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510 Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013 RESENHAS Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 511-523. SALLES, Catherine. Nos submundos da antiguidade. 3.ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.1 Francisco Fabrício Pereira da Silva2 Catherine Salles, historiadora francesa, é doutora em Letras e professora de Letras Clássicas, ensina “Civilização Romana” na Universidade de Paris X Nanterre. Além de suas numerosas contribuições a diversas obras sobre o mundo clássico romano, é autora de Nos submundos da Antiguidade (1983), traduzido para vários idiomas; Tibério, o segundo César (1985), Spartacus e a revolta dos gladiadores (1990), A mitologia grega e romana (2006). Os povos do Mar Mediterrâneo são considerados os “fundadores” do mundo ocidental. Uma enorme quantidade de livros, revistas, filmes faz questão de reforçar essa ideia. Não discordo. No entanto, o mundo mediterrânico apresentado por eles excluiu e continua excluindo aquilo de mais humano – humano no sentido de natural, instintivo – naquele período. Em outras palavras, é uma escolha seletiva do que deve ou não ser lembrado: grandes homens, guerras, a filosofia, a racionalidade, o Direito. Os grandes feitos. Contudo, há muito se sabe que a história – entendida aqui como o produto das relações entre os homens em sociedade – não é feita somente pelos grandes. Mulheres, escravos, pobres, anônimos, loucos, todos fazem parte da produção da vida representada pela História – produção de um saber acerca do passado vivido pelos homens em sociedade. Esse livro vem romper com essa ideia de um passado ordenado pela razão, onde não há conflitos cotidianos, a não ser nas guerras: um passado feito por homens e mulheres comuns, vivendo vidas ordinárias, no 1 Recebido em 07/10/2013. Aprovado em 10/12/2013. 2 Graduando em História na Universidade Estadual do Ceará (UECE), com interesse em História Urbana e Teoria da História. E-mail: fabriciops17@hotmail.com Francisco Fabrício Pereira da Silva 512 Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 511-523. entanto, com uma animosidade especial por serem “vividas” de modo natural. Homens e mulheres que ficaram de fora das decisões dos deuses. A História feita pelos habitantes dos submundos. Na obra, a autora recria um passado que não se tornara História. Um passado que “faltara ao seu destino”, parafraseando com uma expressão mesopotâmica que exprimia a vida daqueles que não seguiram as normas sociais da família como base da sociedade (BOTTÉRO, 2011). Lançando luz sobre os becos, as vielas e os locais de pior reputação no mundo antigo, ela narra histórias e estórias que acabam por “costurar” a História dos grandes feitos. A partir da análise do texto pode-se inferir que a sua vinculação teórica está próximo da História Social. Por vezes prendendo- se a uma personagem e tomando-a como o fio da narrativa ou então um livro, como, por exemplo, o Satyricon de Petrônio, essa narrativa sempre resulta em uma análise complexa sobre a vida dos ignorados da História. Não obstante, seria ousado vincular a autora à teoria da micro-história, mesmo com esse tipo de construção da narrativa histórica. O livro é dividido em duas partes. Na primeira parte é abordada a Grécia, na segunda, Roma. Nota-se uma preocupação por parte da autora em dar uma explicação acerca da estrutura da cidade em ambas as partes, como esse fator vai influenciar no decorrer da narrativa. Essa característica não é única dos historiadores da chamada Escola dos Annales, do qual essa autora faz parte ou que, pelo menos, influencia o seu trabalho. A cidade – estrutura física – há muito passou a ser considerada um fator importante na análise das sociedades. Na França, essa importância que a cidade tem para História se dá devido o fato de Paris – especialmente a Paris de Haussman do século XIX – ser o exemplo mais claro de como a urbanização age na mente da população que lá reside, trabalha ou vagueia (RAMINELLI, 1997). Voltando para o período antes de Cristo, percebe-se que a cidade possui uma função semelhante. Os lugares de mais difícil acesso são aqueles que comportam os excluídos, os marginais, aqueles que não fazem parte do seleto grupo de cidadãos de uma cidade contraditoriamente racional e estamentada, onde nem todos usufruíam de serviços básicos para a própria sobrevivência. Claro, há as Resenha: Nos submundos da antiguidade Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 511-523. diferenças geográficas entre Grécia e Roma, não obstante, os problemas populacionais e de urbanização são bastante semelhantes. Trazendo a problemática para a atualidade – aliás, uma realidade que parece ser cíclica – a “cidade dos excluídos” – que muitos afirmam severamente e até mesmo, cegamente, se tratar de um mal da modernidade –, revela uma realidade que não é comum aos olhos daqueles que produzem o passado e daqueles que consomem esse passado, mas ironicamente, grande parte dos frequentadores dos submundos, como se pode inferir a partir da presente obra, são aqueles cujas condições sociais não correspondem àquelas dos que compõem esses locais. Imperadores, mulheres e filhas de Imperadores, membros da nobreza, etc., todos aqueles que desprezam através das leis e normas sociais os que não são, engrossam a clientela e até mesmo as integram, não por necessidade, mas por puro fetiche. A questão sexual é outro ponto de análise que sua semelhança com o presente salta os olhos. A distância temporal entre o presente e a antiguidade clássica não fora suficientemente eficaz para extinguir – e dificilmente será – atividades que ainda hoje choca quem as presencia, seja de forma direta ou indireta. O tráfico de pessoas, principalmente de crianças, cidades que tinham a função única de proporcionar prazer àqueles que a visitavam, a prostituição infantil, tanto feminina quanto masculina, a impunidade daqueles que causam danos a outras pessoas sabendo que a sua condição social não permitirá punições ou mesmo só por vadiagem – tal como filmes de ficção científica de Stanley Kubrick –, entre outras coisas. A partir da análise visual do texto, nota-se que a própria autora mostra-se surpresa com muitas coisas apresentada por ela. A quantidade de pontos de exclamação utilizada por ela demonstra o quanto esse trabalho foi produtivo para ela, pois, quem o lê tem a impressão de estar lendo junto com a autora. A tradução também revela algo de interessante. Alguns termos, por vezes, são apenas “aportuguesados” e outros, talvez, não são adaptados de forma correta – isso é uma possibilidade – e acabam transmitindo uma ideia de anacronismo. No mais, os Francisco Fabrício Pereira da Silva 514 Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 511-523. demais termos não surpreendem tanto, alguns chegam até a serem cômicos, como, por exemplo, “A ‘puta imperial’”. A autora vai traçando as histórias de vida das personagens as mais variadas, anônimas e conhecidas, com uma enxurrada de nomes de pessoas e lugares, o que, devido à própria morfologia das línguas utilizadas na antiguidade clássica, acaba se tornando um pouco cansativo. Alguns nomes demasiadamente semelhantes acabam por confundir as demais tramas e acabam por exigir uma atenção maior ao leitor. O livro ainda contém, quase que geometricamente na sua metade, ilustrações, reproduções de artefatos da época, tanto do período grego quanto do romano. Desde utensílios até imagens produzidas somente para o fim de representação, tal como retratos, mostram como avida dada às luxurias da antiguidade tinham um lugar especial na mentalidade das pessoas do período, principalmente os banquetes. Pessoas vomitando, hetarias se preparando para festa, jogos de cottabe, tabernas, gladiadores, entre outras coisas revelam esse fascínio – às vezes desejado por muitos, mas não consumado devido ao controle moral do período – e acabam por auxiliar os próprios estudos do período que, como foi afirmado alhures, contém um número limitado de fontes. Outro ponto que chama à atenção, relacionado com as imagens do livro, diz respeito ao estilo artístico dos povos da antiguidade clássica. Observando-as, percebe-se que os estilos do desenho, das formas geométricas relacionadas à figura humana e até as vestimentas, de certo modo, mostram como a cultura grega em quase toda a sua amplitude foi absorvida pelos romanos. Ainda relacionado com as imagens presentes na obra, há as representações cartográficas, que servem tanto para direcionar geograficamente o leitor com para demonstrar como a posição de cada cidade define a sua atuação e sua importância no mundo antigo. No entanto, mesmo sendo uma forma de ajudar o leitor, a representação através de mapas podem mascarar uma realidade de desordem, pois, vista de cima, a cidade é perfeita, um imagem plana onde não há conflitos, aglomerados humanos, apenas uma representação racional e estruturada da Resenha: Nos submundos da antiguidade Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 511-523. realidade (SILVA FILHO, 2001). Racional no sentido da cidade ser estruturada a partir de uma visão racional do real, como a cidade de Alexandria, constituída por retas e paralelas, tal como as cidades modernas da atualidade. No final do livro há, ainda, um anexo contendo as cronologias grega e romana, no modelo tradicional data-nome. Há também um amplo glossário que contém termos utilizados na obra, no entanto, nem todos os termos estão presentes nesse glossário, o que pode comprometer um pouco a compreensão de certos trechos do livro. Por fim, há, nas palavras da própria autora, “um repertório dos nomes próprios (personagens históricos, locais geográficos)”, demonstrando, de certa forma, que apesar de todas as mudanças historiográficas ocorridas ao longo dos anos, a figura do poder e os grandes homens não podem ser excluídos da análise histórica, mesmo que as suas participações sejam apenas em glossários e anexos, mas como no presente trabalho não estão sendo discutidos os aspectos teórico-metodológicos da disciplina, não me aprofundarei na discussão. A metodologia utilizada pela a autora é a análise literária, principalmente por conter em suas fontes obras literárias clássicas, como os textos de Plutarco, Petrônio, Plauto, entre outros, já que os seus relatos revelam características mais completas sobre a realidade dos submundos do que os próprios livros de história, que também são utilizados como fonte (Heródoto, Tucídides, Tito Lívio, etc.). Além desses tipos de fontes, obras filosóficas que descrevem os hábitos de certos grupos relatados, como O banquete de Platão, ou as obras de Cícero e Horácio (filósofo, além de poeta). A partir da análise das próprias fontes citadas nas notas de rodapé, nota-se que a autora pode ter tido uma maior dificuldade na análise grega do que na romana. Tal fato pode ser explicado pelo próprio grau cronológico de cada civilização. De certa forma, essas fontes podem revelar mais do que o próprio texto. Como se sabe, a documentação sobre o período antigo ainda é o maior problema, a veracidade dos textos não pode ser considerada absoluta. Nesse momento, cabe ao historiador o papel de “juiz”, pois, ele é o responsável pelo a promoção do passado à história (CARDOSO, 2012). A própria decisão sobre quais fontes usar já revela muito sobre o trabalho do historiador. Francisco Fabrício Pereira da Silva 516 Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 511-523. A primeira parte do livro é dedicada em sua maior parte à questão do prazer físico no mundo grego. A prostituição é o fio condutor de toda atrama nesse primeiro momento da obra. Desde a compra e venda das crianças, passando por personagens “ilustres” desse submundo até a participação de camadas mais abastadas da sociedade grega no mundo dos prazeres mundanos. No geral essa parte não é tão ampla quanto a segunda, pois, como foi afirmado antes, a distancia cronológica entre as duas civilizações ocasionou novas situações e problemas. Nesse primeiro momento, o instinto sexual e a busca pelo prazer individual é a preocupação dos gregos, algo que não passa de características instintivamente humanas, claro, estas características se adaptam ao mundo social construído dentro da sociedade grega – que como toda e qualquer sociedade –, um mundo repleto de falhas, como fica bastante claro durante toda a obra, e esta característica se aplica tanto aos gregos quanto aos romanos. Na primeira parte do livro, denominada “O Mundo Grego: Homens, Mulheres e Crianças”, a autora dá as características das três cidades das quais ela considera as mais importantes do mundo grego, Atenas, Corinto e Alexandria. A cidade mais importante é a de Atenas, “o berço da democracia”, que tinha uma estrutura desordenada, o que favorecia a criminalidade e a prostituição, já que essa era a única forma de sobrevivência para boa parte da população de miseráveis que não tinham o título de cidadão. No entanto, essa última atividade, a prostituição, em Atenas – ao contrário do que acontecia em outros lugares onde ela era conhecida e até mesmo na atualidade – funcionava de forma “organizada”, pois, era regulamentada pelo Estado, que por seu turno cobrava os devidos tributos referentes à atividade, havia leis rigorosas acerca de quem podia ou não se prostituir. A prostituição tinha uma função que ia além da mera busca pelo prazer. “A legislação de Solon sobre a prostituição se apresenta, antes de mais nada, como uma medida de saúde pública, destinada em primeiro lugar a preservar a pureza da raça.”, essas são as palavras da autora em relação ao tema. Resenha: Nos submundos da antiguidade Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 511-523. Não obstante, mesmo as prostitutas tendo certa função social e sendo regulamentadas para o trabalho, aos olhos da sociedade elas eram mal vistas, serviam apenas como objeto de desejos físicos, instintivos, pois, os gregos acreditavam que o verdadeiro amor, o “amor grego” era privilégio apenas dos rapazes, erastas e erômenos. Além das prostitutas, os seus “patrões/proprietários” também faziam parte dos renegados da sociedade, porém, não tanto quanto os lenos romanos. Havia também os casos de desordem pública causada por jovens delinquentes, que, na maioria dos casos, eram de famílias ricas e influentes, cientes de que não iriam ser punidos, e de fato não o foram. A segunda cidade, Corinto, devido a sua localização geográfica, tornara-se uma “cidade do prazer”. Como era o principal porto da Grécia, homens de diversas partes de todo o mundo conhecido da época, quando lá desembarcavam logo procuravam as suas variadas atividades de distração. Corinto era luxuria. Tudo isso fazia dessa cidade “um lugar inteiramente à parte no mundo das cidades gregas”. Alexandria já se mostrava uma representação da mudança de mentalidade da época. Construída a partir de um plano geográfico racional, ela rompia com aquilo que Atenas representava. De dimensões descomunais para a época, Alexandria representava a modernidade, até mesmo na sua subdivisão, onde bairros eram delimitados de forma coerente. Em relação aos prazeres, Alexandria tinha uma espécie de “cidade-satélite”chamada Canope, onde havia as diversas atividades relacionadas ao prazer e às distrações do período. Após apresentar o pano de fundo onde acontecem as histórias, a autora começa a descrever o real “submundo” grego. O primeiro assunto tratado é a prostituição e a escolha das crianças que são vendidas para se tornarem prostitutas. O que surpreende é a idade com que elas são vendidas, geralmente de 5 a 9 anos. O que para nós é assustador, na época era algo extremamente comum, às vezes era a única saída para muitas famílias que não tinham como sustentar essas crianças, e viam na prostituição um negócio rentável a tal ponto que levava algumas mães a se tornarem proxenetas das suas próprias filhas. Francisco Fabrício Pereira da Silva 518 Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 511-523. Apesar do fatoda profissão ser malvista por grande parte da sociedade grega, algumas prostitutas conseguiam destaque social. Geralmente por cair nas graças de algum político ou aristocrata de prestigio. Isso ocorria de acordo com a beleza física da cortesã. Como era comum na época, quanto mais se “apegava” à cortesã, mais ela pedia e mais ela era obrigada a pedir. Algumas chegaram a se tornarem célebres no mundo antigo, como a hetaira Laís ou Frinéia, que devido a sua beleza “divina” evitou até mesmo de ser julgada. Isso demonstra uma realidade paradoxal e contraditória, pois, a cortesã que adquire um status maior devido aos seus lucros, passa a ser mais aceita na sociedade ao mesmo tempo em que há uma resistência à sua presença por ela ser prostituta, ou seja, havia uma preocupação em deixar claro que mesmo ela sendo rica, ainda não fazia parte daquele mundo, mesmo o integrando como qualquer outra. Caso semelhante pode ser percebido nos séculos XVI e XVII, onde uma burguesia moderna cada vez mais rica com o comércio queria integrar o mundo dos decadentes aristocratas de raízes medievais, que por seu turno os aceitavam, mas faziam questão de deixar clara a distinção existente entre essas duas classes, ora por títulos de nobreza, ora pela etiqueta dos bons costumes (COSTA; SCHWARCZ, 1998). Além das prostitutas mulheres, havia também a prostituição masculina. Estas eram bastante solicitadas, gerando em alguns casos conflitos de maiores proporções. Um representante dessa modalidade de prostituição era Timarco, um jovem que logo cedo se entrega aos prazeres mundanos e todas as suas consequências. Ao lado de Neera, ele ajuda a autora a ir construindo a sua obra, pois, ambos tiveram uma vida agitada e ambos usufruíram de todos os prazeres da antiguidade grega. Um ponto bastante curioso nessa primeira parte diz respeito aos banquetes, os mesmos eternizados pelos filósofos clássicos. O que se conclui a partir da leitura é que esses banquetes eram – anacronismos a parte – verdadeiras orgias. As pessoas bebiam muito, comiam, jogavam e se entregavam aos prazeres carnais, tanto com homens quanto com mulheres, as flautistas. O que tinha de original é que durante essas cerimônias eles “filosofavam”, exercitavam a mente de forma excepcional, sempre a base de álcool. Esse tipo de cerimônia era muito comum e Resenha: Nos submundos da antiguidade Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 511-523. muito lucrativo para quem “agenciava” as cortesãs, pois, era solicitada uma grande quantidade de mulheres e todas apresentavam habilidades, sejam elas musicais ou artísticas – não desconsiderando a música como uma forma artística –, além, claro, dos belos atributos físicos. Assim como qualquer outro mortal, a cortesã também estava sujeita às ações do tempo. Quando ela não consegue um bom casamento para mantê-la – as cortesãs tinham um alto custo de vida, muitas viviam desde cedo em um “mundo de luxo e ostentação” –, a única saída para ela conseguir manter um padrão de vida alto era ela mesma se tornar proxeneta, o que geralmente acontecia, como a própria Neera. Nesses casos, geralmente eram as suas próprias filhas que eram inseridas no mundo da prostituição. Como foi afirmado antes, essa primeira parte está relacionada mais às questões sexuais. É na segunda parte, quando a autora fala sobre Roma que os temas se alargam de forma impressionante. A cidade de Roma foi o “mundo inteiro” da Antiguidade. O seu gigantismo era algo descomunal. Uma cidade com dimensões continentais. Inevitavelmente esse aspecto iria acarretar em diversos problemas hoje considerados “problemas de cidade grande”. Muita gente para pouco espaço, essa era a realidade da cidade de Roma. Além disso, muitos eram os escravos e os miseráveis que viviam na cidade sem a mínima condição de sobrevivência ou amparo do Estado. A cidade era mal concebida. Muitos tiravam proveito dessa característica para garantir a sua sobrevivência. Os problemas de Roma são os mais variados. Há, nesse caso, um verdadeiro “submundo” em Roma, onde os problemas são maiores do que na Grécia. Porém, como foi afirmado alhures, essa diferença também é resultado da distância cronológica entre Grécia e Roma. Um dos primeiros temas abordados em relação a Roma são as catástrofes naturais. As enchentes, as epidemias e a fome. Tudo isso gerou uma imigração desordenada para a parte central da cidade. Como a cidade não tinha a menor estrutura para suportar tal carga populacional, os problemas foram surgindo. Um dos que mais chamam a atenção é o da distribuição de alimentos. O Estado romano Francisco Fabrício Pereira da Silva 520 Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 511-523. era quem distribuía comida para os miseráveis da cidade, mas como a população aumentou de forma desordenada, essa distribuição passou a ter critérios mais rigorosos, uma vez que só que podia ter esse direito eram os cidadãos romanos. Muitos imigrantes famintos tentavam se passar por romanos, o que aumentou o rigor na distribuição. A autora narra um episódio onde, por falta de alimento para todos os famintos, eles invadem o Grande Circo exigindo a distribuição de comida e sugerem até mesmo a distribuição de carne humana! Roma assimilou muito da cultura grega, e isso inclui também o gosto pelo prazer mundano. O termo pergraecari, ou “viver à grega”, representa como era a relação com esses costumes gregos voltados para o prazer. Em Roma, os lenos são os “patrões”, os lupanares são os locais onde há a prostituição, que diferentemente da Grécia, não é regulamentada e grande parte das prostitutas apresentam características moribundas devido à fome e as péssimas condições de vida. Além disso, os banquetes gregos também são recriados em Roma, porém, não com as mesmas características. Os romanos se reúnem apenas para comer e beber até passarem mal, e, na maioria das vezes, o resultado é uma grande confusão. Uma característica interessante da civilização romana é a diferenciação social através de marcas visíveis. Marcas na roupa, as cores das vestimentas, o corte do cabelo e até mesmo “coleiras” – estas utilizadas para identificar escravos fugidos. Isso mostra como o Estado, aceitando a sua incapacidade de controle social, utiliza- se de artifícios para que os próprios indivíduos, de acordo com a sua classe, mantenham as relações sociais controladas. Pode-se considerar isso também uma forma de dominação e demonstração de poder por parte do Estado, que mesmo em toda a sua incompetência, mostra-se presente através dos seus cidadãos. Alguns problemas semelhantes à Grécia são relatados pela autora, porém, a dimensão da ação dos romanos mostra-se mais cruel. Desordem, invasões e brigas por prostitutas são as mais comuns. Jovens invadem lupanares, saqueiam-no, sequestram as moças que mais lhe agradam, espancamo leno até a morte. Tudo isso é “justificado” pelo papel social tanto dos que cometem os crimes quanto por quem é vítima. O policiamento nesses casos é ineficiente, pois, poucos são aqueles Resenha: Nos submundos da antiguidade Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 511-523. responsáveis por manter a ordem da cidade, principalmente à noite, quando aqueles que precisam se esconder de dia saem às ruas. Como as relações sociais em Roma são mais complexas, os problemas também assim se tornam. “A violência se torna política” como afirma a autora. Muitas das disputas política atingem o âmbito social, o que acaba por ocasionar uma grande violência. Grupos armados e de (o)pressão são formados por políticos poderosos. A maioria dos integrantes desses grupos eram pessoas excluídas pela sociedade romana e jogadas nos submundos do crime. Além disso, as manobras políticas do período se estendem à “compra de votos”, por parte dos políticos. Para os eleitores era dada uma espórtula, que era uma “cesta contendo uma refeição”, mostrando, assim, o gênese da compra de votos, atividade tão comum hoje em dia. Mas as mazelas sociais eram bastante variadas na cidade de Roma. Pedintes, bêbados vagando nas ruas e causando confusões, charlatães que se aproveitam da fé dos ingênuos e os próprios ladrões noturnos. Havia todos os tipos de atividades marginais possíveis, quase todos os “problemas de cidade grande” presente nas grandes metrópoles da atualidade. Porém a autora cita rituais de feitiçaria que chamam à atenção por ocorrerem de forma frequente e também por envolverem assassinatos de crianças, tendo, geralmente, a mutilação como característica principal. Fatos curiosos também estão presentes na obra. Em uma parte chamada de “O cônsul arrieiro, o senador gladiador, o imperador proxeneta”, a autora mostra como os prazeres mundanos eram desejados por todos, independentemente do lugar social. Todos buscam o prazer. E não só o prazer, mas também a adrenalina da vadiagem, como é o caso do Imperador Nero, que se passara por baderneiro convencido que ninguém o reconheceria. Nos Submundos da Antiguidade é um livro excepcional, pois, lança luz sobre onde só há escuridão. Nesse trabalho percebe-se um esforço em esclarecer as características do mundo antigo em todas as suas dimensões. Em certos momentos o livro torna-se repetitivo e cansativo, mas a autora sempre tenta trazem algo de novo onde parece ser algo repetido. Novamente, a grande quantidade de nomes Francisco Fabrício Pereira da Silva 522 Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 511-523. próprios acaba por dificultar a compreensão de algumas partes do livro, mas a autora não é culpada pela morfologia dos idiomas antigos! Há também o caráter anedótico da obra, como, por exemplo, esse último exemplo citado, o de Nero, que logrou em crer que ninguém o reconheceria nas ruas à noite, mas que na realidade todos sabiam que era ele quem fazia as badernas. Essa leitura não é indicada para todos os públicos. O seu conteúdo é denso. Por se tratar de uma obra de História Antiga, seus temas podem parecer distantes, mas ao analisar, o leitor perceberá que se trata de uma realidade brutal que ainda hoje assola a maior parte das cidades, não só do Brasil, mas do mundo e alguns temas, como prostituição infantil, tráfico de pessoas e orgias ainda chocam muitas pessoas. Tudo faz parte da realidade humana, não há como fechar os olhos para isso. Algumas coisas vêm acontecendo e se repetindo há séculos. Isso levanta um questionamento, a meu ver, muito importante: teria a História falhado em sua tarefa de magistra vitae e/ou os homens estão fadados a viver em ciclos por toda a eternidade? Eu queria muito ser capaz de responder essa pergunta, mas muito ainda tem que ser pensado e estudado para que o passado não seja apenas um quadro inanimado e a vida uma realidade imutável. BIBLIOGRAFIA AUXILIAR: BOTTÉRO, Jean. No começo eram os deuses. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929-1989): A revolução francesa da historiografia. 2ª.ed. São Paulo: Editora da Unesp, 2012. CARDOSO, Ciro Flamarion. “História e conhecimento: uma abordagem epistemológica”. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (Orgs.). Novos domínios da História. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012. COSTA, Ângela Marques da; SCHWARCZ, Lilia Moritz. “Como ser nobre no Brasil”. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do Imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. Resenha: Nos submundos da antiguidade Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 511-523. RAMINELLI, Ronald. “História Urbana”. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (Orgs.). Domínios da História: Ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1997. REIS, José Carlos. História & Teoria. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003. _______. Desafio historiográfico. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010. SILVA FILHO, Antônio Luiz Macedo e. Fortaleza: Imagens da cidade. Fortaleza: Museu do Ceará; Secretaria da Cultura e Desporto do Ceará, 2001.
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