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MÉTODO PSICANALÍTICO Aula 2 Profª Juliana Lourenço 2 CONVERSA INICIAL Antes de iniciarmos esta etapa, precisamos lembrar que a psicanálise trouxe um avanço para a sociedade ao instaurar a ideia de que o homem não se restringe ao seu biológico, mas, ainda assim, ela segue sendo alvo de ataques por aqueles que pretendem substitui-la por tratamentos químicos julgados mais eficazes por inibir os sintomas dos quais o homem não quer nada saber. Podemos observar que as histéricas já não são as mesmas de Freud, o corpo já não é tão atormentado como antes e, em seu lugar, surge um ser angustiado, com um sofrimento psíquico em forma de depressão, um inimigo invisível e silencioso que devasta a alma. Assim, de um lado temos o saber da psicanálise e os sintomas da atualidade, que surgem sob o sujeito concebido pela ciência, que, por outro lado, não exerce eficácia sob ele. Eis, então, a pergunta: por que a psicanálise hoje? TEMA 1 – PSICANÁLISE E CIÊNCIAS Desde a sua criação, a psicanálise sofre ataque pelos que se dizem do lado da ciência, considerada por eles um sistema de interpretação literária dos afetos e dos desejos, que, por assim ser, não depende da experimentação. Assim, em nome de uma “ciência cognitiva”, a única capaz de atestar uma “ciência verdadeira”, insistem em repensar a organização de todos esses campos, tal como a sociologia, a história, a antropologia, a linguística etc. Segundo os comentários de Roudinesco (2000) em seu livro Por que a psicanálise?, “esses procedimentos cientificistas pressupõem que existiria uma separação radical entre as chamadas ciências ‘exatas’ e as chamadas ciências ‘humanas’”(p. 113). Essa concepção se inclina para uma aberração. A exemplo disso, temos a comemoração do centenário da psicanálise, que teve seu evento adiantado na Library of Congress (LOC) por conta de uma petição que considerava o evento demasiadamente institucional. O fato é que a psicanálise propõe uma ruptura com os “saberes oficiais”, e reconhece de forma racional os fenômenos que outrora foram marginalizados. No texto Sonhos e ocultismo, de 1932, Freud, ao afirmar o caminho estreito que a psicanálise trilha, evidencia os seus critérios: 3 O ocultismo afirma que existem, de fato, ‘mais coisas no céu e na terra do que sonha a filosofia’. Pois bem, não precisamos nos sentir amarrados pela estreiteza de vistas da filosofia acadêmica; estamos prontos a acreditar naquilo que nos é demonstrado de forma a merecer crédito. Propomos lidar com essas coisas da mesma forma como o fazemos com qualquer outro material científico: antes de mais nada, estabelecer se se pode realmente demonstrar que tais eventos acontecem, e então, e somente então, quando sua natureza factual não pode ser posta em dúvida, dedicar-nos a sua explicação. (Freud, 1932, p. 39) Freud recusou-se a tornar a psicanálise uma ciência demasiadamente positivista, mas teve todo o cuidado de construir uma lógica, assim, “existe em sua doutrina um pacto original que liga a psicanálise à filosofia do iluminismo e, portanto, a uma definição de um sujeito fundamentado na razão” (Roudinesco, 2000, p. 126). 1.1 As modalidades do irracional A ciência a partir de Galileu foi definida como o conhecimento das leis que regem os processos naturais e, em seguida, originou novas abordagens que têm como ponto comum o ato de retirar a análise da realidade humana da antiga dominação das ciências ditas divinas, baseadas na Revelação. Surgem, então, as ciências formais (lógica e matemática), as ciências naturais (física e biologia) e as ciências humanas (sociologia, antropologia, história, psicologia, linguística e psicanálise). A que nos interessa – a humana – oscila entre duas atitudes, explica Roudinesco (2000, p. 120): uma toma como modelo uma única realidade humana, os processos físico-químicos, biológicos ou cognitivos, eliminando, assim, toda forma de subjetividade, de significação ou símbolo; a outra reivindica as categorias eliminadas. No entanto, nenhuma ciência está protegida do processo de irracionalidade que a permeia. A exemplo disso, Roudinesco (2000) cita Gilles Gaston, que, em um recente livro, evidencia três modalidades do irracional da própria história da ciência. 1. Obstáculos constituídos por um conjunto de doutrinas que regem uma época, da qual o cientista tem que contestar o modelo dominante, sendo o recurso ao irracional o meio de suscitar uma imagem da razão e, assim, lograr novamente uma nova racionalidade. 4 2. Surge quando se está com um pensamento fixo em uma doutrina, ficando incapaz de avançar sobre ela. Então, prolonga-se o ato criador que lhe deu origem, influindo nele um novo vigor. 3. Delibera-se um modo de pensar estranho à racionalidade, pela qual se assiste uma rejeição ao saber dominante. Roudinesco (2000, p. 122) assinala que, assim como essas três modalidades do irracional perpassam por todas as ciências, também estão presentes na história da psicanálise. “Contudo, Freud sempre se manteve dentro dos limites das duas primeiras”. Verificamos o primeiro momento no período entre 1887 e 1900, quando Freud abandonou a teoria da sedução e construiu uma nova teoria da sexualidade. Depois, entre 1920 e 1935, quando Freud introduziu a dúvida no cerne da racionalidade da psicanálise com a finalidade de combater o positivismo que a ameaçava por dentro, em primeiro lugar com a hipótese da pulsão de morte que transformava por completo o modo de pensar da teoria e, em seguida, Freud passou por um “irracional especulativo”, que o conduziu a outras inovações. Diferentemente do percurso de Freud, a terceira modalidade do irracional surge apenas na história da psicanálise e, segundo Roudinesco, apresentou-se mesmo durante a vida de Freud, quando alguns retornam à prática de negar a própria ideia de uma explicação racional do psiquismo. 1.2 O futuro da psicanálise O que pudemos observar até aqui é que se Freud em algum momento tentou integrar a psicanálise às ciências da natureza, nenhum passo foi dado por ele nessa direção. Em vez disso, ele elaborou um modelo especulativo e passível de dar conta de uma conceituação não restritiva da experiência clínica, mas que se amplia em relação à metafísica (ramo da filosofia), que trata das coisas especulativas, do ser ou da imortalidade da alma. A esse modelo nomeou de metapsicologia. Assim, com a sua nova doutrina do inconsciente, rompeu com a psicologia clássica, traduziu a metafisica numa metapsicologia e inventou um método interpretativo que convocou e convoca até os dias de hoje a desconstrução de “mitos”, “bem e mal”, “imortalidade” etc. 5 Desse modo, poderá a psicanálise resistir ao imperativo da ciência? Cabe, então, a cada um de nós o futuro da psicanálise. TEMA 2 – A ESPECIFICIDADE DA PSICANÁLISE Quanto ao termo especificidade, precisamos ter a clareza do que representa. No dicionário on-line Dicio, encontramos a seguinte definição: “qualidade daquilo que é específico; particularidade/ qualidade própria”. Dito isso, podemos compreender que, para tomarmos a responsabilidade do futuro da psicanálise, é imprescindível que mantenhamos o rigor daquilo que caracteriza a sua especificidade. Em decorrência disso, decidimos dividir o que a psicanálise revela como sua especificidade em duas partes a fim de obtermos uma melhor compreensão. A primeira, quanto à especificidade da clínica, ou seja, sobre o tratamento; a segunda, quanto à formação do psicanalista, sobre aquilo que concerne à especificidade para a sua prática. 2.1 A especificidade do tratamento O termo “psicanálise” foi usado pela primeira vez por Freud em 1896, em seu texto redigido em francês, mas, o que o precedera foi a publicação do livro Estudo sobre a histeria, que traz o caso da Anna O., uma paciente que se tornoureferência para a psicanálise por evidenciar um método – o tratamento fundamentado na fala. A fala para a psicanálise é um agente de cura, a cura pela fala, vindo desde o método catártico que, a princípio, visava à ab-reação e, depois, revelou- se a principal via de acesso à psique humana. Foi ao escutar o sofrimento de seus pacientes que Freud pôde descobrir o funcionamento do inconsciente e elaborar o conceito de resistência, de recalque e de transferência, entre outros conceitos base da psicanálise. No texto Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise (1953), Lacan resgata a especificidade da clínica psicanalítica – a linguagem – já acrescida de toda significação e denuncia os pós-freudianos por terem se afastado dela: A descoberta de Freud é a do campo das incidências, na natureza do homem, de suas relações com a ordem simbólica, e do remontar do seu sentido às instâncias mais radicais da simbolização no ser. Desconhecer isso é condenar a descoberta ao esquecimento, a experiência à ruina. (Lacan, 1953, p. 276) 6 No livro Fundamentos da psicanálise (2005), Marco Antônio Coutinho Jorge afirma que a psicanálise opera por meio de um único meio, a palavra do analisando. Lacan estabeleceu sob a obra de Freud a relação inevitável entre as diversas formações do inconsciente e a linguagem, meio pela qual ela necessariamente se manifesta (Jorge, 2005, p. 65). Assim, quando se fala, o que entra em jogo é o inconsciente, mesmo quando se depara apenas como o silêncio, diz Lacan, se tiver um ouvinte. Aí está o cerne da função da análise (1953, p. 249). O aforisma lacaniano “o inconsciente é estruturado como uma linguagem” reflete a diferença entre o inconsciente de Freud, que seguia o modelo biológico, e o inconsciente de Lacan, que se apoia no modelo linguístico. É o que nos explica Roudinesco no livro Dicionário de psicanálise (1998). A incisão feita no conceito de inconsciente, depositando nele o saber da linguística, do qual Freud não teve a mão, Lacan pôde identificar algumas evidências que o levariam ao entendimento de que “o inconsciente é estruturado como uma linguagem”, logrando ampliar o entendimento sobre a fala do analisante, destacando que toda produção é da ordem do sentido, portanto, da ordem simbólica, isto é, um sistema de representação baseado na linguagem, cujos signos e significações determinam o sujeito. Dessa forma, o sujeito está mais implicado na sua fala do que ele possa imaginar, e o verbo realiza no discurso o ato que devolve ao sujeito a história, que lhe dá a sua verdade. Luciano Elia, no livro O conceito de sujeito (2004), afirma: Só a fala permite que o sujeito, que emergirá nos tropeços das intenções conscientes daquela fala, possa, além de emergir nesses tropeços, ser reconhecido como tal pelo falante, que, a partir desse reconhecimento, não será mais o mesmo porquanto terá sido levado a admitir como sua uma produção que desconhecia, mas que, ainda assim, faz parte dele. (Elia, 2004, p. 23) A fala, como linguagem concreta na experiência psicanalítica, revela ao sujeito o seu inconsciente, um inconsciente não caótico ou biológico, mas estruturado como uma linguagem, ou seja, com elementos materiais simbólicos que desembocam em significantes engendradores de sentido, mesmo não portando sentidos constituídos em si, mas que faz produzir sentidos, faz significar (Elia, 2004, p. 23). 7 Enfim, por meio da experiência psicanalítica, que torna a fala a sua especificidade, é possível compreender “que é no dom da fala que reside toda a realidade de seus efeitos; pois foi através desse dom que toda realidade chegou ao homem, e é por seu ato contínuo que ele mantém” (Lacan, 1953, p. 323). 2.2 A especificidade da formação do psicanalista Quanto à especificidade da formação do psicanalista, cuja direção é lacaniana, existe uma frase que nos orienta tanto quanto nos desorienta: “o analista só se autoriza de si mesmo!”. Ao fazer essa declaração, Lacan conseguiu, mais do que nunca e mais do que qualquer outra pessoa, implicar o sujeito em sua formação. Retomemos um pouco a história para lembrar que a Associação de Psicanálise Internacional (IPA) foi inicialmente fundada para normatizar a análise e formar os profissionais de psicanálise. A necessidade surgiu pela iminente expansão da teoria psicanalítica pelo mundo. Mas ao mesmo tempo em que a IPA exportava os modelos de formação, com o intuito de manter-se fiel às doutrinas freudianas, ela foi se tornando uma fábrica de produção de grandes notáveis que, segundo Roudinesco (2000), pela força de cultivas mais a norma do que a originalidade, e de cultivar a globalização em detrimento do internacionalismo, o terreno do debate político e intelectual foi banido. Nesse sentido, foram se desinteressando pelo mundo real para se voltar à fantasia de seres intocáveis. Ao recusar os moldes enrijecidos da IPA na França, em 1963 Lacan teve sua excomunhão, como ele mesmo nomeou (um modo crítico para expressar o seu não aceite em relação à IPA). A partir do ano de 1964, fundou em Paris, como o seu “Ato de Fundação”, a Escola Francesa de Psicanálise, com o objetivo de resgatar a práxis e a doutrina psicanalítica, cujo valor maior é prezado pelo bem-fundado da experiência (Lacan, 1964, p. 235). Com efeito, para Dominique Fingermann, no livro A (de)formação do psicanalista (2016), o que qualifica a sua eficiência específica (referindo-se à formação do psicanalista) não é a autoridade de uma teoria, o pertencimento a uma associação de pares ou a aplicação de uma cartilha técnica, menos ainda a conformidade à demanda de quem solicita sua presença e sua escuta (Fingermann, 2016, p. 21). 8 O que institui um sujeito analista é, em primeiro lugar, a sua experiência com o seu próprio inconsciente, apreendida em sua análise, “o analista não opera a partir do senso comum, mas a partir do ponto fora do comum” (p. 22). No texto A questão da análise leiga (1926)1, ao tratar da formação do analista, Freud diz que “somente no curso de sua análise, quando vivencia de fato os processos postulados pela análise em seu corpo – dito de outro modo: em sua própria alma – que se adquirirá as convicções que o guiará como analista2. (p. 186). Resumidamente, o que Freud nos ensina e reafirma durante toda sua obra é que a condição de analista é pela própria análise do analista. No entanto, a análise pessoal como especificidade da formação do analista não esgota a resposta à questão sobre a formação do psicanalista, pois a ela se acrescenta o estudo teórico e a supervisão, o tripé que estabelece a especificidade da formação do analista. 2.2.1 Supervisão Sobre a questão da supervisão que soa tão contraditório ao ato de autorizar-se por si mesmo, Lacan afirma que ela se “impõe” para o analista. O que isso significa? Fingermann (2015), ao interpretar o sentido dessa imposição, declara que o fato de o analista não ter a garantia no autorizar-se de si mesmo torna a supervisão necessária. “A supervisão convoca o analista a ‘dar as razões da sua clínica’, dar prova da sua posição e de suas consequências que só podem qualificar um ato propriamente sem qualidade” (Fingerman, 2016, p. 181). Outro ponto para o qual a supervisão se impõe para o analista em formação permanente diz respeito ao impossível da transmissão, dito de outro modo, sobre um ponto que é foracluído para analista e, que, apenas ao dispor de um terceiro (outro analista com mais experiência) ele poderá tornar audível o que ficou esquecido atrás dos ditos. Diz ainda: Engajar-se em um trabalho de supervisão coerente com o discurso analítico consiste, antes de qualquer coisa, em manter viva a sensação de um risco absoluto. O supervisor precisa estar à altura dessa responsabilidade se quiser colaborar para a manutenção da aposta do ato do psicanalista, que inquieta justamenteo supervisionando. (Fingermann, 2016, p. 26) A supervisão é o primeiro lugar em que se pratica a práxis da teoria. 1 Tradução livre da obra em espanhol: “puedes los legos ejercer el análisis?” 2 Tradução livre. 9 2.2.2 Estudo teórico Por meio das escolas de psicanálises, Lacan almejou o “ensino verdadeiro”, aquele que não parasse de se submeter às chamadas “novações”. Para isso, criou o dispositivo “cartel”, cuja fórmula podemos resumir pela frase: “para que a psicanálise, ao contrário, volte a ser o que nunca deixou de ser: um ato por vir” (Lacan, 1968, p. 293). O cartel é o “órgão base” da Escola de psicanálise proposta por Lacan. Ela indica um caminho indispensável para quem se responsabiliza por sua formação permanente e se engaja na tarefa de transmissão. Não nos propomos a ir mais fundo sobre esse tema, pois, por hora, queremos apenas por acento no que concerne ao estudo teórico como parte da especificidade da formação em psicanálise. Com a entrada do ensino da psicanálise nas universidades, podemos considerá-la como mais um aporte ao conjunto que integra o tripé da formação do psicanalista, ou mais bem dito, uma porta de entrada para a modalidade dos estudos teóricos que visam ser permanentes no processo de formação. Freud e Lacan deram insistentes orientações a respeito do que o psicanalista tinha que saber para estar à altura de sua operação (Fingermann, 2016). O não saber do analista jamais pode se equivaler à ignorância. “A aparente incompatibilidade entre o ensino e a experiência não pode ser um motivo, uma desculpa, para não saber nada, satisfazer-se na posição do não saber, da ignorância” (Fingerman, 2016, p. 60). TEMA 3 – A PRÁXIS PSICANALÍTICA A ética da psicanálise é a práxis de sua teoria, declara Lacan no Ato de fundação (1964). Para nos orientar a respeito dessa afirmação, nos guiaremos de acordo com as seguintes questões: quais são as consequências dessa prática? A escola de psicanálise pode garantir essa prática? Afinal, o que é a psicanálise? É o que tentaremos responder a seguir. 3.1 O que é a psicanálise? Iniciaremos pela última pergunta, acreditando que ela abrirá caminhos para responder às demais questões. Pois bem, certa vez Lacan foi interrogado a respeito da nossa questão – o que é a psicanálise? 10 “A psicanálise [...] é o tratamento que se espera de um psicanalista”3. A resposta dada por ele foi um tanto quanto provocativa, recolocando a questão da formação do analista ao mesmo tempo em que devolve a responsabilidade da psicanálise aos seus operadores, fazendo-os lembrar, iminentemente, que a psicanálise é um tratamento, ou como diz Lacan, uma cura. Assim, para entendermos melhor, buscaremos mais referências com outros autores. No livro Fundamentos da psicanálise (2017), Jorge traz à luz uma citação de Lacan que nos remete ao que estamos buscando responder: “É de meus analisandos que aprendo tudo, que aprendo o que é psicanálise” (p. 7). Desde então, podemos pensar que a psicanálise não é um saber circunscrito, ou seja, a psicanálise se produz a cada início de sessão, sendo sua apreensão da ordem do impossível. No livro A estranheza da psicanálise (2009), Antonio Quinet reafirma que a psicanálise não é uma ciência, visto que não tem o propósito de transmitir tudo sem resto, pois sabe que a verdade jamais será dita por inteiro por conta do recalque originário, assim, ela se sustenta pela lógica do não todo (p. 75). Amelia Imbriano, no seu livro La Odiseia del siglo XX (2010), declara que a psicanálise se funda como uma práxis delimitada no campo da experiência psicanalítica, na qual o que está em tratamento é o sujeito do inconsciente, sendo essa a invenção freudiana. Assim, podemos entender que a psicanálise tampouco se reduz a uma simples técnica, mas parece ser mais um tipo de trabalho inspirado pelo seu analista durante a análise. Desse modo, a práxis que instaura a experiência psicanalítica decorre de seu procedimento próprio, que transforma a dor e o mal-estar em fala dirigida ao psicanalista. Com esses autores, observamos que a psicanálise é um trabalho psicanalítico que, por sua complexidade, jamais será abarcado em sua totalidade, sendo apenas possível apreendê-la pela experiência. Assim sendo, quem poderá garantir a sua prática? A Escola? 3 Fingermann cita Lacan no livro A (de)formação do psicanalista (2015, p. 70). 11 3.2 As escolas de psicanálise ou universidades garantem a práxis da psicanálise? Em sua época, Freud foi questionado sobre quem poderia exercer a psicanálise. Assim, dedicou-se ao texto A questão da análise leiga (1926)4 para responder à sociedade que acusava de charlatanismo aquele que praticava a psicanálise não sendo médico. A pergunta que não se calava era: como e onde se aprende o necessário para exercer a psicanálise?5 O acento dado por Freud foi que “a análise é leiga: é uma experiência subjetiva, singular, que implica uma ética peculiar”. Para Freud, a psicanálise poderia ser exercida por qualquer campo do saber, desde que o sujeito em questão assumisse um compromisso ético com a sua práxis. E foi seguindo esses trilhos que Lacan propôs a sua Escola, no Ato de fundação. Imbuída em reaver a que se propõe a formação do analista no que tange à ética de sua prática, Fingermann declara: A ética da psicanalise é a práxis de sua teoria [...] a ética do analista, sua disposição para o ato, que, enquanto tal, dispensa qualquer modelo e modelização, depende da sua disponibilidade para algo que excede o simples estudo da teoria. Esta não é o modelo que se aplica, mas uma práxis que a produz à medida das ocorrências, e, por isso, é coerente com o que se espera de um psicanalista à altura do ato e do real. Do próprio exercício da transmissão da prática clínica depende a formação permanente da analista. A práxis da teoria é o exercício do analista, o qual põe à prova o seu saber, não o seus conhecimentos. (Fingermann, 2016, p. 25) Dessa forma, podemos concluir que a prática que põe em ato a psicanálise só pode partir da própria ética daquele que se pretende psicanalista. 3.3 Quais são as consequências da prática psicanalítica? A partir de então, podemos refletir sobre as consequências da prática psicanalítica. Se nos remetermos ao ato inaugural da psicanálise, podemos extrair como consequência o ato que nos deu acesso ao inconsciente e à sua formalização. Segundo Quinet (2016), o ato tem marca de um antes e um depois, que traz em si a descontinuidade e, por ser assim, tem a estrutura de corte (p. 7). 4 Edição Amorrotu, Buenos aires: “¿Puedes los legos ejercer el análisis?” 5 Tradução livre. 12 Assim, quando um psicanalista autoriza uma análise, o ato fundador de Freud se renova. É preciso compreender que não se trata de uma consequência que tente ao místico, pois os fundamentos e alicerces que compõem o ato psicanalítico estão entrelaçados ao tripé da formação permanente do psicanalista e, por assim ser, as consequências do tratamento instituem o valor de verdade aos sintomas, de modo que se valida a angústia como indicador da singularidade real de um sujeito. Posto isso, conclui Fingermann: “Que extravagância nesses tempos de cólera do discurso da ciência e do capitalismo: como ousar dar valor de uso para algo que não tem valor de troca” (2016, p. 71). TEMA 4 – PARA ALÉM DA CLÍNICA No texto que se intitula Proposição sobre o analista da Escola (1967), Lacan, já no âmago da sua Escola, insere os termos “psicanálise em extensão” e “psicanálise em intensão”. A primeira diz respeito a toda função da Escola cujo objetivo é presentificar a psicanálise no mundo; a segunda refere-se à afirmação dos conceitos aos seus operadores, pelo qual depende da qualificação da primeira (psicanálise em extensão). Os termos (extensão/intensão) que foram retirados da lógica por Lacan buscamrefletir a operação da formação do psicanalista que coexiste à própria psicanálise e ao seu emprego na sociedade. Assim, a prática psicanalítica pode ser reexaminada toda vez que pensada sobre seu alcance e limitações. 4.1 Psicanalítica extensão x intensão A psicanálise em extensão diz respeito à ética política da Escola em sua transmissão, cujo viés que a orienta a essa experiência original é a psicanálise em intensão, visto que somente a prática funda a teoria e o lugar da Escola. Desse modo, a psicanálise em intensão é anterior à experiência da psicanálise em extensão, que, por sua premissa, implica na destituição de um mestre, visto que é só num depois que ela acontece. O dualismo se configura como uma banda de moebius, na qual dentro e fora constituem-se um só, como o funcionamento de uma engrenagem que promove o avanço da psicanálise em sua intensão (sua prática) e extensão em sua pólis. 13 TEMA 5 – A NOÇÃO DE SUJEITO Quando se fala em sujeito, logo pensamos em uma persona ou em uma espécie de construto, pois o termo “sujeito” não diz respeito a um conceito no sentido filosófico ou científico, mas trata-se de uma categoria. A categoria de sujeito se impõe na elaboração da teoria psicanalítica com base em Lacan, que o aborda pela sua constituição, sendo assim, sua tese se baseia nas concepções freudianas sob a constituição do aparelho psíquico, pelo qual o sujeito não nasce ou se desenvolve, mas se constitui no campo da linguagem. Sob esses argumentos, no texto dos Escritos – A subversão do sujeito e dialética do desejo (1960), Lacan demarca uma distinção entre a concepção de sujeito da ciência e da fenomenologia hegeliana e o sujeito da psicanálise: Nossa dupla referência ao sujeito absoluto de Hegel e ao sujeito abolido da ciência dá o esclarecimento necessário para formular em sua verdadeira medida a dramaticidade de Freud: reingresso da verdade no campo da ciência, ao mesmo tempo em que ela se impõe no campo de sua práxis: recalcada, ela ali retorna. (Lacan, 1960, p. 813) Nesse contexto, ao apontar para a diferença entra a ciência e a psicanálise, Lacan localiza a psicanálise por meio da ciência, visto que o sujeito sobre o qual operamos é o sujeito da ciência. 5.1 Sujeito da ciência e sujeito da psicanálise O sujeito sobre quem operamos em psicanálise só pode ser o sujeito da ciência, declara Lacan no texto A ciência e a verdade (1956). Tal declaração, então, desemboca em três situações: que a psicanálise opera sobre um sujeito e não, por exemplo, sobre um eu; que há um sujeito na ciência; e, por último, que esses dois sujeitos constituem apenas um. Essas reflexões foram trazidas por Jean-Claude Milner em A obra clara: Lacan, a ciência, a filosofia (1996). Assim, podemos situar o sujeito da ciência por meio do nascimento da ciência moderna estabelecido a partir de Descartes, no que confere o chamado Cogito, em que se inaugura um “ancoramento no ser”, pelo qual o ato de pensar determina a existência do sujeito – penso, logo sou (ou penso, logo existo). 14 O surgimento do sujeito concebido pela ciência moderna, no entanto, não opera com ele nem sobre ele, segundo o que nos explica Luciano Elia (2004). O autor declara, ainda, que é ao contrário disso, pois o que a ciência faz é excluir o sujeito do seu campo operatório, ou seja, “o sujeito é posto pela ciência para, no mesmo ato, ser dela excluído, ou, mais exatamente, ser excluído do campo de operação da ciência” (Elia, 2004, p. 14). Ao passo que a ciência exclui o sujeito, é sobre ele que a psicanálise opera. Isso significa que a psicanálise não opera sobre uma pessoa humana ou um indivíduo, mas sobre o mesmo sujeito da ciência. É aí que está a subversão declarada pela psicanálise, em criar condições de operar nesse sujeito por meio da regra fundamental da psicanalise – fale o que lhe vier à mente. Ao instituir a associação livre, Freud se dirige diretamente ao sujeito, supondo-lhe um saber inconsciente sobre si, saber esse que emerge pela fala e por meio de falhas da fala. NA PRÁTICA Autorizar-se psicanalista é uma posição ética e não institucional, visto que não há um lugar que forme psicanalista a não ser pela implicação do sujeito com o seu desejo. A escola de psicanálise ou as universidades jamais poderão ser o lugar de garantia da prática da psicanálise, ainda que ofertem o título. O que garante a práxis do psicanalista é a psicanálise pura, ou seja, a experiência que inclui o tripé da formação: análise pessoal, supervisão e estudo teórico. Na escola não se ensina, só “se copia”, parafraseando Estamira, no documentário que levava o seu nome. O modelo pensado por Freud e Lacan considera o sujeito na sua peculiaridade e leva até as últimas consequências o seu saber na experiência. A responsabilidade de não permitir que a psicanálise seja sucumbida aos anseios de se fazer ciência cabe a cada um que se pretenda psicanalista, sendo necessário sustentar as suas especificidades com o mesmo rigor estabelecido por Freud. Para isso, Lacan nos deixou advertidos para um permanente retorno aos textos freudianos. 15 FINALIZANDO Podemos, agora, retomar a nossa questão inicial: por que a psicanálise hoje? A psicanálise é a ciência que toma o sujeito como objeto e se coloca como testemunha de sua verdade. Talvez essa seja a forma mais resumida de expressar a sua práxis, mas o que decorre numa sessão de análise é território infinito de possibilidade, visto que, ao devolver a fala ao sujeito, faz emergir em seu ser todo o emaranhado de sua fantasia que dá suporte aos seus sintomas. A psicanálise hoje e sempre será a cura para o sujeito, o sujeito que a ciência não alcança, pois ele não faz parte de seu campo de experiência. A invenção de Freud – a psicanálise – como uma experiência do discurso visa alcançar o bem-dizer da ética do desejo ao tocar no singular do sujeito, sem que, com isso, deixe de reconhecer o caminho da ciência e as mudanças sociais, pois a psicanálise anda ao seu tempo em extensão e intensão (transmissão e tratamento). A garantia de sua prática será sempre um lugar problemático, pois é assim que deve se manter, no debate. É essa a estranheza da psicanálise em relação a outras disciplinas e à própria civilização. É neste ponto que Lacan situa o âmago de sua Escola, escreve Antonio Quinet (2009). 16 REFERÊNCIAS ELIA, L. O conceito de sujeito. Rio de Janeiro: Zahar, 2004. FINGERMANN, D. A (de)formação do psicanalista. As condições do ato psicanalítico. São Paulo: Escuta, 2016. FREUD, S. ¿Pueden los legos ejercer el análisis?, 1926. In: ______. Obras completas. v. XX. Buenos Aires: Amorrortu, 1986. ______. Sonhos e ocultismo, 1933. In: ______. Obras completas. v. XXII. Rio de Janeiro: Imago, 1996. IMBRIANO, A. Las Odisea del siglo XXI: Efectos de la globalización, Buenos Aires: Letra Vivas, 2010. LACAN, J. Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise, 1953. In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. ______. Ato de Fundação, 1964. In: ______. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. ______. Proposição de 9 de outubro, 1967. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. JORGE, M. A. C. Fundamentos da Psicanálise de Freud a Lacan. v. 3. Rio de Janeiro: Zahar, 2017. MILNER, J. C. A obra clara: Lacan, a ciência. Rio de Janeiro: Zahar, 1996. QUINET, A. As 4+1 condições da análises. Rio de Janeiro: Zahar, 1991. ______. A estranheza da psicanálise, a escola de Lacan e seus analistas. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. ROUDINESCO, E. Por que a psicanálise? Rio de Janeiro: Zahar, 2000. ______. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.