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101 12 Entende-se por microbiota do organismo a presença de micro-organismos que estabelecem residência permanente ou não, sem causar infecções ou nenhum outro dano ao hospedeiro em situações normais. No corpo humano a microbiota distribui-se pelas partes do corpo que estão em contato com o meio externo como pele e mucosas. A colonização destas regiões do organismo não ocorre de maneira homogênea, sendo que cada sítio possui uma microbiota com características próprias. A microbiota pode ser dividida em i) transitória ou alóctone, compreendendo os micro-organismos que per- manecem por pouco tempo no organismo, sem estabelecer uma colonização significativa; ou ii) residente ou autóc- tone, compreendendo os micro-organismos que colonizam o organismo em condições de simbiose com o hospedeiro, por período de tempo indeterminado, em situações normais. São vários os benefícios observados entre essa relação de simbiose entre hospedeiro e micro-organismo, tendo des- taque para o antagonismo microbiano, em que a microbiota protege o hospedeiro impedindo a colonização por micro-or- ganismos potencialmente patogênicos, através da competição por nutrientes, sítios de adesão, produção de substâncias no- civas aos patógenos e alterações das condições ambientais, como alteração de pH local e disponibilidade de oxigênio. Qualquer alteração na microbiota, portanto, pode re- sultar no desenvolvimento de doenças causadas por micro- -organismos patogênicos. Além disso, é importante ressaltar que a microbiota de um determinado sitio do hospedeiro pode causar infecções quando, em situações anormais, atin- gem outros sítios, originariamente estéreis ou compostos por uma microbiota diversa. A instalação desta microbiota ainda é um assunto em estudo. Durante a gestação, o ambiente uterino é estéril e o recém-nascido passa a ser colonizado ainda no canal vaginal materno, durante o parto normal. Crianças nascidas de parto cesáreo passam a ser colonizadas logo após o nascimento, por micro-organismos maternos, do ambiente local e da equipe médica que o manipula. Recentemente foi publicado um estudo com evidências de colonização intrauterina por bactérias simbiontes da microbiota materna, porém, ainda Microbiota Humana Carla Romano Taddei Kátia Brandt Magda Carneiro-Sampaio não há dados que expliquem o mecanismo de translocação destas bactérias para o útero materno, nem a passagem dos mesmos pela barreira placentária. Com poucos dias de vida, o recém-nascido já se encon- tra totalmente colonizado, porém, o tempo que a microbiota residente leva para se estabelecer pode variar, levando até dois anos para se estabilizar, como é o caso da microbiota intestinal. A evolução da instalação da microbiota ainda não é totalmente conhecida, porém, sabe-se que alguns fatores são fundamentais na primeira infância da criança, como por exemplo, condições socioeconômicas, sanitárias, alimentares e interferência medicamentosa. A seguir estão listados os diferentes sítios do organis- mo humano colonizados e os principais micro-organismos encontrados. Pele A pele apresenta uma microbiota residente bem defi- nida e mais concentrada na região das axilas e períneos, apresentando cerca de 106 bact./cm2. Nas outras regiões, a concentração bacteriana é de cerca de 104 bact./cm2. A pele está regular e frequentemente em contato com as bactérias no meio ambiente, porém, as condições para colonizar uma pele saudável estão limitadas aos sítios anatômicos onde a umidade, a temperatura e a presença de nutrientes (como suor e sebo) permitem a sobrevivência das bactérias. A microbiota da pele encontra-se aderida à superfície do extrato córneo e no interior do folículo piloso. Uma vez que a microbiota do extrato córneo é removida por processos mecânicos ou químicos, a microbiota do folículo piloso é a responsável pela recolonização da pele, e em até 8 horas, a microbiota já está restabelecida. A população bacteriana da pele inclui principal- mente bactérias Gram-positivas aeróbias obrigató- rias, como Micrococcus, anaeróbias facultativas, como Staphylococcus e Corynebacterium, e anaeróbias estritas como Propionibacterium. 102 O gênero Staphylococcus é um dos principais coloni- zadores da pele humana. S. epidermidis está presente como principal componente da microbiota da pele em 90% da população; já S. aureus é encontrado em torno de 10 e 40%. As mulheres, porém, apresentam altos índices de coloni- zação na região da vulva por este micro-organismo, cerca de 60% da população feminina em idade fértil. De 50 a 70% dos profissionais de saúde que trabalham em hospitais apresentam as fossas nasais colonizadas por S. aureus. S. saprophyticus está presente como colonizador da vulva, e tem papel importante na Infecção no Trato Urinário (ITU) em mulheres jovens. As regiões do ouvido externo e ouvido médio apre- sentam a microbiota semelhante à da pele. A conjuntiva é normalmente estéril, porém, pode ser colonizada por Corynebacterium xerosis e S. epidermidis. Vias Aéreas As fossas nasais são colonizadas predominantemente por Staphylococcus e Corynebacterium. Há indivíduos que após receberem antibióticos β-lactâmicos passam a serem colonizados por Klebsiella pneumoniae, E. coli e P. aeru- ginosa, devido à supressão ou redução da microbiota da região. Esse fato tem especial importância em indivíduos que trabalham na área da saúde. Na faringe e traqueia encontramos Streptococcus alfa- -hemolíticos e não hemolíticos, Neisseria, Staphylococcus, difteróides, Haemophilus e Mycoplasma. Os bronquíolos e alvéolos são normalmente estéreis. Trato Genital Feminino A composição da microbiota do Trato Genital feminino varia com a idade, pH, secreção hormonal, ciclo menstrual, uso de anticoncepcional e atividade sexual. Quando a menina nasce, o nível de estrogênio ma- terno presente no organismo estimula a proliferação de Lactobacillus, gênero dominante nos primeiros seis meses de vida. A presença de Lactobacillus em mulheres saudáveis é importante na manutenção do equilíbrio da microbiota, uma vez que as bactérias deste gênero fermentam o glicogênio presente na vagina, diminuindo o valor do pH local, criando, assim, um ambiente desfavorável às bactérias com cresci- mento em pH neutro. Estudos recentes utilizando metodologias moleculares mostram que a microbiota vaginal em mulheres em idade reprodutiva é composta por cerca 85% de Lactobacillus, além de Gardnerella e Atopodium. Devido à contaminação com a microbiota da pele e do Trato Gastrointestinal, a microbiota da região externa da vagina pode apresentar os gêneros Staphylococcus coagulase negativo, S. saprophyticus e E. coli. Durante a pré-menarca e a menopausa, o valor do pH vaginal aumenta e a população de Lactobacillus já não é mais tão abundante, coexistindo com Corynebacterium, Staphylococcus e Escherichia. Trato Genital Masculino A microbiota da uretra é composta basicamente por Staphylococcus epidermidis, Corynebacterium, Streptococcus e E. coli. Cavidade Bucal A cavidade bucal possui uma microbiota muito diver- sificada, estendendo-se à superfície dos dentes, mucosas e gengiva. Estima-se que mais de 700 espécies bacterianas habitam a cavidade bucal, e mais da metade deste número são bactérias que não podem ser cultivadas, evidenciando a complexidade desta comunidade. A saliva contém 108 bactérias/ml e as placas dentais contém 1011 bactérias/cm. Os gêneros predominantes na cavidade bucal são Staphylococcus, Streptococcus, Neisseria, Bacteroides, Actinomyces, Prevotella, Porphyromonas, Treponema, e Mycoplasma. O esôfago não apresenta microbiota própria e as bactérias presentes são originadas da cavidade oral, do trato respiratório superior ou dos alimentos ingeridos. A microbiota bucal tem grande importância médica e odontológica, uma vez que algumas doenças como cárie, periodontites, actinomicoses e endocardites subagudas são causadas por membros da microbiota oral. Trato GastrointestinalO trato gastrointestinal (TGI) alberga o maior número e a maior diversidade de coleções bacterianas que colonizam o corpo humano. Embora as bactérias possam ser encontradas em todo TGI, maior número de bactérias residem no cólon e ceco. A população microbiana do TGI seria da ordem de 1011 a 1012 UFC/ml de conteúdo intestinal, e estima-se a existência de aproximadamente 700 diferentes espécies de micro-organismos, a maioria bactérias. O estômago é caracterizado pelo pH baixo em adultos saudáveis, limitando o nível de colonização da microbiota a 103 UFC/ml de suco gástrico. Neste ponto do TGI, os micro-organismos usualmente presentes são Lactobacillus, Streptococcus e Candida albicans e um alto percentual de pessoas são colonizados por Helicobacter pylori, porém, o reconhecimento de H. pylori como membro da microbiota estomacal ainda é discutido. O duodeno é composto por uma microbiota semelhante ao estômago e no jejuno, é ob- servada uma colonização de 105 a 107 UFC/ml. A microbiota consiste principalmente de Streptococcus, Lactobacillus, Haemophilus, Veillonella, Bacteroides, Corynebacterium e Actinomyces. No íleo a população de bactérias é representada por 107 a 108 UFC/ml e a microbiota é composta por anaeróbios facultativos, Enterobactérias e anaeróbios obrigatórios tais como, Bacteroides, Veilonella, Clostridium, Lactobacillus e Enterococcus. O cólon apresenta a maior densidade e diver- sidade de micro-organismos no corpo humano, na ordem de 1010 e 1011 UFC/ml e os gêneros mais frequentemente encon- trados são Bacteroides, Bifidobacterium, Escherichia coli, 103 Clostridium, Eubacterium, Bacillus, Peptostreptococcus, Fusobacterium e Ruminococcus. De uma maneira geral, as bactérias anaeróbias faculta- tivas como E. coli, Enterococos faecalis e E. faecium são as primeiras bactérias a colonizarem o TGI do recém-nascido, devido ao elevado teor de oxigênio que existe inicialmente. À medida que estas bactérias consomem o oxigênio, o meio se torna mais adequado para as bactérias anaeróbias estritas, como Bifidobacterium, Bacteriodes e Clostridium. Depois disso, pouco se conhece sobre quem são e como e quando se dá a entrada dos outros componentes do ecossistema digestivo. Devido a presença de produtos ácidos, originados de processos fermentativos, o valor do pH luminal é, aproxima- damente, 5,5. Este ambiente levemente acidificado permite a competição entre as bactérias produtoras de ácidos graxos de cadeia curta (AGCC), e bactérias que utilizam carboidra- tos, como Bacteroides spp., além de estimular a produção de butirato. A diminuição desse valor do pH, dificulta a permanência de bactérias do gênero Eubacterium, utiliza- doras de lactato, e com isso, permitem acúmulo de ácido láctico. A presença de butirato no cólon intestinal é responsável por modificações da microbiota. Os substratos butirogênicos levam a modulação da população microbiana colônica, in- duzindo a multiplicação de espécies produtoras de butirato e permitindo um equilíbrio entre a presença de Eubacterium spp. e Bifidobacterium spp. Bactérias produtoras de butira- to são capazes de fermentar produtos do metabolismo de oligossacarídeos produzidos por bifidobactérias. Produtos intermediários de processos fermentativos de bifidobactérias da microbiota, como lactato, por exemplo, são encontrados em baixas concentrações em indivíduos saudáveis, pois são metabolizados por Eubacterium spp. O equilíbrio da diversidade na microbiota intestinal é mediado por interações bacterianas que modula a compo- sição da microbiota controlando a densidade celular. Essas interações são observadas tanto na produção de AGCC como visto acima, como também no controle de expressão gênica por “quorum sensing” (ver capítulo 18). Bactérias benéficas controlam via “quorum sensing” a densidade polulacional de bactérias patogênicas presentes na microbiota, como Clostridium, por exemplo. A microbiota intestinal, adquirida no período pós- -natal é composta por uma grande diversidade de bactérias e desempenha diferentes funções no hospedeiro humano. O conteúdo bacteriano intestinal, ainda não totalmente conhe- cido, é influenciado por fatores internos e principalmente externos que, portanto modulam sua composição e função. Componentes específicos da microbiota intestinal, com des- taque principalmente para as bifidobactérias, foram associa- dos a efeitos benéficos para o hospedeiro como modulação imune e antagonismo contra patógenos, contribuindo ainda no processo de nutrição e metabolismo. Existem, em con- trapartida, evidências do envolvimento da microbiota (ou da desregulação da mesma) em certos estados patológicos como a doença inflamatória intestinal e o câncer colônico. Maior destaque tem sido dado à microbiota intestinal nas últimas décadas devido a resultados promissores, tanto preventivos como terapêuticos, com o uso dos pré e probióticos, pro- dutos que visam modular de maneira benéfica a microbiota intestinal. A microbiota bacteriana intestinal normal tem papel fundamental na proteção ecológica do hospedeiro impedin- do o estabelecimento de bactéria patogênica no TGI. Este fenômeno é conhecido como “resistência à colonização”, “interferência microbiana” ou “efeito barreira”. Entre os mecanismos usados pelas bactérias fala-se na produção de substratos que inibiriam o crescimento das bactérias patogê- nicas (antagonismo), competição por nutrientes e competição por sítios de adesão. A mucosa intestinal humana é a principal interface entre o sistema imunológico e o ambiente externo. O intestino é considerado o maior órgão imunológico do corpo humano, abrigando cerca de 80% das células imunológicas e é res- ponsável pela produção de um terço de anticorpos, neces- sários ao Sistema Imunológico Inato e Adaptativo, além de modular as funções digestivas, imunológicas, metabólicas, endócrinas e o tropismo intestinal. A microbiota tem efeito estimulante no desenvolvimento do sistema imunológico do hospedeiro. A presença destas bactérias na luz intestinal não existe de forma “silenciosa” para o sistema imunológico, uma vez que os linfócitos B locais produzem continuamente anticorpos contra diversos componentes bacterianos. O pa- drão de produção de anticorpos pelos linfócitos B intestinais é diferente do sistema imunológico sistêmico, de maneira que o isótipo de imunoglobulina produzido preferencial- mente é a IgA, que possui várias funções importantes na proteção das superfícies mucosas. São produzidos dímeros de IgA ligadas a um componente secretório, sendo o com- plexo molecular chamado IgA secretória, diferente daquela encontrada no sangue. Esta IgA secretória alcança o lúmen intestinal e reage com antígenos específicos, impedindo a interação física dos agentes nocivos com a superfície da mucosa. O efeito estimulante da microbiota no tecido imunoló- gico do hospedeiro está envolvido em aspectos da resistên- cia que são importantes nos estágios inicias das infecções pelos patógenos. No TGI existe um estado de modulação imunológica constante. Ao mesmo tempo em que o sistema imunológico está pronto para reagir contra bactérias pato- gênicas, é capaz também de se manter tolerante em relação à microbiota, sendo esta capacidade chamada de tolerância oral, que é um processo ativamente mantido. Uma terceira função atribuída à microbiota intestinal está relacionada à sua contribuição para a nutrição e metabo- lismo do hospedeiro. Esta contribuição pode ser evidenciada pela sua capacidade de interferir no valor do pH do intestino e na motilidade intestinal, favorecendo a absorção de íons e água e na diferenciação de células da mucosa. A microbiota ainda exerce atividade bioquímica produzindo vitamina K e outras vitaminas. Algumas diferenças são observadas na composição e no processo de colonização da microbiota dependendo do 104 tipo de parto. A microbiota da criança que nasce por parto vaginal é derivada inicialmente da microbiota fecal maternaque contamina o canal de parto. Mais tarde a criança adquire bactérias presentes nos alimentos e no meio ambiente. Na criança que nasce por meio de parto cesáreo, não há partici- pação da microbiota fecal materna, e o estabelecimento da microbiota intestinal normal é mais tardio. As crianças amamentadas com leite materno têm mais bifidobactérias e estafilococos na microbiota intestinal, em relação às que tomam mamadeira que têm maior número de enterococos e clostrídeos. O leite materno favorece o cres- cimento de alguns grupos bacterianos de importância para a saúde do hospedeiro como as bifidobacterias cujo cresci- mento é favorecido pelos fatores bifidi. A baixa capacidade tamponante do leite humano permite também uma melhor atuação das bactérias produtoras de ácido lático pela redu- ção do valor do pH intestinal desfavorável ao crescimento de vários micro-organismos patogênicos. As crianças ama- mentadas ao seio, quando comparadas com as alimentadas artificialmente, são menos colonizadas por enterobactérias, como E. coli e Klebsiella, sendo ainda menor o número de sorotipos de E. coli enteropatogênicos. Quando o desmame inicia, as crianças são expostas, pela primeira vez, a muitos carboidratos, diferentes e com- plexos. Uma quantidade significativa destes carboidratos vai escapar da digestão no intestino delgado e chegar ao cólon, assim como toda fonte de fibra dietética. Sabe-se que esses produtos servem de substratos alimentares para as bactérias colônicas e, possivelmente, influenciariam a composição da microbiota intestinal das crianças neste período de vida. Segundo estudos experimentais, o impacto da introdução de alimentos não lácteos, provavelmente persistirá até a vida adulta. O uso de antibiótico pode afetar o padrão de coloniza- ção do TGI na criança. Os agentes antimicrobianos têm efei- tos específicos em componentes individuais da microbiota ao invés de uma supressão geral e não específica e o perfil microbiano resultante influencia a população que emerge após a parada do tratamento. Algumas características fazem com que determinadas bactérias sejam consideradas benéficas para os seres hu- manos. As bifidobactérias e os lactobacilos talvez sejam os principais representantes entre as bactérias benéficas. São micro-organismos que não apresentam nenhum fator de patogenicidade para o homem e nunca foram envolvidas em episódios infecciosos no trato gastrointestinal. Alguns fatores favorecem a implantação destas bactérias no TGI dos recém-nascidos como o “fator bífido”, nutriente presente no leite materno que favorece especificamente a instalação e atuação destas bactérias, além de características próprias deste gênero bacteriano com uma alta capacidade de adap- tação destas ao trato gastrointestinal humano. A otimização da microbiota intestinal pelo uso de pré e probióticos durante o período de colonização intestinal tem sido sugerida, entretanto, ressalta-se a importância de se conhecer mais profundamente como ocorre a instalação da microbiota e quais as consequências, em longo prazo, de possíveis intervenções neste processo. As técnicas moleculares têm revelado uma grande di- versidade da microbiota nas amostras analisadas. Análises filogenéticas baseadas em sequências de DNA têm sido utilizadas para caracterizar microbiota de fezes humana. A biblioteca de 16S rRNA (RNA ribossomais) vem demons- trando uma ótima técnica molecular para evidenciar a com- posição da microbiota intestinal. A alta especificidade e a natureza cumulativa dos bancos de dados de sequências de DNA de RNA ribossômicos têm incentivado a descoberta e o reconhecimento desta biodi- versidade. As moléculas de rRNA são excelentes para a medida da inter-relação evolucionária. Em contraste com a taxonomia tradicional que é baseada nos traços fenotípicos, este tipo de taxonomia reflete a inter-relação evolucionária natural entre os organismos. Utilizando-se a sequência de ácidos nucléicos derivados diretamente da comunidade microbiana, combinado com re- ação de polimerase em cadeia (PCR) e clonagem, inúmeros micro-organismos, inclusive os não cultiváveis, tornam-se acessíveis para caracterização e identificação. Com o uso de técnicas moleculares avançadas, nas quais se podem examinar múltiplos organismos de múltiplos doadores, uma descrição exata da complexidade destas comunidades bac- terianas pode ser obtida. Probióticos Apesar de todos os efeitos benéficos, existem evidên- cias do envolvimento da microbiota (ou da desregulação da mesma, chamada disbiose) em certos estados patológicos, como processos alérgicos, obesidade, doença inflamatória intestinal e o câncer colônico, entre outros. Com o objeti- vo de tentar corrigir esses efeitos danosos da disbiose, os probióticos, prebióticos e simbióticos vem sendo estudados. Os prebióticos são substâncias não digeríveis, presentes nos alimentos, que estimulam seletivamente o crescimento e atividade de bactérias no cólon, trazendo efeitos benéficos ao hospedeiro. Além de favorecer o crescimento de bactérias benéficas para o hospedeiro, os prebióticos exercem efeito direto sobre a saúde do hospedeiro. Inulina e oligofrutose (ou fruto-oligossacarídeos - FOS), galacto-oligossacarídeos (GOS) e lactose, são os principais compostos prebióticos. Estes compostos estão presentes naturalmente em alimentos como a cebola, o alho, chicória e o leite. No leite materno existe a presença de oligossacarídeos não absorvíveis, co- nhecidos como fatores bifidogênicos. Eles são substâncias prebióticas e favorecem a implantação destas bactérias no TGI dos recém-nascidos. Os prebióticos também podem ser encontrados em produtos farmacêuticos e fórmulas infantis. Estes compostos, quando fermentados pelas bactérias colô- nicas, levam a produção de AGCC, principalmente o acetato, o propionato e o butirato (efeito butirogênico). A maioria dos AGCC é absorvida pelo organismo humano sob a forma de energia. O butirato é oxidado e utilizado pelo próprio epi- télio colônico e é considerado o AGCC com maior impacto sobre saúde epitélio intestinal. Ele cria um ambiente mais 105 ácido, que protege contra a colonização por patógenos, possui efeito trófico no epitélio, favorece a diferenciação do enterócito, inibindo a proliferação (efeito anticarcinogênico) e possui atividade anti-inflamatória. Os probióticos são definidos como organismos vivos que proveem benefícios ao hospedeiro, quando inoculadas em quantidades adequadas. Os probióticos devem possuir pré-requisitos básicos para serem utilizados no ser humano, incluindo: ausência de propriedade virulenta, capacidade de sobreviver no ambiente gastrointestinal, capacidade de aderir às superfícies mucosas e células epiteliais e ação inibidora de patógenos. Entre os anaeróbios, alguns bacilos Gram-positivos, como Bifidobacterium spp. e Lactobacillus spp., representam as principais bactérias simbiontes benéficas, sendo algumas espécies possuem os pré-requisitos para probióticas. Deve ficar claro, portanto que, nem toda bactéria simbionte pode ser considerada probiótica. A levedura Saccharomyces bou- lardii também tem seus efeitos benéficos e probióticos com- provados. O potencial probiótico difere entre cepas. Cada cepa bacteriana tem sítios de aderência definidos e efeitos específicos, portanto, para cada situação clínica, existiria um, ou um conjunto de micro-organismos, com potencial efeito benéfico. Deve-se ressaltar o benefício transitório do uso do probiótico uma vez que, os probióticos utilizados atualmente, não colonizam de forma permanente o trato gastrointestinal, exercendo seu efeito apenas enquanto estão sendo consumidos pelo organismo humano. Os mecanismos através do quais os probióticos exercem seus efeitos benéficos não são totalmente conhecidos e são possivelmente multifatoriais (Figura 12.1). Estudos indicam que o uso de probióticos pode aumentar a expressão de genes envolvidos na sinalização de proteínas das junçõesfirmes, prevenindo a ruptura da barreira intestinal e também favorecendo sua recuperação após dano. Além disso, a capacidade de adesão tem sido uma das principais características buscada nos novos probióticos. Essa propriedade é importante para que interajam com as células epiteliais e células imunes do hospedeiro, e também para que estes atuem como antagonistas da adesão de pató- Figura 12.1 – Efeitos benéficos de bactérias probióticas à mucosa intestinal. Aperfeiçoamento da barreira mucosa Produção de substâncias antibacterianas Adesão à barreira mucosa e competição por sítios de adesão Patógenos IgA secretória Lâmina própria Célula dendítrica Célula T Naive Plasmócito Modulação do sistema imune Th1 Th2 Th17 Threg 106 genos. Algumas cepas de probióticos, como Lactobacillus reuteri, Lactobacillus plantarum, Bifidobacterium lactis, Bifidobacterium bifidum e Bifidobacterium longum produ- zem e secretam proteínas adesinas de muco, denominadas MUB (mucus-binding protein) que ficam ancoradas na pa- rede celular, permitindo a adesão a estruturas específicas da mucosa intestinal humana. A competição pelos sítios de adesão nas células epite- liais e na camada de muco também é um efeito benéfico das bactérias probióticas, assim como das bactérias simbion- tes. Lactobacilos e bifidobacterias demonstraram inibir a adesão de uma variedade de patógenos, incluindo E. coli, Salmonella, Helicobacter pylori, Listeria monocytogenes e rotavírus. Algumas bifidobacterias e lactobacilos comparti- lham os mesmos receptores de adesão de certos enteropató- genos, o que justificaria a competição pelos sítios de adesão na mucosa do hospedeiro. Alguns probióticos são capazes de sintetizar ácidos orgânicos e substâncias antibacterianas denominadas bac- teriocinas. Os ácidos orgânicos, particularmente o ácido acético e o ácido lático, têm um forte efeito inibitório sobre bactérias Gram-negativas, e têm sido considerados os prin- cipais compostos antibacterianos responsáveis pela atividade inibitória dos probióticos sobre patógenos. Quando penetram a célula bacteriana, eles causam a redução do valor do pH intracelular ou o acúmulo de ácidos orgânicos ionizados, levando a morte bacteriana pela formação de poros e/ou inibição da síntese da parede celular. Foi demonstrado que determinados lactobacilos e bifidobacterias probióticas são capazes de matar diretamente a Salmonella typhimurium, in vitro. Além disto, alguns probióticos, principalmente lacto- bacilos, seriam capazes de produzir substancias inibidoras do crescimento de fungos. Os probióticos são capazes de interagir com o siste- ma imune do hospedeiro através de vários mecanismos. Bactérias probióticas têm demonstrado aumentar os níveis de IgA total e específica contra patógenos em vigência de infecção, sem induzir a produção de IgA contra o próprio probiótico. Micro-organismos simbiontes e probióticos po- dem induzir um estado de tolerância imunológica mediado pela ativação dos receptores do tipo Toll (TLR) na superfície das células dendríticas. Após ativação pelas bactérias probió- ticas, as células dendríticas iniciam uma resposta apropriada, induzindo a diferenciação do linfócito Tho em Treg, que tem um efeito inibitório sobre a resposta inflamatória Th1, Th2 e Th17. Lactobacillus induzem a diferentes perfis de secreção de citocinas pró e anti-inflamatória. Vários estudos têm demonstrado a importância da si- nalização de probióticos através do TLR 2, como uma via importante para que alguns lactobacilos e bifidobaterias probióticas exerçam seu efeito imunomodulador, ora indu- zindo a síntese de citocinas de defesa, ora inibindo a síntese de citocinas pró-inflamatória ou induzindo a síntese de citocinas anti-inflamatórias. A utilização de algumas cepas de lactobacilos parece ter papel importante na indução de resposta de defesa contra patógenos invasores, através da sinalização do TLR 4. A sinalização através do receptor TLR 9 também parece ser uma via para obtenção de uma resposta anti-inflamatória induzida pelo probiótico. Probióticos e doenças intestinais Ao lado da terapia de reidratação oral, o uso de probi- óticos para diarreia aguda parece reduzir a frequência eva- cuatória e a duração da diarreia em 1 dia (efeito observado principalmente em países em desenvolvimento). Estudos utilizando S. boulardii, L. rhamnosus GG e outras cepas, registraram redução na ocorrência de diarreia nosocomial, redução na diarreia associada ao uso de antibiótico e redução na diarreia por Clostridium difficile. A síndrome do intestino irritável (SII) é uma das desor- dens gastrointestinais mais comuns dos países desenvolvidos e em desenvolvimento, afetando 10% a 15% da população. Ocorrem episódios recorrentes de dor abdominal, associada a distúrbios do hábito intestinal, na ausência de doença orgânica. Tal distúrbio está relacionado a alterações da motilidade intestinal e na sensibilidade visceral. Estudos sugerem a ocorrência de alteração na composição da micro- biota intestinal destes indivíduos, não estando claro se esta alteração é primária ou secundária à dismotilidade intestinal. Estudos atuais ainda sugerem que os probióticos podem ser benéficos na SII através de diversos mecanismos: redução da hipersensibilidade visceral, efeito benéfico sobre a motilida- de gastrointestinal, diminuição da permeabilidade intestinal, combate a disbiose e melhor resposta imune. Várias cepas de probióticos isoladas (L. rhamnosus GG, B. infatis, B. lactis, B. bifidum) ou em associação demonstraram efeitos benéficos diversos, embora não reprodutíveis com outros tipos de probióticos. Porém, o tipo de probiótico utilizado deve ser escolhido de acordo com a sintomatologia especí- fica do paciente. Apesar de muita expectativa, o uso dos probióticos na doença inflamatória intestinal (DII) ainda não alcançou os resultados esperados. Nenhum feito consistente foi obser- vado na prevenção ou tratamento da doença de Crohn. Já na retocolite ulcerativa benefícios foram observados com o uso de mistura de probióticos na indução e na manutenção da remissão de doença. O impacto do Lactobacillus GG e do VSL#3, na prevenção primária e redução na recorrência de bolsite também estão bem estabelecidos. Existem evidências de que alteração na microbiota de recém-nascidos prematuros pode atuar como um dos fatores de predisposição para a enterocolite necrosante. O intestino imaturo do bebê prematuro é propenso à inflamação e perda da integridade epitelial. Os probióticos teriam o potencial de interferir neste processo. Estudo de meta-análise indica que o uso de determinados probióticos (Bifidobacterium, Lactobacillus, Saccharomyces e S. thermophilus) em pre- maturos, reduz a frequência e a mortalidade por enterocolite necrosante. Ainda assim a Academia Americana de Pediatria recomenda que sejam realizados mais estudos para que se estabeleça a dose e a cepa específica de probiótico que deve ser recomendada. Mudanças nos hábitos de higiene das sociedades moder- nas levaram a mudanças na composição da microbiota, favo- 107 recendo a maior indução de indivíduos alérgicos (chamada hipótese da higiene expandida). O uso dos probióticos tem sido sugerido como uma intervenção capaz de prevenir ou atenuar o curso das doenças alérgicas. O uso de algumas ce- pas de probióticos (Lactobacillus GG e B. lactis) no período neonatal pode reduzir a ocorrência de eczema, por exemplo. Bibliografia 1. Adlerberth I. Establishment of normal intestinal microflora in the newborn infant. In: Hanson LA, Yolken RH, editors. Probiotics, Other Nutritional Factors and Intestinal Microflo- ra. Nestlé Nutrition Workshop Series, vol 42. , Philadelphia: Lippincott-Raven Publishers; 1999. p. 63-78. 10. 2. Ercolini, D. 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