Buscar

Revista Cult Os alienistas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 3, do total de 3 páginas

Prévia do material em texto

03/06/2015 Revista Cult » Os alienistas
http://revistacult.uol.com.br/home/2011/07/os­alienistas/ 1/3
Assine 0800 703 3000 SAC Bate­papo E­mail Notícias Esporte Entretenimento Mulher Shopping BUSCAR
Edições Marcia Tiburi Welington Andrade Oficina Literária TV CULT Espaço CULT Loja CULT
na Cult na Web
 
Home  > Edições  > 159  > Os alienistas
Os alienistas
Foucault detectou a tendência da psiquiatria em transcender os muros dos manicômios e associar a loucura a todo
tipo de “anormalidade”
TAGS: anormalidade, foucault, manicômio, psiquiatria
Ernani Chaves
No Natal de 1958, Georges Canguilhem escreve a Foucault, depois de ter lido o manuscrito de
Loucura e Desrazão: “Não mude nada, temos aí uma tese”.
Naquela época, Foucault ainda estava na Suécia, trabalhando como adido cultural, e enviara
seu manuscrito a Canguilhem, que, desde novembro de 1955, havia sucedido Gaston Bachelard
na cátedra da Sorbonne, por sugestão de outra grande figura da filosofia francesa do pós­
guerra e que havia sido um de seus mestres na rue d’Ulm: Jean Hyppolite.
A frase lapidar e precisa de Canguilhem pode servir como uma espécie de emblema para
qualquer avaliação que se faça da “atualidade” da História da Loucura – ou seja, não é
preciso mudar nada nesse livro para que ele continue sendo sempre uma fonte inesgotável de
reflexão e trabalho.
Penso aqui numa concepção de “atualidade” que não se refere única e exclusivamente àquilo
que, desse livro, ainda pode ser considerado legítimo ou verdadeiro, numa espécie de
“recorrência” segundo a qual o presente julga o passado de uma ciência, de um campo de
saber, baseado em critérios que são do próprio presente.
Como sabemos, o critério da “recorrência”, tão fundamental para a história das ciências
professada por Bachelard, foi criticado por Foucault desde, justamente, a História da
Loucura. A “atualidade” de uma obra, portanto, é inseparável de sua própria história,
entendida aqui tanto como a história de seu surgimento quanto a história de sua posteridade.
Dessa perspectiva, indagar sobre a “atualidade” desse livro exige, antes de mais nada, que
façamos essa pergunta com base em nosso próprio solo – o Brasil – e no “presente que hoje
somos”, como assim o exige o próprio Foucault.
Trata­se, portanto, de uma “atualidade” que, em vez de cortar os laços entre presente e
passado, significa, ao contrário, estabelecer entre eles um espaço necessário de interrogação e
interpelação. Assim sendo, o “presente que hoje somos” só adquire a fisionomia que lhe é
própria na medida em que pode dirigir­se ao passado – não para venerá­lo, mumificá­lo,
ornamentá­lo, mas para recolher seus apelos, suas vozes, mesmo que frágeis e antes que elas se
apaguem definitivamente.
Que apelos são esses? Que vozes são essas? São os apelos e vozes, em geral na forma de
gemidos, gritos, uivos, no dobrar­se quase animal dos corpos nus, estendidos num chão
quente, corpos encarcerados, cujo destino era estar ali para sempre, à espera da própria morte.
Mortos­vivos
EDIÇÃO  202
EDIÇÕES ANTERIORES
TWITTER
Tweets by @revistacult
  
03/06/2015 Revista Cult » Os alienistas
http://revistacult.uol.com.br/home/2011/07/os­alienistas/ 2/3
Não exagero quando pinto com essas cores o retrato dos antigos asilos, depósitos de loucos, ou
melhor, de mortos­vivos, para os quais não havia nenhum consolo, nenhuma esperança.
Essa era a realidade da maioria dos antigos hospitais psiquiátricos brasileiros, que escondiam
por trás de suas fachadas pomposas, construídas ainda no final do século 19, uma espécie de
miséria diante da qual não havia nenhuma política pública, mas também nenhuma
comiseração. O espaço asilar, entretanto, só poderia ser compreendido no exercício desses
processos de exclusão absoluta e extrema, à luz de sua própria história.
Eis o primeiro aspecto fundamental que os leitores da primeira hora, de ontem, de hoje, mas
também os do futuro reconheceram ou vão reconhecer no primeiro grande livro de Foucault.
Ao contrário de uma história hagiográfica, que transformava o psiquiatra em libertador dos
loucos, ao contrário de uma história evolutiva e linear, que saudava o advento da psiquiatria
como a ciência que enfim desvelara a verdade da loucura, ou seja, a loucura como doença
mental, Foucault restitui a questão a um plano absolutamente inédito, o da história, mas não o
de qualquer história, e sim aquela do embate entre razão e desrazão.
Com isso, ele inscrevia a questão da transformação da loucura em doença mental no interior
dos processos que constituem a partilha entre razão e desrazão, uma partilha que fundou,
como se sabe, a própria filosofia.
Com isso, chegamos ao segundo ponto: ao inscrever o nascimento do asilo e da psiquiatria no
interior do embate entre razão e desrazão, Foucault transforma ambos, o asilo e o psiquiatra,
num problema filosófico. E isso não é pouco, pois significa também reinscrever o espaço
tradicional próprio à filosofia, que parecia absolutamente indiferente a esses “objetos”
estranhos, esquisitos, julgados sem dúvida como pouco dignos diante das grandes questões
acerca do ser, da verdade, da essência.
Formado na Escola Normal Superior da rue d’Ulm, Foucault não poderia ser acusado de
desconhecer os grandes temas da tradição filosófica. Leitor de Nietzsche, ele pode, desde o
início dos anos 1950, lutar contra o “pecado hereditário” de todos os filósofos: “a falta de
sentido histórico”.
Mas também leitor de Kant, sua decisão de escrever uma tese complementar sobre a
Antropologia do Ponto de Vista Pragmático já anunciava sua ideia posterior de que toda
filosofia deve ser uma “ontologia do presente”.
Os três “Hs”
Formado na leitura de Husserl, Heidegger e Hegel, os três “Hs” que dominaram grande parte
do pensamento filosófico francês do pós­guerra, ele aprendeu, distanciando­se da
fenomenologia, a questionar o estatuto do sujeito.
Com Althusser, outro de seus mestres, ele tomou contato com o pensamento de Marx e com o
marxismo, embora sempre tenha recusado a distinção entre ciência e ideologia. Aproximando­
se do último Merleau­Ponty (e, com isso, afastando­se decididamente de Sartre), pôde, enfim,
estabelecer um diálogo entre a filosofia e as ciências humanas.
É na convergência – e na divergência – de todos esses caminhos que a História da Loucura
pôde surgir, transformando o filósofo num interlocutor fundamental e necessário para um
conjunto de questões que pareciam não se incluir no campo nobre da filosofia.
Nessa perspectiva, vemos surgir um tipo especial de filósofo­historiador que deixou marcas
profundas e indeléveis no Brasil. Se a primeira viagem de Foucault ao Brasil o confrontou com
a ditadura militar no campus da USP, suas conferências sobre As Palavras e as Coisas não
produziram o efeito posterior provocado por suas outras visitas ao nosso país.
O que Foucault passa a expor no Brasil, nos anos 1970, em diversas ocasiões, no Rio de
Janeiro, em Minas, na Bahia, em Pernambuco, no Pará, é o resultado de uma profunda
autocrítica à História da Loucura, tal como, em especial, os cursos “O Poder Psiquiátrico”
(1973­1974) e “Os Anormais” (1974­1975) documentam com eloquência.
Eis, portanto, a fulgurante “atualidade” desse livro: seu próprio autor volta­se para ele para
retomá­lo, reinscrevê­lo (e não reescrevê­lo) nas novas possibilidades de análise abertas pela
problematização das relações entre saber e poder. À luz dessa autocrítica, a História da
Loucura teve seu poder de fogo visivelmente ampliado, na medida em que o espaço asilar se
legitima não como espaço da repressão, mas como espaço disciplinador, normalizador.
Por outro lado, ao avançar em seus estudos acerca do “poder psiquiátrico”, Foucault pôde
distinguir dois movimentos essenciais na história da psiquiatria do século 19: o primeiro
quando apenas o louco transformadoem doente mental era seu objeto e o asilo o espaço
institucional de sua intervenção, correspondendo às três primeiras décadas do século 19.
O segundo, entretanto, implica mostrar de que maneira a psiquiatria como que arromba os
muros do asilo e torna sua intervenção ampliada para todo o corpo social. Ao louco como
doente mental vão juntar­se todos os “anormais”. Agora, sim, a psiquiatria, triunfante, pode
ser legitimada como o saber­poder por excelência, que aglutina, engloba, organiza, diversifica
e rearranja tudo que diz respeito à distinção entre normal e anormal.
Ao Foucault formado na rue d’Ulm não escapou, entretanto, que essa distinção, na aparência
puramente médica e, portanto, “científica”, se relacionava também com outras duas, uma
03/06/2015 Revista Cult » Os alienistas
http://revistacult.uol.com.br/home/2011/07/os­alienistas/ 3/3
Comente    Compartilhar Imprimir
ARTIGOS RELACIONADOS
22/08 ­ As contracondutas de Foucault no Brasil
29/02 ­ Psicanálise em cena
12/01 ­ Marx, Adorno, Deleuze, Bourdieu, Hannah Arendt, Foucault, Habermas, etc.
06/01 ­ Reich e a invenção do sexo
0 Comentários Revista Cult  Entrar1
 Compartilhar⤤ Ordenar por Melhor avaliado
Comece a discussão...
Seja o primeiro a comentar.
Assinar feed✉ Adicione o Disqus no seu sited Privacidade
 Recommend
epistemológica, por meio da separação entre o verdadeiro e o falso, e outra ética, por meio da
distinção entre o moral e o imoral. Entre anormalidade e loucura estabelecia­se um liame
indissociável, e a função da psiquiatria como uma forma de medicina social estava
inteiramente legitimada.
Foi assim, então, que as reflexões de Foucault puderam estar na origem do movimento
antimanicomial e na base das formulações essenciais da reforma psiquiátrica brasileira.
Isso não é pouco. Mas também não é suficiente. A “atualidade” da História da Loucura ganha
assim seu elemento mais essencial, aquele que nos exige escutar as vozes que vêm do presente.
Não há mais gritos, não há mais nenhum clamor?
Ernani Chaves é professor na Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Pará e
autor de Foucault e a Psicanálise (Forense Universitária
Editora Bregantini Assine ou compre a Cult Anuncie Equipe
Pç. Santo Agostinho, 70 | 10º andar | Paraíso | São Paulo, SP | CEP 01533­070 | Tel.: (11) 3385­3385 ­ Fax.: (11) 3385­3386
Copyright © 2014 Editora Bregantini. Todos os direitos reservados.
30 pessoas curtiram isso.Curtir

Outros materiais