, como os conselhos e as conferências de assistência social. UNIDADE 1 — PARTICIPAÇÃO SOCIAL, CIDADANIA, AUTONOMIA, RELAÇÕES DE CONFLITO E COMUNICAÇÃO ASSERTIVA 10 A autora apresenta registro das instâncias de organização previstas na Resolução. Segundo Jardim (2017), mesmo que sejam previsões ou algo idealizado, não significa que não devam ser perseguidas para sua efetivação. O controle social só será efetivo se for precedido de movimentos anteriores que ainda precisam ser fomentados. Organizações Caracterização Coletivos de usuários Organizam usuários tendo como referência os serviços, programas, projetos, benefícios e transferência de renda no âmbito da Política Pública de Assistência Social, com o intuito de mobilizá-los a reivindicar ações e/ou intervenções institucionais e pautar o direito socioassistencial. Associações de usuários São organizações legalmente constituídas, que têm os usuários em sua direção e que preveem, em seu estatuto, os objetivos de defesa e de garantia dos direitos de indivíduos e coletivos usuários do SUAS. Fóruns de usuários Tratam-se de organizações de usuários que têm como principal função a sua mobilização, elencando e debatendo as demandas e necessidades dos usuários, bem como temas relevantes como a articulação de políticas de atendimento que atravessam os diversos tipos de vulnerabilidade social, a integração entre serviços e benefícios, a qualidade do atendimento e a qualidade da infraestrutura disponível nos equipamentos do SUAS, dentre outros. Conselhos locais de Usuários Instituídos nos equipamentos públicos da Política de Assistência Social com o intuito de mobilização e discussão de temas relevantes relacionados ao território de vivência e de interesse imediato das famílias e coletivos, para encaminhamento ao poder público local. Rede Articulação de movimentos, associações, organizações, coletivos, dentre outras formas de organizações de usuários e usuárias para a defesa e a garantia de seus direitos. Comissões ou associações comunitárias ou de moradores Organizadas em base territorial, têm o intuito de promover esclarecimento, informação e formação da comunidade no âmbito da Assistência Social, desenvolvendo projetos comunitários relacionados à política de assistência social. QUADRO 1 – ORGANIZAÇÕES DE USUÁRIOS PREVISTAS PELA POLÍTICA PÚBLICA DE ASSIS- TÊNCIA SOCIAL FONTE: Jardim (2016, p. 98) TÓPICO 1 — PARTICIPAÇÃO SOCIAL, CIDADANIA E AUTONOMIA 11 Mesmo que o tema desta unidade não seja a Política de Assistência Social (e, no caso do registro das instâncias, mais propriamente a Proteção Básica), a apresentação quer demonstrar possibilidades de espaços de participação e protagonismo. Para aprofundar essa temática, sugerimos que assistam ao documentário PALMAS, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=yuXbEPQUbD8. DICAS 3 CIDADANIA: ENTENDIMENTO CONCEITUAL Cidadania e participação social são conceitos que se inter-relacionam e dizem respeito à apropriação pelos indivíduos do direito de construção democrática de seus destinos. Dessa colocação advém a ideia de que a democracia é uma das principais ferramentas para o acesso à cidadania, visto que ela pressupõe participação intensa dos cidadãos no processo de sua construção. Para Magalhães Filho (2002, p. 114): Estado Democrático de Direito é aquele que se estrutura através de uma democracia representativa, participativa e pluralista, bem como o que garante a realização prática dos direitos fundamentais, inclusive dos direitos sociais, através de instrumentos apropriados conferidos aos cidadãos, sempre tendo em vista a dignidade humana. Não iremos aprofundar a discussão sobre cidadania, visto que o Livro Didático Direitos humanos e cidadania apresenta um material muito rico em informações sobre o tema. Neste livro trabalhamos a relação entre cidadania e participação social. FONTE: PEIRITZ, V. L. H.; BONETTI, J. C. S.; FRANZMANN, N. M. Direitos humanos e cidadania. Indaial: UNIASSELVI, 2016. DICAS UNIDADE 1 — PARTICIPAÇÃO SOCIAL, CIDADANIA, AUTONOMIA, RELAÇÕES DE CONFLITO E COMUNICAÇÃO ASSERTIVA 12 O termo cidadania pode ser problematizado a partir de uma visita aos antigos gregos. Na busca da compreensão das práticas desse povo é possível identificar o que pode ser chamado de verdadeira cidadania. As discussões sobre o destino das suas cidades eram realizadas em praça pública. Não bastava sentar- se na praça para ser considerado cidadão, era necessário que se falasse. Alguém era considerado cidadão somente no momento em que desse sua opinião, expressasse seus desejos, planejasse a construção da cidade. Qualquer discussão sobre cidadania precisa contemplar a discussão de Marshall (1967) em seu famoso livro publicado originalmente em 1950, Citizenship and Social Class, para quem cidadania é um status adquirido por toda e qualquer pessoa que tem participação integral na comunidade ou na sociedade à qual pertence, e de onde advém um código de direitos e deveres a serem seguidos por todos. A cidadania, nessa perspectiva, tem relação com um conjunto de direitos civis, políticose sociais que podem ser reivindicados pela população: • Cidadania civil, os direitos de liberdade da pessoa que tiveram um desenvolvimento significativo no século XVIII. • Cidadania política, ou os direitos de participar na vida política, conquistados pelas classes trabalhadoras no curso da luta pela igualdade política no século XIX. • Cidadania social, que consiste no reconhecimento e ampliação, durante o século XX, de uma série de direitos sociais em períodos de desemprego e de doença, para permitir às pessoas participarem do bem-estar econômico e social da comunidade. Cidadania, nessa perspectiva, atende ao que é preconizado por Hannah Arendt (2010), quando diz que o ser “cidadão” implica em ser membro de uma comunidade. É o direito a ter direitos, que pressupõe igualdade, liberdade e a própria existência e dignidade humana. Coutinho (2008, p. 50-51) define cidadania como: [...] capacidade conquistada por alguns indivíduos, ou (no caso de uma democracia efetiva) por todos os indivíduos, de se apropriarem dos bens socialmente criados, de atualizarem todas as potencialidades de realização humana abertas pela vida social em cada contexto, historicamente determinado. Essa conceituação introduz a ideia de construção, visto que, para o autor, a cidadania não é algo dado aos indivíduos permanentemente, não é algo que vem de cima para baixo, mas é uma conquista, resultado de um processo histórico de longa duração, uma luta firme e constante, travada quase sempre a partir de baixo, das classes subalternas. Dessa forma, é importante insistir que, em sua plenitude, a cidadania só se consolida na presença da participação social, entendida, como já foi apresentado, como ação coletiva, consciente e voluntária. Convém assinalar que a falta de uma cultura de participação, aliada à lógica individualista e competitiva instauradas, muitas vezes é obstáculo a uma participação mais efetiva na vida comunitária. TÓPICO 1 — PARTICIPAÇÃO SOCIAL, CIDADANIA E AUTONOMIA 13 Esta segunda forma de pensar a cidadania promove, então, um modelo de participação ativa dos cidadãos nas instituições e nos serviços públicos. Para Coutinho (2008), essa forma de conceituar cidadania vai além da reivindicação dos direitos já consagrados na constituição. Trata-se da cidadania ativa, uma importante dimensão da política social. A relação entre cidadania e democracia aparece na noção apresentada por Marilena Chauí (1984), para quem cidadania deve ser compreendida pelos princípios da democracia, o que significa conquista e consolidação social e política. Para ela a cidadania exige instituições, mediações e comportamentos próprios, constituindo-se na criação de espaços sociais de lutas (movimentos sociais, sindicais e populares) e na definição de instituições permanentes para a expressão política, como partidos, legislação e órgãos do poder público. NOTA Não se trata de cidadania passiva, mas sim cidadania ativa, aquela que designa o cidadão como alguém que tem direitos e deveres, mas prioritariamente alguém com condições de criar direitos para abrir novos espaços de participação política. A autora, ao defender a cidadania ativa, fala da importância de ampliação dos direitos políticos para que o cidadão possa ampliar a participação no processo das decisões de interesse público. Cidadania, nessa perspectiva, introduz a ideia de participação da população em uma comunidade política, gerando pertencimento social. Isso pressupõe a internalização de normas partilhadas, cujas diferenças podem ser superadas por meio de discussões públicas e respeito às leis, fundamentadas na ideia de bem comum. 3.1 CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA NO BRASIL Falar em construção diz respeito ao processo histórico, o que significa falar da dinamicidade da vida, algo que não está finalizado, que existe um devir a ser considerado. No Brasil, a prática da cidadania ainda não se concretizou, muito provavelmente devido aos problemas socioeconômicos que ainda perduram no contexto do país, mesmo considerando o advento da Constituição de 1988, que privilegia os direitos fundamentais e a dignidade humana. A conquista do direito de ser cidadão ainda sofre influências dos tempos da colonização. A primeira grande conquista de cidadania, mesmo considerando todas as inverdades relacionadas a esse feito, foi a abolição da escravatura, UNIDADE 1 — PARTICIPAÇÃO SOCIAL, CIDADANIA, AUTONOMIA, RELAÇÕES DE CONFLITO E COMUNICAÇÃO ASSERTIVA 14 que, para Carvalho (2008), foi um fato mais formal que real, considerando que aos libertos não foram oportunizadas possibilidades de participação quanto a emprego, educação e terras. O autor enfatiza que um número considerável voltou para as fazendas e muitos outros se juntaram à já existente população desempregada. Outro pequeno avanço rumo à cidadania no Brasil a ser considerado, é o movimento operário, que se iniciou em 1917, perdendo força por causa das sucessivas repressões sofridas e das deportações de estrangeiros. Em 1930, pode ser identificada nova força quando o movimento operário luta para ter reconhecidos seus direitos sociais, através da busca pela criação de legislação específica trabalhista, como regulamentação de horários, descanso e férias. As carências no plano da cidadania na história brasileira são muitas. Saes (2001) apresenta uma lista, que pode ajudar a entender essas carências em termos de cidadania política: • ausência do voto feminino, do voto secreto e de uma Justiça Eleitoral de cunho burocrático e profissional, até o Código Eleitoral de 1932 e a Constituição Federal de 1934; • limitação prática do exercício do direito de voto durante toda a Primeira República, por obra da submissão da maioria do eleitorado a práticas coronelísticas; • crescimento constante, desde a redemocratização do Regime Político em 1945, do clientelismo urbano, como instrumento de deformação das vontades no plano eleitoral; • supressão total (no caso do Estado Novo) ou quase total (no caso do Regime Militar) dos direitos políticos etc. Várias idas e vindas marcaram a construção da cidadania no Brasil. Atualmente, essa se dá de maneira heterogênea porque, quando se garante os direitos políticos, os diretos civis e sociais são ignorados ou fragmentados e, assim, intercalam-se na posição que ocupam, deixando sempre uma lacuna na garantia plena da cidadania, porque a democracia se faz através da garantia de todos os direitos e não somente de um em detrimento do outro. Com o surgimento do pensamento dos novos liberais, os mais otimistas pensariam que haveria uma mudança mais efetiva na visão de cidadania. Então foi a vez da população que, não compreendendo o sentido real da democracia, reivindicou uma cidadania coronelista, que dizia mais respeito ao direito de ser livre pelo poder econômico e ao direito de consumir do que à consciência de serem igualmente merecedores desses direitos (CARVALHO, 2008). Romper com esse pensamento individualista a respeito da cidadania e promover conhecimento emancipatório é sair do senso comum para uma apropriação coletiva na garantia da cidadania. A participação deve ser a mola propulsora da democracia. Isso é importante quando se fala na noção de cidadania TÓPICO 1 — PARTICIPAÇÃO SOCIAL, CIDADANIA E AUTONOMIA 15 no Brasil, pois pode ser reconhecida uma certa ambiguidade, tanto na vertente mais progressista, quanto na conservadora. Posições de “direita” e “esquerda” estão, assim, na pauta da discussão. Para a esquerda, segundo Benevides (1994), muitas vezes, cidadania é apenas aparência de democracia, pois discrimina cidadãos de primeira, segunda, terceira ou nenhuma classe, acabando por reforçar adesigualdade. Para a direita, a cidadania torna-se indesejável e até ameaçadora, pois a elite depende do oposto do controle público para a manutenção dos seus privilégios. A elite tem a tendência de considerar a desigualdade legítima e os excluídos uma classe de perigosos. Essa discussão parte do pressuposto que no Brasil as reformas sociais nunca visaram à cidadania democrática. Foram realizadas reformas institucionais, econômicas e sociais. Entretanto não foi alterado o acesso à justiça, segurança, distribuição de renda e tantas outras que efetivamente viabilizassem inclusão social, deixando de pensar em direitos só para alguns que vivem sob determinadas condições. É importante enfatizar que, na teoria constitucional moderna, cidadão é o indivíduo que tem um vínculo jurídico com o Estado. Esse cidadão é portador de direitos e deveres anteriormente definidos por um marco legal, que lhe confere um senso de pertencimento social, através da nacionalidade. Os cidadãos brasileiros são, em tese, livres e iguais perante a lei, entretanto uma pergunta parece crucial: até que ponto, em uma sociedade marcada pela desigualdade e desequilíbrios é possível pensar em cidadania e fazê-la funcionar de forma ativa? Até que ponto é possível vincular participação popular/cidadania e consolidação da democracia? É claro que essa questão não tem resposta pronta e acabada. Entretanto é possível entender a participação popular como uma forma de aprendizado para a cidadania. Isso implica em superar a argumentação amplamente divulgada de que o povo brasileiro é apático e despreparado e, dessa forma, incapaz de participar de decisões que lhe dizem respeito. Torna-se, assim, impreterível reconhecer que a cidadania emancipa o sujeito e o torna autônomo para participar de mudanças societárias, para promover a democracia, que se entende por um sistema político exercido majoritariamente e não imposto pela minoria sobre a maioria. Essa forma de entender a participação popular do brasileiro nos convida à discussão da categoria autonomia. É sobre isso que versa o próximo item. UNIDADE 1 — PARTICIPAÇÃO SOCIAL, CIDADANIA, AUTONOMIA, RELAÇÕES DE CONFLITO E COMUNICAÇÃO ASSERTIVA 16 4 AUTONOMIA: COMPREENSÃO CONCEITUAL E CONTEXTUAL Em uma perspectiva etimológica, o termo “autonomia” é formado pelas palavras gregas: autós – que significa “por si mesmo” – e nomos, que é traduzida por “lei”. Assim, autonomia é a capacidade de autodeterminação (BLACKBURN, 1997). Entretanto, conforme Zatti (2007), essa capacidade não pode ser entendida como absoluta, tampouco como sinônimo de autossuficiência. Autonomia diz respeito à capacidade de dar a si a própria lei ou a faculdade ou competência de realizar algo. O primeiro aspecto vincula-se à liberdade, fantasia, imaginação e decisão. Já o segundo, relaciona-se ao poder ou à capacidade de fazer (ZATTI, 2007). A autonomia, para o autor, passa a ser real quando as duas categorias, liberdade e poder, estão presentes. Agir com autonomia, no sentido apresentado, consiste em ter capacidade de eleger opções sobre o que fazer e sobre como fazer. Um agente é autônomo quando suas ações são verdadeiramente suas (BLACKBURN, 1997). Não é só ser livre para agir, mas, acima de tudo, ser capaz de eleger objetivos e crenças, poder valorá-los e sentir-se responsável pelas escolhas. Pereira (2002) relaciona autonomia com cidadania, ao referir que a primeira é uma necessidade básica fundamental para o exercício da cidadania. Nessa perspectiva, autonomia é entendida como “a capacidade do indivíduo de eleger objetivos e crenças, de valorá-los com discernimento e de pô-los em prática sem opressões” (PEREIRA, 2002 p. 70). O desenvolvimento da autonomia vai implicar a apropriação que o sujeito tem da sua própria força no contexto em que as necessidades e as possibilidades se inscrevem, articulando as três variáveis em um processo de negação da tutela e da subalternidade, decidindo sobre seu próprio destino. A perspectiva ampla, referida no início desta unidade, diz respeito às condições socio-históricas em que a maior parte da população brasileira vive. Essa realidade condiciona o sujeito a uma situação que o impossibilita de construir-se integralmente, seja em aspectos éticos, políticos, estéticos ou culturais. Essas são marcas que se opõem à possibilidade de autonomia, considerando que, segundo Zatti (2007, p. 9-10), “a autonomia engloba tanto a liberdade de dar a si os próprios princípios, quanto à capacidade de realizar os próprios projetos”. A concepção de autonomia está atrelada à concepção de cidadão enquanto sujeito que dá razão e sentido a sua existência e que, vivendo em sociedade, é verdadeiramente parte dela, por produzir ação no contexto onde vive. Guzzo (2002, p. 109) afirma que “autonomia conduz diretamente à cidadania. Autônomo não é o indivíduo isolado: autônomo é o sujeito ativo, sujeito da práxis. Ao lutarmos por autonomia, o fazemos porque a desejamos para todos”. TÓPICO 1 — PARTICIPAÇÃO SOCIAL, CIDADANIA E AUTONOMIA 17 Dessa forma, autonomia é compreendida como a capacidade de um sujeito para realizar escolhas, questionamentos, decisão e ações na vida privada e atuar na esfera pública condizente com valores socioculturais e normas coletivas. Essa noção de autonomia atende ao que é preconizado por Freire. Segundo o pensador brasileiro, a autonomia propicia ao ser humano a libertação do determinismo neoliberal, assumindo que a história é um tempo de possibilidades. Ainda, conforme a prática freireana, “uma tarefa fundamental no ato de educar seria fundamentalmente a autonomia do direito pessoal na construção de uma sociedade democrática que a todos respeita e dignifica” (MACHADO, 2009, p. 56). 4.1 CONSTITUIÇÃO DE UM SUJEITO AUTÔNOMO A prerrogativa inicial para o desenvolvimento da autonomia é a possibilidade do sujeito se encontrar livre de qualquer jugo imposto por outros indivíduos ou instituições. Somente dessa forma ele pode viver livre de opressão. Para Pereira (2002), que identifica a autonomia como necessidade básica fundamental para o exercício da cidadania, é necessário considerar três níveis de autonomia individual, que interferem diretamente na possibilidade ou não do exercício da cidadania: a saúde mental do sujeito, entendida como capacidade de definir prioridades para a sua vida; a possibilidade de se reconhecer no processo de construção de sua identidade e subjetividade; a capacidade de se apropriar das próprias possibilidades e das impossibilidades de participação na sociedade. Um segundo nível, descrito pela autora, diz respeito à habilidade cognitiva do sujeito, que representa o grau de compreensão que ele tem de si mesmo e de sua cultura, sua capacidade de definir prioridades para si e as suas oportunidades objetivas de ação. Por último, a oportunidade de participação que possibilita o acesso aos meios objetivos para exercer papéis sociais significativos na sua vida social e cultural. Na ausência de qualquer uma dessas categorias, ocorrerão sérias restrições à autonomia pessoal, as quais podem ser causadas por diferentes fatores, que vão desde regras culturais (exclusão de minorias de certos papéis), circunstâncias econômicas (desempregos ou pobreza), até sobrecargas de demandas conflitivas (dupla jornada de trabalho da mulher) (DOYAL; GOUCH, 1991 apud PEREIRA, 2002, p. 72). Portanto, o desenvolvimento da autonomia vai implicar, em um primeiro momento, a apropriação da força do sujeito no contexto em que as necessidades e as possibilidades se inscrevem, articulando as três variáveis em um processo de negação da tutela e da subalternidade, decidindo sobre seu próprio destino. UNIDADE 1 — PARTICIPAÇÃO SOCIAL, CIDADANIA, AUTONOMIA, RELAÇÕES DE CONFLITO E COMUNICAÇÃO ASSERTIVA 18 Na busca de identificar fatoresque podem interferir na autonomização do sujeito, Couto (2006, p. 40) refere que há dois tipos de liberdade que interferem na autonomia. A primeira é a liberdade positiva, que possui o sentido ideal de que as práticas humanas seriam guiadas pela razão em prol das necessidades comunitárias, objetivando a autorrealização e emancipação do homem enquanto início, meio e fim de seus atos. Outra forma é a concepção negativa da liberdade, que diz respeito somente às escolhas individuais e pode ser entendida como independência, o que faz com que o sujeito ignore as necessidades coletivas em detrimento das suas vontades. O que está em jogo nessa discussão é a relação a práticas que buscam o bem comum e práticas centradas no desenvolvimento individual. Para Faleiros (2010), a autonomia é a base mais sólida na promoção da cidadania. Visto que um cidadão sem autonomia é um cidadão sem identidade, que não se conhece e reconhece como sujeito de direito e, por isso, não exerce seus papéis sociais, deixando essa outorga à mercê do Estado. Para compreender o porquê da despersonalização na identidade autônoma, é necessário percorrer o caminho inverso na construção da cidadania. Assim, podemos definir cidadania como um processo de emancipação do homem, que o tornará livre, capaz de se organizar e se reorganizar, e de exercer plenamente o seu direito democrático de cidadão. A práxis cidadã não ocorre sem que sejam expostas diferenças individuais ou coletivas, de diferentes ordens, sejam elas culturais, políticas ou religiosas. Como consequência, surgem conflitos que, mesmo fazendo parte da natureza humana, posto que cada indivíduo possui características únicas e pensamentos diversos, tendem a tensionar relacionamentos. A grande questão que será discutida na Unidade 2 é como entender e lidar com esses conflitos através de caminhos que privilegiem a construção de processos democráticos conscientes. 19 Neste tópico, você aprendeu que: • A participação social faz parte do cotidiano dos cidadãos que, de uma maneira ou de outra, sentem a necessidade de unir forças na busca de objetivos que dificilmente seriam alcançados caso fossem perseguidos de maneira isolada. • No Brasil a participação pode se apresentar a partir de importantes vertentes: a participação institucionalizada e a não institucionalizada. A primeira diz respeito à atuação de entidades e órgãos, como categorias sindicais, conselhos (saúde, educação, assistência social, entre outros), conferências e assembleias nos orçamentos participativos. A segunda compreende a participação não institucionalizada e se manifesta através de movimentos sociais, sem a categorização como entidade ou órgão. • O ato de participar adquire sentido quando está vinculado à construção de um projeto de sociedade. • A Constituição Federal de 1988 é o marco da legalidade da questão social, um avanço na gestão das cidades, uma nova forma que na teoria exibe que o poder de decisão não mais se restringe a pequenos grupos com poder econômico e político, mas também à sociedade civil. • A democracia é uma das principais ferramentas para o acesso à cidadania, visto que ela pressupõe participação intensa dos cidadãos no processo de sua construção. • Qualquer discussão sobre cidadania precisa contemplar a discussão de Marshall (1967) em seu famoso livro publicado originalmente em 1950, Citizenship and Social Class, para quem cidadania é um status adquirido por toda e qualquer pessoa que tem participação integral na comunidade, ou da sociedade à qual pertence, e de onde advém um código de direitos e deveres a serem seguidos por todos. A cidadania, nessa perspectiva, tem relação com um conjunto de direitos civis, políticos e sociais que podem ser reivindicados pela população. • A autonomia é entendida como a capacidade do indivíduo de eleger objetivos e crenças, de valorá-los com discernimento e de pô-los em prática sem opressões. • O desenvolvimento da autonomia vai implicar a apropriação que o sujeito tem da sua própria força no contexto em que as necessidades e as possibilidades se inscrevem, em um processo de negação da tutela e da subalternidade, quando ele decide sobre seu próprio destino. RESUMO DO TÓPICO 1 20 • A autonomia é a base mais sólida na promoção da cidadania, visto que um cidadão sem autonomia é um cidadão sem identidade, que não se conhece e reconhece como sujeito de direito e, por isso, não exerce seus papéis sociais, deixando essa outorga à mercê do Estado. 21 1 O conhecimento sobre cidadania precisa contemplar a discussão de Marshall (CITIZENSHIP AND SOCIAL CLASS, 1950), para quem cidadania tem relação com um conjunto de direitos civis, políticos e sociais que podem ser reivindicados pela população. Baseado na concepção de Marshall, assinale a alternativa INCORRETA: Baseado na concepção de Marshall, assinale a alternativa incorreta: a) ( ) Cidadania civil diz respeito aos direitos de liberdade da pessoa. b) ( ) Cidadania política consiste na possibilidade de as pessoas participarem do bem-estar econômico da comunidade. c) ( ) Cidadania social diz respeito ao reconhecimento e ampliação de direitos relacionados a empregabilidade, saúde, entre outros. d) ( ) Cidadania política está relacionada aos direitos de participar na vida política. e) ( ) Os direitos sociais tiverem reconhecimento e ampliação durante o século XX. AUTOATIVIDADE 22 23 TÓPICO 2 — UNIDADE 1 RELAÇÕES DE CONFLITO 1 INTRODUÇÃO Desde que o Homo sapiens percebeu que viver em comunidade poderia ajudar a garantir a sua sobrevivência e, consequentemente, a perpetuação da espécie, ele se tornou um ser social. Uma vez que não possuía garras ou dentes afiados, não era veloz, nem possuía veneno ou uma couraça capaz de protegê-lo das ameaças de um mundo inóspito e selvagem, viver em comunidade trouxe muitas vantagens, tais como o desenvolvimento da linguagem, da comunicação e da criação coletiva. Se por um lado viver em grupo formando comunidades trouxe benefícios, por outro, incluiu a convivência e as relações entre indivíduos possuidores de visões de mundo muito diversas. Viver em comunidade sempre representou desafios, pois cada indivíduo é possuidor de valores, opiniões e interesses próprios e distintos, que precisam ser negociados com o outro o tempo inteiro, para que assim seja possível viabilizar a participação social em uma lógica autônoma e cidadã. Por isso, a necessidade de uma comunicação eficaz é imprescindível. Atualmente, a vida acontece em um mundo globalizado, onde muitos problemas enfrentados têm a ver com a convivência entre as pessoas. As ameaças enfrentadas hoje já não são as mesmas da Pré-História. Hoje a vida se dá em comunidades cada vez mais ampliadas, a comunicação se tornou muito mais rápida e os conflitos acontecem cotidianamente. Apesar de ser capaz de resolver muitas questões do dia a dia de maneira satisfatória, o ser humano pode e deve abrir espaço para pensar e desenvolver habilidades que possibilitem a resolução de conflitos de modos mais eficazes. Este tópico tem como objetivo apresentar possibilidades de transformação de conflitos potencialmente destrutivos em oportunidades de geração de opções e soluções mais satisfatórias para os agentes envolvidos. 2 MODERNA TEORIA DO CONFLITO O ser humano é essencialmente social, está o tempo todo se relacionando e interagindo com o outro. Essa interação, de modo geral, produz desconforto quando não está claro o que o outro quer, pensa, sente ou deseja, isto é, o ser humano lida com muitos aspectos desconhecidos em relação aos seus pares, apenas baseando-se em suposições. 24 UNIDADE 1 — PARTICIPAÇÃO SOCIAL, CIDADANIA, AUTONOMIA, RELAÇÕES DE CONFLITO E COMUNICAÇÃO ASSERTIVA A visão de mundo do outro é incerta e,