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117 Revisões e Ensaios Reviews and Essays Revisiones Y Ensaios Importância da microflora intestinal Importance of the intestinal microflora Importancia de la microflora intestinal Kátia Galeão Brandt1, Magda MS Carneiro Sampaio2, Cristina Jacob Miuki3 Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, Instituto da Criança do Hospital das Clínicas da FMUSP (ICRHC-FMUSP) 1Pós-graduanda do Departamento de Pediatria da FMUSP 2Professora Titular do Departamento de Pediatria da FMUSP 3Doutora em Pediatria e Chefe do Setor de Alergia e Imunologia do ICRHC-FMUSP Resumo Objetivo: avaliar a instalação e evolução da microflora intestinal, assim como o impacto nas condições de saúde e doença. Fontes pesquisadas: a base de dados Medline. Síntese dos dados: na maior parte, a microflora bacteriana intestinal é benéfica ao hospedeiro, com função digestiva, síntese de vitamina K e inibição de patógenos. Parte da microflora é potencialmente patogênica. A instalação da microflora ocorre logo após o nascimento e é regulada por fatores internos e externos, e alcança a estabilidade aos 2 anos de idade. Algumas doenças podem ser relacionadas a distúrbios na instalação e composição desta microflora como a enterocolite necrosante, a doença inflamatória intestinal e a atopia. A utilização de probióticos tem sido relatada como positiva na prevenção de infecções, mas os estudos são poucos. Conclusões: a instalação da flora intestinal é precoce, sofre influência do hospedeiro, bactérias e meio ambiente. As ações bem estabelecidas são as de proteção antinfecciosa e metabólica, e as infecções intestinais. Há outras ações possivelmente adversas em avaliação, na fisiopatogenia da doença intestinal inflamatória crônica e na atopia. O uso de prebióticos e probióticos, para otimizar a microflora e prevenir doenças infecciosas, está em fase de experimentação. Descritores: Enterobacteriaceae. Microbiologia. Intestinos. Pediatria (São Paulo) 2006;28(2):117-27. 118 Introdução Há muito foram reconhecidos os microorganis- mos intestinais nos seres humanos, e em especial o largo predomínio de bactérias na sua porção distal. Em 1885, Louis Pasteur expressou seu ponto de vista sobre a importância das bactérias, acreditando que a vida na ausência de micróbios seria impossí- vel1. Isto não se confirmou na experiência com os animais germfree (criados em condições especiais e isentos de bactérias). Estes animais sobrevivem, porém os prejuízos são significativos para o desen- volvimento imunitário2. São reconhecidas doenças que decorrem do dese- quilíbrio da flora intestinal, como a diarréia e a enterite pseudomembranosa. Nestes casos, a implicação da Abstract Objective: to evaluate the intestinal microflora installment and evolution as its impact on health and disease. Data source: medline data basis. Data synthesis: most of the intestinal bacterial microflora is beneficial for the host, with digestive functions, synthesis of vitamin K and inhibiton of pathogenes. A part os the microflora is potentially pathogenic. The microflora installation occurs just after birth and is regulated by internal and external factors, and reaches stability at the age of two years. Some diseases can be related to disturbances at the ins- tallation and composition of that microflora, as the necrotizing enterocolitis; the inflammatory intestinal disease and the atopy. The use of probiotics has been positively related in the prevention of infections, but there are only few studies. Conclusions: the installation of the intestinal flora happens early, suffers influence of the host, bacteria and the environment. The microflora well established actions are anti-infectious and metabolic, and the intestinal infections. There are other possible adverse actions in evaluation, in the physiopathogenetics of chronic inflammatory intestinal disease and of atopy. The use of prebiotics and probiotics to optimize the microflora and to prevent infectious diseases is in experimental phase. Keywords: Enterobacteriaceae. Microbiology. Intestines. Resumen Objetivo: evaluar la instalación y evolución de la microflora intestinal, así como el impacto en las condiciones de salud y enfermedad. Fuentes pesquisadas: base de dados Medline. Síntesis de los datos: en la mayor parte, la microflora bacteriana intestinal es benéfica para el hospedero, con función digestiva, síntesis de vitamina K, e inhibición de patógenos. Parte de la microflora es potencialmente patógena. La instalación de la microflora ocurre luego después del nacimiento y es regulada por factores internos y externos, alcanza estabilidad a los dos años de edad. Algunas enfermedades pueden ser relacionadas a disturbios en la instalación y composición de esta microflora como la enterocolitis necrosante, la enfermedad inflamatoria intestinal y la atopia. La utilización de probióticos ha sido relatada como positiva en la prevención de infecciones, pero los estudios son pocos. Conclusiones: la instalación de la flora intestinal es precoz, sufre influencia del hospedero, bacterias y medio ambiente. Las acciones bien establecidas son las de protección ante-infecciosa y metabólica, y las infecciones intestinales. Hay otras acciones posiblemente adversas en evaluación, en la fisiopatogenia de la enfermedad intestinal inflamatoria crónica y de la atopia. El uso de prebióticos y probióticos para optimizar la microflora y prevenir enfermidades infecciosas, está en fase de experimentación. Palavras clave: Enterobacteriaceae. microbiologia. Intestinos. Microflora intestinal Brandt KG et al Pediatria (São Paulo) 2006;28(2):117-27. 119 flora digestiva alterada na composição na patogênese das doenças é comprovada, porém, outras associa- ções estão menos aclaradas. Evidências sugerem que possíveis desequilíbrios na composição da flora ou da relação desta com o hospedeiro podem estar implicados na origem da atopia3-7, doença inflamatória intestinal8-10 e da enterocolite necrosante11,12. Tendo em vista a relevância do tema, procurou-se ressaltar a importância da microflora intestinal e da colonização intestinal neste ensaio. Foi focalizada a instalação da flora intestinal, as funções para a saúde do indivíduo em curto e longo prazo e o equilíbrio entre as bactérias e o hospedeiro2,13. O reconhecimento acer- ca da importância da flora para a saúde do indivíduo tem levado à elaboração de estratégias para manipular as populações bacterianas. Localização e composição da microflora intestinal O trato gastrointestinal alberga o maior número e a maior diversidade de espécies de bactérias das que co- lonizam o corpo humano. As bactérias são encontradas em todo trato gastrointestinal, porém têm distribuição heterogênea. No estômago e no intestino delgado o ambiente é desfavorável para a colonização e prolife- ração bacteriana, que é reduzida, por ação bactericida do suco gástrico, da bile e da secreção pancreática, como pelo intenso peristaltismo do delgado. O íleo é um sítio de transição bacteriológica, entre a escassa população bacteriana do jejuno e a densa flora do cólon. No cólon, as bactérias encontram condições favoráveis para sua proliferação devido à ausência de secreções intestinais, peristaltismo lento e abundante suprimento nutricional. A população microbiana do cólon alcança 1010 a 1012 microorganismos por grama de conteúdo luminal, e supera em número o total das células eucarióticas presentes no corpo humano14,15. A enorme população bacteriana é composta predominantemente por poucos gêneros bacterianos, altamente diversos quanto às espécies16. Prevalecem os gêneros bacteróides, Bifidobacterium, Eubacte- rium, Clostridium, Peptococcus, Peptostreptococcus e Ruminococcus. Estima-se a existência de cerca de 300 a 500 diferentes espécies de bactérias, com composiçãovariada segundo o indivíduo14. A colonização do trato gastrointestinal depende da capacidade de adesão das bactérias, em recepto- res denominados sítios de adesão na mucosa intes- tinal17. As espécies com esta característica tendem a colonizar de forma permanente o trato gastrointes- tinal, sem necessidade de reintrodução periódica18, e constitui a denominada flora autóctone. Por outro lado, espécies alóctones são aquelas externas ao ecossistema intestinal, sem adequada capacidade de aderir à mucosa, e são transitórias. Pelas caracte- rísticas biológicas citadas, a flora autóctone tende a ser estável quanto às espécies bacterianas e número de colônias ao longo do tempo, acompanhando o indivíduo durante toda a vida18. Ações da microflora sobre o hospedeiro As bactérias são freqüentemente lembradas por sua capacidade de desencadear infecção, mais do que por seus efeitos benéficos19. Nos últimos anos, estudos clínicos e experimentais têm evidenciado que a interação micróbio-hospedeiro pode influenciar favo- ravelmente a saúde humana, de diversas maneiras. A comunidade bacteriana do trato gastrointestinal pode ter funções positivas – antibacterianas, imunomodula- doras e metabólicas/nutricionais (Tabela 1)15. Função antibacteriana As bactérias autóctones exercem proteção ecológi- ca intestinal, impedindo o estabelecimento das bactérias patogênicas. O mecanismo principal desempenhado pela microflora é conhecido como resistência à colo- nização pelo efeito barreira. Esta barreira mecânica à Microflora intestinal Brandt KG et al Pediatria (São Paulo) 2006;28(2):117-27. Tabela 1 – Principais funções atribuídas à microflora intestinal Função Mecanismo Antibacteriana Competição por sítios de adesão Competição por nutrientes Produção de um ambiente fisiologicamente restritivo Produção de substâncias antimicrobianas Estímulo para o sistema imune Desenvolvimento de tolerância imunológica Salvamento energético Nutrição do colonócito Conversão do colesterol em coprastanol Conversão de bilirrubina em urobilina Inativação da tripsina. Síntese de vitamina K Imunomoduladora Nutricional/metabólica 120 colonização ocorre pela ocupação dos sítios de adesão celulares da mucosa, pela flora autóctone. Há outros mecanismos de proteção adicionais como a competi- ção pelos nutrientes disponíveis no meio, a produção de substâncias restritivas ao crescimento de bactérias alóctones (ácidos e metabólitos tóxicos) e a produção in vivo de substâncias com ação antimicrobianas15,20. Função imunomoduladora A flora bacteriana interage com as células do epi- télio intestinal do hospedeiro e provoca uma resposta contínua do sistema imune; este, por sua vez, tende a desenvolver-se e constitui importante componente do sistema imune21. Como parte do sistema imunológico, o trato gastrointestinal com a microflora, são conside- rados importantes para a tolerância imunológica14,22. Evidências da importância da microflora intestinal para o desenvolvimento do sistema imune foram obtidas através de estudos realizados nos animais germfree. Nestes animais (isentos de bactérias) observou-se que a mucosa intestinal apresentava baixa densidade de células linfóides, as Placas de Peyer eram pequenas e pouco numerosas, e era reduzida a concentração das imunuglobulinas circulantes. Após a colonização destes animais por microorganismos, os linfócitos intra-epite- liais expandiram-se, os centros germinativos com células produtoras de imunoglobulinas rapidamente proliferaram nas Placas de Peyer e na lâmina própria, e a concen- tração de imunoglobulinas circulantes aumentou23. O desenvolvimento do sistema imune local e sistêmico com o estímulo da microflora matura o sistema imune, e impede a estruturação de resposta alérgica7. Função metabólica/nutricional Uma terceira função atribuída à microflora intes- tinal está relacionada à contribuição para a nutrição e metabolismo do hospedeiro13,14,24. A ação das bacté- rias intestinais sobre determinados nutrientes permite um melhor aproveitamento intestinal. Isto ocorre com substratos que chegam não digeridos ao lúmen do cólon, principalmente carboidratos, que são fermen- tados e formam ácidos absorvíveis pela mucosa. O processo é denominado salvamento energético e for- ma os ácidos graxos de cadeia curta, que constituem a principal fonte de energia dos colonócitos e têm efeito trófico no epitélio intestinal13,14. Os microorganismos colônicos desempenham ainda um papel na síntese da vitamina K14. Há outras atividades metabólicas da microflora cujo benefício para o organismo humano ainda são pouco compreendidas, como a conversão de colesterol em coprostanol, de bilirrubina em uro- bilina e a inativação da tripsina24. O equilíbrio entre a microflora e o hospedeiro A flora intestinal é benéfica para o indivíduo quan- do há simbiose com o hospedeiro, equilíbrio entre as necessidades e efeitos recíprocos25. Algumas bacté- rias que compõem a microflora são sempre benéficas – apatogênicas e protetoras da mucosa intestinal, como as bifidobactérias. Outras possuem fatores de virulência e tanto podem causar dano à célula intestinal como ter comportamento de comensal. Em condições propícias tornam-se patogênicas, como ocorre com o Clostridium sp.2. O papel de comensal ocorre pelo controle exercido pelas demais espécies bacterianas e por mecanismos reguladores do hospedeiro. Quando ocorre o desequilíbrio neste ecossistema, com o uso de antibióticos ou por falha nos mecanismos de defesa do hospedeiro, pode resultar uma doença21,26. É desta forma que, agudamente, ocorrem as gastrenterites, a enterite pseudomembranosa e a enterite necrosante. Ao longo prazo, o desequilíbrio na composição da flora, tanto pela depleção das bactérias benéficas como pela maior concentração das potencialmente patogênicas, poderia estar implicada com a atopia3-7, e a doença inflamatória intestinal8-10, como detalhado adiante. As bifidobactérias e os lactobacilos são os princi- pais representantes das bactérias benéficas, microor- ganismos que não apresentam fatores de virulência para o homem27. Doenças decorrentes de desequilíbrio da microflora Enterocolite necrosante A enterocolite necrosante é uma grave doença gastrointestinal que afeta predominantemente recém- nascidos prematuros, principalmente os doentes, inter- nados nas unidades de terapia intensiva. A enterocolite necrosante tem origem multifatorial é causada pela imaturidade intestinal e imunológica, infecção, hipóxia, alimentação enteral hiperosmolar e pela composição alterada da microflora intestinal. O impacto de cada um desses fatores é variado, e o retardo na instalação da flora normal favorece a enterite pela falta de bactérias protetoras e reduzido desenvolvimento do sistema imune local e sistêmico. Ao final, existe pouca resistência à colonização intes- tinal pelos patógenos, possibilitando a ocorrência de necrose. A ausência da microflora comensal no pre- maturo ao nascimento possibilita às muitas bactérias Microflora intestinal Brandt KG et al Pediatria (São Paulo) 2006;28(2):117-27. 121 patogênicas presentes na UTI causar a EN, especial- mente se favorecidas pelo uso de antibióticos de amplo espectro. Adicionalmente, muitas vezes, a alimentação é hiperosmolar, com leite de vaca12. Doença inflamatória intestinal A patogênese da doença inflamatória intestinal (DII) ainda não está esclarecida, mas a hipótese mais aceita relaciona a ocorrência da doença a uma resposta imune exacerbada às bactérias da flora en- térica em indivíduos geneticamente predispostos31. Esta hipótese recebe suporte de estudos realizados em modelos animais. Os animais de experimentação geneticamente modificados para desenvolverem DII não desenvolvem a doença enquantopermanecem isentos de bactérias. A DII tem início simultâneo à colonização bacteriana intestinal8,32. Não existe um agente microbiano específico causador da DII, porém as evidências sugerem que a doença está relaciona- da ao desequilíbrio entre as bactérias patogênicas e benéficas. Diversos estudos mostram diferenças entre a flora dos pacientes portadores de DII e os controles sadios; biópsias retais de pacientes com DII têm uma redução de Lactobacillus e Bacteroides e um aumento na concentração de E. coli e Clos- tridium sp.10,33,34. Esta constatação da redução do Lactobacillus sp. na flora intestinal dos portadores de DII também foi observada em estudos experimentais, e sugere um papel protetor destas bactérias para prevenir ou atenuar a DII. Ratos geneticamente modificados para desenvolver DII têm uma queda na concentração dos Lactobacillus, previamente à instalação da lesão inflamatória da mucosa, e um aumento das outras bactérias, aderidas à mesma. A administração retal de Lactobacillus sp. a um grupo de ratos foi efetiva na prevenção e controle da colite inflamatória9. Em outro estudo com ratos, o papel da flora benéfica foi investigado através da suplementação com prebióticos. Ratos suplementados com uma combinação de inulina e oligofrutose durante sema- nas apresentaram redução da intensidade da colite, tanto na análise histológica quanto no perfil das cito- cinas de mucosa. Foi ainda constatado um aumento significativo nas populações de Lactobacillus sp. e Bifidibacterium sp.35. Em humanos, existe a hipótese de que a instalação de uma flora benéfica nas crianças poderia tornar o desenrolar da DII mais benigna nos indivíduos geneti- camente predispostos15,36. Porém, não existem estudos comprovando esta hipótese. Atopia Possivelmente, a atopia seja uma das entidades em que se tenha mais comprovação clínica e experimental do impacto da flora no desenrolar de uma doença. A atopia é uma doença multifatorial com base genética, e existem evidências de que a microflora comensal seria um dos elementos impeditivos, e fundamental para o desenvolvimento da tolerância imunológica. Em estudo experimental este papel da flora para a indução da tolerância oral fica claro. Os pesquisadores subme- teram ratos germfree no período neonatal à ingestão de ovalbumina (antígeno alergênico), tendo havido uma resposta do tipo alérgica. A reconstituição da flora com Bifidobacterium infantis restaurou a capacidade da tolerância oral no período neonatal, embora não ocorresse com animais mais velhos3. A interferência da composição da flora intestinal neonatal para o desenvolvimento da tolerância imu- nológica foi avaliada evolutivamente5. As crianças que não desenvolveram atopia tinham, quando recém-nas- cidos, maior freqüência de Clostridium sp. e menos Bifidibacterium sp.5. O processo de instalação da microflora intestinal Ao nascimento os recém-nascidos são estéreis, não possuindo flora microbiana. Após o nascimento as bactérias da mãe e do meio ambiente os coloni- zam. O recém-nascido desenvolve uma coleção he- terogênea de bactérias no trato gastrointestinal, sob a influência de fatores relacionados ao hospedeiro, às bactérias e a outros fatores externos, como o uso de medicamentos, a alimentação e as condições de higiene/contaminação ambiental. Há uma seleção da flora com persistência de algumas populações bacterianas e eliminação de outras. Em torno de 2 anos de idade, a composição da microflora se torna estável, sendo alcançada a comunidade clímax ou flora tipo adulto15. A partir deste período, embora a microflora in- testinal permaneça em interação permanente com microorganismos do meio ambiente, sua composição mantém-se estável ao longo da vida adulta. Alterações neste equilíbrio podem ser observadas em condições patológicas, como por ocasião de infecções intestinais, uso de antibióticos e tratamento imunossupressor21,37. A qualidade desta colonização inicial do intestino pode ter um papel importante no processo de seleção entre os diferentes gêneros bacterianos, trazendo conseqüências para toda a vida14,38. Microflora intestinal Brandt KG et al Pediatria (São Paulo) 2006;28(2):117-27. 122 Os fatores que influenciam a colonização bacteria- na do trato gastrointestinal são simultâneos e intera- gem, de forma que um fator influencia ou altera o efeito do outro; apenas de forma didática são descritos os efeitos de alguns fatores isoladamente (Figura 1). Figura 1 – Fatores que regulam a colonização e a estabilidade da microflora intestinal Genética Sistema imune Quorum sensing Contaminação ambiental Aleitamento materno ou artificial Tipo de parto Uso de antibióticos Microflora intestinal No habitat intestinal há mecanismos para estabi- lilizar a comunidade bacteriana, de forma a manter a relação harmoniosa entre as bactérias residentes entre si, e entre estas e o hospedeiro16. A estabilidade da flora é, conforme descrito a seguir, um processo ativamente mantido, através das inter-relações das bactérias entre si e entre estas e o hospedeiro. Há fatores intervenientes do hospedeiro que selecionam a microflora bacteriana intestinal desde a instalação. Existem evidências de que a seleção bacteriana inicial dentro do trato gastrointestinal seja em parte determinada geneticamente39,40. Em estudo realizado com gêmeos adultos monozigóticos, mo- rando separados, encontrou-se semelhança maior na composição da flora do que entre indivíduos não relacionados39. O genótipo determina o padrão de colonização, segundo uma hipótese, através dos sítios de adesão na mucosa intestinal. O controle da colonização estaria relacionado à disponibilidade e qualidade dos sítios de adesão na mucosa intestinal, visto que a permanência das bactérias no intestino depende de ligação a um sítio de adesão; quando isto não ocorre é eliminada pelo peris- taltismo. Existe uma especificidade na ligação da bactéria com o receptor de mucosa, o que seleciona a colonização do hospedeiro. Possivelmente, o padrão destes locais de adesão é geneticamente determinado40. Afora essa pré-determinação dos sítios de adesão, o hospedeiro pode ainda regular a população bacte- riana através do sistema imune40. A ação do sistema imune na definição da diversidade e supressão de populações bacterianas indesejáveis está em estudo. Há evidência experimental de que a IgA secretória agiria como mediador desta seleção bacteriana41. Na colonização intestinal de uma linhagem de ratos deficientes de IgA, ocorreu expansão aberrante e ex- cessiva de bactérias anaeróbias, com recomposição da flora habitual após a normalização da produção de IgA secretória41. Há fatores intervenientes relacionados às bactérias que influenciam a microflora intestinal. Estas têm sítios de adesão específicos, determinados geneti- camente, que podem sofrer adaptações e/ou induzir a alterações nos receptores celulares da mucosa2. Recentemente, foi demonstrada a capacidade de interação entre as bactérias e as células do hospe- deiro, em que a microflora modificou a expressão ou a atividade dos sítios de adesão das células da mucosa, através de mediadores moleculares42,43. Este processo de indução bacteriana é denomina- do de quorum sensing e decorre de sinais moleculares liberados no meio ambiente pela bactéria. Quando este sinal molecular atinge o sistema regulador genético da célula do hospedeiro (ou de outra bactéria), pode ativar ou reprimir um gene. Esta ação bacteriana, em geral, é benéfica para a bactéria que produz o sinal e desfavorável para outras populações bacterianas42. No trabalho experimental de Hoper et al. pode ser observado que determinadas espécies bacterianas po- deriam interferir na colonização, ao alterar a fisiologia do hospedeiro.Através de modernas técnicas de análise molecular, os autores mostraram que bactérias comen- sais do intestino de ratos foram capazes de modular a expressão de genes do hospedeiro, com alteração da absorção mucosa, aumento de proteína envolvida na fortificação da barreira intestinal, aumento da expressão da angiogina e da angiogênese intestinal e a modulação da motilidade e da maturação intestinal43. Tipo de parto. A microflora da criança nascida por parto vaginal é composta, inicialmente, da flora fecal materna, que contamina o canal de parto, e, mais tar- de, pelas bactérias presentes nos alimentos e no meio ambiente. Na criança que nasce de parto cesáreo, não há participação da flora fecal materna e o meio am- biente torna-se a fonte inicial de contaminação. Nestas crianças o estabelecimento de uma flora estável ocorre mais tardiamente, a freqüência de colonização por lac- tobacilos e bifidobactérias é menor do que nas nascidas Microflora intestinal Brandt KG et al Pediatria (São Paulo) 2006;28(2):117-27. 123 de parto vaginal, sendo mais comum a presença de Clostridium perfringens18,38. Mesmo após 6 meses de vida, ainda puderam ser observadas diferenças nas floras das crianças, segundo o tipo de parto38. Alimentação. O desenvolvimento da microflora intestinal nos recém-nascidos está estreitamente relacionado ao tipo de alimentação, entre os bebês amamentados ao seio e os que consomem leite arti- ficial. Na flora das crianças em aleitamento materno há grande predomínio das bifidobactérias, havendo pequena quantidade de espécies bacterianas poten- cialmente patogênicas. Em contraste, as crianças em uso de fórmulas ar- tificiais desenvolvem flora mais diversa composta não só de bifidobactérias, como também de bacteróides, enterobactérias, enterococos e clostridium sp45,46. Com o emprego de métodos moleculares um estudo mostrou que entre 60 a 91% do total da comunidade bacteriana das fezes de recém-nascidos em aleitamento materno era composta por bifidobactérias, enquanto nas crian- ças em uso de fórmula láctea essa proporção era de 28 a 75% (média de 50%)45. Os mecanismos responsáveis pelas diferenças encontradas na flora dos recém-nascidos em aleita- mento materno e daqueles que consomem leite artificial são vários. Fatores imunológicos do leite materno, como a IgA secretória, a lisozima, a lactoferrina e os nucleotídeos inibem a flora patogênica. O baixo pH intestinal dos bebês amamentados ao seio favorece o crescimento das bifidobactérias, que são mais tole- rantes ao ácido. O metabolismo do ferro lácteo também é importante para o predomínio das bifidobactérias. A concentração de ferro no leite materno é baixa, a biodisponibilidade é alta e a absorção é favorecida pela lactoferrina, res- tando pouco ferro na luz intestinal para as bactérias. Em contraste com outras bactérias, como bacteróides e enterobactérias, as bifidobactérias não necessitam do ferro para proliferar. Os fatores bifidi somente pre- sentes e em quantidade elevada nas secreções lácteas humanas são uma família de oligossacarídeos que só podem ser metabolizados pelas bifidobactérias, sendo prebióticos para a microflora de humanos47,48. Por todos estes aspectos do leite materno, não se obteve ainda uma fórmula que o mimetize13. Agentes antimicrobianos. O uso de antimicro- bianos pode alterar o padrão de colonização intesti- nal. O principal efeito observado inclui a supressão relevante das bactérias anaeróbias, com exceção do Clostridium sp que permanece em níveis detectáveis. A influência do uso de antimicrobiano no padrão da microflora intestinal é transitório, mas pode persistir por algum período após o término do uso17,18. A redução da população bacteriana intestinal pode trazer, entre outras, conseqüências imunológicas. Estudo epide- miológico relacionou o uso precoce de antibióticos e o conseqüente desequilíbrio na flora intestinal, a um aumento de freqüência da doença atópica44. Em estudo experimental, o uso de antibiótico precoce originou um predomínio de resposta imune de tipo alérgica, revertido pela reconstituição da microflora intestinal com bifidobactérias3. Contaminação ambiental. O padrão de coloni- zação dos recém-nascidos varia conforme a carga microbiana do meio ambiente18. Nas últimas décadas, esta carga foi reduzida nos países desenvolvidos, que passaram a empregar rigorosas práticas de higiene ao nascimento e nas condições habituais de vida da população. A baixa contaminação ambiental resultante repercutiu no padrão da colonização intestinal dos recém-nascidos, com conseqüências ainda incom- pletamente esclarecidas. Cogita-se que esteja ocorrendo uma alteração na regulação do sistema imune, a partir da observação de grande aumento da prevalência das doenças atópicas nos países desenvolvidos. Foi elaborada a hipótese da higiene, que sugere que as boas condições sanitárias reduziram a exposição das crianças à estimulação microbiana, trazendo como conseqüência, menor es- timulação linfocitária de padrão TH1. Habitualmente, estes linfócitos têm efeito inibidor sobre as células TH2, o que deixa de ocorrer, facilitando a resposta TH2 (alérgica). A hipótese da higiene tem sido testada em popu- lações de diversos níveis socioeconômicos, quanto ao possível impacto da colonização intestinal sobre a regulação do sistema imune7. No estudo realizado por Young et al., foi avaliada a composição da flora de crianças nascidas em Gana, Nova Zelândia e Inglaterra, especificamente quanto à população de bifidobactérias. Em Gana, país com reduzida condição socioeconômica e baixa prevalência de atopia, a cepa predominante de bifidobactéria foi Bifidobacterium infantis, encontrada em praticamente todas as crianças. Entre as crianças nascidas na Nova Zelândia e na Inglaterra, países com elevadas condições so- cioeconômicas e da prevalência de atopia, as cepas que predominaram foram Bifidobacterium bifidum, Bifidobacterium longum e Bifidobacterium pseudoca- tenulatum. Em meio de cultura, as células dendríticas de cordão umbilical reagiram de forma diversa a estas bactérias. A produção de citocinas e outros imunomo- duladores estimulados pelas cepas Bifidobacterium bifidum, Bifidobacterium longum e Bifidobacterium pseudocatenulatum tiveram padrão alérgico, enquanto o Bifidobacterium infantis não desencadeou esta res- Microflora intestinal Brandt KG et al Pediatria (São Paulo) 2006;28(2):117-27. 124 posta imune. Os autores ressaltam que o padrão de colonização intestinal pode variar segundo as condi- ções socioeconômicas, e sugerem uma ligação entre esses achados e a prevalência das doenças atópicas em diferentes países49. As crianças nascidas em países pobres, por sua vez, estão mais expostas à contaminação ambiental e aos riscos desta exposição excessiva e não sele- cionada. Um estudo realizado no Paquistão acompa- nhou a flora de crianças nascidas de parto normal e domiciliar, e observou-se uma colonização precoce e intensa por E. coli do meio ambiente. Houve uma rápida mudança nas cepas encontradas em cada criança, tendo sido identificadas cerca de 8,5 diferen- tes cepas de E. coli, por criança, em seis meses de estudo50. Entretanto, em estudo realizado com crianças suíças, mudanças nas cepas intestinais ocorreram de maneira lenta, tendo sido observadas apenas 1,5 ce- pas de E. coli por criança, no mesmo período de seis meses51. A constante exposição das crianças nascidas em um país pobre a novas cepas de enterobactérias au- menta a probabilidade de aquisição de cepas virulentas e de doenças entéricas infecciosas50. A melhora da composição da microflora Nos últimos anos estudos têm focalizado os pos- síveis benefícios de fornecer bactérias comensais, denominadas probióticos, como suplemento alimentar microbiano vivopara beneficiar o equilíbrio microbiano intestinal. Outra forma de obter o mesmo efeito é a estimulação da flora intestinal benéfica já existente, com o uso de prebióticos. Estes são ingredientes ali- mentares não digeríveis que estimulam seletivamente o crescimento, a atividade, ou ambos, de uma espécie bacteriana ou de um número limitado de espécies, que são comensais no cólon28. Em prematuros que receberam precocemente bactérias potencialmente benéficas (probióticos), alguns pesquisadores chineses constataram redução na incidência e da gravidade da enterocolite necro- sante11. A suplementação dos recém-nascidos pre- maturos foi feita com uma mistura de Lactobacillus acidophilus e Bifidobacterium infantis. A incidência de enterocolite necrosante no grupo suplementado foi significativamente menor do que no grupo controle – 9 em 180 versus 24 em 187. Também, não ocorreu quadro grave de enterocolite no grupo que fez uso de probiótico, enquanto ocorreram seis casos no grupo controle11. O possível efeito imunomodulador positivo da instalação de uma flora benéfica no período neonatal também foi constatado em outro estudo, randomizado e controlado com placebo. Foi ministrada no período neonatal, a 159 crianças de alto risco para desenvol- ver atopia, a bactéria probiótica Lactobacillus GG. Isto reduziu à metade a incidência posterior de eczema atópico, durante os dois primeiros anos de vida6. A melhora da microflora intestinal através do uso de pré e probióticos, durante o período de colonização intestinal, tem sido sugerida, entretanto, a importância ao longo prazo não está estabelecida13. A alteração da flora intestinal estabelecida na criança maior e no indivíduo adulto parece ser mais difícil do que inicialmente se supunha. O fornecimento de bactérias probióticas tem esbarrado na estabilidade do ecossis- tema intestinal. Uma vez que os nichos ecológicos do trato gastrointestinal estejam ocupados por comunidades bacterianas estas se auto-regulam, e é extremamente difícil que uma bactéria alóctone se estabeleça neste sistema. Estudos com probióticos têm mostrado que sua persistência no trato gastrointestinal é observada apenas enquanto a suplementação é mantida29. Há alguns resultados estimulantes trazidos com a experimentação dos probióticos, mas é preciso levar em consideração que os resultados ainda podem ser considerados inconclusivos. São escassos os relatos de efeitos colaterais, mas em prematuros que fizeram uso de probióticos, foram observadas infecções sis- têmicas em algumas crianças gravemente doentes30. Isto reforça a necessidade de avaliação prospectiva, multicêntrica e controlada, para avaliar todos os efeitos do uso de probióticos e prebióticos, especialmente em condições especiais, como nos prematuros. Conclusão A instalação da flora intestinal é precoce, sofre influência do hospedeiro, bactérias e meio ambiente. Há várias ações bem estabelecidas, tanto as benéficas de proteção antinfecciosa e metabólica, como algumas deletérias, as infecções. Há outras ações possivel- mente adversas em avaliação, na fisiopatogenia da doença intestinal inflamatória crônica e da atopia. O uso de prebióticos e probióticos, para otimizar a mi- croflora e prevenir doenças infecciosas, está em fase de experimentação. Microflora intestinal Brandt KG et al Pediatria (São Paulo) 2006;28(2):117-27. 125 1. Tannock GW. New perceptions of the gut microbiota: implications on future research. Gastroenterol Clin North Am 2005;34:361-82. 2. Bourlioux P, Koletzko B, Guarner F, Braesco V. 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