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Teoria geral do Negócio Jurídico
Conceitos básicos. Fato, ato e negócio jurídico; Classificações do negócio jurídico; Elementos estruturais
do negócio jurídico
INTRODUÇÃO – FATOS JURÍDICOS
É algo que está presente em cada interação, em cada acontecimento do nosso dia a dia, e que faz com que o Direito “funcione”. Vamos falar sobre os Fatos Jurídicos.
No mundo acontecem muitas coisas: nascem pessoas, morrem pessoas, chove, as árvores crescem, as pessoas compram, vendem, trocam, brigam... A maioria desses acontecimentos passa batido para o Direito (SOMENTE FATOS). Mas alguns desses acontecimentos, sejam eles da natureza ou praticados por nós, humanos, têm relevância para o mundo jurídico (FATOS JURÍDICOS): eles são capazes de mudar a nossa vida jurídica.
EXEMPLOS:
Quando vocês nascem, passam a ter direitos e deveres.
Quando a chuva forte derruba um muro, surge o dever de indenizar se a culpa foi de alguém.
Quando vocês compram um celular, surgem obrigações de pagar e de entregar o produto.
Quando alguém bate no carro de outra pessoa, nasce a obrigação de reparar o dano.
Todos esses “ acontecimentos ” que geram efeitos no mundo do Direito são o que chamamos de Fatos Jurídicos.
É o ponto de partida para a criação, modificação ou extinção de qualquer direito ou obrigação. Sem um Fato Jurídico, o Direito não tem sobre o que agir.
FATO JURÍDICO (SENTIDO AMPLO):
Todo acontecimento, seja natural (que independe da vontade humana) ou humano (com ou sem vontade, lícito ou ilícito), que a lei considera relevante para criar, modificar ou extinguir direitos e obrigações.“
FATOS JURÍDICOS (SENTIDO ESTRITO) (FATOS NATURAIS):
São aqueles acontecimentos que NÃO dependem da VONTADE humana para ocorrer, mas que produzem efeitos jurídicos.
Exemplo 1: Um raio atinge uma casa (causando dano, pode gerar direito ao seguro).
Exemplo 2: O nascimento de uma pessoa (gera personalidade, direitos).
Exemplo 3: A morte de uma pessoa (abre a sucessão, extingue direitos personalíssimos).
Exemplo 4: O tempo que passa (usucapião, prescrição – o decurso do tempo sozinho gera efeitos).
Divisão Interna:
Ordinários: Previsíveis (nascimento, morte, maioridade, decurso do tempo).
Extraordinários (Caso Fortuito/Força Maior): Imprevisíveis e inevitáveis (terremoto, enchente, pandemia – podem justificar descumprimento de contrato sem culpa).
2. Ato Jurídico (em Sentido Estrito)
O ato jurídico é uma ação humana que produz efeitos na esfera do direito. A grande particularidade é que os efeitos jurídicos são previamente definidos pela lei, e não pela vontade da pessoa que o pratica. O agente tem a liberdade de praticar ou não o ato, mas não de escolher suas consequências legais.
Exemplo Prático: O reconhecimento de um filho. Quando uma pessoa reconhece a paternidade de uma criança, a sua vontade é apenas a de praticar o ato de reconhecimento. No entanto, os efeitos jurídicos que decorrem desse ato (como o dever de sustento (alimentos), a inclusão do nome no registro e o direito de herança) não podem ser negociados ou alterados por sua vontade. São efeitos impostos pela lei.
Exemplo 1 (Achado de tesouro): Uma pessoa encontra um tesouro enterrado. O ato de achar é humano, mas ela não “quis” juridicamente se tornar proprietária do tesouro (ela só o encontrou). A lei é que atribui o direito à metade do tesouro ao achador.
Exemplo 2 (Ocupação de terreno baldio): Uma pessoa começa a morar em um terreno abandonado. O ato de morar é humano, mas ela não “quis” no ato se tornar dona, apenas ocupou. Depois de um tempo e com outros requisitos, a lei pode atribuir a ela a propriedade por usucapião.
Exemplo 3 (Criança que pinta um quadro): Uma criança de 5 anos pinta um quadro lindo. O ato de pintar é humano. Ela não tem capacidade de querer os efeitos jurídicos da obra (direitos autorais, venda). Mas a lei reconhece a criação e os direitos sobre a obra.
SUB-RAMIFICAÇÃO 2: ATOS JURÍDICOS ILÍCITOS:
São as ações humanas que violam a lei e causam um dano. Sempre que alguém pratica um ato ilícito, o Direito impõe uma sanção ou a obrigação de reparar o dano.
Exemplo: Bater o carro de alguém por imprudência (violação da lei de trânsito, dever de indenizar), furto (violação do direito de propriedade, sanção penal e dever de reparar o dano).
Artigo 186 do Código Civil (Apenas citação): "Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
SUB-RAMIFICAÇÃO 3: ATOS JURÍDICOS LÍCITOS (EM SENTIDO ESTRITO / STRICTO SENSU):
São as ações humanas permitidas por lei que produzem efeitos jurídicos previstos na própria lei, não porque a pessoa quis exatamente aquele efeito, mas porque a lei já define as consequências de tal ato.
Aqui, a vontade humana é importante para a prática do ato, mas não para a escolha dos efeitos jurídicos – esses são fixados pela lei.
Art. 185 do Código Civil: "Aplica-se às disposições relativas ao negócio jurídico, no que couber, aos atos jurídicos lícitos." Isso mostra a proximidade com o negócio jurídico, mas com uma distinção fundamental.
Exemplo 1 (Reconhecimento de filho):
Quando um pai reconhece um filho, ele tem a vontade de reconhecer, mas os efeitos jurídicos (direito a alimentos, herança, nome) são todos definidos pela lei, não pela vontade do pai.
Exemplo 2 (Comunicação de desistência):
Uma parte desiste de um processo. Ela quer desistir, mas as consequências jurídicas (extinção do processo sem resolução de mérito) são da lei.
Exemplo 3 (Notificação):
Enviar uma notificação para alguém. A pessoa quer notificar, mas os efeitos da notificação (dar ciência a alguém) são da lei.
NEGÓCIO JURÍDICO
O negócio jurídico também é uma ação humana que produz efeitos na esfera do direito, mas a principal diferença é que as partes têm a liberdade de moldar o conteúdo e os efeitos jurídicos do ato. A vontade dos agentes é o elemento central, pois é ela que determina a criação, modificação ou extinção de direitos e deveres.
Exemplo Prático: Um contrato de compra e venda. Duas pessoas se reúnem para celebrar o negócio jurídico. Elas têm autonomia para definir o objeto da venda (o que será vendido), o preço, a forma de pagamento, a data de entrega, as garantias, etc. A lei apenas estabelece os limites e as formalidades para a validade desse negócio, mas as consequências são criadas pela vontade das partes.
SUB-RAMIFICAÇÃO 4: NEGÓCIO JURÍDICO:
Este é o “rei” dos Atos Jurídicos! É uma ação humana, lícita, onde a vontade tem um papel central. Aqui, as partes querem produzir efeitos jurídicos específicos e a lei lhes dá essa autonomia para criar suas próprias regras (dentro dos limites legais, claro).
O Código Civil de 2002 fez uma grande diferença ao destacar o Negócio Jurídico em um capítulo próprio, deixando de usar o termo genérico “Ato Jurídico” para se referir a ele, como fazia o Código de 1916. Isso é uma
Exemplo 1: Contrato de compra e venda (eu quero vender e receber o dinheiro, você quer comprar e receber o bem).
Exemplo 2: Contrato de aluguel.
Exemplo 3: Testamento (a pessoa manifesta a vontade de como seus bens serão distribuídos após a morte).
Exemplo 4: Casamento (as partes querem se unir, com os efeitos jurídicos que a lei atribui ao casamento, mas também com a liberdade de escolher o regime de bens, por exemplo).
Conceito Causa Efeito Jurídico Exemplo
Fato Jurídico Evento da natureza ou ação humana. Produz efeitos jurídicos. Morte (fato jurídico em sentido estrito), nascimento, uma tempestade que inunda um terreno.
Ato Jurídico Ação humana voluntária. Os efeitos são impostos pela lei. Reconhecimento de filho, ocupação de terra devoluta.
Negócio Jurídico Ação humana voluntária. Os efeitos são moldados pela vontade das partes. Contrato de compra e venda, testamento, doação.
Quadro Comparativo (Tartuce.2025)
Para resumir e fixar a diferença, observe a tabela abaixo:
A REPRESENTAÇÃO NO NEGÓCIO JURÍDICO – “ OS BRAÇOS DO DIREITO ”
Objetivos: Compreender o conceito de representaçãoe sua importância no dia a dia.
Distinguir a representação legal da representação voluntária.
Entender os limites dos poderes do representante e as consequências de sua atuação.
Analisar as hipóteses de conflito de interesses e o negócio jurídico consigo mesmo.
INTRODUÇÃO: QUEM AGE POR NÓS NO DIREITO?
Negócio Jurídico – aquela manifestação de vontade que usamos para criar, modificar ou extinguir direitos.
Vimos que para um negócio ser válido, precisamos de um agente capaz, um objeto lícito e uma forma adequada.
Mas e se eu não puder, ou não quiser, participar de um negócio jurídico diretamente? Posso pedir para alguém fazer isso por mim?
E é exatamente isso que chamamos de Representação.
Pensem na vida de vocês. Quantas vezes vocês já viram alguém agindo "em nome de outra pessoa"?
Exemplos:
Um pai ou uma mãe que assina um documento pela criança.
Um advogado que fala em nome de seu cliente no tribunal.
Um amigo que pega uma encomenda para você na portaria do prédio.
Em todos esses exemplos, uma pessoa está agindo como um representante de outra.
No Direito, a representação é um instituto fundamental que permite que uma pessoa (o representante) atue em nome de outra (o representado), e os efeitos dessa atuação se produzam diretamente na esfera jurídica do representado.
É como se o representado tivesse "braços estendidos" através do representante para praticar atos jurídicos. Isso é super importante na nossa vida moderna, onde nem sempre podemos estar em vários lugares ao mesmo tempo ou ter a capacidade plena para certos atos.
Previsão legal da representação artigos 115 a 120 do Código Civil.
REPRESENTAÇÃO: DE ONDE VÊM OS PODERES? (Art. 115 e 120 do CC)
Para que alguém possa agir em nome de outra pessoa, é preciso ter poderes de representação. De onde vêm esses poderes? O Art. 115 do Código Civil:
Eles podem ser conferidos pela lei ou pelo próprio interessado.
Vamos detalhar isso:
A) REPRESENTAÇÃO LEGAL (PELA LEI):
Quando a lei determina que uma pessoa representa outra, independentemente da vontade do representado. Geralmente, acontece quando o representado não tem capacidade plena para agir sozinho.
Exemplo 1 (Pais e Filhos Menores): Um pai ou uma mãe é o representante legal de seu filho menor de idade. Quando os pais assinam um contrato de matrícula na escola em nome do filho, os efeitos desse contrato se produzem para o filho, mesmo ele não tendo assinado. A lei (no Código Civil, artigos sobre poder familiar) confere esse poder aos pais.
Exemplo 2 (Curador e Curatelado): Uma pessoa que foi judicialmente declarada incapaz (por exemplo, por uma doença que a impede de expressar sua vontade) terá um curador nomeado pela justiça. O curador é o seu representante legal e agirá em seu nome para defender seus interesses.
B) REPRESENTAÇÃO VOLUNTÁRIA (PELO INTERESSADO):
Os poderes são dados pelo próprio representado, por meio de sua vontade. É a representação que nasce de um acordo, de um ato de confiança.
Exemplo 1 (Procuração):
Eu viajo para o exterior e preciso vender um imóvel aqui no Brasil. Não posso estar presente para assinar a escritura. Eu posso outorgar uma procuração (um documento) para o meu irmão, conferindo-lhe poderes para vender o imóvel em meu nome. Meu irmão é o meu representante voluntário.
Exemplo 2 (Mandato):
O contrato de mandato é o instrumento que formaliza a representação voluntária. É o acordo de vontades onde uma pessoa (mandatário/representante) se obriga a praticar atos em nome de outra (mandante/representado). Um advogado, ao ser contratado por um cliente, recebe um mandato para representá-lo em juízo.
Art. 120 do CC (Distinção de Regras):
É importante notar que o Código Civil diz que os requisitos e efeitos da representação legal são os da lei específica que a criou (ex: regras do poder familiar). Já os da representação voluntária (como a procuração) são os da Parte Especial do Código Civil (os artigos sobre Mandato). Isso mostra que, embora o conceito seja o mesmo, o detalhe de como funciona e quais as regras podem mudar dependendo de onde vem o poder.
OS LIMITES E OS EFEITOS DA REPRESENTAÇÃO (Art. 116 e 118 do CC)
Se o representante é o "braço" do representado, esse braço tem que agir dentro de um certo limite, certo? Ele não pode fazer o que bem entender.
A REGRA FUNDAMENTAL: EFEITOS PARA O REPRESENTADO (ART. 116 CC):
"Quando o representante age dentro dos limites dos poderes que lhe foram dados, os efeitos do negócio jurídico que ele celebrar se produzem diretamente em relação ao representado.“
Exemplo: Se eu dei uma procuração para meu irmão vender minha casa, e ele a vende para um comprador, quem é o vendedor legalmente e quem recebe o dinheiro sou eu (o representado), não ele (o representante). Os efeitos do negócio jurídico (a casa foi vendida, o dinheiro foi recebido) acontecem na minha esfera jurídica.
A IMPORTÂNCIA DE PROVAR OS PODERES (ART. 118 CC):
"O representante tem uma obrigação muito importante: ele precisa provar para as pessoas com quem ele está negociando (em nome do representado) que ele realmente tem poderes e qual a extensão desses poderes.“
Exemplo: Meu irmão, ao vender minha casa, precisa mostrar a procuração para o comprador e para o cartório. Consequência de Não Provar ou Exceder os Limites: "Se o representante não provar seus poderes ou se ele exceder os limites desses poderes (o que chamamos de 'abuso de poder' ou 'ato sem poder'), ele responderá pelos atos que excederem.“
Exemplo: Se eu dou procuração para meu irmão vender minha casa por no mínimo R$ 500.000,00, mas ele vende por R$ 400.000,00 sem minha autorização, ele excedeu os limites. Esse negócio pode ser anulável, e ele (o irmão) terá que responder pelos prejuízos que me causou. Ele agiu "sem poder suficiente" para aquela condição.
CONFLITO NA REPRESENTAÇÃO: NEGÓCIO CONSIGO MESMO E CONFLITO DE INTERESSES (Art. 117 e 119 do CC)
Aqui, a lei se preocupa com a confiança e a lealdade que devem existir na relação de representação. O representante não pode usar os poderes para se beneficiar ou prejudicar o representado.
NEGÓCIO JURÍDICO CONSIGO MESMO (ART. 117 CC):
Imagine que eu dou uma procuração para o meu amigo vender minha casa. E ele decide que ele mesmo vai comprar a casa. Ou seja, ele está agindo como representante do vendedor (eu) e como comprador (ele próprio) no mesmo negócio.
Em regra, esse negócio é anulável (pode ser desfeito judicialmente por mim, o representado), a menos que a lei permita (casos específicos) ou que eu (o representado) tenha autorizado expressamente essa situação.“
Por quê? Há um conflito de interesses! O representante tem o dever de buscar o melhor para o representado. Se ele compra para si, ele pode tentar comprar pelo menor preço, o que seria ruim para o representado.
Parágrafo único (Substabelecimento): A regra também se aplica se o representante passar os poderes para outra pessoa (substabelecer), e essa pessoa (o subestabelecido) celebrar o negócio consigo mesma.
Conflito de Interesses (Art. 119 CC):
"Aqui, o representante age em um negócio, mas ele tem um interesse próprio que é oposto ao interesse do representado."
Exemplo: Eu dou procuração para meu amigo vender minha casa. Ele sabe que um investidor quer pagar muito pela minha casa, mas ele tem um outro amigo que quer comprar por um preço bem menor, e ele (o representante) tem interesse que esse amigo compre (ex: por uma comissão oculta que o amigo prometeu). Ele vende para o amigo, prejudicando meu interesse.
Consequência: Esse negócio é anulável, mas com uma condição: a pessoa que contratou com o representante (o comprador, no exemplo) tinha que saber ou ter condições de saber que havia um conflito de interesses. Se o comprador estava de boa-fé, sem saber do conflito, o negócio se mantém, e o representante é que responderá pelos prejuízos.
Prazo (Parágrafo único): O prazo para pedir a anulação desse negócio é curto: 180 dias, contados da conclusão do negócio ou da cessação da incapacidade (se for o caso). É um prazo de decadência, ou seja,se passar, o direito de anular o negócio se perde.
CONCEITOS DE FATO JURÍDICO, ATO JURÍDICO E NEGÓCIO JURÍDICO
No Direito Civil, a base de tudo é o fato jurídico, que é o conceito mais amplo.
A partir dele, vamos afunilando para entender o que é um ato jurídico e, finalmente, um negócio jurídico.
A chave para a diferenciação está em uma pergunta simples: o efeito jurídico é determinado pela vontade da pessoa ou pela lei?
1. Fato Jurídico
É o gênero, a categoria mais ampla. Fato jurídico é qualquer evento (natural ou humano) que produz efeitos na esfera jurídica. A lei atribui uma consequência a esse evento, independentemente de haver a intenção de produzir esse efeito jurídico.
Subdivisões:
Fato Jurídico em Sentido Estrito: São eventos da natureza que geram efeitos jurídicos sem a participação da vontade humana.
Exemplo: O nascimento de uma pessoa. O nascimento é um fato natural, mas a lei atribui a ele o efeito jurídico de iniciar a existência da pessoa natural, com direitos e deveres.
Fato Jurídico Humano: São as ações humanas que produzem efeitos jurídicos. Esta categoria, por sua vez, se divide em ato jurídico e negócio jurídico.
AULA 02/09/2025
Aula : Elementos Estruturais do Negócio Jurídico - A Escada Ponteana
Teoria do Negócio Jurídico e sua análise estrutural.
A melhor forma de entender isso é através de uma das construções mais brilhantes do Direito brasileiro, a Escada Ponteana, formulada pelo nosso grande jurista Pontes de Miranda.
A Escada Ponteana nos ensina que, para um negócio jurídico ser completo, ele deve passar por três "andares" ou planos de análise: o Plano da Existência, o Plano da Validade e o Plano da Eficácia.
O negócio jurídico só pode ascender a um plano superior se cumprir os requisitos do plano inferior. É uma lógica impecável que nos ajuda a organizar o pensamento jurídico.
Vamos descer para o primeiro degrau.
Plano da Existência: "O Negócio Jurídico É?“
Este é o ponto de partida. Neste plano, nós não nos perguntamos se o negócio jurídico é "bom" ou "ruim", se é "válido" ou "inválido". A única pergunta é: ele existe? Ele tem os seus elementos mais básicos, o seu esqueleto?
Sem esses elementos de existência, o negócio jurídico é considerado um "nada para o Direito". Ou seja, ele sequer nasceu, não merece nem mesmo ser discutido em termos de invalidade, porque não se pode anular ou declarar nulo algo que nunca existiu.
Os elementos da existência são:
Partes (ou Agentes): A existência de quem participa do negócio.
Vontade: A declaração de intenção de celebrar o ato.
Objeto: O sobre o que o negócio versa.
Forma: A maneira como a vontade é exteriorizada.
Exemplo prático: Imaginem que duas pessoas, João e Maria, discutem a possibilidade de vender um carro. Eles conversam sobre o preço, a data de entrega, mas não chegam a um acordo final. Não há uma vontade juridicamente manifestada, portanto, o negócio jurídico da compra e venda sequer existe.
Ele é um "nada" jurídico.
Outro exemplo: a promessa de venda de um apartamento feita verbalmente. Embora as partes, a vontade e o objeto existam, a forma essencial para a compra de um imóvel (a escritura pública) está ausente. Sem esse elemento estrutural, o negócio não passa do plano da existência.
A teoria da inexistência é um conceito sutil, mas fundamental, que nos diferencia do mero pensamento lógico-formal. Ela nos permite ir além da dualidade "nulo/válido" e identificar situações em que o ato jurídico simplesmente não se constituiu, como um casamento entre duas pessoas do mesmo sexo antes de tal união ser reconhecida legalmente (STF2013 – CNJ175). Neste caso, não se tratava de um casamento nulo, mas de algo que a lei sequer concebia como uma união passível de existir.
(sexta)2. Plano da Validade: "O Negócio Jurídico É Válido?“
Se o negócio jurídico existe, podemos subir o segundo degrau. Aqui, a pergunta muda: O negócio é válido? Ou, em outras palavras, os elementos que vimos no plano da existência estão qualificados de acordo com a lei?
O nosso Código Civil, no artigo 104, nos dá a resposta, listando os requisitos de validade.
Agente Capaz: As partes têm capacidade legal para participar do negócio. Lembrem-se da distinção entre representação (para os absolutamente incapazes, como um recém-nascido) e assistência (para os relativamente incapazes, como um adolescente entre 16 e 18 anos).
Exemplos: Um contrato assinado por um menor de 15 anos é nulo, pois a falta de representação fere a validade de forma grave. Já um contrato assinado por um adolescente de 17 anos sem a devida assistência é anulável, pois a lei presume que o negócio pode ser ratificado posteriormente.
Vontade Livre e Sem Vícios: A vontade das partes foi manifestada de forma genuína, sem coação, erro, dolo, fraude ou simulação. O vício da vontade, como o erro (uma falsa percepção da realidade), o dolo (uma artimanha de alguém para enganar a outra parte) ou a coação (uma ameaça que força a manifestação da vontade), torna o negócio anulável. Pensem no caso de alguém que, ao comprar um carro, descobre que o vendedor escondeu propositalmente um defeito grave. Houve dolo, o que permite a anulação do negócio.
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Objeto Lícito, Possível, Determinado ou Determinável: O objeto do negócio deve estar de acordo com a lei, ser possível de ser realizado e bem definido. A ilicitude do objeto, como a venda de drogas ou a contratação de um homicídio, torna o negócio nulo. A impossibilidade pode ser física (como vender um pedaço do céu) ou jurídica (como vender uma praia pública, que é um bem fora do comércio).
A impossibilidade absoluta inicial gera a nulidade. Já a determinabilidade permite que o objeto, mesmo que não seja totalmente específico no início, possa ser definido posteriormente (por exemplo, a venda de "100 sacas de café", que será determinado pela escolha).
Forma Prescrita ou Não Defesa em Lei: A forma do negócio jurídico deve seguir o que a lei exige (forma ad solemnitatem), ou pode ser de qualquer forma se a lei não proíbe (forma livre). A compra e venda de um imóvel exige a forma solene da escritura pública. Se as partes apenas fizerem um contrato particular, o negócio é nulo por descumprimento da forma essencial. Por outro lado, a compra de um pão na padaria pode ser feita verbalmente, pois a lei não impõe uma forma específica para esse tipo de transação.
Lembrem-se que, se o negócio não cumprir um desses requisitos, ele é considerado inválido, podendo ser nulo (nulidade absoluta) ou anulável (nulidade relativa).
É importante ressaltar que um negócio pode ser existente, válido e ineficaz (como o exemplo da condição suspensiva) ou até mesmo existente, inválido e eficaz.
Este último é um caso mais complexo, como um negócio jurídico anulável que ainda não foi declarado nulo por uma sentença judicial.
Pensem em um casamento anulável que gera efeitos até que a anulação seja declarada.
AULA 09/09/25
Plano da Eficácia: "O Negócio Jurídico Produz Efeitos?“
Finalmente, chegamos ao terceiro degrau. Um negócio pode existir e ser válido, mas isso não significa que ele já está produzindo seus efeitos imediatamente.
A eficácia diz respeito à produção de efeitos jurídicos. Este plano pode ser influenciado por elementos externos, chamados de elementos acidentais do negócio jurídico, que não afetam a sua existência ou validade, mas modulam sua eficácia.
ELEMENTOS ACIDENTAIS DO NEGÓCIO JURÍDICO - CONDIÇÃO, TERMO E ENCARGO
O Negócio Jurídico, aquela manifestação de vontade que nos permite criar e modificar relações jurídicas. Vimos que para um negócio ser válido, ele precisa de agente capaz, objeto lícito e forma adequada (lembram do Art. 104 do CC?).
Mas e depois que um negócio é válido, ele já produz efeitos imediatamente? NEM SEMPRE! Às vezes, as partes querem que os efeitos de um contrato, de uma doação, de um testamento, dependam de um evento futuro.
(quarta/sexta) Exemplo: Se eu disser: "Eu te dou meu carro se você passar no exame da OAB."
Ou: "Você poderá usar meu apartamento a partirdo dia 1º de agosto."
Ou ainda: "Eu te doo essa quantia em dinheiro, mas você terá que construir uma biblioteca na sua cidade.“
Nesses exemplos, a vontade existe, o negócio é válido, mas há algo a mais que "modifica" ou "adiciona" algo aos efeitos? É como se fossem acessórios que as partes adicionam ao "carro principal" do negócio jurídico para torná-lo mais flexível e adaptado às suas vontades.
Esses são os elementos acidentais do negócio jurídico: a Condição, o Termo e o Encargo.
Eles são chamados de 'acidentais' porque não são essenciais para a validade do negócio, mas, uma vez que são colocados, passam a fazer parte da sua estrutura e afetam a sua eficácia – ou seja, quando e como ele vai produzir seus efeitos.
Vamos explorar esses conceitos a partir do Art. 121 do Código Civil."
(terça) DA CONDIÇÃO
A Condição: O "SE" do Negócio Jurídico (Art. 121 a 130 do CC)
A Condição é uma cláusula que as partes colocam no negócio jurídico e que subordina seus efeitos a um
Explicação didática: Pense no negócio jurídico como um plano, um acordo. A condição é a cláusula que você coloca nesse plano que diz: "Isso só vai acontecer SE...". É o "SE" do negócio jurídico.
Condição em suas duas características essenciais:
FUTURIDADE: O evento precisa ser futuro, ou seja, ele ainda não ocorreu.
INCERTEZA: A gente não sabe se o evento vai acontecer. Ele pode ou não ocorrer.
Se o evento for futuro, mas certo (por exemplo, a morte de uma pessoa), ele não é uma condição, mas sim um termo. O termo é o "QUANDO" do negócio jurídico. A condição é o "SE".
Palavra-chave condição : FUTURO E INCERTO.
O CONCEITO DE CONDIÇÃO: ART. 121 DO CC
'Art. 121. Considera-se condição a cláusula que, derivando exclusivamente da vontade das partes, subordina o efeito do negócio jurídico a evento futuro e incerto.‘
CLÁUSULA: A primeira coisa a notar é que a condição não é um negócio jurídico em si, mas uma parte dele. É uma disposição acessória inserida em um negócio principal (uma compra e venda, uma doação, um testamento).
DERIVANDO EXCLUSIVAMENTE DA VONTADE DAS PARTES: Aqui está a alma da condição! Ela é um ato de autonomia, de liberdade. Sou eu e você que, ao negociarmos, decidimos criar essa dependência. A lei não nos obriga a isso.
SUBORDINA O EFEITO: Atenção aqui! A condição não afeta a validade do negócio. O negócio jurídico é válido desde a sua celebração. O que a condição 'congela' ou 'põe em risco' é a sua eficácia, ou seja, a produção de seus efeitos práticos.
A EVENTO FUTURO E INCERTO: Esta é a dobradinha que define a condição. O evento NÃO pode ter acontecido e não pode ser algo que acontecerá com certeza. É uma aposta no futuro.
EXEMPLO DIDÁTICO 1 (O CARRO DO VESTIBULANDO):
Imaginem que um pai promete ao filho: 'Eu te darei um carro SE você for aprovado no vestibular de Direito da Federal.‘
Temos um negócio jurídico? Sim, uma promessa de doação.
Ele é válido? Sim, agente capaz, objeto lícito...
Ele já produz efeitos? O filho já pode exigir o carro? Não! Por quê?
Porque a eficácia da doação está subordinada a um evento futuro (o resultado do vestibular) e incerto (ele pode ou não ser aprovado).
Percebem?
A aprovação no vestibular é a condição. Se ele passar, o negócio se torna eficaz. Se não passar, o negócio perde a chance de ter eficácia."
OS TRÊS PILARES DA CONDIÇÃO
Voluntariedade:
"Como já vimos no art. 121, a condição é fruto da vontade das partes . Isso a diferencia da chamada condição legal ou conditio iuris.
A conditio iuris é um requisito de eficácia imposto pela própria lei, e não pela vontade das partes. As partes não têm escolha a não ser cumpri-la.
Exemplo de Conditio Iuris:
Eu quero vender um imóvel de R$ 500.000,00 para a Maria. A lei (art. 108 do CC) exige que, para a validade desse negócio, seja feita uma escritura pública. Eu não posso combinar com a Maria: 'Te vendo o apartamento SE fizermos uma escritura pública'. Isso não é uma condição, é uma exigência da lei para a própria existência do negócio! A escritura aqui é um pressuposto legal, não uma cláusula voluntária.
B) FUTURIDADE:
"O evento deve, obrigatoriamente, ocorrer no futuro. Se o evento já ocorreu, mesmo que as partes não saibam, não estamos diante de uma condição.
Exemplo da 'Falsa Condição' (O Bilhete de Loteria):
Eu digo a vocês: 'Pago R$ 10.000,00 se o meu bilhete de loteria, sorteado ontem, tiver sido o premiado.‘
Isso é uma condição? Tecnicamente, não. O sorteio já aconteceu. O fato é passado. A incerteza está apenas na minha mente (subjetiva), mas no mundo real (objetivamente), o bilhete já é premiado ou não.
Se o bilhete não foi premiado, a obrigação simplesmente nunca existiu.
Se o bilhete foi premiado, a obrigação é pura e simples (sem condição), devida desde já.
A futuridade exige que o fato gerador da eficácia ainda não tenha ocorrido no plano da realidade."
C) INCERTEZA:
"Este é o elemento que diferencia a condição do termo. O termo é um evento futuro, mas certo. A condição é um evento futuro e incerto. A certeza aqui é sobre a ocorrência do evento, não necessariamente sobre a data.
Comparando Condição e Termo:
Condição: 'Pagarei sua faculdade SE o Brasil ganhar a próxima Copa do Mundo.' (Evento futuro e incerto. Pode acontecer ou não).
Termo: 'Pagarei sua faculdade QUANDO você completar 21 anos.' (Evento futuro e certo. Vai acontecer, basta esperar).
Termo (com data incerta): 'Pagarei a dívida QUANDO o cão da família morrer.' (A morte é um evento futuro e certo, embora não saibamos o dia exato. Portanto, é um termo, e não uma condição).
A incerteza deve ser objetiva, real.
Se eu digo 'Te darei R$ 1.000,00 se o sol nascer amanhã', isso é uma 'condição necessária', que na prática NÃO é condição alguma, pois o evento é certo."
CONDIÇÕES LÍCITAS E ILÍCITAS (ART. 122 E 123 CC):
Lícitas (Art. 122): "Em geral, todas as condições que não são contrárias à lei, à ordem pública ou aos bons costumes são permitidas.“
Exemplo Lícito: "Eu te dou R$ 10.000,00 se você concluir a faculdade." (Lícito, incentiva o estudo).
Ilícitas (Art. 122, parte final, e 123, II): "São as condições proibidas, que invalidam o negócio jurídico.“
Exemplo Ilícito: "Eu te darei dinheiro se você cometer um crime." (Contrário à lei – invalida o negócio).
Exemplo de Condição que priva de efeito o negócio (Art. 122): "Eu te vendo meu carro se você nunca mais usá-lo." (A condição impede o próprio uso do bem, privando o negócio de efeito prático, é ilícita).
Exemplo de Condição sujeita ao puro arbítrio (Art. 122): "Eu te dou meu apartamento se eu quiser dar." (Isso não é uma condição real, é uma falta de vontade, pois depende do puro arbítrio de uma das partes – invalida o negócio).
Condições Impossíveis, Incompreensíveis ou Contraditórias (Art. 123, I e III, e 124 CC):
Impossíveis:
Fisicamente Impossível: "Eu te darei R$ 1.000,00 se você tocar o céu com a mão."
Juridicamente Impossível: "Eu te darei R$ 1.000,00 se você vender um voto em eleição."
Regra (Art. 123, I): Se a condição impossível for suspensiva, ela invalida o negócio jurídico inteiro. (Não tem como tocar o céu, então o negócio 'nunca vai acontecer' e é inválido).
DO TERMO
O Termo: O "QUANDO" do Negócio Jurídico (Art. 131 a 135 do CC)
"Se a condição era o “se” (evento futuro e incerto), o Termo é o 'quando'. Ele subordina a eficácia do negócio jurídico a um evento futuro e CERTO."
Palavra-chave: FUTURO E CERTO. O evento vai acontecer. Podemos não saber quando (ex: "na morte de fulano"), mas sabemos que vai acontecer.
TIPOS DE TERMO:
Termo Inicial (Art. 131 CC):
"É o momento em que o negócio jurídico começa a produzir seus efeitos. Ele suspende o exercício do direito, mas não a sua aquisição."
Exemplo 1: "Eu te alugo meu apartamento a partir de 1º de agosto de 2025.“
Efeito: O direito ao aluguel já existe (você já 'adquiriu' o direito de ser meu inquilino), mas você só poderá exercer esse direito (entrar no imóvel, morar) a partir de 1º de agosto. Antes disso, você já tem o direito, mas ele está "dormindo" até a datachegar.
TERMO FINAL:
"É o momento em que o negócio jurídico PARA de produzir seus efeitos. Ele extingue o direito.“
Exemplo: "Eu te alugo meu apartamento ATÉ 31 de julho de 2026."
Efeito: O contrato de aluguel terá validade até essa data, e depois ele se encerra automaticamente.
PRESUNÇÕES DE PRAZO (ART. 133 CC):
Testamentos: O prazo é presumido em favor do herdeiro (para que ele possa receber o direito).
Contratos: O prazo é presumido em favor do devedor (para que ele tenha mais tempo para cumprir a obrigação), a menos que o contrato ou as circunstâncias digam o contrário.
Negócios Sem Prazo (Art. 134 CC):
"Se um negócio não tem prazo, ele pode ser cumprido imediatamente ('exequível desde logo'), salvo se a execução depender de um lugar diferente ou de um tempo específico para acontecer.“
Exemplo: Compro um livro na livraria. Não tem prazo para me entregar. Espera-se que a entrega seja imediata.
Aplicação Analógica (Art. 135 CC):
"As regras da condição suspensiva e resolutiva (que afetam a aquisição ou a perda do direito) se aplicam, no que couber, ao termo inicial e final."
DO ENCARGO
3. O Encargo: O "MAS COM UM ÔNUS" do Negócio Jurídico (Art. 136 e 137 do CC)
"O Encargo (também chamado de Modo) é uma obrigação imposta em negócios jurídicos de liberalidade (como doações ou testamentos). Ele não suspende a aquisição nem o exercício do direito, em regra.“
Palavra-chave: LIBERALIDADE COM ÔNUS. Alguém recebe um benefício, mas tem uma obrigação a cumprir.
Diferença Crucial com a Condição:
Condição: O efeito do negócio depende de um evento. Se o evento não acontece, não há direito ou o direito se perde. (Ex: "Te doo a Apartamento SE você se casar" - se não casar, não tem Apartamento).
Art. 136 CC: "O encargo não suspende a aquisição nem o exercício do direito."
Você já é dono da casa. Se não cumprir o encargo, pode ser judicialmente compelido a cumprir ou, em casos mais graves, a doação pode ser revogada por descumprimento.
EXCEÇÃO: "Salvo quando expressamente imposto no negócio jurídico, pelo disponente, como condição suspensiva.
" A própria pessoa que doa pode dizer: "Te doo a casa SE você construir a biblioteca." Aí, a construção da biblioteca vira uma condição suspensiva, e você só terá o direito à casa depois de construir. Mas isso tem que estar muito claro.
Encargo Ilícito ou Impossível (Art. 137 CC):
"Se o encargo for ilícito (ex: 'te doo o dinheiro se você matar alguém') ou impossível (ex: 'te doo a casa se você voar para a lua sem ajuda'), ele é considerado não escrito (como se nunca tivesse existido)."
Para resumir, a Escada Ponteana pode ser visualizada da seguinte forma:
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DEFEITOS DO NEGÓCIO JURÍDICO
Vícios que impedem seja a vontade declarada livre e de boa-fé, prejudicando, por conseguinte, a validade do negócio jurídico.
Trata-se dos defeitos dos negócios jurídicos, que se classificam em vícios de consentimento — aqueles em que a vontade não é expressada de maneira absolutamente livre — e vícios sociais — em que a vontade manifestada não tem, na realidade, a intenção pura e de boa-fé que enuncia.
DEFEITOS DO NEGÓCIO JURÍDICO - O ERRO OU IGNORÂNCIA
O Ponto de Partida: A Vontade Viciada
Tudo no Direito dos Contratos e dos Negócios Jurídicos gira em torno da manifestação de vontade. Para que um negócio seja válido, a vontade deve ser declarada de forma livre, consciente e com a real intenção de produzir aquele efeito jurídico.
No entanto, por vezes, essa vontade nasce "doente", contaminada por um vício. É como se houvesse uma distorção entre o que a pessoa realmente queria e o que ela acabou declarando. Um desses vícios de consentimento é o erro.
ERRO VS. IGNORÂNCIA: UMA DISTINÇÃO DOUTRINÁRIA
Antes de mais nada, vamos esclarecer uma pequena, mas importante, distinção conceitual que vocês encontrarão nos livros.
A ignorância é um estado de espírito negativo. É um completo desconhecimento sobre algo. Por exemplo, eu não sei que determinado terreno está em uma área de preservação ambiental. Eu simplesmente ignoro esse fato.
O erro, por sua vez, é um estado de espírito positivo. É uma falsa percepção da realidade. No mesmo exemplo, eu não apenas desconheço a situação real, como acredito ativamente que o terreno é perfeitamente edificável. Eu tenho uma convicção, mas ela está errada.
Apesar dessa diferença sutil, a lei, em sua praticidade, não faz distinção entre os efeitos do erro e da ignorância.
Ambos recebem o mesmo tratamento jurídico. Portanto, para nós, o que importa é a existência de uma representação mental equivocada da realidade no momento da celebração do negócio.
OS REQUISITOS PARA O ERRO INVALIDAR UM NEGÓCIO JURÍDICO
Não é qualquer erro que tem o poder de anular um negócio jurídico. Se assim fosse, teríamos uma insegurança jurídica imensa!
Ninguém teria certeza se seus contratos seriam mantidos.
Por isso, o Código Civil estabeleceu um "duplo filtro". Para que o erro seja juridicamente relevante e possa levar à anulação do negócio, ele precisa ser, CUMULATIVAMENTE: Essencial (ou Substancial) e Escusável (ou Perdoável).
Vamos analisar o que o nosso Código diz no art. 138:
“Art. 138. São anuláveis os negócios jurídicos, quando as declarações de vontade emanarem de erro substancial que poderia ser percebido por pessoa de diligência normal, em face das circunstâncias do negócio”.
Vejam que o próprio artigo já nos entrega os dois requisitos: "erro substancial" (essencial) e "que poderia ser percebido por pessoa de diligência normal" (o que, a contrario sensu, nos leva à ideia do erro escusável).
a) Erro Essencial (Substancial)
Substancial é aquilo que é da SUBSTÂNCIA, DA ESSÊNCIA. É o erro que incide sobre o MOTIVO DETERMINANTE do negócio. A pergunta que vocês devem fazer é: "Se eu soubesse da verdade, eu ainda assim teria realizado este negócio?". Se a resposta for "não", o erro é essencial.
O exemplo clássico é o do colecionador que, desejando uma estátua de marfim, compra, por engano, uma peça idêntica, mas feita de resina. A "MARFINIDADE" da estátua não era um mero detalhe, era a razão de ser daquela compra.
O Código Civil, no art. 139, nos ajuda, trazendo um rol exemplificativo de hipóteses de erro substancial:
Inciso I: Sobre a natureza do negócio, o objeto principal ou qualidades essenciais.
Natureza do negócio: A pessoa acredita estar fazendo um contrato de aluguel (locação), mas assina um documento de doação. A natureza do ato é completamente diferente.
Objeto principal: Alguém compra o lote A de um condomínio, pensando ser o lote B, que tem vista para o mar. O objeto em si (lote) é o que foi comprado, mas a identidade dele estava equivocada na mente do comprador.
Qualidades essenciais: É o exemplo da estátua de marfim, ou de alguém que compra um anel pensando ser de ouro maciço, quando na verdade é apenas banhado.
Inciso II: Sobre a identidade ou a qualidade essencial da pessoa.
Este erro só é relevante em negócios intuitu personae, ou seja, aqueles realizados em função daquela pessoa específica.
Exemplo: Vocês contratam um renomado cirurgião plástico para realizar um procedimento. No dia da cirurgia, descobrem que será o assistente dele, recém-formado, a operá-los. A qualidade essencial da pessoa (sua expertise, sua fama) foi o motivo determinante da contratação. Outro exemplo: a doação de uma grande quantia a alguém que se acredita ser um herói de guerra, descobrindo-se depois que se trata de um farsante.
B) ERRO ESCUSÁVEL (PERDOÁVEL)
Além de essencial, o erro precisa ser perdoável. Aqui, entra a figura do homem médio. O juiz analisará se uma pessoa com um grau normal de cuidado e atenção, nas mesmas circunstâncias, também cometeria aquele erro.
O Direito não protege o negligente, o desatento, aquele que atua com um grau acentuado de displicência (descuidado).
Vamos voltar ao exemplo da joia.
Se um leigo, como eu ou vocês, entra em uma joalheria e compra um anel falso acreditando ser verdadeiro, seu erro é, em tese, escusável. É perdoável.
Agora, se o compradoré um joalheiro profissional, um expert no assunto, espera-se dele um conhecimento técnico muito superior. Seu erro em não identificar a falsificação seria considerado inescusável, grosseiro, e o Direito não o socorreria para anular o negócio.
A análise da escusabilidade, portanto, é sempre casuística, levando em conta as condições pessoais do declarante e as circunstâncias do negócio.
"Nem Tudo Está Perdido": O Princípio da Conservação do Negócio Jurídico
O Direito Civil moderno tem uma regra de ouro: o princípio da conservação dos negócios jurídicos. A anulação é sempre a última medida. Se for possível "salvar" o negócio, respeitando a vontade real das partes, o juiz deve buscar essa solução.
O Código traz isso de forma expressa no art. 144:
"Art. 144. O erro não prejudica a validade do negócio jurídico quando a pessoa, a quem a manifestação de vontade se dirige, se oferecer para executá-la na conformidade da vontade real do manifestante”.
Voltando ao exemplo dos lotes: eu comprei o lote A por engano, querendo o B. Eu entro com uma ação para anular. O vendedor, então, diz: "Espere, Doutor Juiz! Eu percebi o engano. Eu entrego a ele o lote B, pelo mesmo preço e condições".
Pronto! O erro é sanado, a vontade real é atendida e o negócio é conservado.
5. A Grande Confusão a ser Evitada: Erro vs. Vício Redibitório
Para finalizarmos, quero alertá-los sobre um equívoco muito comum, tanto entre estudantes quanto na prática forense: confundir erro com vício redibitório.
São institutos completamente diferentes.
VÍCIO REDIBITÓRIO é um defeito oculto num bem que, no momento da compra, não era do conhecimento do comprador e que o torna impróprio para o uso a que se destina ou lhe diminui o valor.
Vamos desenhar a diferença:
ERRO (Vício de Consentimento) VÍCIO REDIBITÓRIO (Vício da Coisa)
Plano Subjetivo: Afeta a mente, a vontade na sua formação. É um defeito psíquico. Plano Objetivo: Afeta a coisa em si, sua materialidade. É um defeito do produto.
Momento: Ocorre ANTES ou DURANTE a celebração do negócio. A vontade já nasce viciada. Momento: É percebido APÓS a entrega da coisa (tradição). A vontade foi perfeita.
Natureza: A pessoa recebe uma coisa diferente da que imaginava. Compra "gato por lebre". Natureza: A pessoa recebe exatamente a coisa que queria, mas ela tem um defeito oculto que a torna imprópria ao uso ou lhe diminui o valor. Compra a "lebre", mas a "lebre" vem doente.
Exemplo: Comprar um relógio banhado a ouro pensando ser de ouro maciço. Exemplo: Comprar o relógio de ouro maciço desejado, mas, dias depois, descobrir que seu maquinário interno tem um defeito oculto que o faz atrasar.
Consequência: Ação Anulatória do Negócio Jurídico. Consequência: Ações Edilícias: Ação Redibitória (desfazer o negócio) ou Ação Quanti Minoris (pedir abatimento no preço).
Sexta
Diferença fundamental? No erro, o problema está na cabeça do declarante. No vício redibitório, o problema está dentro do produto.
Quarta - DEFEITOS DO NEGÓCIO JURÍDICO - O DOLO
Conceituando o Dolo: A Má-fé que Vicia a Vontade
Se o erro é uma representação mental equivocada que a própria pessoa faz da realidade, o dolo é essa mesma representação equivocada, porém, induzida intencionalmente pela outra parte ou por um terceiro.
O conceito clássico de dolo é: todo artifício malicioso empregado por uma das partes ou por terceiro com o propósito de enganar e prejudicar outrem na celebração de um negócio jurídico.
O elemento central aqui é a intenção de enganar (o animus decipiendi). Não é um simples equívoco, é uma manobra, uma astúcia, um estratagema para levar a outra parte a uma conclusão que a beneficie indevidamente.
EXEMPLO: é o do vendedor que lhe oferece uma caneta afirmando ser de ouro maciço, sabendo perfeitamente que se trata de cobre banhado. Ele não está apenas enganado; ele está ativamente enganando você. Esse negócio, como veremos, é passível de anulação.
2. O QUE O DOLO NÃO É: DELIMITANDO AS FRONTEIRAS
Para entendermos bem o conceito, é fundamental saber diferenciá-lo de figuras próximas, mas distintas.
Dolo vs. Dolus Bonus
Desde o Direito Romano, a doutrina diferencia o dolo "mau" (dolus malus) do dolo "bom" (dolus bonus).
O dolus bonus nada mais é do que o marketing, o elogio exagerado, a técnica de vendas que realça as qualidades de um produto.
Quando o vendedor de carros diz que você está adquirindo "a máquina mais potente da categoria" ou o garçom afirma que aquele é "o melhor prato da casa", isso é considerado um exagero tolerável no comércio. Espera-se do consumidor médio a diligência para separar o que é técnica de persuasão do que é fato.
Atenção: A fronteira é ultrapassada quando o elogio se torna uma mentira objetiva. Afirmar que um celular é à prova d'água quando ele não é, ou garantir um consumo de combustível irreal, extrapola o dolus bonus e pode configurar publicidade enganosa, com sanções cíveis, administrativas e até criminais.
Terça- AS CLASSIFICAÇÕES DO DOLO E SEUS EFEITOS
A lei classifica o dolo de acordo com sua intensidade e sua forma de atuação. Entender essa classificação é vital para saber qual será a consequência jurídica.
A) Quanto aos Efeitos no Negócio: Dolo Principal vs. Dolo Acidental
Esta é a classificação mais importante, pois define o destino do negócio jurídico.
Dolo Principal (ou Essencial): É aquele que ataca a causa do negócio. A mentira, o ardil, foi o motivo determinante para a celebração do contrato. A pergunta a se fazer é: "Se a vítima soubesse da verdade, ela teria feito o negócio?". Se a resposta for NÃO, o dolo é principal.
Consequência: O dolo principal gera a anulabilidade do negócio jurídico, conforme o art. 145 do Código Civil: "São os negócios jurídicos anuláveis por dolo, quando este for a sua causa."
Dolo Acidental: É aquele que não é a causa determinante do negócio. A vítima ainda assim realizaria o negócio, porém em condições diferentes (provavelmente mais vantajosas para si).
A mentira incide sobre uma circunstância secundária do contrato.
Consequência: O dolo acidental NÃO anula o negócio. Ele apenas obriga a parte que agiu com dolo a indenizar a outra por perdas e danos. Diz o art. 146: "O dolo acidental só obriga à satisfação das perdas e danos, e é acidental quando, a seu despeito, o negócio seria realizado, embora por outro modo."
Exemplo prático: Vamos imaginar que eu quero comprar um carro específico, modelo "X", e encontro um à venda. O vendedor me diz que a pintura é metálica (que é mais cara), e eu fecho o negócio. Depois, descubro que a pintura é básica.
Cenário 1 (Dolo Principal): Se a pintura metálica era uma condição essencial para mim, a ponto de eu não querer o carro de outra cor, o dolo foi a causa do negócio. Posso pedir a anulação.
Cenário 2 (Dolo Acidental): Se eu queria o carro de qualquer jeito e a cor era um detalhe, mas fui enganado a pagar mais por uma qualidade inexistente, o negócio seria feito de toda forma. Neste caso, o negócio subsiste, mas eu tenho o direito de ser indenizado pela diferença de valor e eventuais prejuízos.
B) Quanto à Atuação do Agente: Dolo Positivo vs. Dolo Negativo (Omissivo)
Dolo Positivo (ou Comissivo): É o dolo por ação. Envolve uma conduta ativa, uma afirmação falsa, a criação de uma cena para enganar. O exemplo da caneta de cobre vendida como ouro é um dolo positivo.
Dolo Negativo (ou Omissivo): Este é mais sutil. É o dolo do silêncio intencional. Ocorre quando uma das partes se cala sobre um fato ou qualidade que a outra parte ignora e que, se soubesse, não teria celebrado o negócio. Não é qualquer silêncio, mas um silêncio malicioso sobre um dever de informar.
O art. 147 é explícito: "Nos negócios jurídicos bilaterais, o silêncio intencional de uma das partes a respeito de fato ou qualidade que a outra parte haja ignorado, constitui omissão dolosa, provando-se que sem ela o negócio não se teria celebrado."
Exemplo: Vender um imóvel silenciando intencionalmente sobre o fato de que ele possui um vício estrutural grave e oculto, que o torna inabitável.O DOLO DE TERCEIRO E A RESPONSABILIDADE
E se o ardil não vier da outra parte, mas de um terceiro estranho ao negócio?
O art. 148 do Código Civil traz uma solução muito inteligente, focada na boa-fé da parte que se beneficiou.
"Art. 148. Pode também ser anulado o negócio jurídico por dolo de terceiro, se a parte a quem aproveite dele tivesse ou devesse ter conhecimento; em caso contrário, ainda que subsista o negócio jurídico, o terceiro responderá por todas as perdas e danos da parte a quem ludibriou.“
Vamos usar o excelente exemplo da doutrina para entender:
EXEMPLO:
Cenário: Caio (colecionador) contrata Tício (intermediário especialista) para encontrar um vaso raro. Tício, para garantir sua comissão, engana Caio, fazendo-o comprar de Orfeu (vendedor) uma réplica, como se fosse um vaso original da dinastia Ming.
Aqui, o dolo partiu do terceiro (Tício).
O QUE ACONTECE COM O NEGÓCIO ENTRE CAIO E ORFEU? A RESPOSTA DEPENDE DE ORFEU:
Se Orfeu sabia do dolo de Tício (conluio): O negócio é anulável. Orfeu agiu de má-fé junto com Tício. Ambos podem ser responsabilizados por perdas e danos.
Se Orfeu não sabia, mas deveria saber: Se as circunstâncias deixavam claro que havia algo errado (o preço muito baixo, a pressa de Tício, etc.), a lei presume que Orfeu NÃO agiu com a devida diligência. Ele "deveria ter conhecimento". O negócio também é anulável.
Se Orfeu não sabia e não tinha como saber (estava de boa-fé): O negócio é mantido, para proteger a boa-fé e a segurança jurídica. No entanto, Caio NÃO fica desamparado. Ele poderá cobrar todas as perdas e danos do terceiro que o enganou, o Tício.
Note-se que há uma diferença entre o dolo de terceiro e o dolo do representante (legal ou convencional), que possui regras próprias de responsabilidade no art. 149.
5. A "Neutralização" da Má-fé: O Dolo Bilateral
Para finalizar, o que acontece se ambas as partes tentam enganar uma à outra no mesmo negócio?
Aqui, o Direito aplica o princípio de que ninguém pode se beneficiar da própria torpeza (nemo propriam turpitudinem allegans). O art. 150 estabelece que, se o dolo for bilateral, nenhuma das partes pode alegá-lo para anular o negócio ou pedir indenização.
"Art. 150. Se ambas as partes procederem com dolo, nenhuma pode alegá-lo para anular o negócio, ou reclamar indenização.“
É como se a má-fé de um "neutralizasse" a do outro. O Judiciário se recusa a ser o árbitro de um duelo de trapaceiros, e o negócio, em regra, subsiste como está.
Defeitos do Negócio Jurídico - A Coação
1. A Essência da Coação: A Vontade Subjugada pela Violência
Enquanto o dolo é sutil e ataca a inteligência da vítima, a coação é direta e ataca sua liberdade. O dolo é o ardil, a coação é a ameaça.
Podemos conceituar a coação como toda violência, física ou psicológica, capaz de forçar a vítima a realizar um negócio jurídico que ela, em seu íntimo, não deseja celebrar.
O elemento central aqui não é o engano, mas o medo. É o fundado temor de sofrer um mal injusto que leva a pessoa a manifestar uma vontade que não é verdadeiramente sua. E a doutrina, de forma muito clara, divide essa violência em duas espécies, com consequências jurídicas drasticamente diferentes.
2. As Duas Faces da Coação: Vis Absoluta vs. Vis Compulsiva
a) Coação Física (Vis Absoluta)
Aqui falamos de violência física irresistível, que age diretamente sobre o corpo da vítima. Nessa modalidade, a vontade não é viciada, ela é completamente eliminada. A pessoa coagida não age, ela é usada como um mero instrumento, um objeto nas mãos do coator.
Exemplo: embora pareça extremo, é perfeito para ilustrar: imagine um lutador de sumô que agarra à força a mão de uma senhora idosa e analfabeta, pressionando o seu polegar em um contrato para apor sua impressão digital.
Houve manifestação de vontade por parte dela? Nenhuma. Zero. Ela não "escolheu" assinar; seu corpo foi mecanicamente utilizado para isso.
Consequência Jurídica: Por ausência total de vontade, a doutrina majoritária entende que o negócio jurídico celebrado sob coação física é INEXISTENTE. Ele não é nulo ou anulável. Para o Direito, ele simplesmente nunca aconteceu, nunca entrou no mundo jurídico. Obviamente, quem alega a vis absoluta tem o pesado ônus de prová-la de forma inequívoca.
b) Coação Moral (Vis Compulsiva)
Esta é a coação em seu sentido mais comum e a que o Código Civil trata como vício de consentimento. Aqui, a violência não é física, mas psicológica. É a ameaça, a intimidação que incute na vítima um temor grave e a coloca diante de uma escolha de Sofia: ou celebra o negócio, ou sofre o mal com que é ameaçada.
Notem a sutileza: a vontade aqui não é eliminada, mas é profundamente viciada. A pessoa coagida "escolhe" celebrar o negócio, mas o faz para evitar um mal maior. Sua vontade existe, mas não é livre.
O exemplo é o do sujeito que assina um contrato de doação de seus bens porque um criminoso ameaça sequestrar seu filho. Ele manifesta a vontade de doar, mas o faz sob uma pressão insuportável e ilegítima.
Consequência Jurídica: Como a vontade existe, ainda que viciada, o negócio é ANULÁVEL. Ele nasce com um defeito que permite à vítima, uma vez cessada a coação, pedir em juízo o seu desfazimento.
3. Os Requisitos da Coação Moral (Anulável)
Não é qualquer "pressão" ou "ameaça" que caracteriza a coação. O art. 151 do Código Civil estabelece um verdadeiro checklist:
"Art. 151. A coação, para viciar a declaração da vontade, há de ser tal que incuta ao paciente fundado temor de dano iminente e considerável à sua pessoa, à sua família, ou aos seus bens.“
Vamos dissecar o artigo:
Temor Fundado: A ameaça deve ser séria, plausível, capaz de intimidar. Não pode ser uma ameaça fantasiosa ou claramente inexequível.
Dano Iminente e Considerável: O mal prometido deve ser grave (considerável) e próximo de acontecer (iminente). A ameaça de um mal trivial ou a ser executado num futuro distante e incerto pode não configurar coação.
Ameaça Injusta: O mal ameaçado deve ser ilícito. Ameaçar alguém de morte é injusto. Ameaçar processar alguém por uma dívida não paga não é, como veremos.
Alvo da Ameaça: O dano pode ser direcionado à própria vítima, à sua família ou aos seus bens. De forma muito sensível, o parágrafo único do art. 151 permite que o juiz reconheça a coação mesmo se a ameaça for contra alguém que não é da família (um grande amigo, um sócio), analisando o vínculo afetivo no caso concreto.
A Análise Subjetiva da Coação: "O Medo Não é Igual para Todos“
Aqui temos um ponto muito interessante. Enquanto em outros vícios, como o erro, usamos o padrão do "homem médio", na coação a lei nos manda fazer o oposto. O juiz deve analisar o impacto da ameaça sob a ótica pessoal da vítima.
O art. 152 é a bússola para essa análise:
"Art. 152. No apreciar a coação, ter-se-ão em conta o sexo, a idade, a condição, a saúde, o temperamento do paciente e todas as demais circunstâncias que possam influir na gravidade dela.“
A mesma ameaça verbal pode ser aterrorizante para uma senhora idosa e doente, mas completamente irrelevante para um jovem atleta campeão de artes marciais. A lei reconhece que o medo é subjetivo. Essa análise casuística é fundamental para fazer justiça e, ao mesmo tempo, evitar alegações levianas de coação.
O que NÃO se Confunde com Coação
Existem duas situações que parecem coação, mas que o Direito expressamente exclui:
Ameaça do Exercício Normal de um Direito: Ameaçar alguém com uma consequência legal e prevista em direito não é coação. O credor que diz ao devedor: "Se você não me pagar, vou protestar o título e ajuizar uma ação de execução" está apenas advertindo sobre o exercício regular de um direito seu. Isso não vicia o negócio.
Simples Temor Reverencial: É o receio ou respeito que se tem por uma figura de autoridade (pais, chefes, líderes religiosos). O filho que vende um bem para agradar ao pai, mesmo sem querer, não pode, em regra, anular o negócio alegando coação. Contudo, se essa autoridade se vale de sua posição para fazer ameaças reais, aí sim a coaçãopode se configurar.
A Coação Exercida por Terceiro
E se a ameaça vier de alguém que não é parte no negócio? A lógica é muito similar à que vimos no dolo de terceiro, e está nos arts. 154 e 155. A solução depende do conhecimento da parte beneficiada.
Cenário: "A" é forçado por "C" (um agiota, por exemplo) a vender seu carro por um preço vil para "B".
Se "B" (o comprador beneficiado) sabia ou deveria saber da coação: A lei pune a má-fé. O negócio é anulável, e tanto "B" quanto o coator "C" responderão solidariamente pelas perdas e danos causados a "A".
Se "B" (o comprador beneficiado) não sabia e não tinha como saber (estava de boa-fé): Para proteger a segurança jurídica e o terceiro de boa-fé, o negócio subsiste. "A" não poderá desfazer a venda com "B". No entanto, "A" poderá cobrar do coator "C" uma indenização por todas as perdas e danos que sofreu, incluindo a diferença de valor do carro.
A lei busca, mais uma vez, um equilíbrio: protege a vítima da coação, mas também resguarda os interesses daquele que negociou de boa-fé.
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