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Texto 01 TEMA 1 – CONSTRUÇÃO HISTÓRICA TEMA 2 – NARCISISMO PRIMÁRIO E NARCISISMO SECUNDÁRIO TEMA 3 – ALGUMAS ABORDAGENS DO NARCISISMO TEMA 4 – DEFESAS NARCÍSICAS TEMA 5 – NARCISISMO PATOLÓGICO Conversa inicial Vamos começar agora a trabalhar um tema de extrema relevância nos dias atuais: Narcisismo e Cultura Midiática. Estudar tal tema é fundamental para que possamos entender como as mídias sociais, publicidade e outros veículos influenciam a maneira como as pessoas percebem a si mesmas e aos outros. A valorização excessiva da imagem, a busca incessante por validação externa e a exaltação do ego se tornam normas culturais. A exposição constante a ideais de beleza, sucesso e estilo de vida promovidos pela mídia pode exacerbar tendências narcisistas, levando a questões como baixa autoestima, ansiedade e outros transtornos psicológicos. A cultura midiática, especialmente por meio das redes sociais, transformou a maneira como nos relacionamos. A análise do narcisismo nesse contexto irá nos permitir compreender como a superficialidade e a objetificação do outro podem prejudicar a profundidade das relações interpessoais. Para podermos fazer todas essas análises, iremos trabalhar os seguintes temas: narcisismo, eu ideal e ideal do eu, narcisismo das pequenas diferenças, ciberespaço, reflexões sobre o narcisismo nas redes sociais e fecharemos com psicanálise e ciberespaço. Em última análise, estudar o Narcisismo e Cultura Midiática também é uma forma de crítica cultural, que questiona os valores propagados pelos meios de comunicação e suas consequências na sociedade incluindo uma reflexão sobre o consumismo, o individualismo extremo e a perda de vínculos comunitários. Espero que você aproveite! TEMA 1 – CONSTRUÇÃO HISTÓRICA Para podermos trabalhar de forma mais consistente o tema “Narcisismo e Cultura Midiática”, entendemos ser necessário fazer uma digressão histórica dividida em dois momentos. No primeiro, iremos abordar, propriamente, o mito de Narciso. Posteriormente, veremos como Freud desenvolveu a temática do narcisismo. 1.1 O Mito de Narciso A origem do Mito de Narciso está na mitologia grega, mas foi realmente detalhado por Ovídio, um dos mais proeminentes poetas romanos, nascido em 43 a.C e falecido entre 17 e 18 d.C. Ovídio escreveu diversas obras que abordavam temas mitológicos e amorosos, sendo uma das principais a Metamorfoses, composta por 15 livros em que o autor narra a história do mundo desde sua criação até a deificação de Júlio César, sendo que, em seu livro III, encontra-se o Mito de Narciso. Como existem diversas versões deste mito, trabalharemos com a mais popular. Narciso era filho do deus-rio Cefiso e da ninfa Liríope que, ao indagar ao profeta Tirésias sobre o destino de seu filho, é informada que ele teria uma vida longa desde que nunca visse sua própria imagem. A despeito desta profecia, Narciso cresceu e se tornou um jovem de beleza extraordinária. Sua aparência encantava todos ao seu redor, mas ele era indiferente aos sentimentos dos outros. Entre suas admiradoras estava Eco, uma ninfa muito falante que foi amaldiçoada por Hera, esposa de Zeus. Como punição por tê-la distraído por horas enquanto Zeus a traía com outras ninfas, Hera condenou Eco a apenas repetir as últimas palavras que ouvisse. Um belo dia, Eco viu Narciso enquanto ele caçava na floresta e se apaixonou perdidamente. Incapaz de falar diretamente com Narciso por causa da maldição, Eco esperou que ele falasse primeiro. Quando finalmente ele chamou por alguém, Eco repetiu suas palavras, emergindo de seu esconderijo e tentando abraçá-lo. Narciso a rejeitou cruelmente, dizendo que preferiria morrer a ser tocado por ela. Eco, devastada, retirou-se para a solidão das cavernas e montanhas, onde definhou até que nada restou dela além de sua voz. Contudo, quando estava escondida, em profunda tristeza e frustração, pediu aos deuses que Narciso experimentasse o sofrimento do amor não correspondido. Essa prece foi ouvida por Nêmesis, a deusa da vingança, que decidiu punir Narciso pela sua crueldade e falta de empatia. Decidiu que a punição apropriada para Narciso seria fazer com que ele se apaixonasse por algo que nunca poderia ter. Ela fez isso de tal forma que ele se apaixonasse por sua própria imagem, levando à sua auto-obsessão e, eventualmente, à sua destruição. Certo dia, após uma caçada, Narciso se aproximou de uma fonte cristalina para saciar sua sede. Ao inclinar-se para beber, viu sua própria imagem refletida na água e se apaixonou instantaneamente por aquela figura de beleza incomparável, sem perceber que era ele mesmo. Consumido pelo amor por sua própria imagem, Narciso não conseguia se afastar da fonte. Ele ficou ali, contemplando seu reflexo, incapaz de comer ou dormir, e lentamente definhou. Suas súplicas para que o reflexo retribuísse seu amor eram inúteis e acabou morrendo de tristeza. Após sua morte, as ninfas da floresta encontraram, no lugar onde ele havia caído, uma flor de pétalas brancas com um centro amarelo, que passou a ser conhecida como narciso, simbolizando a beleza efêmera e a natureza autodestrutiva do amor-próprio excessivo. 1.2 Construção de um conceito A construção, por Freud, do conceito de narcisismo se deu aos poucos, sendo que é possível vislumbrar, em diversas de suas obras, aspectos que irão, somados, servir de base para seu desenvolvimento. Em Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, escrito em 1905 e revisado em 1915, Freud introduziu a ideia de que a libido está inicialmente centrada no próprio corpo e só após se dirige a objetos externos. Isso poderia ser visto como um precursor do conceito de narcisismo primário. Antes de continuarmos, cumpre ressaltar que até 1914, Freud, além de não utilizar o termo narcisismo, estava trabalhando com a primeira tópica (CS – PCS – ICS) onde o “Eu” ainda não é uma instância psíquica. Em 1911, em seu Estudo sobre o Caso Schreber, Freud observou que o jurista retirou sua libido dos objetos externos e a reinvestiu em si próprio onde ficou estacionada. Percebeu que tal fixação se manifestou na forma de delírios grandiosos e a crença de que Schreber possuía um papel especial no plano divino. Tais delírios podem ser interpretados como uma forma de narcisismo extremo onde se busca uma defesa contra sentimentos de impotência e inferioridade. Não é incorreto, portanto, afirmarmos que as ideias abordadas a partir desse estudo influenciaram, de forma significativa, o desenvolvimento do conceito de narcisismo. Em 1914, temos a introdução formal do conceito por Freud em seu trabalho Introdução ao Narcisismo. Nesse texto, o narcisismo é considerado como uma fase normal do desenvolvimento psíquico, onde a libido (energia psíquica) é investida no próprio eu. As distinções entre suas formas primária e secundárias são estabelecidas, bem como o conceito de catexia, desenvolvimento do Eu, relação entre narcisismo e condições patológicas, entre outras questões. Alguns tipos de caráter encontrados na prática psicanalítica é um texto escrito por Freud, em 1916, onde ele explora as patologias do narcisismo, abordando diversos tipos de caráter e suas implicações clínicas. Em 1917, em Luto e Melancolia, Freud discute a melancolia como uma neurose narcísica. A partir da leitura desse texto, podemos afirmar que tal condição é uma forma complexa e patológica de luto, profundamente interligada com o narcisismo, pois há uma identificação intensa com o objeto perdido onde a libido é redirecionada ao próprio eu. O conceito de narcisismo é ampliado para além do nível individual na obra Psicologia das massas e análise do Eu, de 1921. Nesse trabalho, Freud explora como o narcisismo se manifesta e opera dentro de grupos sociais e instituições. Ao ler tal texto, podemos afirmar que ele demonstra como o narcisismo individual se projeta e se refletenas relações grupais, particularmente por meio da identificação com líderes e ideais grupais. Os líderes de grupos geralmente exibem características narcísicas, como grandiosidade, autoconfiança e um desejo de ser admirados. Os seguidores, por sua vez, projetam suas próprias aspirações narcísicas no líder. Dessa forma, uma dinâmica seria criada, tendo como base uma relação simbiótica entre líder e seguidores. Assim, narcisismo seria de extrema importância na formação de grupos e na manutenção da coesão e da identidade grupal. Em O Ego e o ID, de 1923, temos a formalização das ideias freudianas sobre a estrutura do aparelho psíquico e da inclusão do narcisismo como aspecto central para o funcionamento do Eu. Além de demonstrar a estruturação de sua segunda tópica, Freud também explora as defesas do ego relacionadas ao narcisismo. Em 1937, em seu texto Análise Terminável e Interminável, Freud revisita a análise do Eu e discute os desafios contínuos apresentados pelo narcisismo na prática psicanalítica. Para tanto, ele aborda questões como resistência ao tratamento, transferência em pacientes narcisistas, relação entre autoestima e grandiosidade, ambivalência em relação ao processo terapêutico, entre outras questões. Podemos dizer que esse texto é uma reflexão sobre os limites e as potencialidades da psicanálise. A escolha desses textos para apresentar como se deu a “construção” do narcisismo sob a ótica freudiana teve como objetivo demonstrar não apenas a evolução do conceito, mas também deixar claro que Freud durante toda sua trajetória não se “desprendeu” de tal temática. TEMA 2 – NARCISISMO PRIMÁRIO E NARCISISMO SECUNDÁRIO Como vimos no tópico anterior, Freud trabalhou o narcisismo em diversas obras ao longo de sua vida. Contudo, foi em 1914 que ele utilizou o mito escrito por Ovídio para ilustrar seu conceito. Aqui, Freud refere-se ao narcisismo como um investimento libidinal que uma pessoa faz em si mesmo, sendo que seu desenvolvimento se dá na infância. Nessa fase, passamos por um processo complexo que envolve a transição do narcisismo primário ao secundário e, com isso, temos diversos desdobramentos a depender da forma, saudável ou não, em que tudo ocorreu. Vamos agora, portanto, trabalhar os conceitos de narcisismo primário e secundário tão importantes para a teoria psicanalítica. 2.1 Narcisismo primário Ao estudarmos a obra Introdução ao Narcisismo, podemos ver que Freud justifica a necessidade de um olhar mais atento ao narcisismo a partir de diversas observações e reflexões teóricas. Inicialmente, esse termo designava “a conduta em que o indivíduo trata o próprio corpo como se este fosse o de um objeto sexual, isto é, olha-o, toca nele e o acaricia com prazer sexual, até atingir plena satisfação” (Freud, 2021, p. 14). Contudo, a partir de suas observações clínicas, Freud percebeu que características isoladas do comportamento narcísico eram encontradas em várias pessoas com distúrbios diversos. Apontou, ainda, como necessidade de se atentar com a ideia de um narcisismo primário a partir das dificuldades encontradas em tratar pacientes esquizofrênicos sob a hipótese da teoria da libido (Freud, 2021). Outro ponto apresentado decorre das observações e concepções da vida psíquica das crianças e dos povos primitivos. Freud encontrou traços de megalomania e onipotência em ambos os casos, sugerindo, portanto, que a formação de um originário investimento libidinal do Eu que se difere da libido objetal e que ambas são contrapostas (Freud, 2021). Podemos, de certa forma, relacionar este investimento libidinal do Eu ao narcisismo primário que, segundo a teoria psicanalítica, ocorre nos primeiros meses de vida quando o bebê ainda não diferencia entre si mesmo e o mundo externo. Durante esta fase, o bebê irá investir toda a sua libido (energia psíquica) em si mesmo. É totalmente autocentrado, sua principal preocupação é o cumprimento de suas necessidades básicas que acredita serem satisfeitas automaticamente (por si próprio). Vale lembrar que Freud salienta que esse autoinvestimento de libido, fundamental para a constituição narcísica do sujeito, não se dá de forma inata, ele é efeito da relação com os pais que sustenta esse investimento ao se ocupar da criança. Podemos dizer que, nesta fase, existe um sentimento oceânico em que a criança se sente onipotente. Contudo, à medida que o bebê cresce, ele começa a perceber que não há essa onipotência e que existe um mundo externo com outras pessoas que atendem suas necessidades. É nesse momento que a criança começa a formar uma imagem do outro (objeto) como separado de si e podemos dizer que há aqui uma fase de transição do narcisismo primário ao secundário. A partir do momento em que há a percepção que é o outro quem satisfaz suas necessidades, o bebê redireciona sua libido, inicialmente investida no próprio eu (narcisismo primário), a objetos externos durante seu desenvolvimento. Passamos a entender, aqui, que dependemos do outro para sobreviver (e sermos felizes). Assim, investimos toda nossa energia no outro uma vez que temos que agradá-lo, deixá-lo satisfeito para, em contrapartida, sermos amados. 2.2 Narcisismo secundário Freud irá sugerir que o narcisismo secundário é construído sobre o primário e é revelado quando a libido retirada dos objetos é redirecionada ao eu, construído sobre a base do narcisismo primário. Essa mudança de direcionamento da libido pode ser vista em condições patológicas como a esquizofrenia, em que pacientes mostram uma retirada da libido dos objetos externos e uma subsequente megalomania. Freud nos explicou que tal megalomania não seria uma criação nova, mas sim uma ampliação e explicitamento de um estado pré-existente (narcisismo primário) (Freud, 2021). Apesar de Freud ter trabalhado o narcisismo secundário em estados patológicos, tais como esquizofrenia e melancolia, ele desempenha um papel significativo na formação do amor-próprio. Sendo assim, não devemos compreender o narcisismo secundário como algo essencialmente negativo uma vez que ele possui aspectos saudáveis e funcionais a depender do contexto. Em níveis “normais”, o narcisismo secundário pode ajudar na autoconservação e autovalorização, ou seja, pode levar a uma autoestima saudável, necessária para enfrentar desafios e lidar com situações adversas. Em momentos de crise ou perda, por exemplo, uma retirada temporária da libido dos objetos externos e seu redirecionamento ao eu pode ser um valioso mecanismo de defesa que auxilia (viabiliza) na recuperação emocional e resiliência, permitindo que o indivíduo se reorganize internamente antes de voltar a investir em novos objetos externos. Uma dose saudável de narcisismo secundário pode promover autossuficiência, independência emocional, autoconhecimento, além de incentivar o desenvolvimento pessoal. Tudo isso é de extrema importância para a formação de um eu forte e capaz de manter relacionamentos equilibrados. Roussillon (2023) irá nos enfatizar a importância das relações primitivas e do ambiente inicial na formação de um narcisismo secundário saudável. Ele destaca a função espelhante desempenhada pelo outro, ou seja, o papel exercido pelo cuidador principal que reflete de volta ao bebê suas próprias emoções e estados internos. Tal função seria essencial para o desenvolvimento da autoimagem e da identidade. Outra função seria a capacidade de contenção do outro, que auxilia a criança a integrar e subjetivar experiências primitivas. Contudo, Roussillon (2023) destaca que, se houver falhas nesse momento inicial, a criança pode desenvolver defesas narcísicas secundárias para lidar com a fragmentação psíquica e as falhas no ambiente inicial. Dessa forma, podemos compreender que a depender do papel desempenhado pelo outro e como a criança o percebe, podemos ter um narcisismo saudável ou patológico.TEMA 3 – ALGUMAS ABORDAGENS DO NARCISISMO O narcisismo foi trabalhado em diversas formas e, se olharmos isoladamente, diferentes linhagens da psicanálise. Já afirmamos, anteriormente, que não é aconselhável a adoção de uma linhagem específica, mas sim, termos uma compreensão de todas elas. Tendo isso em mente, iremos abordar agora, brevemente, como famílias diversas trataram o narcisismo. 3.1 Freud Como visto até então, Freud introduziu o conceito em sua obra de 1914 Introdução ao Narcisismo e ocupou-se dele em diversos outros momentos ao longo de sua vida. De forma resumida, para não sermos repetitivos, Freud enxergou o narcisismo como algo normal e necessário. Ele relacionou o narcisismo com o investimento libidinal que fazemos em nós mesmos durante a infância. Percebeu que, na realidade, durante o desenvolvimento infantil passamos por um processo complexo onde, inicialmente, temos o narcisismo primário e, posteriormente, o secundário. A depender do ambiente externo, do papel desempenhado pelo outro e de como percebemos tudo isso, podemos ter desdobramentos saudáveis ou não ao final desse percurso. 3.2 Lacan Lacan reinterpretou e expandiu diversos conceitos freudianos e isso não foi diferente com o narcisismo, uma vez que é possível verificar que em vários de seus Seminários, bem como em alguns textos do seu Escritos, tal tema é trabalhado seja direta ou indiretamente. A título de exemplo (tendo em vista que não é objetivo desta etapa aprofundar na teoria lacaniana), no texto O estádio do espelho como formador da função do eu, Lacan descreve como a criança se reconhece no espelho e forma uma imagem idealizada de si mesma, o que é um processo fundamental para o desenvolvimento do narcisismo. Já no texto A instância da letra no inconsciente, Lacan discute como a linguagem e a simbolização afetam o desenvolvimento do narcisismo e do ego. Ambos os textos e diversos outros integram o Escritos (2021), que foi publicado originalmente em 1966. No Seminário 1, Os escritos técnicos de Freud, Lacan (2020a) oferece uma leitura e uma análise aprofundada de alguns textos técnicos de Freud, que foram fundamentais para o desenvolvimento de sua própria teoria psicanalítica. O narcisismo é trabalhado de várias formas, seja por uma abordagem direta seja de maneira transversal. Lacan, ao trabalhar a relação entre a formação do eu e a do objeto, irá destacar como o narcisismo surge a partir dessa correlação. Ao destacar a importância do narcisismo primário, ele também discutirá o desenvolvimento do eu, que se baseia em uma relação imaginária onde o eu se constitui a partir de uma imagem especular. Lacan (2010), no Seminário 2 O Eu na Teoria de Freud e na Técnica da Psicanálise, também trabalha o narcisismo como um elemento estruturante nas relações do homem com o mundo exterior e irá destacar a importância da imagem do corpo e como ela é percebida externamente. Ele discutirá a diferença entre os narcisismos primário e secundário, enfatizando a natureza dinâmica e contínua do narcisismo na vida psíquica do sujeito. Já no Seminário 8, A transferência, Lacan (2020b) também irá discutir a função do narcisismo em termos de investimento libidinal e a importância do ideal como ponto fundamental na produção da transferência. No Seminário 11 Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Lacan (2020c) irá utilizar o conceito de narcisismo para aprofundar a compreensão da estrutura psíquica e das relações intersubjetivas, ao estabelecer diversas conexões entre suas elaborações teóricas e a teoria freudiana. Ao tentarmos estabelecer um paralelo sobre as abordagens lacaniana e freudiana, não seria incorreto afirmar que, enquanto Freud trabalhou em termos de investimentos libidinais, Lacan incorporou o narcisismo no contexto mais amplo de sua teoria dos três registros. Para ele, o narcisismo está profundamente ligado às identificações imaginárias e à alienação do sujeito em sua própria imagem. 3.3 Winnicott O narcisismo, em Winnicott, é trabalhado de forma diversa das linhagens anteriormente trazidas. A abordagem winnicottiana se concentra no desenvolvimento do self, na importância do relacionamento mãe-bebê e na capacidade de ser criativo e autêntico, entre outros fatores. Essa linhagem valoriza, sobremaneira, a importância do ambiente facilitador e da resposta da mãe suficientemente boa para a formação de um self saudável e a consequente mitigação de aspectos patológicos. Podemos perceber o narcisismo sendo trabalhado transversalmente em diversos momentos. Ao introduzir o conceito de objeto transicional, que se faz presente quando a criança começa a se relacionar com o mundo externo, Winnicott nos permite intuir que estamos diante da transição do narcisismo primário para relacionamentos mais maduros com objetos externos. Tal objeto, portanto, auxilia a criança no deslocamento gradual de seu investimento libidinal de si mesma para o outro, de forma a facilitar no desenvolvimento de um senso de realidade e na capacidade de se relacionar de forma saudável. O conceito de mãe suficientemente boa é (felizmente!) criado por Winnicott e possui um papel fundamental para o desenvolvimento saudável do nosso self. Diante de uma mãe (ou cuidador principal) que responde de forma adequada e consistente proporcionando um ambiente de segurança e suporte sem intrusões excessivas, o bebê desenvolverá a capacidade de lidar com a realidade e se tornar um indivíduo independente. Tal conceito está intrinsecamente relacionado com a ideia winnicottiana do desenvolvimento de um self saudável (verdadeiro). Trazendo tais ideias para o nosso tema, podemos pensar que o ambiente/mãe suficientemente bom permite que a criança passe por um narcisismo primário saudável e, gradualmente, desenvolva um secundário igualmente equilibrado. Assim, a construção de um falso self que poderia levar a narcisismo patológico seria desnecessário. Outro ponto da teoria winnicottiana que podemos tentar relacionar com o narcisismo é a “capacidade de estar só” que seria um indicativo de saúde emociona e (por que não?) de um narcisismo saudável, pois reflete uma base segura, internalizada que é fundada no amor e cuidado e que permite possuirmos o sentimento de estarmos confortáveis com nós mesmos, sem que precisemos de aprovação constante do outro. 3.4 Melanie Klein Klein trouxe contribuições significativas no que se refere às fases primitivas do nosso desenvolvimento psíquico e, da mesma forma que Winnicott, sua concepção se diferencia das demais. Seu trabalho enfatizou, primordialmente, as fases mais precoces da vida e as primeiras relações objetais. No que tange o narcisismo, ela acredita que ele está intrinsecamente relacionado ao sentimento de onipotência desenvolvido pela criança. Tal sentimento seria evidente durante a fase do narcisismo (primário?) em que a criança acredita que seus pensamentos (e excrementos) possuem poderes mágicos e destrutivos. Haveria, ainda, uma distinção entre os narcisismos feminino (que estaria distribuído por todo o corpo) e masculino (concentrado no pênis) (Klein, 1981). Além disso, podemos pensar, ainda, na forma como Klein trabalha a ideia de culpa e reparação. Por meio dos conceitos de posição esquizoparanóide e posição depressiva, verificamos como ela desenvolve questões referentes aos mecanismos de defesa e reparação que são centrais para o narcisismo. Uma vez na posição esquizoparanóide, a criança lida com a ansiedade persecutória, onde partes boas e más do objeto são mantidas separadas. O narcisismo aqui é marcado por uma forte defensividade, onde o ego ainda frágil se protege projetando as partes ruins para fora e idealizando as boas. Já na posição depressiva, a criança começa a integrar os aspectos bons e maus do objeto, reconhecendo-os como pertencentes a uma mesma figura. Ciente da sua própria capacidadede causar dano, tenta reparar o objeto e, simultaneamente, lida com o medo de ter causado dano irreversível. Nesse contexto, o narcisismo é uma defesa contra a culpa e o desespero, manifestando-se na fantasia de ser necessário e amado pelo objeto que agora se busca reparar (Klein, 1981). Podemos entender, portanto, que na posição esquizoparanóide o narcisismo aparece como defesa onipotente, evitando o reconhecimento da nossa dependência e vulnerabilidade. Na posição depressiva, por sua vez, temos um narcisismo mais elaborado onde tentamos lidar com a dependência/perda por meio da reparação e internalização do objeto bom e amado. As fantasias e impulsos sádicos, assim como a angústia persecutória, diminuem de intensidade. A criança, então, introjeta o objeto total, tornando-se, simultaneamente, capaz, em certa medida, de sintetizar os vários aspectos objetais e suas respectivas emoções, de acordo com Klein (1981). TEMA 4 – DEFESAS NARCÍSICAS Neste ponto, iremos trabalhar as defesas narcísicas, para tanto, iremos partir da compreensão do que sejam. Após estudarmos as obras de Freud e de sua filha, Anna Freud, podemos vê-las como mecanismos de defesa que o Eu utiliza para proteger a integridade do self diante de ameaças ao narcisismo. São, portanto, acionadas em respostas a feridas narcísicas, tais como frustrações e críticas. Neste mesmo sentido, Roussilon (2023) afirma que as defesas narcísicas estão profundamente ligadas à proteção do self contra a fragilidade e as ameaças ao senso de identidade e coesão do Eu, uma vez que teriam sua origem nas primeiras experiências traumáticas envolvendo decepções e feridas narcísicas primárias. Tal concepção se baseia na ideia de que o narcisismo se envolve em uma luta constante entre a necessidade de coesão do Eu e as ameaças a essa coesão, levando o sujeito a desenvolver mecanismos para se proteger de sentimentos de impotência e desintegração (Roussilon, 2023). Algumas defesas narcísicas que podemos enumerar são o recalque, a idealização, a desvalorização, a identificação projetiva, a negação, o deslocamento, a racionalização e a sublimação. Recalque:trata-se de mecanismo de defesa do ego que opera para afastar da consciência impulsos, desejos ou memórias que são considerados inaceitáveis ou ameaçadores para o equilíbrio psíquico do indivíduo. Envolve a “repressão” de conteúdos psíquicos que não podem ser integrados à consciência sem causar angústia, resultando na sua manutenção no inconsciente. É frequentemente acompanhado por outros mecanismos que irão auxiliar no controle/modificação dos impulsos recalcados para que eles possam ser expressos de maneiras mais aceitáveis para o indivíduo e para a sociedade (Freud, 2007). Idealização: de acordo com Anna Freud (2007), esse mecanismo está relacionado à forma como o ego tenta proteger a autoimagem do indivíduo, elevando ou superestimando certas características de si mesmo ou de objetos externos, de maneira que eles se tornem menos ameaçadores e mais aceitáveis. Serve, portanto, para manter a coesão do ego ao lidar com frustrações e ansiedades que poderiam desestabilizar o equilíbrio psíquico. Desvalorização:tal mecanismo ocorre quando o indivíduo, para preservar uma autoimagem idealizada, minimiza ou desmerece características, realizações ou qualidades de outra pessoa ou até mesmo de si próprio, quando esses elementos ameaçam seu senso de superioridade ou autoestima (Freud, 2007). De acordo com Roussilon (2023), esse mecanismo também pode ser observado em situações em que o narcisismo do indivíduo está ameaçado por comparações desfavoráveis. Ao desvalorizar aqueles que lhe causam inveja ou que representam uma ameaça ao seu status, o indivíduo mantém a ilusão de superioridade e protege o ego de possíveis feridas narcísicas . Identificação Projetiva:Anna Freud (2007) descreve esse mecanismo como, combinado com a introjeção, pode resultar em uma forma de defesa onde o ego lida com impulsos ameaçadores, projetando-os no outro e, simultaneamente, identificando-se com esse outro. Essa dinâmica pode ser observada, por exemplo, na "identificação com o agressor", onde o indivíduo, ao projetar seus impulsos agressivos, também incorpora aspectos do agressor para lidar com o medo e a angústia que essas pulsões provocam . Negação:este mecanismo atua para proteger o indivíduo de enfrentar realidades dolorosas, mas, ao mesmo tempo, pode comprometer a capacidade de lidar de forma adaptativa com a realidade externa, especialmente quando o ego depende excessivamente dessa defesa. Anna Freud (2007) explica que, durante a infância, a negação é uma forma comum de defesa, onde a criança pode criar fantasias para inverter situações reais desagradáveis. No entanto, à medida que o ego amadurece, esse mecanismo pode se tornar menos eficaz. Deslocamento:Anna Freud (2007) observa que o deslocamento pode ocorrer em resposta a impulsos que são percebidos como inaceitáveis ou perigosos para o equilíbrio psíquico do indivíduo. Permite, portanto, que o ego mantenha uma certa coesão ao redirecionar a intensidade emocional de uma ideia ou objeto perigoso para outro que seja mais aceitável ou menos desestabilizador. Racionalização: pode ser descrita como uma estratégia pela qual o ego busca justificar ou explicar, de maneira lógica ou aceitável, sentimentos, comportamentos ou pensamentos que de outra forma poderiam ser inaceitáveis ou desconfortáveis para o indivíduo. Roussilon (2023) sugere que a racionalização funciona para que o indivíduo mantenha uma autoimagem consistente. Sublimação: de forma praticamente oposta aos demais mecanismos que buscam suprimir/distorcer impulsos inaceitáveis, na sublimação temos a canalização dos mesmos para atividades aceitáveis e valorizadas socialmente. Anna Freud (2007) descreve a sublimação como uma forma de defesa do ego que, embora ainda ligada à transformação dos impulsos, permite uma adaptação mais harmoniosa entre o indivíduo e as demandas sociais. TEMA 5 – NARCISISMO PATOLÓGICO Freud, por meio de sua obra, nos mostrou que não podemos enxergar o narcisismo por meio, apenas, de uma lente negativa, tendo em vista que ele deve ser encarado como uma fase saudável e necessária do nosso desenvolvimento. Trata-se do alicerce para a construção do nosso senso de autoestima, identidade e do necessário equilíbrio entre a realidade externa e as relações objetais. Contudo, de acordo com o mesmo Freud (2021), é possível a ocorrência de um narcisismo patológico quando há uma regressão ou um reforço do narcisismo primário em que o indivíduo retira sua libido dos objetos externos e reinveste no Eu, de forma a levar a autoestima e autopercepção desproporcionalmente grandiosas. Existe, ainda, a possibilidade desse tipo de narcisismo estar relacionada a condições psicopatológicas graves, uma vez que, em casos mais exacerbados, podemos verificar sentimentos de megalomania e a desconexão com a realidade, de forma a gerar incapacidade de se relacionar de forma saudável (Freud, 2021). Em Introdução ao Narcisismo, Freud relaciona, também, o narcisismo patológico a dificuldades na formação do Ideal do Eu (que veremos no próximo capítulo). O sujeito, portanto, não conseguiria sublimar seus impulsos instituais, ficando preso em uma busca incessante de perfeição e admiração. Dalgalarrondo (2019), por sua vez, afirma que para a psicopatologia o termo “narcisismo patológico” pode ser entendido como uma forma extrema e disfuncional de narcisismo, onde as características normais de autoestima e autoconfiança se transformam em uma fixação patológica em si mesmo, levando a comportamentos prejudiciais tanto para o indivíduo quanto para as pessoas ao seu redor. Ao tentar unir a teoria psicanalítica de base freudiana e o conteúdo de psicopatologia trazido por Dalgalarrondo (2021) e Barlow, Durand e Hofmann (2020), podemosverificar a proximidade da concepção desse tipo de narcisismo. Senso grandioso de autoimportância, necessidade excessiva de admiração, falta de empatia pelos outros, aliado a uma vulnerabilidade subjacente a críticas e fracassos que podem levar a reações intensas de raiva ou depressão, são algumas das características do narcisismo patológico. Tendo em vista a necessidade de compreendermos melhor o tema para sabermos diferenciar uma pessoa que possui transtorno de personalidade narcisista de outra que é apenas “vaidosa”, iremos desenvolver melhor algumas características do sujeito que possui TPN. Grandiosidade e Sentimento de Superioridade. O indivíduo com narcisismo patológico possui uma visão inflada de sua própria importância. Ele frequentemente acredita que é especial e único, merecendo tratamento superior e que suas necessidades e desejos estão acima dos outros. Necessidade excessiva de admiração. O narcisista patológico busca incessantemente elogios, reconhecimento e atenção dos outros, e pode reagir com hostilidade ou desprezo quando não recebe a adulação esperada. Falta de empatia.Uma característica central do narcisismo patológico é a incapacidade de se colocar no lugar do outro, uma vez que está excessivamente focado em si mesmo e em seus próprios desejos. Vulnerabilidade à crítica e à rejeição. Embora demonstre uma imagem exterior de autoconfiança e superioridade, o narcisista patológico é extremamente sensível à crítica e à rejeição. Sendo assim, qualquer ameaça à sua autoimagem grandiosa pode desencadear reações de raiva, depressão, ou mesmo comportamentos vingativos. NA PRática Veremos, agora, um recorte clínico onde é possível ver algumas características de um narcisista patológico. Ressaltamos que todos os dados e nomes foram alterados para que a privacidade e confidencialidade fossem preservados. Carlos iniciou um tratamento psicanalítico por sentir-se constantemente frustrado e incompreendido pelos outros, além de uma dificuldade crescente em manter amizades. Apesar de Antônio (psicanalista) ter estabelecido regras para a realização das sessões, Carlos sempre chega atrasado e quer permanecer além do horário combinado. Durante uma sessão, Carlos relatou uma briga recente com um colega de trabalho. Disse que o colega tentou "minar" sua autoridade durante uma reunião ao apresentar uma ideia contrária à sua. Carlos reagiu com raiva, desvalorizando o colega e espalhando rumores negativos sobre ele para outros membros da equipe. FINALIZANDO Neste capítulo, fizemos um estudo do narcisismo, desde suas origens mitológicas até sua construção teórica na psicanálise. Vimos que o mito de Narciso nos oferece uma metáfora poderosa sobre os perigos da obsessão, do amor-próprio excessivo, da incapacidade de se relacionar verdadeiramente com os outros e da falta de empatia; enquanto Freud nos proporciona uma compreensão mais elaborada do narcisismo como parte integrante do nosso desenvolvimento, com suas manifestações normais e patológicas. Trabalhamos o tema por meio das diferentes linhagens psicanalíticas, abordamos as defesas narcísicas e o narcisismo patológico, vimos como esses mecanismos podem atuar tanto para proteger quanto para prejudicar a integridade do self. O entendimento dessas nuances é essencial para diferenciar entre um narcisismo funcional, que promove a autoconfiança e a resiliência, e um narcisismo patológico, que pode levar a comportamentos destrutivos e relações interpessoais prejudicadas. Por fim, devemos sempre ter em mente que o estudo do narcisismo não se limita apenas ao campo da psicopatologia, mas se estende a diversas áreas da vida humana, incluindo a cultura, as relações sociais e até mesmo a organização dos grupos e das instituições. Compreender o narcisismo é, em última análise, compreender melhor a natureza humana, com suas potencialidades e suas fragilidades.