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1 Disciplina: Sociologia do crime e da violência Autores: M.e Andressa Ignácio da Silva Revisão de Conteúdos: Sérgio Antonio Zanvettor Júnior Revisão Ortográfica: Esp. Murillo Hochuli Castex Ano: 2019 Copyright © - É expressamente proibida a reprodução do conteúdo deste material integral ou de suas páginas em qualquer meio de comunicação sem autorização escrita da equipe da Assessoria de Marketing da Faculdade São Braz (FSB). O não cumprimento destas solicitações poderá acarretar em cobrança de direitos autorais. 2 Andressa Ignácio da Silva Sociologia do Crime e da Violência 1ª Edição 2019 Curitiba, PR Editora São Braz 3 Editora São Braz Rua Cláudio Chatagnier, 112 Curitiba – Paraná – 82520-590 Fone: (41) 3123-9000 Coordenador Técnico Editorial Marcelo Alvino da Silva Revisão de Conteúdos Sérgio Antonio Zanvettor Júnior Revisão Ortográfica Murillo Hochuli Castex Desenvolvimento Iconográfico Juliana Emy Akiyoshi Eleutério FICHA CATALOGRÁFICA SILVA, Andressa Ignácio da. Sociologia do crime e da violência. – Curitiba: Editora São Braz, 2019. 51 p. ISBN: 978-85-5475-365-8 1. Crime. 2. Sociedade. 3. Violência. Material didático da disciplina de Sociologia do crime e da violência – Faculdade São Braz (FSB), 2019. Natália Figueiredo Martins – CRB 9/1870 4 PALAVRA DA INSTITUIÇÃO Caro(a) aluno(a), Seja bem-vindo(a) à Faculdade São Braz! Nossa faculdade está localizada em Curitiba, na Rua Cláudio Chatagnier, nº 112, no Bairro Bacacheri, criada e credenciada pela Portaria nº 299 de 27 de dezembro 2012, oferece cursos de Graduação, Pós-Graduação e Extensão Universitária. A Faculdade assume o compromisso com seus alunos, professores e comunidade de estar sempre sintonizada no objetivo de participar do desenvolvimento do País e de formar não somente bons profissionais, mas também brasileiros conscientes de sua cidadania. Nossos cursos são desenvolvidos por uma equipe multidisciplinar comprometida com a qualidade do conteúdo oferecido, assim como com as ferramentas de aprendizagem: interatividades pedagógicas, avaliações, plantão de dúvidas via telefone, atendimento via internet, emprego de redes sociais e grupos de estudos o que proporciona excelente integração entre professores e estudantes. Bons estudos e conte sempre conosco! Faculdade São Braz 5 Sumário Apresentação da disciplina ............................................................................... 06 Aula 1 – Sociedade, cultura e controle social ................................................... 08 Apresentação da Aula 1 .................................................................................... 08 1.1 – Cultura e controle social ................................................................... 08 1.2 – Controle social, Estado e instituições sociais ................................... 12 Resumo da aula 1 ............................................................................................. 15 Aula 2 – O crime como problema social e sociológico ..................................... 17 Apresentação da aula 2 .................................................................................... 17 2.1 – As transformações sociais na Europa e a consolidação da ciências sociais ............................................................................................................... 17 2.2 – A criminologia e as concepções do crime ......................................... 19 2.3 – As concepções sociológicas clássicas sobre conflitos, crimes e violência ............................................................................................................ 21 Resumo da aula 2 ............................................................................................. 25 Aula 3 – Uma arqueologia do crime e da violência na sociedade brasileira ..... 26 Apresentação da aula 3 .................................................................................... 26 3.1 – Crime e violência, aspectos conceituais ........................................... 27 3.2 – A violência na história do Brasil ........................................................ 29 3.3 – O crime no Brasil contemporâneo .................................................... 31 Resumo da aula 3 ............................................................................................. 35 Aula 4 – Estado, Direito político: perspectivas sobre segurança pública ......... 36 Apresentação da aula 4 .................................................................................... 36 4.1 – Violência, medo e repressão ............................................................ 36 4.2 – Crime, violência e o Estado Democrático de Direito ......................... 37 4.3 – Polícia e novas perspectivas sobre segurança pública .................... 40 Resumo da aula 4 ............................................................................................. 43 Resumo da disciplina ........................................................................................ 45 Índice Remissivo ............................................................................................... 48 Referências ....................................................................................................... 49 6 Apresentação da disciplina Nesta disciplina busca-se compreender o crime e a violência como fenômenos sociais e sociológicos. Ou seja, compreender suas ocorrências nas sociedades contemporâneas, em especial a brasileira, bem como compreender as principais análises e contribuições que a Sociologia oferece para o entendimento destes fenômenos. Para tanto, é fundamental compreender o processo de consolidação das sociedades, bem como o papel da vivência social para o desenvolvimento humano, na medida em que o crime e a violência são frutos dos conflitos gerados nas interações sociais. Sendo assim, cabe destacar como abordaremos na primeira aula que o ser humano é um ser social, ou seja, depende da convivência com seus iguais para o pleno desenvolvimento de suas habilidades. Entretanto, como será apresentado, a convivência traz consigo a necessidade de construção de padrões de comportamento, normas e regras. Diante destas regras, é necessário que os indivíduos as conheçam e concordem com elas. Ganhando importância, para tal objetivo, o processo de socialização. Entretanto, conhecer as regras sociais não impede o surgimento de conflitos e a violência. Nesse sentido, para a manutenção da sociedade moderna, tornam-se fundamentais instituições de controle social e repressão. Já na segunda aula, será abordado o processo de surgimento da Sociologia como ciência, tendo em vista que a disciplina surge com o objetivo de oferecer respostas para os graves problemas sociais da Europa do fim do século XIX. Em seguida, serão apresentadas as diferentes contribuições dos teóricos clássicos da Sociologia Émile Durkheim, Karl Marx e Max Weber. Em seguida, na terceira aula, serão abordadas as múltiplas manifestações da violência na sociedade brasileira, ao longo diferentes períodos históricos. Buscando demonstrar como a violência é um fenômeno onipresente no processo de construção da nação brasileira, embora variando de meios, intenções e agentes. Por fim, na quarta aula, serão abordados o medo, a violência e as formas de enfrentamento da violência no Brasil contemporâneo. Buscando demostrar como as ações de repressão muitas vezes não obtém o efeito 7 desejado, por atacarem apenas a criminalidade, sem uma compreensão de suaspelo processo de pacificação da sociedade que, conforme citado anteriormente, é um processo de ruptura com os padrões de comportamentos medievais e a imposição de um controle das emoções da agressividade. A manifestação individual de agressividade e violência foi gradativamente restringida e deslegitimada pelo Estado, que passa a ter o monopólio do uso legítimo da força. Além de abrir mão do uso da força, nesse processo, os indivíduos abrem mão de certas liberdades em prol da coletividade. Para Aranão (2013), diante desta renúncia às liberdades individuais, caso os indivíduos não enxerguem razões ou vantagens em obedecer ao pacto social, o crime e a violência podem ocorrer. Da mesma forma, ainda de acordo com o autor, a falha no cumprimento dos direitos fundamentais garantidos nos instrumentos legais resulta em desigualdades, discriminação e marginalidade. Nesse sentido, esses fenômenos são efeitos da ineficiência de aplicação de políticas de garantia do bem-estar social. Com isso, a falta de acesso à educação, saúde, emprego, 39 moradia, alimentação de qualidade caracterizam-se como violações aos direitos fundamentais e dignidade de pessoa humana (ARANÃO, 2013). A situação de violações de direitos e ineficiência das instituições pode fomentar a violência e a criminalidade, na medida em que os indivíduos deixam de ver benefício na adesão ao pacto social. É fundamental destacar que esta perspectiva não equivale a dizer que a pobreza e as desigualdades são a causa direta da criminalidade, ou que as populações pobres sejam por suas condições sociais essencialmente criminosas e violentas, ou ainda que todos os indivíduos em situação de exclusão social atuem de forma criminosa ou violenta. Como sugere Aranão (2013), em acordo com a perspectiva sociológica, o crime e a violência são consequências, na perspectiva do autor das violações de direitos. [Entretanto, historicamente, o enfretamento à criminalidade e à violência se dão mediante políticas públicas de repressão do crime e não com políticas públicas que ataquem as suas causas, ou seja que promovam os direitos fundamentais]. De acordo com Dias (2012), as definições de “políticas públicas” são diversas, mas guardam o ponto comum de identificá-las com a ação do Estado. Estas estão, segundo o autor, identificadas com o poder social e correspondem a formas e/ou estratégias de lidar com assuntos públicos. O autor destaca a importância no campo dos estudos de políticas públicas da distinção entre dois termos no idioma inglês: politics e policies. O primeiro diz respeito aos processos de construção de consenso e às lutas pelo poder relacionados, por exemplo, à dinâmica eleitoral e partidária. O segundo é entendido como as ações do governo, que buscam assegurar a solidariedade interna de determinado Estado. O Estado é, por sua vez, ao mesmo tempo sujeito e objeto das políticas públicas. Enquanto sujeito, cabe ao Estado comandar, legislar e normatizar, impondo normas, arrecadando e distribuindo recursos etc, por outro lado, o Estado é sujeito na medida em que é influenciado pela sociedade civil em suas ações. 40 4.3 Polícia e novas perspectivas sobre segurança pública Na Antiguidade Clássica, a polícia era compreendida como um instrumento de organização da sociedade. Porém, a partir do século XVIII, passa a ser compreendida como um órgão de controle social do Estado. No Brasil, a polícia começa a se organizar com a chegada da família real portuguesa e a transferência da corte para a cidade do Rio de Janeiro. A polícia pode ser definida como o grupo de pessoas autorizadas por um grupo, geralmente o Estado, para regular as relações interpessoais dentro de uma comunidade mediante a aplicação da força física (BAYLEY, 2001, p.229). Um aspecto fundamental das instituições policiais é a possibilidade do uso da força. Entretanto, a questão dos limites ao uso da violência é também um ponto de conflito e tensões. Cabe ressaltar que o limite entre força legítima e violência está relacionado à forma como a sociedade interpreta a noção de violência: O paradoxo aqui é que, de um lado, é justamente a possibilidade de usar da força física que distingue os policiais do cidadão comum, desde que isso seja feito de forma legítima e dentro dos parâmetros de legalidade, necessidade e proporcionalidade, protegendo a sua vida e a de outro cidadão. Por outro lado, a fronteira entre o uso legítimo e ilegítimo da força letal é tênue e, por isso, as circunstâncias muitas vezes não são apuradas de forma adequada no Brasil. (IPEA, 2018, p. 29). As formas de organização e atuação das polícias variam de acordo com o país. Além disso, existem diferentes visões sobre a polícia, sua visão e forma de atuação. De acordo com Bayle (2001), na visão tradicional, a polícia é entendida como uma agência governamental responsável pela aplicação da lei. O papel da polícia é a solução de crimes e sua eficiência analisada pelo número de prisões. Nesse modelo, as formas de controle na polícia são altamente centralizadas. Nos anos 80, diante do aumento da violência e da criminalidade, este modelo passa a ser criticado nos Estados Unidos, em especial diante de estatística que indicavam que o aumento do efetivo de policiais não reduziu o índice de criminalidade nem aumentava o número de crimes solucionado, e que as patrulhas não reduziam o crime nem aumentavam o número de 41 suspeitos presos. Estes resultados, entre outros demonstraram que o modelo e estratégias da polícia tradicional necessitavam ser revistos. Já a polícia comunitária, de acordo com o mesmo autor, amplia o conceito original de polícia, passando a compreendê-la como parte dos serviços públicos de atenção integral aos cidadãos. Nesta perspectiva, o papel da polícia vai além da solução de crimes e sua eficiência avaliada pela ausência de crime e desordem. Nesse modelo, as relações com a comunidade são vistas como essenciais e serviço policial amigável nos contatos nas ruas. Um modelo de polícia comunitária pode ser uma forma de enfretamento à violência policial e aos abusos de autoridade, tendo em vista que, muitas vezes ocorrem divergências entre a lei e a prática policial efetiva. De acordo com Vasconcelos (2011), este descompasso ocorre muitas vezes em função da atividade prática contrastar fortemente com o conhecimento adquirido nos cursos formais da Academia de Polícia. Nesse sentido, assim como o crime na sociedade pode ser compreendido como abordado ao longo desta disciplina, como um sintoma de desregulação social, a violência policial, a corrupção e os conflitos com a lei por parte de membros de corporações podem ser compreendidos como sintomáticos da necessidade de reorganização dos modelos de polícia e policiamento. Assim, é necessária a construção de um consenso acerca da função social da polícia, passando de um modelo guiado pela manutenção repressiva da ordem para um modelo de diálogo com a sociedade, baseado no respeito aos direitos humanos (VASCONCELOS, 2011, p. 95). Ainda de acordo com o autor, o policial foi instituído pela sociedade para ser o principal defensor dos direitos humanos. Entretanto, como apontam Minayo, Assis e Oliveira (2011), pode-se afirmar que os policias também têm seus direitos fundamentais violados. Um indício é que um aspecto corriqueiramente negligenciado é a saúde física e mental dos policiais. De acordo com as autoras, mesmo no campo de pesquisas sobre segurança pública, são raros os estudos que abordam o tema: De modo geral, o sofrimento físico e mental é resultante do conjunto de situações vivenciadas no cotidiano do trabalho. Nesse contexto, identificamos fatores que associam problemas de condições e organização ocupacional – entre eles, escasso treinamento e falta de 42 planejamento das atividades– com excessiva jornada de trabalho, pouco tempo para descanso e lazer, precárias condições materiais e técnicas e baixos salário (MINAYO, ASSIS e OLIVEIRA, 2011, p. 2206). Ainda de acordo com as autoras, é importante compreender as especificidades dos agravos à saúde dos policiais, destacando as condições de maior vulnerabilidade desses profissionais em relação à população em geral, sendo que fatores como os apresentados acima contribuem para elevadas taxas de adoecimento. Por fim, de acordo com Cubas (2010), o controle da polícia, interno e externo é fundamental nas sociedades democráticas. O controle interno é exercido pela linha de comando, bem como por órgãos específicos, como corregedorias que fiscalizam a atividade policial. Já o controle externo, ou seja, o controle civil reforça o trabalho dos administradores, atesta a legitimidade da atuação policial e favorece uma atuação cidadã e focada na promoção do bem-estar social. Nesse sentido, a Constituição de 1988 atribuiu ao Ministério Público o papel de fiscalização das polícias brasileiras. Ainda de acordo com Cubas (2010), é fundamental que em um Estado democrático existam estratégias democráticas e populares de controle da polícia e da Justiça. No caso do controle da atividade policial, a relação hierárquica parece não ser suficiente, uma vez que os próprios profissionais da segurança afirmam que a hierarquia da instituição, mesmo quando rigorosa, não torna indispensável o controle externo. Isso reforça a importância do trabalho em rede, conforme destacado por alguns autores. Considerando que os ouvidores não têm poder de sanção em relação às ilegalidades apuradas, a proximidade com outras agências como o Ministério Público, Defensorias Públicas, inclusive com os próprios comandos das polícias, pode acelerar o acesso às informações e processos, bem como favorecer o desenvolvimento de programas em conjunto para o aperfeiçoamento das atividades dos profissionais da segurança. (CUBAS, 2010, p. 93). É importante destacar que o controle das instituições policiais depende da transparência institucional, ou seja, a sociedade precisa ter acesso a informações e conhecer a organização da instituição. Cabe destacar ainda que o profissionalismo, a legalidade e a qualidade do trabalho policial preservam a própria democracia. 43 A formulação e efetivação de políticas públicas de segurança são fundamentais para a manutenção da ordem social. Nesse campo, destaca-se, portanto, o Estado como agente promotor destas políticas. As polícias integram o sistema de controle social e são agentes de efetivação de politicas de segurança. Entretanto, historicamente no Brasil, as instituições policiais são utilizadas prioritariamente em ações de repressão. Como disto anteriormente, a busca pela diminuição da criminalidade demanda ações integradas com vistas, à compreensão das causas e atuação na ampla garantia de direitos. Diante de um processo dinâmico e multicausal, as forças policias não podem ser responsáveis sozinhas pela resolução da criminalidade. Além disso, é preciso a reflexão sobre o modelo de polícia e policiamento, bem como da garantia de direitos dos profissionais ligados à segurança pública. Resumo da aula 4 Nesta aula destacamos que a sensação de insegurança da população e o medo podem ser fruto da difusão de notícias, ou dados sobre a violência, de forma exacerbada ou sensacionalista. Entretanto, a despeito de muitas vezes ser desproporcional, o medo pode gerar a demanda da população por estratégias de enfrentamento à violência. Abordamos ainda que uma das teses para as altas taxas de criminalidade seria a ocorrência de uma crise ética na sociedade. Tal crise significa que os indivíduos não aderem aos valores, práticas e normas previstas. A outra tese apresentada aponta que o Estado Democrático de Direito pressupõe um sistema de garantia de direitos e o respeito à dignidade da pessoa humana. Entretanto, o Estado muitas vezes falha no cumprimento dos direitos fundamentais garantidos nos instrumentos legais, resultando em desigualdades, discriminação e marginalidade. Diante de tais situações, caso os indivíduos não enxerguem razões ou vantagens em obedecer ao pacto social, o crime e a violência podem ocorrer. 44 A respeito disso, o enfretamento à criminalidade e à violência é feito por meio de políticas públicas de repressão do crime e não com políticas públicas que ataquem as suas causas, ou seja, que promovam os direitos fundamentais. Nesse contexto, ganha importância a polícia e sua ação. Entretanto as formas de organização e atuação das polícias variam de acordo com o país. Além disso, existem diferentes visões sobre a polícia, sua função, formas de atuação, de avaliação e monitoramento de sua eficiência. Atividade de Aprendizagem Com base nas informações apresentadas ao longo desta aula, explique as principais características do modelo de polícia tradicional e do modelo de polícia comunitária. 45 Resumo da disciplina Nesta disciplina buscou-se compreender o crime e a violência como fenômenos sociais e sociológicos e, desse modo, compreender suas ocorrências nas sociedades contemporâneas, em especial a brasileira, bem como as principais análises e contribuições que a Sociologia oferece para o entendimento destes fenômenos. Na primeira aula foi destacado o fato de o ser humano ser social, ou seja, que necessita da convivência com seus semelhantes para seu desenvolvimento. Destacou-se ainda que o processo de transmissão do conhecimento é um aspecto fundamental que distingue os seres humanos dos demais animais, na medida em que os seres humanos produzem, acumulam e transmitem conhecimentos. Assim, o conjunto de conhecimentos, percepções, visões de mundo compõem o que chamamos de cultura. A cultura, por sua vez, caracteriza-se como um processo de coerção, sendo assim, é uma forma de “imposição” de valores e práticas, na medida em que as práticas culturais, com seu uso, passam a fazer parte do cotidiano e influenciam os comportamentos coletivos. Tais práticas, com o tempo, geram regras que orientam a convivência social. Apontamos ainda que na vida em sociedade as vontades individuais são limitadas pelo coletivo, e regras sociais são criadas e aceitas com base na compreensão da necessidade de organizar as relações sociais. Nesse sentido, o controle social é um processo de regulação social, bem como um dos meios pelos quais a sociedade induz submissão aos padrões estabelecidos. Como visto na primeira aula, o processo civilizador teve como característica o controle dos instintos, afetos e sentimentos dos indivíduos e a incorporação de regras de comportamento e civilidade. Com a pacificação da conduta, os atos associados à violência passaram a ser regulados e repudiados. Com a consolidação do Estado Moderno, este passa a deter o monopólio da força. Na segunda aula destacou-se que a Revolução Industrial e a Revolução Francesa geram novos conflitos e problemas sociais que demandavam uma explicação. Objetivando compreender estes fenômenos sociais surge a Sociologia. Os teóricos clássicos da Sociologia Émile Durkheim, Karl Marx e 46 Max Weber possuem importantes contribuições para a compreensão da violência e do crime. Como apontado, para Durkheim, o crime pode ser compreendido como uma ação que vai contra as normas estabelecidas, então, contra a consciência coletiva. Mais do que isso, o crime, para Durkheim, é normal e tem uma função social, na medida em que a punição reforça a consciência coletiva. Entretanto, se a taxa de criminalidade aumenta ou assume proporções que comprometem a vida social, isso indicaria que a sociedade está em estado de anomia. Para o autor, o crime, portanto, não é causa da desintegraçãosocial, mas reflexo dela, sendo que altas taxas de criminalidade indicam que existem falhas nas regras de conduta ou nos valores morais. Por outro lado, podem apontar que as instituições que regulamentam o combate ao crime estão falhando. Max Weber, por sua vez, embora não tenha tomado o crime e a violência como objeto direito de suas obras, analisou o Direito e seu papel nas sociedades modernas. O autor considera que o Direito consolida orientações e parâmetros racionais a serem aplicados nas relações sociais, atuando como um mecanismo de controle. Por fim, para Karl Marx, a violência e a exploração são características estruturais do capitalismo. Para o teórico alemão, este sistema estaria pautado na propriedade privada dos meios de produção e na exploração dos trabalhadores. Além disso, tal sistema geraria, de acordo com os autores, desigualdades, miséria e exploração dos mais pobres. Nesse sentido, na perspectiva marxista, o crime pode ser compreendido como fruto das condições da sociedade de classes. Na terceira aula foram abordados diferentes usos da violência ao longo da história do Brasil, demostrando que a violência é um fenômeno social presente em diversos contextos da história brasileira, da colonização à Ditadura Militar. Embora as formas, meios e agentes se alteram ao longo dos diferentes períodos, a violência é onipresente na História do Brasil. Assim mesmo com a redemocratização e a Constituição de 1988 que lançou novos paradigmas para as relações sociais e políticas no Brasil, muitas mazelas geradas pelo violento processo histórico permanecessem e constituem desafios para a democracia brasileira. Apontou-se ainda que, em 2018, o Brasil contava com aproximadamente 602 mil pessoas privadas de liberdade, sendo que homens representam 95% 47 deste total. Quanto à faixa etária, 53,91% eram jovens com idade entre 18 e 29 anos, sendo que 54,96% negros. Quanto à tipificação penal, 27,58% das pessoas privadas de liberdade no Brasil respondem por roubo, cerca de 24,74% respondem por tráfico de drogas e 11,27% respondem por homicídio. Por fim, na quarta aula destacou-se que a sensação de insegurança da população e o medo podem ser explicadas pela difusão de notícias, ou dados sobre a violência, de forma exacerbada ou sensacionalista. Destacou-se ainda que a nação brasileira se enquadra na categoria do Estado Democrático de Direito, caracterizado pela soberania popular, pela democracia representativa e participativa e por sistemas de garantia de direitos. Nesse sentido, no Estado Democrático de Direito, as leis são criadas pelo povo, para o povo e respeitando a dignidade da pessoa humana. Entretanto, como destacou-se, falhas no cumprimento dos direitos fundamentais garantidos nos instrumentos legais resultam em desigualdades, discriminação e marginalidade. A situação de violações de direitos e ineficiência das instituições, por sua vez, podem fomentar a violência e a criminalidade. O aumento da sensação de medo e insegurança e das taxas de criminalidade geram a demanda pela ação da polícia que, conforme destacado anteriormente, pode ser definida como o grupo de pessoas autorizadas pelo Estado para regular as relações interpessoais dentro de uma comunidade por meio da aplicação da força física. Entretanto, assim como o crime na sociedade pode ser compreendido como abordado ao longo desta disciplina, como um sintoma de desregulação social, a violência policial, a corrupção e os conflitos com a lei por partes de membros de corporações podem ser compreendidos como sintomáticos da necessidade de reorganização dos modelos de polícia e policiamento, tendo em vista que, como apontado, os policiais, muitas vezes, também têm seus direitos fundamentais violados. 48 Índice Remissivo A criminologia e as concepções do crime ......................................................... (Conceito; Efeitos; Social) 19 A violência na história do Brasil ........................................................................ (Controle; Cultural; Violento) 29 As concepções sociológicas clássicas sobre conflitos, crimes e violência ....... (Convívio; Criminal; Início) 21 As transformações sociais na Europa e a consolidação da ciência social ....... (Conflito; Cultura; Revolução) 17 Controle social, Estado e instituições sociais ................................................... (Agressivo; Convivência; Padrões) 12 Crime e violência, aspectos conceituais ........................................................... (Análise; Intencional; Legitimidade) 27 Crime, violência e o Estado Democrático de Direito ......................................... (Praticas; Previsto; Valores) 37 Cultura e controle social ................................................................................... (Conhecer; Convívio; Real) 08 Estado, Direito político: perspectivas sobre segurança pública ........................ (Compreende; Esperança; Influencia) 36 O crime como problema social e sociológico .................................................... (Bases Teóricas; Contesto; Violência) 17 O crime no Brasil contemporâneo .................................................................... (Criminalidade; Histórico; Violência) 31 Polícia e novas perspectivas sobre segurança pública .................................... (Atuação; Espera; Organização) 40 Sociedade, cultura e controle social ................................................................. (Conflitos; Desenvolver; Social) 08 Uma arqueologia do crime e da violência na sociedade brasileira ................... (Dinâmico; Perspectiva; Violento) 26 Violência, medo e repressão ............................................................................ (Fenômenos; Social; Utopia) 36 49 Referências ALMEIDA, Adilson José de. Sociedade armada: o modo senhorial de atuação no Brasil Império. In: An. mus. paul., São Paulo, v. 23, n. 2, p. 93-138, dez. 2015 ANDRADE, Luciana Teixeira de; DINIZ, Alexandre Magno Alves. A reorganização espacial dos homicídios no Brasil e a tese da interiorização. In: Rev. bras. estud. popul., São Paulo, v. 30, supl. p. S171-S191, 2013. ARANÃO, Adriano. 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Diante de um processo dinâmico e multicausal, as forças policias não podem ser responsáveis sozinhas pela resolução da criminalidade. Além disso, é preciso a reflexão sobre o modelo de polícia e policiamento, bem como da garantia de direitos dos profi... Índice Remissivocausas. Nesta aula serão abordadas, ainda, reflexões sobre os modelos de policiamento e as necessidades de transformações nas instituições policias, bem como atenção à saúde dos policiais. 8 Aula 1 – Sociedade, cultura e controle social Apresentação da aula 1 Nesta aula abordaremos o processo sócio-histórico de consolidação de instituições e mecanismos de controle social. Para tanto, discutiremos o papel da interação social e sociabilidade no desenvolvimento dos seres humanos, bem como os conflitos gerados nesse processo. Partindo da premissa de que os seres humanos são animais sociais, ou seja, dependem da interação com seus iguais para o seu pleno desenvolvimento, a resolução dos conflitos é essencial para a manutenção das sociedades. Entretanto, as formas de resolução de conflitos transformam-se ao longo do tempo. Será abordado o processo de pacificação que levou ao surgimento das sociedades modernas a partir das contribuições da Sociologia, do surgimento e consolidação de instituições de controle social e da relevância do processo de socialização. Cabe destacar que o Estado Moderno se consolida como detentor do monopólio legítimo da força, atuando como agente de controle social a partir de diferentes instituições. 1.1 Cultura e controle social O ser humano é um ser social. Isso significa dizer que a convivência com seus semelhantes é fator essencial. Entretanto, outras espécies também vivem em grupos, ou seja, a vida em coletividade não é exclusividade dos seres humanos. Sendo assim, cabe a reflexão sobre a especificidade do ser humano e sua vivência em grupo. Tal reflexão está presente em diversos autores, de áreas como a Filosofia, Sociologia, Antropologia, História, Ciências Políticas, entre outras. Nesse sentido, buscaremos compreender as implicações do convívio social e seus desdobramentos, em especial o crime e a violência. Afirmar que o ser humano é um ser social significa dizer que o contato com seus semelhantes é essencial para que possa desenvolver suas 9 habilidades e potencialidades. Casos de seres humanos privados do convívio com seus semelhantes, como os meninos-lobo, demostram que estes apresentam alterações drásticas em seu desenvolvimento. Pesquise Para um aprofundamento sobre os meninos-lobo e seu desenvolvimento, acesse o link: http://www.oarquivo.com.br/variedades/curiosidades/2612- amala-e-kamala-a-historia-das-meninas-lobo.html Mais do que somente o convívio com seus semelhantes, um dos aspectos que distingue o ser humano dos outros animais é a linguagem. A linguagem, por meio da representação simbólica e abstrata, permite ao ser humano comunicar suas experiências e sua compreensão do mundo, bem como transmitir os conhecimentos. Das pinturas rupestres, papiros, aos livros, e à internet, a linguagem permite aos seres humanos comunicar e compartilhar seus conhecimentos. O processo de transmissão do conhecimento é outro aspecto fundamental que distingue os seres humanos dos demais animais. Os seres humanos produzem, acumulam e transmitem conhecimentos. O conjunto de conhecimentos, percepções, visões de mundo compõe a cultura de determinada civilização ou sociedade. O conceito de cultura tem múltiplas acepções, é um conceito complexo e difícil de ser sintetizado. De acordo com Eduardo Iamundo (2013), a palavra cultura tem múltiplos sentidos, incluindo o de senso comum (associado à erudição e escolaridade). O conceito de cultura varia de acordo com a ciência, a teoria e o autor que o utiliza. Uma das concepções possíveis compreende a cultura como as realizações humanas nos mais variados campos: científicos, artístico, tecnológico, usos, costumes, forma de organização do trabalho, portanto, todas as manifestações que marcam a presença do homem. (IAMUNDO, 2013, p. 193). Outra concepção possível é apresentada pelo antropólogo norte- 10 americano Clifford Geertz (1989), segundo o qual a cultura é uma teia de significados tecida pelo homem, que orienta a existência humana. A despeito das divergências, Roque de Barros Laraia (2001) sugere uma definição segundo a qual: Culturas tratam-se dos sistemas (de padrões de comportamento socialmente transmitidos) que servem para adaptar as comunidades dos homens às suas condições biológicas, sendo que o modo de vida das comunidades inclui tecnologias e meios de organização econômica, padrões de estabelecimento, de agrupamento social e organização política, crenças e práticas religiosas etc. (LARAIA, 2001, p. 59). É importante reforçar que as culturas são múltiplas, fruto de um processo complexo. Nascem da interação entre os homens, de suas experiências e necessidades em determinada sociedade e época. Compreendendo o ser humano como ser social e o papel da cultura, conforme exposto acima, cabe destacar outro aspecto importante. De acordo com Eduardo Iamundo (2013), a cultura também se caracteriza como um processo de coerção, ou seja, é uma forma de “imposição” de valores e práticas. De acordo com Eduardo Iamundo (2013), as práticas culturais, com seu uso, passam a fazer parte do cotidiano e influenciar os comportamentos coletivos. Tais práticas, com o tempo, geram regras que orientam a convivência social. Para o autor, as leis normatizam juridicamente as práticas sociais que determinada sociedade entende como aceitáveis (IAMUNDO, 2013, p.136). Entretanto, ainda de acordo com o autor, mesmo que fruto de práticas consolidadas, as leis, por si só, não geram obediência. Nesse sentido, reforça- se a importância do processo de socialização, levando os indivíduos a internalizarem as regras da sociedade em que vivem. As práticas culturais são formas de coerção, ou seja, impõem ao indivíduo formas de agir e/ou pensar. Estas práticas são transmitidas ao indivíduo no processo de socialização. Os processos de socialização podem ser compreendidos como um compêndio de interações entre seres humanos, das quais estes participam ativamente e assim tornam-se membros de determinada sociedade e cultura. Por meio de tais processos, os indivíduos 11 internalizam uma série de valores, formas de agir e maneiras de pensar (GRIGOROWITSCHS, 2008, p. 40). É importante destacar que o processo de socialização não ocorre de forma uniforme, ou seja, nem todos conhecem igualmente as práticas culturais. Outro aspecto fundamental é que mesmo conhecendo as práticas, valores e maneiras de pensar de sua sociedade, o indivíduo pode agir de forma distinta da desejada. Nas sociedades complexas, as proporções da sociedade, o número de indivíduos, as diferenças sociais e culturais dificultam ainda mais o processo de socialização. Nestas sociedades, se tornam necessárias diferentes formas e instituições de controle social, conforme abordaremos a seguir. Cabe destacar que sociedades simples também constituem redes de controle social e produzem formas de regulamentar a vida dos indivíduos. Nestas sociedades, a coerção, ou seja, a pressão e/ou repressão que a sociedade exerce sobre o indivíduo pode ser exercida por meio da moral, honra, religião, magia, entre outros mecanismos. A modelagem por esses meios [repreensão por meio do embaraço, medo, vergonha, culpa] objetiva a tornar automático o comportamento socialmente desejável, uma questão de autocontrole, fazendo com que o mesmo pareça à mente do indivíduo resultar de seu livre arbítrio e ser de interesse de sua própria saúde ou dignidade humana (ELIAS, 1994, p.153). Amplie Seus Estudos SUGESTÃO DE LEITURA No livro A Sociedade Contra o Estado, o antropólogo francês Pierre Clastres (1934-1977) aborda as relações de poder. O livro reúne artigos sobre as pesquisas de campo com as populações indígenas da América do Sul (Guayaki, Guarani, Chulupi, Yanomamie os Guaranis Mbyá) realizadas entre 1962 a 1974. Como aponta Norbert Elias (1994), a civilização é um processo, ou seja, caracteriza-se pela mudança, construção, avanços e retrocessos. Nas 12 sociedades complexas emergem novos meios de controle social e novas instituições. Nesse sentido, nas sociedades modernas o Estado atua no controle social, buscando manter os comportamentos dos indivíduos dentro dos padrões estabelecidos. 1.2 Controle social, estado e instituições sociais A vida social exige previsibilidade e padrões de comportamentos. Nesse sentido, na vida em sociedade as vontades individuais são limitadas pelo coletivo. As regras sociais são criadas e aceitas com base na compreensão da necessidade de organizar as relações sociais. Como dito anteriormente, além do processo de socialização, são necessários meios de administração, controle social e sanções dos comportamentos que ferem as práticas consideradas aceitáveis e as leis estabelecidas pela sociedade. O controle social, de acordo com Lucia Zedner (1996), diz respeito ao processo de regulação social, bem como aos meios pelos quais a sociedade induz submissão aos padrões estabelecidos. Tal conceito se opõe à visões segundo as quais a ordem social seria natural ou fruto do consenso entre os indivíduos. De acordo com a autora, nas sociedades urbanas, industriais e modernas, o consenso se torna cada vez mais frágil e são necessárias novas formas e instituições de controle social. As instituições sociais modernas consolidam-se em meio ao processo de racionalização, analisado pelo sociólogo Max Weber e que pode ser definido como: O resultado da especialização científica e da diferenciação técnica peculiar à civilização ocidental. Consiste na organização da vida, por divisão e coordenação das diversas atividades, com base em um estudo preciso das relações entre os homens, com seus instrumentos e seu meio, com vistas à maior eficácia e rendimento. Trata-se, pois, de um puro desenvolvimento prático operado pelo gênio técnico do homem. (FREUND,1975, p. 19). Entre as instituições sociais analisadas por Weber, destaca-se o Estado Moderno ocidental. Este é definido como uma comunidade humana para a qual o território faz parte de suas características e reclama para si (com êxito) o monopólio da coação física legítima (WEBER, 1982, p. 98). 13 É importante destacar que o monopólio da força é uma das principais características do Estado Moderno. Porém, a violência não é o único meio de exercício do poder por parte do Estado. Como aponta Marcos Augusto Maliska (2006) a família e até mesmo a igreja, ao longo do tempo, usaram a força física como instrumento de poder e dominação. Ao longo do processo evolutivo, os seres humanos, em diferentes sociedades, desenvolveram diferentes formas de sociabilidades e culturas. É importante reforçar que cultura constitui padrões de comportamento socialmente transmitidos, que, por sua vez, geram coerção sobre os comportamentos individuais. Ou seja, o convívio em sociedade implica que os indivíduos não ajam pautados apenas em suas vontades, desejos ou interesses. O processo civilizador, conforme análise de Elias (1994), teve como característica o controle dos instintos, afetos e sentimentos dos indivíduos e a incorporação de regras de comportamento e civilidade. De acordo com o autor, houve um processo de ruptura com os padrões de comportamentos medievais, como a crueldade, tortura, pilhagem e uso da força e violência para resolução de conflitos (como por exemplo nos duelos) e a imposição de um controle das emoções da agressividade. A manifestação individual de agressividade e violência foi gradativamente restringida e deslegitimada pelo Estado, que passou a proibir duelos, a restringir o uso de armas, a criminalizar justiceiros e à agressão física. A pacificação da conduta tornou-se um padrão dos “civilizados” e os atos associados à violência passaram a ser regulados e repudiados. Com a consolidação do Estado Moderno, este passa a deter o monopólio da força. Ou seja, os indivíduos e demais instituições “abrem mão” do uso da violência, em detrimento da ação do Estado como regulador da vida social. O exercício do poder é definido por Max Weber (1982-1999) como dominação. De acordo com o autor, existem três tipos básicos de dominação: Dominação tradicional; Dominação carismática; Dominação racional-legal. 14 Na dominação tradicional, o exercício do poder é legitimado pela crença nas tradições e a autoridade baseada nos costumes. Na dominação carismática, o exercício do poder é pessoal e a autoridade baseada na crença nas qualidades do líder. Já a dominação racional-legal, típica do Estado Moderno, é fundamentada no reconhecimento dos regulamentos estabelecidos pela racionalidade e a autoridade legitimada pela lei (WEBER, 1999). Como aponta Maliska (2006), um aspecto essencial no Estado Moderno é a burocracia. Na medida em que o exercício do poder demanda a definição e distribuição de competências e a aplicação de regulamentos e equipes qualificadas para o exercício de diferentes funções. Para Weber (1999), a burocracia representa uma organização racional, impessoal, eficiente e pautada na legalidade para o exercício da autoridade racional-legal. Nesse sentido, a burocracia na teoria weberiana favoreceria o cumprimento da lei, o bem-estar e a manutenção da ordem social. Para o exercício do poder e do monopólio legítimo da força, consolidam- se instituições entre as quais podemos destacar o sistema prisional, o judiciário e as polícias. Estas são instituições fundamentais no processo de controle social, ou seja, conforme apontado anteriormente, no processo de regulação social e na obediência aos padrões estabelecidos. Cabe destacar a importância do Direito, que nas sociedades ocidentais modernas substitui outros meios na solução dos conflitos de interesse, como a violência. Nesse sentido, o Direito consolida orientações e parâmetros racionais a serem aplicados nas relações sociais, atuando como um mecanismo de controle. Entretanto, é necessária a consolidação de trâmites burocráticos e instituições especificas: [...] a lei implica a existência de várias instituições denominadas instituições jurídicas, tais como tribunais, juízes, promotores, advogados, assistentes jurídicos e outras tantas. Essas instituições requerem o Estado e, por consequência, a autoridade, que entendida como pessoa ou grupo de pessoas legalmente investida do poder de execução das sanções cabíveis para cada caso individual. (IAMUNDO, 2013. p.197). Nas sociedades ocidentais, a partir da consolidação do Direito Moderno, os conflitos passam a ser regulados pelo poder judiciário. A prisão, por sua vez, como aponta Michel Foucault (1987), emerge como forma de punição em 15 detrimento das formas medievais, como o suplício público e a tortura. A partir do século XIX, a prisão impõe-se como principal mecanismo punitivo. A polícia, por sua vez, deve ser compreendida como instituição essencial no uso da força legítima por parte do Estado, na medida em que outras instituições podem recomendar medidas coercivas e mesmo direcionar seu uso, como fazem, respectivamente, as legislações e cortes, mas os policiais são os agentes executivos da força (BAYLEY, 2001, p. 20). É importante destacar, para os fins desta disciplina, que a consolidação de instituições e mecanismos de controle social são essenciais nas sociedades ocidentais modernas. Para tal, são definidas e distribuídas competências, aplicações de regulamentos, bem como constituídas equipes para o exercício de diferentes funções. Ou seja, o controle social demanda a organização burocrática do Estado. Entretanto, tendo em vista o conceito weberiano de burocracia, é evidente a discrepância entrea realidade, em especial a brasileira e o tipo ideal desenvolvido pelo autor. Cabe ressaltar que a Sociologia e mais especificamente a Sociologia da Violência apontam a importância do bom funcionamento do Estado, das instituições e da burocracia para a ordem social. Por outro lado, demostram como a ineficiência do Estado, das instituições de controle social e da burocracia podem favorecer a violência. Resumo da aula 1 Nesta aula foi abordada a importância da interação social no desenvolvimento, habilidades e potencialidades dos seres humanos. Distinguindo-se de outros animais, o ser humano não apenas interage com seus iguais, é capaz de representar, simbolizar, comunicar suas experiências e sua compreensão do mundo. Ou seja, o ser humano constrói e transmite suas formas de pensar, agir, se comportar e seus costumes. Este conjunto de práticas e padrões de comportamento constituem a cultura de determinado povo ou sociedade. A cultura, por sua vez, também é uma forma de pressão sobre os comportamentos individuais, influenciando os indivíduos a se comportarem de acordo com o que é aceitável na sociedade em que vivem. 16 A vida social exige previsibilidade e padrões de comportamento. Nesse sentido, na vida em sociedade as vontades individuais são limitadas pelo coletivo. As regras sociais são criadas e aceitas com base na compreensão da necessidade de organizar as relações sociais. O processo civilizador levou ao controle dos instintos, afetos e sentimentos dos indivíduos e à incorporação de regras de comportamento e civilidade. Houve, portanto, uma ruptura com os padrões de comportamentos medievais, como a crueldade, a tortura, a pilhagem e o uso da força e violência para resolução de conflitos (como por exemplo nos duelos) e a imposição de um controle das emoções da agressividade. A manifestação individual de agressividade e violência foi gradativamente restringida e deslegitimada pelo Estado, que passou a proibir duelos, a restringir o uso de armas, a criminalizar justiceiros e promover a agressão física. O Estado, por sua vez, é fruto do processo de racionalização característico da modernidade. Este se caracteriza pelo monopólio legítimo da força, pela prevalência da dominação racional legal e pela organização da burocracia. No campo do controle social, o Estado Moderno atua por meio do Direito, do poder judiciário, do sistema prisional e da polícia. Entretanto, o mal funcionamento das instituições acima podem favorecer a violência e colocar em risco o bom funcionamento da sociedade, conforme será abordado nas aulas a seguir. Atividade de Aprendizagem Com base nos argumentos apresentados nesta aula, discorra sobre como o monopólio da violência por parte do Estado favorece a manutenção da ordem nas sociedades modernas. 17 Aula 2 – O crime como problema social e sociológico Apresentação da aula 2 Nesta aula abordaremos as principais contribuições das Ciências Sociais, em especial da Sociologia, para a compreensão dos conflitos, do crime e da violência. Para tanto, faz-se necessário compreender o contexto sócio- histórico de surgimento da Sociologia, tendo em vista que os graves conflitos e problemas sociais da época culminaram com o surgimento da disciplina. Analisaremos, ainda, a concepção de criminologia, suas principais vertentes e as principais ideias de cada uma delas. É importante destacar que esta aula abordará o pensamento sociológico e da criminologia do século XVIII e XIX. O objetivo é demostrar as bases teóricas consolidadas sobre o tema. 2.1 As transformações sociais na Europa e a consolidação das Ciências Sociais Como apontado anteriormente, no processo de interações entre os seres humanos surgem conflitos. A natureza dos conflitos, bem como as formas como são resolvidos se alteram ao longo da história e variam de acordo com as diferentes culturas. O surgimento da Sociologia como ciência está diretamente relacionado ao surgimento de conflitos e à busca por novas formas de solucioná-los. Desde a Antiguidade Clássica, autores como Platão e Aristóteles debruçaram-se sobre o crime, suas causas e efeitos na sociedade. Na Idade Média, a violência, o terror e o autoritarismo faziam parte das relações sociais. O tratamento dado aos criminosos ou opositores era marcado pela violência e terror. Execução pública, tortura, quebra de ossos, desmembramentos, exposição das vísceras, entre outras práticas, reforçavam a violência como forma de punição aos desvios da norma estabelecida. Porém, o fim da Idade Média, a crise do feudalismo e a ascensão do capitalismo são alguns dos fatores que levaram a uma profunda transformação no continente europeu. Tais fatos culminam nas grandes revoluções, a Revolução Industrial e a Revolução Francesa. 18 A Revolução Industrial foi o conjunto de mudanças que aconteceram na Europa nos séculos XVIII e XIX. A principal característica desta revolução foi o processo de inovação tecnológica. A construção de máquinas a vapor leva a substituição do trabalho artesanal pelo assalariado e com o uso das máquinas. Cabe ressaltar que até o final do século XVIII, a maioria da população europeia vivia no campo, atuava na agricultura de subsistência ou na manufatura. Com a Revolução Industrial, alteraram-se as relações econômicas, sociais e de produção da época. O concomitante processo de cercamento transformou as terras comunais em propriedades privadas, levando ao êxodo rural e à ruptura com a organização econômica de base agrária. Os camponeses dirigiram-se aos núcleos urbanos, propiciando mão de obra barata e abundante. Entretanto, como dito anteriormente, as inovações tecnológicas e o uso de máquinas no processo produtivo diminuíram significativamente a oferta de postos de trabalho. Um alto índice de desemprego, condições de trabalho aviltantes, jornadas de trabalho que poderiam ultrapassar 16 horas diárias, acidentes de trabalho, baixos salários são apenas alguns dos graves problemas sociais gerados pela Revolução Industrial. As epidemias, altas taxas de violência, falta de moradias, aumento da mendicância e criminalidade também colocavam a sociedade da época em alerta. A Revolução Francesa, por sua vez, corresponde ao conjunto de agitações, de revoltas ocorridas entre 1789 a 1799 na França. O grande legado desta revolução foi a mudança na concepção e na prática da política, fruto da insatisfação com a monarquia absolutista e com os privilégios da aristocracia e dos religiosos. A burguesia francesa, com apoio de trabalhadores urbanos e camponeses, promoveu uma série de protestos e revoltas que culminaram com o fim do Antigo Regime. A Revolução Francesa buscou novos princípios para a ação política, simbolizados no lema revolucionário: liberdade, igualdade e fraternidade. Nesse contexto, a reorientação dos princípios do Estado, bem como a participação da burguesia no poder político se consolidam. Entretanto, o princípio de igualdade, tão caro aos revolucionários, não anula as desigualdades sociais que permanecem, apesar do novo ordenamento jurídico. 19 É nesse contexto de surgimento de novos conflitos que as Ciências Sociais e em especial a Sociologia se desenvolvem. Em tal conjuntura, a Sociologia foi compreendida como uma forma de buscar soluções para os conflitos e problemas sociais europeus. Vídeo Tempos Modernos (1936, Charles Chaplin). Este clássico do cinema apresenta uma abordagem dos dilemas e conflitos da sociedade moderna, bem como dos dramas e dificuldades enfrentados pelos indivíduos que buscam se adequar às novas normas, práticas e comportamentos. 2.2 A criminologia e as concepções do crime Como dito anteriormente, diferentes autores, desde a Antiguidade Clássica, abordaram a questão do crime, suas causas e efeitos na sociedade. No séculoXVIII, com as grandes transformações ocorridas na Europa, novas abordagens de base científica sobre o crime se consolidaram. De acordo com João Farias Júnior (1993), a criminologia pode ser compreendida como o estudo do fenômeno da criminalidade e suas causas. Conforme destaca o autor, a criminologia tem forte caráter interdisciplinar e diferentes vertentes e perspectivas. Ainda de acordo com o autor, no seu início, a criminologia buscava explicar as origens da delinquência. Pensava-se que eliminando as causas seria possível extinguir seus efeitos, ou seja, prever e eliminar o crime. De acordo com Luiz Flávio Gomes (2002), entre as diferentes teses e abordagens da criminologia, podemos destacar: a Escola Clássica, a Escola Positiva e a Sociologia Criminal. Na concepção da Escola Clássica, o crime era visto como fato individual, isolado e concebido como uma ação contrária à norma jurídica. Nesse sentido, não há foco na personalidade ou na realidade social do criminoso para compreender o crime. Para os representantes desta escola de 20 pensamento da criminologia, o criminoso escolheria de forma livre e soberana infringir a lei. Os principais representantes desta escola foram: Gian Domenico Romagnosi (1761-1835), na Itália, Jeremias Bentham (1748-1832), na Inglaterra e Paul Johann Anselm Ritter Von Feuerbach (1775-1833), na Alemanha (GOMES, 2002, p. 176). Ainda de acordo com Gomes (2002), a Escola Clássica, apesar de suas contribuições, não aprofundava suas investigações nas causas do crime, na medida em que considerava a livre decisão do autor como foco de análise. A Escola Positiva, por sua vez, teve como maior representante o médico italiano Cesare Lombroso. Este autor desenvolveu, com base na teoria da evolução das espécies de Darwin, a tese do criminoso nato. De acordo com Gomes (2002), para Lombroso, o criminoso era um homem menos civilizado que os demais membros da sociedade. A teoria lombrosiana partia do princípio de que o comportamento era biologicamente determinado. Para construir sua teoria, Lombroso utilizou o método da antropometria (medição de corpos), com vistas a encontrar evidências no formato de crânios, olhos, nariz e boca que apontassem para um padrão fenotípico (aparência) dos criminosos. Vocabulário Antropometria: método de identificação dos criminosos apoiado na descrição do corpo humano (medidas, fotografias, impressões digitais). A partir do século XIX, em especial após o 3º Congresso Internacional de Antropologia Criminal realizado em Bruxelas, em 1892, a Escola Positiva é alvo de duras críticas e começa a se consolidar a Sociologia Criminal. De acordo com Gomes (2002), a Sociologia Criminal busca na sociedade os fatores que expliquem as causas que motivam o crime. O sociólogo francês Émile Durkheim é um dos principais representantes desta escola de pensamento. 21 2.3 As concepções sociológicas clássicas sobre conflitos, crime e violência Como dito anteriormente, as Ciências Sociais, em especial a Sociologia, se desenvolvem em um contexto de fortes transformações e surgimento de novos conflitos. Em tal conjuntura, a Sociologia foi compreendida como uma forma de buscar soluções para os conflitos e problemas sociais da sociedade europeia. Entre os estudiosos que refletiram sobre os dilemas deste tempo estão: Augusto Comte, Émile Durkheim, Max Weber e Karl Marx. Em acordo com os objetivos desta disciplina, abordaremos a seguir as principais reflexões destes autores sobre os temas: conflitos, crime e violência. O francês Augusto Comte é considerado o fundador da Sociologia e do Positivismo. A perspectiva positivista de Comte rompeu com explicações teológicas para os fenômenos naturais e sociais. Para Comte, os fenômenos sociais, assim como os naturais, obedeciam a leis gerais que poderiam ser observadas e explicadas de forma racional e científica. Sendo assim, Comte defende a Sociologia como ciência própria para a investigação dos fenômenos sociais. De acordo com o autor, a Sociologia tomaria como base os métodos das ciências naturais. De acordo com João Ribeiro Júnior (2003), um aspecto fundamental da perspectiva de Comte é a compreensão de que a ciência pode entender e prever os fenômenos sociais. E, mais do que isso, poderia orientar as transformações da realidade social. Na perspectiva positivista de Comte, a sociedade se assemelha a um organismo vivo, no qual cada parte desempenha uma função. O bom funcionamento destas partes é essencial para a manutenção da ordem, o desenvolvimento e o progresso da sociedade. Ainda de acordo com Ribeiro Júnior (2003), na perspectiva positivista o crime e a violência apontariam para a ineficiência dos processos coercitivos da sociedade. Além disso, de acordo com o mesmo autor, Comte acreditava que os indivíduos eram naturalmente egoístas. Sendo assim, a educação deveria fomentar nos indivíduos o altruísmo e o senso de colaboração. Comte é uma das importantes influências intelectuais do grande pensador francês Émile Durkheim. Émile Durkheim nasceu em 1858, na França, nomeado docente na Universidade de Bordeaux, em 1887, ajudando a 22 criar o primeiro curso de Ciências Sociais e, em 1990, fundando o departamento de Sociologia nesta universidade. O positivismo, a abordagem científica dos fenômenos sociais e a busca por uma metodologia para o estudo da sociedade são parte do legado de Comte no pensamento durkheimiano. É fundamental destacar que a sociedade, para Émile Durkheim, é mais do que a soma dos indivíduos, é um sistema formado pela associação deles. Não existe ser humano sem interação, não há, entretanto, uma decisão deliberada por existir ou não interação. Pode-se afirmar que tanto os fatos sociais quanto a própria sociedade são fruto das interações entre os indivíduos. De acordo com Sidnei Ferreira Vares (2011), a sociedade, na concepção durkheimiana, é um conjunto de regras, normas e padrões de conduta produzidos pelos indivíduos em suas interações. Ou seja, uma síntese de relações entre seus membros. Sendo assim, a sociedade, na perspectiva de Durkheim, não pode ser compreendida com base em critérios biológicos ou psicológicos. Nesse sentido, Durkheim sugere que a Sociologia tome como objeto de análise os fatos sociais: É fato social toda maneira de agir fixa ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior, ou então ainda, que é geral na extensão de uma sociedade dada, apresentando uma existência própria, independente das manifestações individuais que possa ter. (DURKHEIM, 2002, p.11). A partir da concepção de fato social, é fundamental compreender as suas características: O fato social é reconhecível pelo poder de coerção externa que exercer ou é suscetível de exercer sobre os indivíduos; e a presença de poder é reconhecível por sua vez, seja pela existência de alguma sanção determinada, seja pela resistência que o fato opõe a qualquer empreendimento individual que tenta violentá-lo. Todavia, podemos defini-lo também pela difusão que apresenta no interior do grupo, desde que, de acordo com as precedentes observações, se tenha o cuidado de acrescentar como característica segunda e essencial, que ele existe independentemente das formas individuais que toma ao se difundir. (DURKHEIM,2002, p.8). Em suma, o conceito de fato social, na teoria de Durkheim, aponta que a sociedade influencia a forma de ser, pensar e agir dos indivíduos. Além disso, de acordo com Quintaneiro, Barbosa e Oliveira (2002), para Durkheim, as 23 sociedades modernas geram um alto grau de interdependência entre os indivíduos, ou seja, na medida em que há maior divisão social do trabalho, cada indivíduo especializa-se em uma função/profissão, dependemos dos demais membros da sociedade para sobreviver. Além disso, para Durkheim, as sociedadesse mantêm integradas em função da existência da consciência coletiva, esta pode ser definida como um conjunto de valores, normas, regras de conduta e prescrições. Nesta perspectiva, o crime pode ser compreendido como uma ação que, vai contra as normas estabelecidas, contra a consciência coletiva. Cabe ressaltar que, de acordo com Quintaneiro, Barbosa e Oliveira (2002), Durkheim aponta que a consciência coletiva e, portanto, a compreensão das regras e, por conseguinte, o que é considerado crime, mudam ao longo do tempo e variam de sociedade para sociedade. Mais do que isso, o crime, para Durkheim, é normal e tem uma função social, na medida em que a punição reforça a consciência coletiva e fortalece a regra. Entretanto, se a taxa de criminalidade aumenta a cada dia ou assume proporções que comprometem a vida social, isso indica que a sociedade está em estado de anomia. A anomia é definida por Durkheim (2010) como estado de ausência ou desintegração das normas sociais, desrespeito às regras comuns, às tradições e práticas estabelecidas. Sendo assim, o crime não é causa da desintegração social, mas reflexo dela. As altas taxas de criminalidade, de acordo com a abordagem de Durkheim, apontam que existem falhas nas regras de conduta ou nos valores morais. Por outro lado, podem apontar que as instituições que regulamentam o combate ao crime estão falhando. A compreensão de Weber se distingue consideravelmente da perspectiva de Durkheim. O pensador alemão Max Weber, nascido em 1864 e jurista de formação, desenvolveu abordagem distinta sobre a própria Sociologia, seus métodos e objetivos. Para Weber, a ciência é procedimento racional, que busca explicar os fatos. As ciências sociais, por sua vez, têm por objetivo reconstituir os atos humanos, compreender o significado que estes tiveram para os agentes, o universo de valores adotados por um grupo social ou indivíduo enquanto membro de uma determinada sociedade. 24 Nesse sentido, a teoria weberiana se afasta de abordagens que utilizam conceitos amplos, genéricos ou buscam por estabelecer leis gerais. Tais abordagens, na perspectiva de Weber, afastam o cientista social da realidade e da materialidade dos fenômenos. As construções teóricas devem ter coerência com fatos e ações reais, caso contrário, são apenas hipóteses. Portanto, a partir da realidade social infinita, cabe ao cientista social observar, selecionar, organizar e identificar regularidades, com o intuito de compreender as especificidades do objeto estudado e seus significados. O crime e a violência não são objeto direito de análise de Weber. Porém, uma contribuição fundamental da teoria de Weber para a compreensão dos fenômenos do crime e da violência é sua análise do Direito. Jurista de formação, Max Weber (1999) compreende o Direito Moderno como fruto de um processo de racionalização, que contribui para diminuir o poder dos sistemas tradicionais de dominação. Nas sociedades ocidentais modernas, o Direito substitui outros meios na solução dos conflitos de interesse, como a violência. Nesse sentido, o Direito consolida orientações e parâmetros racionais a serem aplicados nas relações sociais, atuando como um mecanismo de controle. O conflito social é a base da análise da sociedade desenvolvida por Karl Marx, pensador alemão nascido em 1818. Para o autor, as sociedades são historicamente divididas em grupos em constante conflito. Tal conflito é motivado pela disputa por poder e riqueza. Cabe ressaltar que a violência e a exploração são, de acordo com Marx e Engels (2007), características estruturais do capitalismo. Para os autores, este sistema estaria pautado na propriedade privada dos meios de produção e na exploração dos trabalhadores. Além disso, tal sistema geraria desigualdades, miséria e exploração dos mais pobres. Para Marx, o Estado configura-se como uma instituição de defesa dos interesses da burguesia. Da mesma forma, o Direito atuaria como uma ferramenta de legitimação da classe dominante. Um fator apontado por Marx e Engels (2007) é a atuação do Estado e do Direito na tutela e proteção da propriedade privada. Nesse sentido, na perspectiva marxista, o crime pode ser compreendido como fruto das condições da sociedade de classes. Porém, o crime como 25 reação individual à opressão é facilmente reprimido pelo Estado, pelo Direito e pelas demais instituições de controle social. Entretanto, a repressão do crime não o elimina, na medida em que suas causas remontam às características estruturais da sociedade capitalista. A principal contribuição das Ciências Sociais para a compreensão do conflito, do crime e da violência é a ruptura com explicações religiosas, biológicas ou estritamente psicológicas. Sendo assim, a despeito das divergências quanto à compreensão do fenômeno, busca-se analisá-lo com foco nos fatores sociais. Nesse sentido, o crime deixa de ser pensando como desvio moral, psicológico para ser compreendido como problema social e sociológico, conforme abordado pelos teóricos clássicos da Sociologia, em especial por Émile Durkheim. Resumo da aula 2 Nesta aula abordamos o contexto de fortes transformações e surgimento de novos conflitos que marcaram o desenvolvimento das Ciências Sociais, em especial da Sociologia. Em tal conjuntura, a Sociologia foi compreendida como uma forma de buscar soluções para os conflitos e problemas sociais da sociedade europeia. Foram apontadas, ainda, as diferentes teses e abordagens da criminologia dos séculos XVIII e XIX com destaque para: a Escola Clássica, a Escola Positiva e a Sociologia Criminal. Esta perspectiva de intervenção social esta fortemente presente no pensamento de Augusto Comte, considerado o fundador da Sociologia e do Positivismo. A perspectiva positivista de Comte rompeu com explicações teológicas para os fenômenos naturais e sociais. Para Comte, os fenômenos sociais, assim como os naturais, obedeciam a leis gerais que poderiam ser observadas e explicadas de forma racional e científica. O crime e a violência, para Comte, apontariam para a ineficiência dos processos coercitivos da sociedade. Abordamos, ainda, que Émile Durkheim, por sua vez, desenvolveu o conceito de fato social, apontando para a influência da sociedade na forma de ser, pensar e agir dos indivíduos. Durkheim analisou ainda o alto grau de 26 interdependência entre os indivíduos em função divisão social do trabalho. O crime, para Durkheim, é normal e tem uma função social, na medida em que a punição reforça a consciência coletiva, ou seja, fortalece a regra. Por fim, foi abordada a perspectiva de Karl Marx segundo a qual o crime pode ser compreendido como fruto das condições da sociedade de classes. Como reação individual à opressão, o crime é facilmente reprimido pelo Estado, pelo Direito e pelas demais instituições de controle social, fato que não o elimina, na medida em que suas causas remontam às características estruturais da sociedade capitalista. Atividade de Aprendizagem Com base nas contribuições de Émile Durkheim abordadas nesta aula, discorra sobre a relação entre crime e anomia para o autor. Aula 3 – Uma arqueologia do crime e da violência na sociedade brasileira Apresentação da aula 3 Nesta aula abordaremos as dinâmicas da violência na sociedade brasileira. Partindo da contribuição do livro clássico Arqueologia da violência (CLASTRES, 2004), no qual o autor aponta para o papel da guerra e da violência para a manutenção das comunidades indígenas. Publicado originalmente em 1977, o livro é fruto de longos anos de pesquisa de campo entre comunidades indígenas Guayaki, Guarani, Chulupi e Yanomami. Nesta obra, o autor demostra por meio de pesquisa etnográficas que a guerra não é fruto apenas da violência e agressividades dos povos indígenas, consideradosprimitivos e não civilizados por muitos teóricos. A tese defendida por Clastres é de que a guerra cumpre uma função social nas sociedades analisadas. Para o autor, os conflitos com outras etnias 27 fortaleceriam o senso de identidade dos grupos e impediria a construção de uma sociedade pautada em um poder centralizado, hierárquico e com figura de um líder. A pesquisa de Clastres oferece perspectivas sobre a pergunta frequente no que diz respeito ao crime e à violência: Seriam o crime e a violência universais? Estariam presentes em todas as sociedades e épocas? Com base nessas reflexões, serão abordados os diferentes usos da violência ao longo da história do Brasil. Por fim, com base em alguns dados sobre a violência no Brasil contemporâneo, buscaremos demostrar como estes apontam para a necessidade de reflexão sobre a ação do Estado, das instituições e sobre o modelo de segurança pública. 3.1 Crime e violência aspectos conceituais Como abordado até o momento nesta disciplina o conflito, o crime e a violência são fenômenos complexos e que permitem múltiplas abordagens. Entretanto, é importante compreender as especificidades históricas e culturais deste fenômeno, na medida em que as dinâmicas culturais estabelecem diferentes padrões de conduta e comportamento e, por conseguinte, definem aquilo que é considerado aceitável ou não em determinada sociedade e época. Cabe ressaltar ainda que as culturas são dinâmicas; modificam-se ao longo do tempo. Sendo assim, também os comportamentos considerados aceitáveis se alteram. De acordo com Arthur Arblaster (1996), não existe uma definição consensual de violência. De modo geral, ela pode ser compreendida como qualquer agressão física contra seres humanos, cometida com a intenção de lhes causar dano, dor ou sofrimento. (ARBLASTER, 1996, p. 803). O autor aponta, porém, algumas considerações necessárias sobre a concepção geral de violência, entre as quais podemos destacar: A intencionalidade; A legitimidade; Os meios. 28 Quanto à intencionalidade, é importante considerar não apenas a intenção explícita do autor, cabe também considerar as consequências dos atos cometidos. Nesse sentido, para Arblaster (1996), ato de violência não é apenas aquele em que se tem a intenção de gerar dano a outrem; também o são atos que têm como consequência danos a outras pessoas. No que diz respeito à legitimidade, é preciso considerar os aspectos legais e/ou morais do uso da violência. Como abordamos anteriormente, com a consolidação do Estado Moderno, esta passa a deter o monopólio da força, ou seja, os indivíduos e demais instituições “abrem mão” do uso da violência em detrimento da ação do Estado como regulador da vida social. Além disso, conforme aponta Weber (1999), o Estado atua no campo da dominação racional legal, ou seja, fundamentado no reconhecimento dos regulamentos estabelecidos pela racionalidade e a autoridade legitimada pela lei. Sendo assim, o uso da força legitimado pela lei não seria considerado violência, na medida em que, de acordo Arblaster (1996), violência designa apenas o uso ilegítimo da força. Por fim, quanto aos meios de exercício da violência, Arblaster (1996) aponta que esta não se limita aos meios que geram dano físico, ou ações que possam gerar dano físico ou psicológicos indiretamente (como privação de água, alimento ou sono, trabalhos forçados, entre outros) também são considerados violência. O crime, assim como a violência, não tem uma definição unânime. De acordo com Paul Rock (1996), o crime pode ser compreendido como uma infração do direito penal, ou uma infração ao bem público, passível de punição. Esta definição, no entanto, tem caráter fortemente legalista e institucional. É importante destacar de acordo com o autor, que mesmo em sociedade, sem a figura do Estado e de códigos jurídicos, a concepção de crime está presente. Sendo assim, uma concepção mais abrangente e cultural entende o crime como uma violação de hábitos e costumes (ROCK, 1996, p. 150). Outro aspecto importante é que, ao violar os hábitos e costumes estabelecidos, o crime representa um ultraje à sociedade, gerando danos a comunidade. Na atualidade, são comuns os debates sobre a violência e criminalidade. Nos meios de comunicação ou nas redes sociais repercutem-se cotidianamente crimes e casos de violência. Muitas vezes, diante desta 29 exposição, cria-se a impressão de que a sociedade está à beira de um colapso e a criminalidade fora do controle. Entretanto, análises mais aprofundadas produzidas no campo da Sociologia da Violência podem contribuir para melhor compreensão do fenômeno. Não se trata, portanto, de minimizar a criminalidade como problema social. Assim, nos termos sugeridos por Émile Durkheim, compreender o crime como fato social é questão sociológica. Cabe, portanto, relembrar, que para Durkheim, o crime não é causa da desintegração social, mas reflexo dela. Ou seja, as altas taxas de criminalidade apontam que existem falhas nas regras de conduta, nos valores morais ou nas instituições que regulamentam o combate ao crime. 3.2 A violência na história do Brasil De acordo com a historiadora Mary Del Priori (2017), a violência é um fenômeno social presente em diversos contextos da história brasileira. Mesmo antes da chegada dos portugueses, a guerra era parte da dinâmica social das diferentes etnias indígenas. No Brasil Colônia (1540-1822), a violência foi amplamente utilizada como forma de dominação das populações indígenas e na conquista de território. Um dos agentes da violência no Brasil colonial foram os bandeirantes, responsáveis por expedições que tinham a intenção de localizar, combater e escravizar indígenas hostis à colonização, localizar e destruir quilombos formados por negros e indígenas fugidos dos núcleos coloniais e a busca por metais preciosos. A mão de obra escravizada foi amplamente utilizada no Brasil até fim do Império. No processo de escravização e controle dos escravizados, a violência era amplamente aplicada, sendo: Algo que radica no centro da vida social no Brasil escravista. Ela refere-se ao fato de que boa parte daquilo que instituía a possibilidade de um "campo" de negociação e conflito entre senhores e escravos radicava na questão do exercício do castigo. O que se negociava, basicamente, eram seus limites. (LIMA, 2002, p. 132). 30 De acordo com Prudente (1988), a violência no contexto escravocrata, além de amplamente utilizada era considerada moral e juridicamente legítima. Assim como a escravização de indígenas e africanos, além de ser um negócio lucrativo, era legalmente regulamentado. Além disso, os castigos físicos como forma de controle e punição dos escravizados era considerado prerrogativa do senhor de escravos. No período Imperial (1822-1889), destaca-se o uso da força para controlar revoltas e rebeliões no território brasileiro. De acordo com Almeida (2015), a repressão aos movimentos revoltosos se dava, via de regra, de forma violenta e com muitas baixas. O autor destaca que a disparidade numérica e de recursos bélicos transformava, muitas vezes, as batalhas em chacinas de opositores. Além disso, a tortura, a execução e, em alguns casos, a exposição dos líderes reforçava o uso da violência e do medo como forma de exercício do poder. Se a Abolição da Escravatura e a Proclamação da República marcam a modernização do Brasil, levam também ao surgimento de novos agentes e formas de violência. No campo, os coronéis emergem como figuras que mobilizam a violência como forma de dominação. No meio urbano, por sua vez, os escravizados recém libertos enfrentam um contexto de pobreza, falta de empregos e habitação que levaram ao surgimento das favelas. Amplie Seus Estudos SUGESTÃO DE LEITURA Os Sertões é uma obra do escritorEuclides da Cunha (1866-1909). A obra narra os acontecimentos da sangrenta Guerra de Canudos, liderada por Antônio Conselheiro (1830- 1897), que ocorreu no Interior da Bahia, durante 1896 e 1897. Da Era Vargas (1930) à Ditadura Militar (1964-1985), a violência foi utilizada como forma de ascensão e permanência no poder. Mais uma vez, a 31 repressão violenta de revoltas e protestos, a perseguição, prisão, tortura e execução de opositores foi usada como forma de controle e poder. Podemos observar que as formas, meios e agentes se alteram ao longo dos diferentes períodos, porém, a violência é onipresente na História do Brasil. No bojo do processo de redemocratização, a Constituição de 1988 lança novos paradigmas para as relações sociais e políticas no Brasil. Porém, as mazelas geradas pelo violento processo histórico permanecem e constituem desafios para a democracia brasileira. 3.3 O crime no Brasil contemporâneo Como citado anteriormente, são diversos os debates sobre a violência e criminalidade no mundo contemporâneo. Além disso, a repercussão nos meios de comunicação e redes sociais de crimes e casos de violência, gera, muitas vezes, na opinião pública a sensação de medo diante do risco de um colapso social e da criminalidade fora do controle. De acordo com dados do Conselho Nacional de Justiça, em 2018, o Brasil contava com aproximadamente 602 mil pessoas privadas de liberdade. Sendo que homens representam 95% deste total. Quanto à distribuição geográfica, cabe destacar que o estado de São Paulo concentrava 28,73 da população carcerária masculina (BRASIL, 2018, p. 27). O perfil da população carcerária brasileira aponta que cerca de 53,91% eram jovens com idade entre 18 e 29 anos sendo que 54,96% eram negros. Já no que diz respeito à escolaridade, 71,15 % tinham nível fundamental completo e apenas 2% da população carcerária brasileira possui nível superior completo. Quanto à tipificação penal, conforme aponta o gráfico abaixo, 27,58% das pessoas privadas de liberdade no Brasil respondem por roubo. Cerca de 24,74% respondem por tráfico de drogas e 11,27% respondem por homicídio (BRASIL, 2018, p.38). Sendo assim, 63,59% das pessoas privadas de liberdade respondem aos tipos penais citados. 32 Fonte: BRASIL, 2018, p. 39. De acordo com Andrade e Diniz (2013), a década de 1980 marca uma alteração significativa na taxa de homicídios no Brasil. Segundo os autores, as taxas de homicídios no Brasil possuem duas características. A primeira é que a concentração ocorre nas capitais em relação às demais cidades dos estados. Ou seja, de 1980 a 2000, as taxas de homicídios das capitais costumavam ser maiores que a média do estado. Um segundo aspecto é que, no geral, no período citado, havia uma concentração nas regiões metropolitanas. Ou seja, havia uma tendência de as regiões metropolitanas apresentarem taxas de homicídios maiores do que a média do estado e do que a média nacional. Porém, a partir dos anos 2000, há uma alteração nos indicadores de homicídios no Brasil. Ainda de acordo com Andrade e Diniz (2013), dados apontam que a partir de 1999 houve uma desaceleração no aumento da taxa de homicídios nas regiões metropolitanas. Entretanto, observou-se no mesmo período o aumento das taxas em cidades do interior e com menor população, com isso, a taxa de homicídios passa a crescer mais no interior do que nas regiões metropolitanas e capitais. Entretanto, de acordo com Andrade e Diniz (2013), a análise dos dados, de 1980 a 2010, aponta não apenas para a interiorização ou disseminação da violência. De acordo com os pesquisadores, as alterações na ocupação, a consolidação de novas aglomerações urbanas, os ciclos econômicos e polos de desenvolvimento regionais, a reorganização do espaço urbano e os deslocamentos populacionais levam à redistribuição territorial do crime. 33 De acordo com o Atlas da Violência (IPEA, 2018), os homicídios representam 10% das mortes no Brasil, sendo os homens e jovens as principais vítimas. Ainda de acordo com dados do Atlas, a taxa de homicídios no Brasil apresentou aumento de 14% entre 2006 e 2016. Cabe ressaltar, entretanto, as enormes disparidades nos dados quando são distribuídos por estado. Pois enquanto o estado de São Paulo teve uma redução de 46,7% na taxa de homicídio no período analisado, o estado do Maranhão apresentou aumento de 121%. Cabe destacar ainda que 71% dos homicídios são cometidos como uso de armas de fogo. A Lei 11.343/2006, conhecida como Lei Antidrogas, alterou a legislação vigente e incluiu a distinção entre usuário e traficantes. Entretanto, não há definição dos parâmetros da distinção entre o uso e o tráfico. A indefinição ou brechas na lei é apontada por Cortina (2015) como um dos elementos que podem explicar o aumento da taxa de encarceramento por tráfico de drogas. Como destaca a autora, dados apontam para um aumento na taxa de encarceramento por tráfico tanto entre os homens quanto entre as mulheres. Ainda de acordo com Cortina (2015), pesquisas apontam para o aumento do encarceramento feminino. No sistema prisional, 62% das mulheres em privação de liberdade foram enquadradas no tipo penal de tráfico de drogas. É importante destacar que os dados de violência e criminalidade no Brasil contribuem para o aumento da sensação de insegurança e para o medo na população brasileira. O medo pode ser definido como o hábito que se tem, em um grupo humano, de temer uma ameaça real ou imaginária (DELUMEAU, 1989, p. 24). Partindo desta definição, pode-se estabelecer uma distinção entre medo e angústia, sendo o primeiro referente a algo que se pode fazer frente a angústia referente ao desconhecido, a algo temido justamente por não ser identificável. Segundo o mesmo autor, a angústia no século XX tornou-se a contrapartida da liberdade, na medida em que aventurar-se é abandonar a segurança e enfrentar riscos. Sendo a angústia um “medo sem objeto”, o homem incapaz de lidar com essa situação precisa transformá-la em medo de algo ou alguém. Ou seja, o homem fabrica o medo, elege determinadas coisas, pessoas ou grupos para evitar a angústia. 34 Contemporaneamente, a mídia tem importante papel na disseminação do medo, como demonstra Glassner (2003), no que diz respeito à cobertura dada ao crime, em grande medida sensacionalista, generalizadora, tomando fatos isolados como tendências e espetacularizando a violência. De acordo com o autor, pesquisas realizadas nos Estados Unidos constataram que os principais medos dos americanos são baseados em dados/notícias veiculadas pelos meios jornalísticos. A produção deste clima de medo é fundamental para “legitimar” junto à população as ações dos aparelhos estatais contra a violência. Porém, conforme abordamos ao longo desta disciplina, os estudos sociológicos sugerem que o enfretamento à ocorrência de altas taxas de criminalidade e violência aponta para problemas de ordem estrutural na sociedade. Pode-se observar que, sendo um sintoma da desregulação social e da falha das instituições, o combate ao efeito não alcança os resultados necessários se não são encarados os causadores do crime da violência. Diante deste cenário, fazem-se necessárias reflexões sobre a eficiência das instituições de controle social e de seus mecanismos. Nesse sentido, as últimas décadas têm sido marcadas por discussões acerca do papel das polícias e a necessidade de alterações nos modelos e padrões de policiamento. O processo arqueológico de compreensão dos fenômenos sociais pressupõe uma análise de múltiplas dimensões entre as quais: históricas, das relações sociais, das transformações da sociedade, das visões de mundo e ideologias. Embora a violência esteja presente ao longo do processo histórico brasileiro, suas formas de manifestação se alteram ao longo detempo. Um fator fundamental é a compreensão da legitimidade, dos agentes e instituições que utilizam e controlam o uso da violência. Sendo assim, ganha importância o papel do Estado na regulamentação, em acordo com sua função social, dos conflitos ocorridos na sociedade, bem como na construção de mecanismos burocráticos para controle da vida social. Os dados sobre violência, crimes e o sistema carcerário podem nos oferecer uma breve visão da dinâmica complexa do controle social da violência, bem como reforçar a necessidade de reformulação da política de segurança diante 35 das demandas sociais, das mudanças de paradigma nos sistemas de policiamento e no papel da repressão. Resumo da aula 3 Nesta aula apontou-se uma perspectiva sobre o papel social da guerra e da violência, podendo-se observar que o conflito pode cumprir um papel social na manutenção da sociedade. Nesse sentido, apontamos para as diferentes manifestações e usos da violência ao longo da história do Brasil. Como vimos, a violência foi amplamente utilizada como forma de dominação e controle das populações indígenas no processo de colonização. Além disso, o uso da força e da violência como forma de punição estavam na base do processo de controle da mão de obra no sistema escravocrata. Já no Período Imperial, o uso da força e da violência foi uma ferramenta utilizada no controle de revoltas, rebeliões e controle de núcleos de resistência, como os quilombos. Desde o coronelismo até a Ditadura Militar, o uso da força e da violência, embora não exclusivamente, para o acesso e manutenção do poder foi utilizado em diferentes momentos da história política do Brasil. A redemocratização e a Constituição de 1988 trazem novos paradigmas e fundamentam o Estado Democrático de Direito. Nesse contexto, a legitimidade do uso da força é regulamentada. Entretanto, a violência e a criminalidade não apenas permanecem, como aumentam ao longo dos anos. Sendo assim, colocam-se novos desafios ao Estado, no que diz respeito a sua atuação nas politicas de segurança pública. Alguns do novos debates e perspectivas sobre a atuação do Estado e da sociedade civil nesse campo serão apresentados na próxima aula. Atividade de Aprendizagem Com base no conteúdo desta aula e em seus conhecimentos prévios, discorra sobre um episódio, situação, fato da História do Brasil em que a violência tenha sido utilizada. Aponte quais foram as motivações do uso da violência, os meios utilizados, a intencionalidade, bem como os agentes/autores da violência e os principais afetados. 36 Aula 4 – Estado, Direito e polícia: perspectivas sobre segurança pública Apresentação da aula 4 Nesta aula abordaremos algumas reflexões e contribuições sobre as políticas públicas de segurança, partindo da compreensão de que as demandas e expectativas da população podem ser influenciadas por percepções distorcidas acerca do fenômeno da violência e da criminalidade. Além disso, o Estado democrático de Direito pressupõe a ação do Estado na garantia de direitos fundamentais e na manutenção da ordem. Na medida em que compreendemos que uma sociedade de paz absoluta é utópica, ao mesmo tempo que o medo e a sensação de insegurança são bastante presentes, faz-se necessário refletir sobre o papel e função da segurança pública e das instituições envolvidas. Entretanto, como veremos ao longo desta aula, existem diferentes visões sobre a polícia, seu papel, suas ações e a eficiência desta no enfrentamento à criminalidade. Diante disso, o diálogo entre sociedade civil e instituições tem sido apontado como uma estratégia para a melhoria da efetividade das politicas públicas de segurança. 4.1 Violência, medo e repressão Como afirmado ao longo desta disciplina, uma sociedade sem crime e violência é utópica. A ocorrência destes fenômenos sociais é normal, sendo necessária a atenção ao aumento repentino ou sucessivo na taxa de violência. Diante não apenas do avanço quantitativo das situações de violência, mas também da sensação de medo da população, buscam-se diversas formas de controle do crime e da violência. Paradoxalmente, em muitos casos, o meio utilizado para combate ao crime é a repressão e a violência. Desse modo, muitas vezes a violência é utilizada com o pretexto ou objetivo de garantir a paz e a ordem social. Nesse contexto, é importante considerar o papel do medo na legitimação de posturas violentas de repressão ao crime e à violência. 37 Como aponta Glassner (2003), a sensação de insegurança da população e o medo podem ser frutos da difusão de notícias, dados sobre a violência, de forma exacerbada ou sensacionalista. É importante destacar que isso não significa que o medo da violência seja infundado, já que os dados estatísticos apontam para a elevada taxa de criminalidade. O ponto levantado pelo autor é que a propagação de casos de violência pode gerar ansiedade e medo desproporcional nos indivíduos. De acordo com o mesmo autor, pesquisas realizadas nos Estados Unidos constataram que os principais medos dos americanos são baseados em dados/notícias vinculadas pelos meios jornalísticos. A produção deste clima de medo gera, em muitos casos, o clamor popular pelo enfrentamento à violência e é usado para fundamentar e legitimar as ações do Estado contra a violência. Entretanto, o enfrentamento, quando realizado com base na repressão pode fortalecer a sensação de medo e fomentar o aumento da criminalidade. Com isso, a sensação de medo generalizado pode levar a uma cobrança de ação cada vez mais “repressora” do Estado naturalizando-se as práticas violentas e muitas vezes extremistas deste, dissimulando as causas da violência. Além disso, observa-se que em contexto de medo generalizado há a valorização do papel “combativo”, ao invés de preventivo da polícia. Configura-se, então, um círculo vicioso, na medida em que o medo generalizado legitima ações repressivas por parte do Estado. Estas ações, por sua vez, podem ser violentas e, sendo amplamente divulgadas na mídia, aumentam ainda mais a sensação de medo. Como afirma Glassner (2003), é preciso considerar ainda que muitos grupos se beneficiam desta sensação de medo generalizado, surgindo daí o que alguns autores chamam de “indústria do medo”, que tem como objetivo lucrar com a venda de produtos e serviços que passem uma impressão de segurança aos seus consumidores. 4.2 Crime, violência e o Estado Democrático de Direito De acordo com Breunig (2018), uma das explicações para as altas taxas de criminalidade seria a ocorrência de uma crise ética na sociedade brasileira. 38 Ou seja, os indivíduos não adotam valores, práticas e normas previstas. Sendo assim, as taxas de violência e criminalidade seriam sintoma de uma crise profunda na sociedade. Outro aspecto fundamental decorrente desta compreensão é que, se a violência e a repressão são os únicos meios adotados no enfretamento à criminalidade, isso denota a falta de adesão da população às regras. Isto é, se o uso da força, da repressão e da polícia são os únicos meios de manter a ordem, os indivíduos obedecem por medo e não por consciência ou concordância com a norma. Além disso, como aponta Max Weber, existem diferentes formas de dominação (dominação racional-legal, dominação tradicional e dominação carismática) e alerta que o uso da força não pode ser a única forma de gerar obediência. De acordo com Aranão (2013), a nação brasileira enquadra-se na categoria do Estado Democrático de Direito. Este caracteriza-se pela soberania popular, pela democracia representativa e participativa e por sistemas de garantia de direitos. No Estado Democrático de Direito, as leis são criadas pelo povo, para o povo e respeitando a dignidade da pessoa humana. Como apontando anteriormente, a consolidação do Estado-Nação foi precedido