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TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA clusões sobre como as coisas devem ser, deveriam ter sido ou CAPÍTULO 3 deverão ser. Fontes do direito Argumentos práticos podem ser substantivos ou institucio- nais. Os substantivos apelam livremente a considerações de natureza moral, política, econômica, social etc. Os institu- cionais, por outro lado, baseiam-se em regras e procedimen- conceito de fonte apareceu no capítulo anterior, mas per- tos previamente estabelecidos. maneceu relativamente intuitivo e impreciso. Este capítulo A argumentação jurídica é predominantemente institucio- procura esclarecer o conceito e explicar o papel crucial que ele nal. A essa afirmação deu-se o nome de "tese cumpre na argumentação jurídica. capítulo mostra como as tese empírica que não é facilmente comprovada e cuja plau- fontes do direito devem ser usadas na argumentação jurídica sibilidade continuará a ser discutida ao longo do livro. para que ela se caracterize como um tipo de argumentação Para esclarecer a exata natureza da argumentação institucio- genuinamente institucional. Neste-capítulo, discutem-se: nal, é preciso que se diga mais sobre as noções de "fonte" e Fontes do direito "interpretação". Esses são os temas dos próximos capítulos. Fontes formais Fontes materiais Fontes obrigatórias Fontes opcionais Acúmulo de fontes 3.1 Fontes formais e materiais "Fonte do direito" é uma expressão ambígua. Há fontes for- mais do direito e há fontes materiais do direito. As fontes ma- teriais são quaisquer fatores que tenham influência sobre a forma como o direito surge e se desenvolve. Nesse sentido, para dar apenas um exemplo, a imprensa às vezes cumpre o papel de fonte material. Em países como o nosso, a imprensa é capaz de mover (para não dizer constranger) a atuação de legisladores, administradores e juízes. Campanhas da impren- sa, às vezes, estão por trás da criação ou alteração de leis, da implementação de políticas administrativas e da tomada de decisões judiciais momentosas. 48 49TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA CAPÍTULO 3 FONTES DO DIREITO Fontes formais, por outro lado, têm status mais oficial. São É difícil saber com que frequência fontes formais não são aqueles documentos (como leis e precedentes judiciais) ou prá- verdadeiras fontes materiais. Em outras palavras, é difícil sa- ticas (como os costumes) que os profissionais do direito tratam ber quando o uso explícito de uma fonte qualquer é insincero. explicitamente como fontes de respostas para solucionar ques- Já houve quem dissesse que os juízes frequentemente tomam tões jurídicas. É nas fontes formais do direito que os profissio- decisões com base em considerações ideológicas que perma- nais do direito costumam identificar as normas que figuram necem veladas sob uma enganosa retórica legalista. Isso foi como premissas maiores de seus silogismos jurídicos. uso dito, por exemplo, pelos realistas americanos na primeira me- sistemático de argumentos como o seguinte é o que constitui o tade do século XX. Os realistas mais extremados (pense em Código Penal como fonte formal do direito brasileiro: Jerome Frank [1947], por exemplo) parecem ter chegado ao ponto de negar qualquer identidade entre as fontes materiais Código Penal estabelece punição para o motorista que e as fontes formais em sistemas jurídicos como o norte-ame- dirija sob a influência do álcool. ricano. Juízes referem-se a leis e precedentes judiciais em seus Logo, argumentos, mas sempre decidem intimamente, velada- Quem dirige sob a influência do álcool deve ser punido. mente com base em outras considerações. Embora, prova- João dirigiu sob a influência do álcool. velmente, isso seja exagero, a verdade é que o discurso oficial Logo, pode enganar: coisas que não têm muita influência são even- João deve ser punido. tualmente apresentadas como se tivessem. Como afirmamos no capítulo anterior, uma maneira possível de interpretar a Uma coisa pode ser, ao mesmo tempo, fonte material e for- famosa declaração do ministro Marco Aurélio o compromete mal, desde que exerça influência efetiva sobre o desenvolvi- precisamente com a ideia de que suas decisões são motivadas mento do direito e essa influência seja sistematicamente re- por considerações de justiça, muito embora ele use um dis- conhecida pelos profissionais e pelas autoridades relevantes. curso legalista ou institucional. cumprimento dessa dupla função é um fato contingente, Em um livro sobre argumentação jurídica, as fontes for- isto é, algo que pode ocorrer, mas que não ocorre necessaria- mais merecem mais atenção que as fontes materiais. Isso de- mente. Às vezes, como no caso da imprensa, a influência é corre da própria definição de fonte formal como fonte sis- real, mas não reconhecida (e até veementemente negada). temática e explicitamente usada na resolução de questões Será, por exemplo, que os juízes do STF reconheceriam a in- jurídicas. status de fonte formal decorre da maneira como fluência que teve a imprensa sobre as decisões que tomaram argumentam os profissionais e as autoridades de que temos no caso do "mensalão"? Também há fontes, por outro lado, falado. A comunidade jurídica apela na sua argumentação a que, embora sistematicamente referidas pelos profissionais do coisas como leis, jurisprudência, costumes, doutrina etc., e direito e outras autoridades, podem não ter a influência suge- assim afirma a autoridade dessas fontes. Essa concepção de rida pela frequência dessas referências. fonte formal contrasta significativamente com outra concep- 50 51TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA CAPÍTULO 3 FONTES DO DIREITO ção, bastante disseminada entre autores brasileiros. Os autores Por que não condição necessária? Há casos indiscutíveis de que temos em mente não negariam que fontes formais são fontes formais cujo status independe historicamente de ex- aquelas oficialmente reconhecidas, mas discordariam da nossa pressa previsão legal. É sabido, por exemplo, que na Inglaterra concepção ampla de reconhecimento oficial. Os autores bra- precedentes judiciais são fontes formais obrigatórias. Outra sileiros às vezes tratam como fontes formais apenas aquelas maneira de dizer a mesma coisa é afirmar que, na Inglaterra, fontes que são reconhecidas como tais na legislação. Eles se adota o princípio stare decisis, isto é, o princípio de acordo olham, por exemplo, para o art. 4° da Lei de Introdução às com o qual precedentes judiciais vinculam. Também é sabido Normas do Direito Brasileiro (LINDB) para determinar o que o stare decisis não surgiu nem se estabeleceu na Inglaterra que é fonte formal no Brasil e deixam de fora, ou hesitam em por meio de lei. Pelo contrário, ele foi introduzido de maneira incluir, as fontes que não aparecem no texto legislativo (a ju- gradual pelos próprios juízes ingleses; os legisladores simples- risprudência, por exemplo, não é mencionada no art. 4° da mente consentiram. LINDB, embora seja difícil negar a sua importância na argu- Há, portanto, que distinguir entre reconhecimento oficial e mentação jurídica brasileira). Pode até ser verdade que as fon- reconhecimento legislativo. Em certo sentido, é uma pena que tes que cumprem papel de fontes formais no Brasil, hoje, se- tenhamos que fazer essa distinção. critério do reconheci- jam todas reconhecidas pela legislação (pela LINDB ou por mento legislativo é muito simples. De acordo com esse cri- outras leis). Mas, do ponto de vista da teoria geral do direito, tério, basta olhar a legislação de dado sistema jurídico para essa coincidência não torna o expresso reconhecimento legis- saber quais são as fontes formais daquele sistema: as fontes lativo condição necessária nem condição suficiente para o re- formais seriam apenas aquelas explicitamente listadas na le- conhecimento oficial. gislação. Por outro lado, é bem menos fácil empregar o crité- rio do reconhecimento oficial em sentido amplo, pois ele leva Por que não condição suficiente? Os legisladores depen- em consideração as práticas de diversos agentes e admite a dem do consentimento dos juízes e dos membros do Poder possibilidade de fontes formais não previstas na legislação. Executivo. Ou o governo age de forma coordenada ou se torna Para nós, fonte formal é aquilo que a comunidade jurídica, de inoperante. Imagine, por exemplo, o que aconteceria se os maneira geral, emprega explicitamente como fonte de respos- juízes do STF se recusassem firmemente a julgar ações diretas tas para a resolução de questões legais. de inconstitucionalidade dizendo que essa prática, apesar de autorizada, confere às decisões do tribu- 3.2 Fontes obrigatórias e opcionais nal o poder politicamente ilegítimo de derrubar ou alterar os que é complexo deve ser reconhecido como tal. A redução efeitos de leis democraticamente promulgadas. Seria possível do conceito de reconhecimento oficial ao conceito de reco- dizer que, a despeito da resistência do STF, o legislador foi nhecimento legislativo é uma maneira de esconder a comple- capaz de estabelecer as decisões judiciais relativas às ações di- xidade da realidade jurídica. Outra maneira de enganar-se é retas como fontes formais do direito? tratar como se fosse uma dicotomia rigorosa a importante 52 53TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA CAPÍTULO 3 FONTES DO DIREITO distinção entre fontes formais obrigatórias e fontes formais regula o aborto, ainda que acredite ser capaz de formular um opcionais (às vezes, a distinção é feita em termos de fontes argumento persuasivo que lhe permita evitar o sentido literal diretas e indiretas ou fontes primárias e secundárias). As fon- do Código. Suponha que o Código diga literalmente que o tes obrigatórias, como sugere a nomenclatura, são fontes que aborto só é admissível quando a gestante corre risco de mor- os profissionais do direito se veem obrigados a aplicar na re- rer durante o parto. juiz lida com o caso de Maria, uma solução de questões legais. As fontes opcionais, por outro gestante que abortou sem que corresse risco de morrer duran- lado, são aquelas que os profissionais acreditam ser relevantes te o parto. No entanto, a gravidez provocava em Maria uma mas que, ainda assim, podem ignorar impunemente. depressão severa que a levou em diversas ocasiões a tentar o A lei é considerada fonte obrigatória na maioria dos sis- suicídio. juiz pode tentar mostrar que o "espírito" do Códi- temas jurídicos modernos. Se há lei pertinente à questão ju- go Penal cujo fim implícito é o de proteger a vida da ges- rídica sendo discutida, ela não pode ser simplesmente ignora- tante antes mesmo de proteger a vida do feto recomenda a da. Ignorar uma lei pertinente equivaleria à violação de uma absolvição de Maria. Alguns colegas do juiz podem achar que obrigação legal. É claro que, como veremos no próximo capí- sua decisão é atrevida demais (ou "ativista" demais), mas o tulo, argumentadores engenhosos frequentemente se esqui- juiz não pode ser acusado de ignorar uma fonte obrigatória vam dos efeitos que decorreriam da aplicação da lei no seu do direito (ele pode até ser acusado de usar um método ilegí- sentido literal. Mas até mesmo o argumentador que evita apli- timo de interpretação da fonte em questão, mas essa é outra car a lei literalmente sente-se obrigado a fazer referência a ela história). Não é possível saber ao certo como se sairia o juiz e justificar a sua maneira de proceder. A doutrina, por outro com o seu apelo ao "espírito" do Código. que se pode dizer lado, é um exemplo de fonte formal que costuma ser tratada com relativa segurança, por outro lado, é que o juiz seria du- como opcional: os juízes podem usar escritos doutrinários ramente criticado pela comunidade jurídica, e provavelmente pertinentes como meios legítimos para a fundamentação da teria sua decisão revertida em eventual recurso, caso julgasse a solução que propõem para dada questão jurídica, mas eles favor de Maria sem fazer qualquer menção ao Código Penal. dificilmente serão criticados se optarem por não fazê-lo. Suponha agora que um criminalista renomado, professor A distinção entre fonte obrigatória e fonte opcional deve titular de prestigiada faculdade de direito, autor de livros in- ser tratada como uma distinção de grau. Há fontes intermedi- fluentes na comunidade jurídica, tenha escrito um artigo em árias entre o extremo das fontes que jamais podem ser igno- defesa de uma interpretação estrita do Código Penal no que radas e aquelas que podem ser ignoradas impunemente. Um diz respeito ao aborto. juiz sabe que a opinião do autor juiz sente-se obrigado a fazer referência a uma lei que diga contraria sua intenção de absolver Maria. Ele sabe também respeito ao caso que julga; ele espera ser duramente censurado que seria ótimo ter o criminalista do seu lado. Se o criminalis- pelos seus colegas (senão formalmente punido) caso ignore a ta tivesse opinião favorável a Maria, uma referência ao seu lei em questão. Se se trata de um caso de aborto, por exemplo, nome tornaria a decisão do juiz mais sólida, mais respeitável o juiz não pode ignorar o dispositivo do Código Penal que aos olhos dos seus colegas. Mas, como o criminalista não está 54 55TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA CAPÍTULO 3 FONTES DO DIREITO do seu lado, é provável que o juiz não o cite em sua sentença. fontes opcionais, mas cuja omissão, por si só, também não Outros juízes e advogados, percebendo a omissão do juiz, po- impugna a validade da sentença, parecer ou petição que as dem considerar a sentença tecnicamente frágil, mas não im- omite. Um bom exemplo, localizado entre os extremos da lei putariam ao juiz a violação de qualquer dever jurídico, o des- e da doutrina, é a jurisprudência. Decisões judiciais parecem cumprimento de qualquer obrigação profissional. Se a decisão ocupar posição intermediária na prática jurídica de muitos do juiz for revertida em outra instância, a reversão provavel- países da tradição romano-germânica. Está certo que, onde mente não terá como base o único fato de o juiz ter deixado não se adota o stare decisis, decisões judiciais isoladas não são de citar o criminalista. oficialmente reconhecidas como fontes obrigatórias. Mas até Eis a diferença entre uma fonte obrigatória e uma fonte mesmo nesses lugares as decisões de tribunais que ocupam opcional: fontes obrigatórias não podem ser ignoradas (sob posições altas na hierarquia judiciária costumam ter peso pena de violação de um dever jurídico); fontes opcionais po- maior que a opinião de juristas, embora tenham peso menor dem ser ignoradas. Deve ficar claro que fontes opcionais con- que a lei. tinuam sendo fontes formais do direito, isto é, documentos ou Uma última nota a respeito da distinção entre fontes obri- práticas oficialmente reconhecidos como capazes de dar ori- gatórias e fontes opcionais: a doutrina brasileira fala em fon- gem a prescrições que podem ser usadas na resolução de ques- tes subsidiárias, isto é, fontes que devem ser usadas quando tões legais. A citação do nosso criminalista hipotético por um alguma outra fonte obrigatória é obscura ou omissa. Pense, juiz seria bem-vista entre os seus colegas. Afinal, o criminalis- por exemplo, no art. 4° da LINDB: "Quando a lei for omissa, o ta é uma "autoridade". Ele não é uma autoridade exatamente juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e no mesmo sentido em que é uma autoridade o legislador que os princípios gerais de direito." Fontes subsidiárias como os editou o Código Penal, pois os profissionais do direito não costumes, apesar do status inferior sugerido pelo termo "sub- devem obediência ao criminalista. Mas, ainda assim, ele é tra- sidiário", podem ser fontes obrigatórias. São fontes cujo uso é tado como merecedor do respeito profissional da comunidade obrigatório quando alguma outra fonte obrigatória não oferece jurídica coisa de que não costumam gozar, por exemplo, orientação clara. Fontes obrigatórias subsidiárias, apesar de jornalistas influentes. Oficialmente, os jornalistas são tratados serem obrigatórias apenas em certas condições, não se con- como geradores de opiniões juridicamente irrelevantes. São, fundem com meras fontes opcionais, isto é, fontes cujo uso no máximo, fontes materiais. nunca é obrigatório. A comunidade jurídica reconhece, portanto, um grupo re- lativamente seleto de fontes do direito e estabelece uma hie- 3.3 Acúmulo de fontes rarquia no interior desse grupo. Há fontes obrigatórias, há Há uma série de fatos interessantes sobre a forma como as fontes opcionais e como a distinção é de grau há fontes fontes do direito são usadas na argumentação jurídica. Esta que ocupam posição intermediária. Trata-se de fontes que não parte do livro trata de alguns desses fatos e dá destaque ao que podem ser ignoradas de forma tão despreocupada quanto as pode ser chamado de acúmulo de fontes. 56 57CAPÍTULO 3 FONTES DO DIREITO TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA Os profissionais do direito procuram persuadir os seus da República, é motivada pela necessidade de impedir a ocor- interlocutores a aceitarem certas conclusões sobre como resol- rência de situações de risco que ameacem ou que façam peri- clitar todas as formas de vida, não só a do gênero humano, ver questões jurídicas importantes. Para atingir esse objetivo, mas, também, a própria vida animal, cuja integridade resta- eles comumente tentam basear suas conclusões no maior nú- ria comprometida, não fora a vedação constitucional, por prá- mero possível de argumentos convergentes. No próximo capí- ticas aviltantes, perversas e violentas contra os seres irracionais, tulo, veremos que essa preocupação também tem reflexos so- como os galos de briga ("gallus-gallus"). Magistério da dou- bre a forma como os profissionais do direito empregam os trina. (grifos nossos) diferentes métodos de interpretação jurídica. No que diz res- A legislação ambiental, a Constituição Federal (ambas leis, em peito ao tema do atual capítulo, os profissionais do direito sentido amplo), a jurisprudência, o da doutrina" costumam manifestar o desejo de mostrar que as normas usa- (diferentes autores são mencionados pelo relator ao longo do das nos seus argumentos derivam de mais de uma fonte. Pare- seu voto), todas essas fontes são apresentadas na ementa como ce-lhes mais poderoso o argumento jurídico que se apoia si- apoiando a conclusão de que a promoção da briga de galos é multaneamente na lei e na jurisprudência e na doutrina e em juridicamente proibida. Esse é um bom exemplo de acúmulo qualquer outra fonte formal do direito que esteja disponível. de fontes. Na argumentação jurídica, quanto mais, melhor. É como se, por trás de tal argumento, estivesse todo o sistema fenômeno do acúmulo de fontes é menos jurídico, com o peso esmagador de todas as fontes de que dis- que parece. Note que a ementa faz referência a fontes de dife- põe (ou, pelo menos, várias delas). Observe, a propósito, um rentes níveis hierárquicos: leis, jurisprudência e doutrina (nes- trecho da ementa da decisão tomada pelo STF na ADI (Ação sa ordem).* uso de fontes não obrigatórias tem funções Direta de Inconstitucionalidade) 1.856: diferentes em circunstâncias diferentes. Quando a lei é clara A promoção de briga de galos, além de caracterizar prática e indubitavelmente estabelece a norma que o argumentador criminosa tipificada na legislação ambiental, configura conduta pretende utilizar, as demais fontes cumprem a modesta fun- atentatória à Constituição da República, que veda a submissão ção de corroborar aquilo que a lei, por si só, é capaz de esta- de animais a atos de crueldade, cuja natureza perversa, à seme- belecer. É um fato curioso, mas real, que os profissionais do lhança da "farra do boi" (RE 153.531/SC), não permite sejam direito procurem outras fontes até mesmo quando já há al- eles qualificados como inocente manifestação cultural, de cará- guma fonte obrigatória capaz de lhes fornecer a resposta pro- ter meramente folclórico. Precedentes. A proteção jurídico- -constitucional dispensada à fauna abrange tanto os animais * Presumimos que a hierarquia de fontes, hoje vigente no Brasil, seja mais ou silvestres quanto os domésticos ou domesticados, nesta classe menos essa (desde que entendamos "leis" em sentido amplo, para incluir incluídos os galos utilizados em rinhas, pois o texto da Lei Fun- tanto a Constituição quanto a legislação infraconstitucional e até mesmo documentos que não emanam do Legislativo, a exemplo das súmulas vin- damental vedou, em cláusula genérica, qualquer forma de sub- culantes). É claro que outras fontes formais costumes, por exemplo missão de animais a atos de crueldade. Essa especial tutela, que também têm lugar na hierarquia. Ignoramo-las, por enquanto, por motivos tem por fundamento legitimador a autoridade da Constituição didáticos. 58 59TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA CAPÍTULO 3 FONTES DO DIREITO curada. Mesmo nesses casos, eles parecem querer apoiar-se no A fonte 1 proíbe X A fonte 2 proíbe A fonte 3 proíbe sistema jurídico como um todo, no peso das suas fontes toma- das em conjunto. Nunca nos esquecemos do que disse certa Logo vez um professor do escritório modelo da UFRJ. Ele orientava os alunos sobre como preparar um argumento que apareceria em uma de suas petições: "A lei está do lado do nosso assis- X é proibido tido. Vejam agora se a jurisprudência também não está." Por Figura 3.1 que não acumular?, pensava o professor. Fontes obrigatórias nem sempre são claras ou inequívocas. As nossas recorrentes referências a três fontes não devem O que acontece, por exemplo, quando a legislação que regula enganar o leitor. Fazemos essas referências apenas porque, no dado assunto é vaga, ambígua ou, por qualquer outro motivo, Brasil, é bastante comum que os profissionais do direito re- obscura? Nesses casos, a jurisprudência em particular, a corram ao trio lei + jurisprudência + doutrina. Argumentos forma como os juízes têm lidado com a imprecisão legal jurídicos que acumulam fontes podem naturalmente acumu- ganha um peso extraordinário. Na falta de lei clara, as reco- lar menos ou mais que três fontes. Em tese, um argumento mendações jurisprudenciais tornam-se uma fonte de maior jurídico poderia fazer referência a uma série muito ampla de importância. professor do escritório modelo não teria sim- fontes. Isso é perfeitamente compatível com a lógica jurídi- plesmente sugerido uma consulta à jurisprudência, mas a teria ca do "quanto mais, melhor". Mas a prática não é bem essa. solicitado enfaticamente se a lei não estivesse claramente do Sistemas jurídicos reais não multiplicam suas fontes formais nosso lado. papel caracteristicamente secundário da doutri- de maneira indefinida. Afinal, a disponibilidade de uma série na também se transforma quando, além de legislação obscura, muito extensa de fontes poderia afetar a capacidade do sis- a jurisprudência permanece dividida ou incerta. Em todos tema para impor limites institucionais sobre a atuação dos esses cenários, o argumentador costuma acumular fontes, mas profissionais do direito. É comum que os sistemas jurídicos as fontes interagem em cada cenário de maneira significativa- reconheçam uma série relativamente pequena de fontes e que mente distinta. Fontes obrigatórias claras são apenas corrobo- as fontes estejam organizadas hierarquicamente. Se as fon- radas, reafirmadas por fontes não obrigatórias que apontam tes admitidas pelo sistema fossem muitas e não houvesse hie- no mesmo sentido. Por outro lado, fontes obrigatórias obscu- rarquia entre elas, o profissional do direito frequentemente ras ou indefinidas são complementadas por fontes não obriga- enfrentaria as mesmas dificuldades enfrentadas pelo homem tórias (quando essas são mais claras e definidas). sábio da nossa história hipotética, aquele que não sabia a que Argumentos que acumulam fontes devem ser entendidos filósofo recorrer, ou melhor, aquele que não podia escolher como argumentos complexos convergentes. Considere o es- um filósofo específico sem se envolver em algum tipo de deli- quema na Figura 3.1. beração substantiva sobre as virtudes de cada filósofo. 60 61TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA CAPÍTULO 3 FONTES DO DIREITO Lembre-se de que a argumentação institucional, para ca- Administrativo Brasileiro", p. 650, ed., 2005, Malheiros; racterizar-se como tal, deve afastar considerações substantivas SERGIO CAVALIERI FILHO, "Programa de Responsabilidade em cada uma de suas etapas. Já na etapa preliminar da iden- Civil", p. 248, ed., 2003, Malheiros; JOSÉ CRETELLA JÚ- tificação da fonte apropriada isto é, na etapa da identifi- NIOR, "Curso de Direito Administrativo", p. 90, ed., cação do "lugar" a partir do qual se pode ou deve retirar algu- 2000, Forense; YUSSEF SAID CAHALI, "Responsabilidade ma norma o argumentador institucional precisa dispor de Civil do Estado", p. 40, ed., 1996, Malheiros; TOSHIO normas gerais que digam: "Considere aquele conjunto (seleto) MUKAI, "Direito Administrativo Sistematizado", p. 528, 1999, Saraiva; CELSO RIBEIRO BASTOS, "Curso de Direito de fontes e, em caso de conflito, respeite a seguinte hierar- Administrativo", p. 213, ed., 2001, Saraiva; GUILHERME quia..." As normas em questão podem ser determinadas por COUTO DE CASTRO, "A Responsabilidade Civil Objetiva no meio de legislação, jurisprudência ou costume oficial. que Direito Brasileiro", p. 61/62, ed., 2000, Forense; MÔNICA importa é que elas tenham sido consensualmente (ainda que NICIDA GARCIA, "Responsabilidade do Agente Público", tacitamente) definidas e que o argumentador institucional p. 199/200, 2004, Fórum, v.g.), cabendo ressaltar, no ponto, possa segui-las sem parar para pensar no justo, no bom, no a lição expendida por ODETE MEDAUAR ("Direito Admi- economicamente eficiente etc. nistrativo Moderno", p. 430, item n. 17.3, ed., 2005, RT) Até aqui a palavra "fonte" tem sido usada como abreviação [...]. de "tipo de fonte". De acordo com a linguagem usada até aqui, um argumento acumula três fontes quando apela à lei, à juris- A pluralidade de espécimes é capaz de gerar o mesmo tipo de prudência e à doutrina. É claro que um mesmo argumento problema que a pluralidade de tipos. Havendo leis, decisões jurídico pode recorrer a diferentes leis, a diferentes decisões judiciais ou escritos doutrinários conflitantes, o emprego de judiciais e a diferentes escritos doutrinários. Veja um exemplo uma ou outra lei específica, uma ou outra decisão, um ou de acúmulo de escritos doutrinários. argumento do minis- outro escrito doutrinário deve (sob pena de descaracterização tro Celso de Mello (ARE 705.643 AgR/MS) emprega apenas da argumentação institucional) se apoiar em algum critério um tipo de fonte (a doutrina), mas acumula uma variedade previamente estabelecido. de "espécimes" daquele tipo: conflito de leis é comumente resolvido por meio de cri- térios que, na nossa tradição, são conhecidos por expressões Essa concepção teórica [...] faz emergir, da mera ocorrência latinas como lex superior, lex posterior, lex specialis. Conflitos de lesão causada à vítima pelo Estado, o dever de indenizá- -la pelo dano moral e/ou patrimonial sofrido, independen- entre decisões judiciais normalmente são resolvidos em função temente de caracterização de culpa dos agentes estatais, não da antiguidade relativa das decisões e do nível hierárquico ocu- importando que se trate de comportamento positivo (ação) pado pelos tribunais que as emitiram. "A" doutrina, por sua ou que se cuide de conduta negativa (omissão) daqueles vez, só tem opinião bem definida quando há significativo con- investidos da representação do Estado, consoante enfatiza o senso entre doutrinadores a respeito do assunto em questão magistério da doutrina (HELY LOPES MEIRELLES, "Direito (o ministro Mello parece sugerir a existência de consenso sobre 62 63TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA CAPÍTULO 3 FONTES DO DIREITO o tema da responsabilidade objetiva do Estado quando se refe- réu alegou invalidade contratual fora do prazo P. re a nove autores). Na falta de consenso, só é possível recorrer Logo, a um doutrinador específico sem se desviar da argumentação A alegação de invalidade contratual feita pelo réu deve ser institucional caso o doutrinador seja reconhecido pela comu- rejeitada. nidade jurídica como "autoridade" de destaque, cujas opiniões prevalecem sobre as opiniões dos demais juristas.* B Uma última observação a respeito do acúmulo de fontes. Código Civil afirma que a violação de um contrato váli- Há que atentar para um fenômeno superficialmente parecido, do gera o dever de indenizar a outra parte. mas substancialmente diferente do acúmulo. Uma única dis- Logo, puta jurídica pode envolver uma série de questões jurídicas Quem viola um contrato válido tem o dever de indenizar a relacionadas. Por exemplo, uma coisa é saber se a violação de outra parte. um contrato válido gera o dever de indenizar; outra é saber réu violou o contrato que mantinha com o autor. em que momento do processo a validade do contrato pode ser Logo, questionada. Digamos que a primeira questão seja regulada réu tem o dever de indenizar o autor. por lei e a segunda pela jurisprudência. Suponha que um juiz rejeite a alegação de invalidade com base na tese de que ela A e são argumentos independentes, cada um apelando à sua não foi feita dentro do prazo estabelecido pela jurisprudência, própria fonte. As normas que figuram como premissas maio- e, em seguida, conceda o direito à indenização com base no res de cada silogismo são normas diferentes uma sobre que está previsto na lei. Esse juiz não acumula fontes (no sen- violação de contratos válidos, outra sobre alegação de invali- tido em que a expressão vem sendo usada); ele usa fontes di- dade contratual derivadas de fontes diferentes o Código ferentes em defesa de conclusões diferentes. Os argumentos Civil e a jurisprudência dos tribunais recursais, respectiva- do juiz poderiam ser representados da seguinte forma: mente. acúmulo de fontes (no sentido que nos interessa) ocorre apenas quando uma mesma norma é derivada de mais de uma fonte. que resulta, num caso paradigmático de acú- As últimas decisões dos tribunais recursais têm estabele- mulo, é um argumento complexo que termina em um silogis- cido que a alegação de invalidade contratual deve ser rejei- mo cuja premissa maior é simultaneamente justificada por tada, a menos que seja feita dentro do prazo P. dois ou mais argumentos simples independentes. Logo, É importante que fique clara a diferença entre um silo- A alegação de invalidade contratual deve ser rejeitada, a gismo cuja premissa maior goza do apoio de várias fontes e menos que seja feita dentro do prazo P. vários silogismos tratando de questões distintas, cujas pre- * Isso é possível, mas é incomum em sistemas jurídicos modernos. Voltaremos missas maiores recebem, cada uma, o apoio de uma fonte dis- a tratar do assunto no Capítulo 5. tinta. No primeiro caso, trata-se de um argumento que visa 64 65TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA CAPÍTULO 3 FONTES DO DIREITO dar conta de uma única questão; o acúmulo de fontes aumen- ção, além de alguns precedentes e da doutrina (lembre-se dos ta a probabilidade de que o argumento seja bem-sucedido. vários autores citados por Celso de Mello). A Súmula 279 não No segundo caso, são várias as questões debatidas, e os ar- diz nada acerca do caráter objetivo ou subjetivo da responsa- gumentos formulados para lidar com cada questão não têm bilidade civil do Estado, mas regula a possibilidade de se sus- nada de especial, visto que não acumulam fontes. citarem questões de fato em sede recursal extraordinária. Isso Considere mais um exemplo. Esta é a ementa de uma deci- mostra que a súmula não está sendo acumulada com as outras são do STF acerca de um recurso mencionado anteriormente fontes que aparecem na ementa. A súmula é usada na defesa (ARE 705643 AgR/MS): de uma tese; as demais fontes (elas, sim, acumuladas) são usa- das na defesa de outra tese. EMENT A: RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO (LEI 12.322/2010) RESPONSABILIDADE CIVIL OBJE- 3.4 Resumo TIVA DO ESTADO (CF, ART. 37, CONFIGURAÇÃO Fonte material do direito é todo que, reconhecidamen- ANIMAL EM RODOVIA ACIDENTE AUTOMOBILÍS- te ou não, exerce influência sobre a forma como o direito TICO COM VÍTIMA FATAL RECONHECIMENTO, PELO surge e se desenvolve. TRIBUNAL DE JUSTIÇA LOCAL, DE QUE SE ACHAM PRE- Fonte formal é todo "lugar" (por exemplo, documentos, co- SENTES TODOS OS ELEMENTOS IDENTIFICADORES DO DEVER ESTATAL DE REPARAR DANO NÃO COM- mo leis, decisões judiciais e escritos doutrinários, ou práticas PROVAÇÃO, PELO ESTADO DE MATO GROSSO DO SUL, sociais, como costumes) a que os profissionais do direito e DA ALEGADA INEXISTÊNCIA DO NEXO CAUSAL CARÁ- outras autoridades oficialmente recorrem para a resolução TER SOBERANO DA DECISÃO LOCAL, QUE, PROFERIDA de questões jurídicas. EM SEDE RECURSAL ORDINÁRIA, RECONHECEU, COM Fontes formais são mais importantes para os nossos propó- APOIO NO EXAME DOS FATOS E PROVAS, A INEXISTÊN- sitos que fontes materiais, pois estas não fazem parte neces- CIA DE CAUSA EXCLUDENTE DA RESPONSABILIDADE sariamente da argumentação jurídica (e, às vezes, são delibe- CIVIL DO PODER PÚBLICO DE radamente excluídas dela). REEXAME DE PROVAS E FATOS EM SEDE RECURSAL EX- Fontes formais podem ser obrigatórias ou opcionais. Podem TRAORDINÁRIA (SÚMULA 279/STF). DOUTRINA E PRE- também ocupar posição intermediária, visto que a distinção CEDENTES EM TEMA DE RESPONSABILIDADE CIVIL OB- é de grau. JETIVA DO ESTADO ACÓRDÃO RECORRIDO QUE SE Para possibilitar a argumentação institucional, os sistemas AJUSTA À JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FE- DERAL RECURSO IMPROVIDO. jurídicos reconhecem número limitado de fontes e as orga- nizam hierarquicamente. Quando as fontes do mesmo nível A Súmula 279 não diz nada a respeito da tese defendida pelo hierárquico entram em conflito, a argumentação institucio- tribunal acerca da responsabilidade civil objetiva do Estado. nal depende de critérios previamente estipulados para a re- Em defesa dessa tese, o tribunal usou o art. 37 da Constitui- solução do conflito. 66 67TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA acúmulo de fontes é um fenômeno comum na argumen- CAPÍTULO 4 tação jurídica. Argumentos que acumulam fontes são argu- Métodos de interpretação jurídica mentos complexos convergentes. As fontes acumuladas po- dem interagir de maneiras diferentes, corroborando-se ou complementando-se. acúmulo de fontes em defesa de uma tese não deve ser Depois de identificadas pelo profissional do direito, as fontes confundido com o uso de diferentes fontes em defesa de te- ainda precisam ser interpretadas. objetivo deste capítulo é ses sobre questões jurídicas distintas suscitadas no contexto discutir os diferentes métodos que podem ser usados na inter- de um mesmo processo. pretação de fontes do direito a legislação em particular. Os diferentes métodos de interpretação podem ser caracterizados como sendo mais ou menos institucionais. Os conceitos dis- cutidos neste capítulo são os seguintes: Interpretação Métodos formalistas Métodos não formalistas Textualismo Propósito: objetivo e subjetivo Interação entre métodos Interpretação constitucional 4.1 0 que é interpretação No contexto do direito, a palavra "interpretar" é usada em dois sentidos significativamente diferentes. No primeiro sentido, mais amplo, interpretar envolve discernir o sentido de um tex- to legal. No segundo sentido, mais estreito, interpretar envolve discernir o sentido de um texto legal que, a princípio, é difícil ou obscuro. No segundo sentido, portanto, interpretar é o mes- mo que decifrar, dar sentido ao que não é claro. Eis um exem- plo do emprego da palavra "interpretar" no segundo sentido: Cortes supremas servem para interpretar o texto constitu- cional, nos inúmeros casos em que a letra da lei não oferece 68 69

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