Prévia do material em texto
O REINO DAS SOMBRAS PALCOS, SALÕES E O CINEMA EM PELOTAS (1896-1970) Klécio Santos1 O cinema morre de velho e renasce a cada dia. Ou melhor, a cada noite, como ato sexual que é. O cinema – alguma dúvida? – é um afrodisíaco. (Guillermo Cabrera Infante) Gaúchos a cavalo e pilchados ao redor do fogo durante uma festa da União Gaúcha foram personagens dos primeiros planos filmados em Pelotas em 24 de abril de 1904. Era um domingo de sol em um capão de mato na localidade do Retiro, na hospedaria de propriedade de Gustavo Braunner. O responsável pelas imagens foi José Filippi (ou Giuseppe, em italiano), da “Companhia de Arte e Bioscopo Inglês”, que desde 26 de março estava em temporada no Theatro Sete de Abril. As cenas pioneiras estão na origem da cinematografia gaúcha. Um mês antes, o mesmo Filippi havia feito tomadas do alvoroço em torno da chegada do senador Pinheiro Machado a Rio Grande, o mais antigo registro de uma filmagem no Rio Grande do Sul2. O festejo e o passeio até a zona rural de Pelotas foram organizados por membros da diretoria da União Gaúcha. Os convidados eram recepcionados na antessala da hospedaria com café, leite, bolos, pão e manteiga, antes de se dirigirem para o capão onde ocorreriam a festa e o churrasco. Duas vacas gordas, mestiças, foram assadas no espeto, e servidas junto com leitão, sanduíches de presunto e queijo, e o vinho “Quinta Bom Retiro”, produzido pelo industrialista Ambrósio Perret. Quem não foi se refrescar nas águas da localidade dançava ao som da música do violão de Junius Domingos Vieira e de um castelhano de nome Ricardo, acompanhados do gaiteiro Gregório. Filippi chegou ao local por volta das 14h, com vários equipamentos para registrar o evento. 1 Jornalista. Especialista em Patrimônio Cultural pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel). É coautor de “Theology by the young people in Brazil” (texto sobre a censura, por questões religiosas, de Je Vous Salue, Marie, de Jean-Luc Godard) no livro Stories Make People, editado em Genebra. Em 2010, concluiu o Master de Jornalismo do Instituto Internacional de Ciências Sociais (IICS), que possui vínculo de cooperação com a Universidade de Navarra/Espanha. É autor de Sete de Abril, o teatro do imperador (Porto Alegre: Libretos, 2012). 190 Vários amadores, entre eles o estimável coronel Justiniano Simões Lopes, também tiraram vistas fotográficas com as máquinas que conduzia o Sr. Filippi, que se mos- trou encantado com a festa, para ele altamente original e impressionista3. As imagens documentando a festa de cavaleiros, daquele que talvez seja o primeiro filme pelotense, foram exibidas na quinta-feira dia 28 e a notícia publicada na imprensa dois dias depois no Diário Popular: “A função de [ante]ontem, no 7 de Abril, constituiu para o Bioscopo Inglês, inteligentemente dirigido por José Filippi, um esplêndido triunfo, por haver exibido, com grande nitidez, bem combinados grupos da União Gaúcha, fotografados no Retiro, ao dar-se ali convescote de que foi diretor nosso distinto amigo tenente Dirceu Moreira. Este e outros sócios da União apareceram ora montados, ora a pé, nos trajes gaúchos e cavalgando bonitos animais”. Já o Correio Mercantil registrou: “A União Gaúcha, sociedade a que pertence uma roda de finos cavaleiros e jovens da maior distinção, foi gentilmente brindada por José Filippi, diretor do Bioscopo Inglês, o qual reproduziu por esse aperfeiçoado aparelho um grande número de interessantes vistas – gaúchos em grupo e isolados, em torno do fogão, gauchinhos montados e até um gaúcho falsificado!”, acrescentando que figuras de reconhecida popularidade foram “bioscopadas” com inteira fidelidade. As vistas da União Gaúcha foram, segundo a imprensa, a atração da programação, mas a companhia já havia caído nas graças da sociedade pelotense, que lotava os espetáculos diante de um repertório inusitado, fora dos padrões: “Não se conhecia, desde muito em Pelotas, certo frêmito de ir ao teatro, atraído o público por alguma coisa de novo”4. Em Pelotas, Filippi também exibiu fotografias de profissionais da imprensa e filmes de curta duração que incluíam cenas de outras cidades pelas quais passara e da revolta armada no Uruguai5, quadros sacros da Paixão de Cristo e o féerie (filmes que recriavam os espetáculos teatrais da época com configurações fantásticas) O sonho de Natal6. A despedida foi em 1º de maio depois de uma temporada com 18 espetáculos – um deles em prol do Asilo São Benedito – e uma renda de 8.797$000 (8 contos e 797 mil réis). No lugar das projeções de cinema, o Sete de Abril foi ocupado pela cantora lírica Olinta Braga. Filippi seguiu para Jaguarão, Montevidéu e Buenos Aires e em julho retornou ao Estado, apresentando-se em Porto Alegre, onde exibiu no Theatro São Pedro as primeiras filmagens em Rio Grande e Pelotas. O aparelho de Filippi era tido como uma versão melhorada dos cinematógrafos exibidos em Pelotas. *** A primeira projeção de cinema na cidade ocorreu em 26 de novembro de 1896 no salão da Bibliotheca Pública Pelotense, quando o precursor Francisco De Paola usou um aparelho de Thomas Édison, que rivalizava na América com o cinematógrafo dos irmãos Lumière. Sua passagem efêmera por Pelotas durou menos de uma semana7. À época, Pelotas vivia um esplendor econômico e possuía uma vida artística agitada por conta da riqueza que jorrava das charqueadas. Em pleno apogeu do ciclo do charque, a cidade era local de passagem de grandes companhias teatrais que se deslocavam em direção aos países do Prata. A elite se divertia assistindo a óperas, e nos saraus; e o povo, nos clubes carnavalescos, em prostíbulos camuflados e na profusão de circos que se espalhavam pela 191 cidade e contavam até com touradas. Foi nesse ambiente que, por cinco noites seguidas, De Paola proporcionou aos pelotenses o primeiro contato com imagens em movimento, arte que havia pouco tempo começara a encantar as plateias na Europa8. As notas publicadas não fazem referência à programação, mas é provável que De Paola tenha apresentado as mesmas cenas animadas que exibiu em Porto Alegre no começo do mês, como: Uma corrida de velocípede, Baile escocês, Chegada de um trem a Londres e Dança Serpentina – coreografia da atriz norte-americana Loie Fuller, grande vedete da dança de solo da época. Antes desse pioneirismo, exibidores itinerantes seduziram o público com imagens estáticas ampliadas por meio de engenhosos instrumentos, as chamadas “lanternas mágicas”. As figuras eram deslocadas apenas no interior do projetor, criando o artifício de movimento na parede. Era um período arqueológico do cinema. O desfecho de um espetáculo que misturava números teatrais, circenses, de mágicas, cartomancia, hipnose e de prestidigitação. Um exemplo ilustrativo é o de Faure Nicolay, um dos mais famosos ilusionistas da época, que esteve em Pelotas por duas vezes. Outra companhia de relativo sucesso na cidade, que por conta da disseminação do cinematógrafo incorporou a novidade, foi a do ilusionista português Amarante. Ele fez uma temporada no Sete de Abril em julho de 1897, um ano após De Paola plantar a semente do cinema em Pelotas. As primeiras apresentações de Amarante não contaram com o aparelho de cinematógrafo. Para variar os espetáculos, o ilusionista contratou o projetista Carlos Fourcade para exibir o novo invento no dia 19, duas semanas depois da estreia. Foi por intermédio de Amarante, contudo, que o cinema chegou à vizinha cidade de Rio Grande9. Os filmes exibidos por Amarante eram projeções de raros segundos. Diante da escassez de imagens, a maioria dos filmes se repetia. Nesses primitivos tempos do cinema, era intensa a presença de exibidores itinerantes com aparelhos de denominações variadas, parentes próximos ou até mais rudimentares que o cinematógrafo. Em 1898, a imprensa local registra que nos dias 23 e 24 de abril seria exibido por F. Taboada, no Sete de Abril, um espetáculo de cronofotógrafo, que reproduzia uma sequênciade fotos dando ideia de animação. A primeira sessão com o uso do cinematógrafo Lumière, contudo, ocorre um mês depois, em maio de 1898. A atriz Apolônia Pinto e o marido e ator Germano Alves, depois de dissolverem em Porto Alegre sua companhia de variedades, desembarcaram em Pelotas para realizar espetáculos na Sociedade Ginástica Alemã, na rua Quinze de Novembro, 249, com a promessa de uma diversão agradável e barata ao preço de 2$000 (sentado) e 1$000 (em pé)10. Os ingressos também podiam ser comprados no Café Amaral, ao lado do Sete de Abril. O mau tempo impediu a sessão no dia 26, transferindo-a para o dia seguinte, mas ela só ocorreu, de fato, no dia 28, um sábado, quando o Correio Mercantil publicou um anúncio com a programação que incluía imagens de um mar revolto, barcos em movimento, o desfile de batalhões, além de quadros do prestidigitador Hermann e da vida cotidiana - como O jogo da cabra cega e Um chá em família. O espetáculo contou com “auxílio de luz elétrica, sem oscilação que incomode a vista”. Nos intervalos, a energia elétrica também iluminou os salões do clube, cujo acesso ao público foi um transtorno diante da multidão que lotou as apresentações. A última foi realizada no dia 12 de junho, com exibição de retratos de próceres da República como Campos Salles, recém-eleito, que assumiria a Presidência em novembro. 192 Já Apolônia sofria com dores lancinantes de ouvido, mas mesmo assim a companhia seguiu para Rio Grande para algumas exibições, antes de partir a bordo do vapor Aymoré para Santos, onde ela pretendia iniciar um tratamento. A novidade movimentava a cidade junto com a energia elétrica, que na virada do século era fornecida por geradores, sendo utilizada na iluminação pública, nos bondes de transporte coletivo e em unidades industriais. Foi graças à energia fornecida por um motor do Moinho Pelotense que, em 1901, o cinematógrafo Grand Prix do engenheiro Henrique Sastre virou atração por várias noites no Sete de Abril. A primeira sessão do Sastre & C. foi em 24 de agosto. Em 1905, Alfredo Mauro exibe também no interior do Theatro o Bioscopo Franco-Americano. E o francês Edouard Hervet realiza uma das primeiras tentativas de sincronização entre imagens e sons. Esses projetores coletivos eram chamados de “cinematógrafos falantes”. Na prática, tratava-se de um projetor e um gramofone. Sua estreia no Sete de Abril foi em 1º de outubro, também com o auxílio da energia elétrica fornecida pelos industrialistas Xavier & Duarte, e, segundo o próprio Hervet, foi a melhor de sua turnê. As notícias publicadas na imprensa local destacavam que as imagens não balançavam, ao contrário de outras cujas trepidações tanto incomodavam as plateias. O espetáculo acabou por volta da meia- noite, diante dos inúmeros pedidos de bis. Um dos momentos de maior sucesso foi quando Mercadier, artista do cassino de Paris, interpretava a canção “Bonsoir, Madame La Lune”. Além dessa serenata em meio à paisagem lunar, a voz de Mercadier voltou a encantar o público com “La Femme est un Jouet”. A bilheteria é uma prova do sucesso alcançado. Com a temporada em Pelotas, que se estendeu até o dia 21, Hervet atingiu uma renda bruta de quase 11.000$000 (11 contos de réis). Ainda naquele ano, José Filippi, que estava em nova turnê por Rio Grande e Jaguarão, retorna a Pelotas. Se De Paola foi o pioneiro a trazer o cinema, Filippi foi o primeiro cinegrafista a esquadrinhar cenas do cotidiano de Pelotas, sobretudo as festas da União Gaúcha, recorrentes na sua trajetória de caçador de imagens. À frente da entidade naquele ano estava o escritor João Simões Lopes Neto, que organiza uma festa em homenagem aos marinheiros da canhoneira Pátria, que aportaram em Pelotas no dia 1º de dezembro11. A recepção contou com um jantar no Sete de Abril e uma grande festa campestre no domingo dia 3 na estância de Antônio Ribas, no Fragata. Uma multidão se deslocou até o local a cavalos, em carros, bondes (a Ferro Carril transportou cerca de nove mil pessoas) e três trens da Viação Rio-Grandense, com 993 passageiros. As mesas foram postas embaixo das figueiras da estância para abrigar os convidados portugueses que pela primeira vez assistiriam a cenas da vida campeira. A festa contou com demonstrações de tiros de laço, marcação de animais e rodeio, além de churrasco (assado no couro), música e danças crioulas, regadas a chope e vinho verde. “José Filippi, do Bioscopo Inglês, vindo expressamente de Rio Grande, apanhou algumas das mais curiosas passagens da diversão para exibir em vistas movimentadas.” A notícia do Correio Mercantil do dia seguinte ainda diz que aparecerá nas imagens uma figura conhecida como “Pechinanguito” de chiripa negro e lenços colorados. A exibição do filme Festa Gaúcha à oficialidade da canhoneira Pátria foi no dia 4 de janeiro de 1906 no Sete de Abril, com a presença da orquestra de Eduardo Cavalcanti12. O teatro havia sido requisitado por meio de telegrama enviado de Jaguarão por Domingos, irmão de José Filippi. A estreia da nova temporada foi na virada do ano 193 com os irmãos Filippi exibindo uma série de aparelhos – inclusive uma versão do cinematógrafo falante, batizado de vitaphonoscópio – e novas vistas animadas, em um total de trinta. A precariedade de algumas exibições ainda era frequente. A padaria de Xavier & Dutra também forneceu energia para o cinematógrafo falante Star Cy, que tinha na direção o operador técnico Thiago da Cunha. A primeira sessão foi em 19 de maio de 1906, no Sete de Abril, e só terminou após a meia-noite. Algumas fitas tinham pouca nitidez e a luz elétrica também apresentou problemas durante algumas projeções, mas o teatro, apesar do mau tempo – as chuvas provocaram enchentes em alguns arroios e nas charqueadas –, esteve lotado durante as apresentações, divididas em três partes, com cerca de 20 filmes, entre eles alguns já conhecidos, com a famosa voz do cançonetista Mercadier. Em janeiro de 1907, funcionou no Sete de Abril o cinematógrafo da empresa Candburg, com destaque para cenas da Guerra Russo-Japonesa. Entre agosto e setembro, Filippi retorna com seu espetáculo, agora batizado de Bioscopo Lyrico e incrementado com uma banda de música. Fez exibições em prol de famílias pobres e dos colégios Gonzaga e Pelotense. Em dezembro, as projeções são do cinematógrafo Moderno, também com apresentações da Banda Lyrica Pelotense, inclusive na véspera de Natal. Entre abril e maio de 1908 duas empresas se apresentam em Pelotas: o cinematógrafo Paraizo do Rio, de propriedade de Paulo Cavalcante, e a Germa & C., com o cinematógrafo Brazileiro, ocasião em que foi exibido o filme dos funerais do Rei D. Carlos e do Príncipe Herdeiro D. Luis Filipe, ocorrido no dia 10 de fevereiro em Portugal13. Os programas eram compostos basicamente de documentários de personalidades e tragédias, imagens de locais turísticos ou mesmo filmes baseados em clássicos do teatro e figuras históricas e bíblicas como, por exemplo, O Reino de D. Luiz XIV, D. Quixote de La Mancha, Vida de Napoleão e A vida, paixão e morte de N.S. Jesus Cristo. Os cinematógrafos tomavam conta da programação do Sete de Abril, a principal sala exibidora da cidade, mas tinham um caráter itinerante. As projeções eram no pano de boca do teatro. Ainda naquele ano fizeram temporada no teatro o cinematógrafo Sul-Americano, da empresa Edison & C., e o Pathé, da empresa Cruzeiro do Sul. Alguns espetáculos ainda mesclavam apresentações de prestidigitação, como o de Salvador Montesarchio, que exibiu em agosto o cinematógrafo Guarany. Em abril de 1909, o cinematógrafo Pathé da empresa Brothers & C. exibe imagens das cidades italia- nas de Reggio Calabria e Messina, após o terremoto, um dos mais poderosos da Europa, que deixou um rastro de mortes14. Ainda naquele semestre, o Cinema Parisiense intercalava apresentações no teatro com o espetáculo da gigante Abomah15. E na Sociedade Euterpe, numa das raras sessões fora do Sete de Abril, foram feitas projeçõesdo cinematógrafo da empresa Kraus & C. *** É nesse ambiente que surgem as primeiras salas de projeção. Em 15 de agosto de 1909 é inaugurado o Éden Salão, de propriedade dos irmãos Petrelli (Nicolau e Humberto), localizado na rua Marechal Floriano 06 (na esquina com a Quinze de Novembro). “O aparelho cinematográfico é superior e as fitas são excelentes, sendo feitas exibições de meia em 194 meia-hora”16. Os espetáculos começavam às 18h30min e terminavam às 22h. Entre as fitas selecionadas pelos irmãos Petrelli na inauguração estão Cabeças fantásticas, Excursão a Veneza, Mulher eleita, Sogra desenfreada e Ladrão sentimental. Aos poucos, além das sessões à noite, o Éden passou a contar também com matinés. Entre as projeções que sucederam a inauguração estavam a fita O crime de madame Steinheil17, Os funerais dos estudantes mortos no Largo São Francisco (reportagem sobre recente acontecimento no Rio)18, e Washington, com 900 metros, um recorde de projeção na época. O Éden também franqueava ao público cosmoramas (aparelho óptico que ampliava pinturas de lugares famosos) por 200 réis. Desde 1908, Nicolau Petrelli se dedicava ao cinema e à fotografia. Os irmãos chegaram em outubro da Itália e se estabeleceram em Rio Grande, onde exibiram seu cinematógrafo. Nicolau veio a Pelotas realizar as primeiras filmagens de uma partida futebol de que se tem notícia no Estado, um documentário do jogo entre o E.C. Pelotas e S.C. Rio Grande, no dia 25. A fita foi uma das primeiras exibidas no Éden, um mês depois da inauguração. Além das imagens da partida, registrava a recepção dos rio-grandinos na estrada de ferro, a inauguração do pavilhão do Pelotas, que havia sido fundado há cinco meses, e a presença de figuras da elite local. Os Petrelli também levaram o cinematógrafo para São Lourenço, expandindo suas atividades, já que possuíam duas máquinas e muitos filmes. Em 4 de dezembro, um fato inusitado: as sessões foram suspensas, porque o Éden precisou fornecer corrente elétrica para o palacete de Antonio Augusto Assumpção, por conta da festa de casamento da filha Amelinha. A corrente do Éden alimentou 80 lâmpadas19. *** A inauguração do Éden foi o maior acontecimento cinematográfico. Na cidade, contudo, ainda eram comuns sessões ao ar livre em frente à loja de fazendas Ao Barquinho, na rua General Osório. Em 1910, na sequência do Éden, vieram outras salas de cinema: o Parisiense, dos irmãos Aquaviva, o Coliseu (no antigo local do circo Risoli, na rua General Vitorino, hoje Anchieta) e o Polytheama. Estes dois últimos foram administrados no começo pelos Petrelli, que mais tarde transferiram seus negócios para a empresa Del Grande & Cia e passaram a construir cinemas em Porto Alegre20. Em 1911, é inaugurado o cinema Popular, da empresa Salvi & C., na esquina da Osório com Argolo. Em setembro foi projetado no Cinema Caixeiral, nos salões do clube, um documentário trazido do Rio de Janeiro por Luiz Tavares Pereira: As obras da Barra e o Porto de Rio Grande21. Em meio a essa efervescência, outro italiano, Guido Panella, dedica-se a fazer documentários, financiado pelo governo. Ele passou alguns meses entre Porto Alegre, onde desembarcou no começo de julho de 1911, e o interior do Estado. Panella foi contratado pelo Ministério da Agricultura para realizar filmes sobre o desenvolvimento econômico e social do país, com a intenção de enviar os mesmos para a Exposição de Turim. Em Pelotas, o cenário das filmagens é novamente uma festa campestre da União Gaúcha, ocorrida no dia 8 de outubro, desta vez às margens do Arroio Pelotas na propriedade de Ramão Iribarni. A iniciativa das filmagens do terceiro filme a retratar a União Gaúcha também teria partido de Simões Lopes, que não era mais presidente, mas membro influente da diretoria da entidade gauchesca. Dois dias 195 depois, Panella embarca para Rio Grande e lá pega um vapor para o Rio de Janeiro, levando na bagagem um rolo de 8 mil metros de fitas tiradas no Estado22. O filme foi exibido nas telas do Coliseu em primeira mão no dia 28 de novembro de 1911, enquanto que o Poytheama reprisava As obras da Barra. Com extensão de 300 metros, um curta-metragem, e dividida em quatorze quadros, A festa da Gaúcha acabou lotando a casa de diversões, promovendo um “ruidoso” sucesso nas duas primeiras sessões, o que acabou provocando sua permanência em cartaz. A programação contava também com o Pathé Journal – um cinejornal distribuído pela Cia. Cinematográfica Brasileira – e produções nacionais como a partida de futebol entre Palmeiras e Paulistano e Interior da Fábrica Phenix dos Irmãos Noll, em Porto Alegre23. A grande invenção cai no gosto popular. Mas quem traduz o auge da atração do cinematógrafo e o deleite com as filmagens locais é o crítico que assina F.O., no Diário Popular: “O cinematógrafo fica realmente delicioso quando se veem na tela fisionomias conhecidas, caras ou máscaras mais ou menos familiares e as quais, ali, esfumadas pela projeção, adquirem um tic de graça, um certo ar de gravidade risonha, que os espectadores não podem deixar de festejar nas interjeições, nos comentários, nos traços fugazes de ironias brejeiras com que sublinham o discurso da fita. Por isso que o filme da simpática Gaúcha levou ao Coliseu tão numerosa assistência.” Na sequência de A festa da Gaúcha, o Coliseu passa a exibir outra produção local, com as filmagens da posse do bispo Francisco de Campos Barreto, que estreou no dia 5 de dezembro, com o título: A chegada do bispo de Pelotas. Entre os figurantes, o intendente José Barboza Gonçalves e o empresário Joaquim Augusto de Assumpção. Algumas pessoas foram filmadas ainda a bordo, como o casal Casimira e Bruno Gonçalves Chaves (então diplomata junto a Santa Sé, amigo do Papa Pio X), e outras no tombadilho, como o arcebispo de Porto Alegre, Dom Claudio Ponce de Leon24. Em 1912, outras três salas de cinema são inauguradas: Eldorado, Recreio Ideal e o Ideal Concerto (Ponto Chic). Este último era um dos mais luxuosos da cidade. Foi inaugurado em 30 de março na esquina da Quinze de Novembro com Sete de Setembro, local onde antes era a ferragem Farias & C. À frente havia um bar e café com mesas de mármore e o salão do cinema tinha capacidade para 500 pessoas, além dos camarotes e uma orquestra que tocava durante as sessões. As cadeiras do mesmo modelo do Sete de Abril foram trazidas da Áustria e o aparelho cinematográfico era dotado de uma lente que permitia projetar imagens a uma distância de 30 metros. O cinema virou marca de carteira de cigarros, distribuída aos fregueses no intervalo das sessões. Aromáticos e feitos com o fumo Turco, os cigarros Ideal Concerto eram confeccionados por Francisco Dias Loureiro, que já comercializava na cidade a marca Ford. As instalações foram feitas pelo eletricista e dono de uma clicheria José Brisolara da Silva, que, como amador, passou a se dedicar a realizar documentários na cidade. Em 2 de setembro estreia no Ponto Chic o filme de Brisolara, com 600 metros, As festas do centenário de Pelotas25. Em 1913, já como funcionário da prefeitura, Brisolara dirigia filmes que eram exibidos no largo do Mercado Central, programação chamada Cinema Municipal e realizada no governo de Cypriano Barcellos. O aparelho foi encomendado pelo seu antecessor, José Barbosa Gonçalves, para exibições ao ar livre. Em 21 de abril, uma multidão assistiu Uma excursão ao Cerro das Almas, no Capão do Leão; Uma excursão pelo rio São Gonçalo, da boca do arroio 196 Pelotas ao porto da cidade; e Panorama de represa no Quilombo e filtros na garganta do Sinott. As fitas de Brisolara eram preparadas com viragens e tinturas diversas, uma técnica de tingir a película, provocando efeitos especiais em cenas inteiras. Com as várias salas exibidoras na cidade, os clubes sociais, salões de festa e até mesmo o Sete de Abril perderam a primazia, mas ainda eram os locais preferidos de espetáculos de magia, hipnose e prestidigitação que continuavam ocorrendona cidade. Em 1913, se apresentaram no teatro duas dessas figuras caricatas: o ilusionista indiano Dr. Richards e o Conde Patrizio Castiglione. As fitas da Pathé, Gaumont e da dinamarquesa Nordisk26 passaram a inundar Pelotas. Com preços mais baratos, “ao alcance de todas as bolsas”, a concorrência com as peças teatrais era desigual. “É possível apreciar trabalhos que, na cena do teatro, nos custariam os olhos da cara! faz bem ou mal o povo, preferindo-o?... O que nos interessa saber que ele vai aos espetáculos cinematográficos, deixando às moscas os teatros caríssimos...”, escreveu o jovem intelectual Victor Russomano num longo artigo com o título “Cinematographo”27. O próprio Theatro Sete de Abril passa a ser arrendado pela empresa Ideal em maio de 1913, com energia elétrica fornecida pelo Polytheama, que também havia sido alugado pela mesma empresa em agosto de 1912. A Ideal tencionava comprar o Sete transformando-o numa espécie de parque de recreio popular ou mesmo construir no local um teatro de ferro, mais moderno. *** É nessa época que surge em Pelotas um dos mais importantes ciclos regionais de cinema, a partir da fundação da Guarany Films, criada por Francisco Santos. O ator português, que estava em temporada em Bagé, resolve dissolver sua companhia teatral e se dedicar à produção de filmes. A notícia é veiculada primeiro na Capital, e em Pelotas no dia 25 de setembro de 1912, no Correio Mercantil, apontando Porto Alegre como local provável da fábrica de fitas cinematográficas. Pelotas estava de luto pela morte de Alexandre Cassiano do Nascimento28. Os funerais foram filmados por Brisolara e o filme exibido no Ponto Chic em 1º de outubro de 1912. Em dezembro de 1912, Santos e seu sócio Francisco Xavier anunciam que vão instalar a Guarany Films em Pelotas, desistindo de Rio Grande, outra opção. A sede era no prédio da Deodoro com General Telles, ainda hoje existente. Santos, que já havia trabalhado como ambulante do cinema na Europa, começou a fazer uma série de documentários, alguns exibidos ainda naquele mês no Ponto Chic, como Exposição Feira de Bagé e a partida entre União e Rio Branco, de Bagé. Santos, contudo, causou furor nas telas seguindo uma tendência nacional de reconstituir crimes reais explorados pela imprensa, como o ocorrido em Rio Grande e que abalou a opinião pública, o longa-metragem O Crime dos Banhados. Antes, Santos havia rodado Os Óculos do Vovô – o mais antigo filme de ficção brasileiro preservado – e O Marido Fera. Para o crítico Pery Ribas, Francisco Santos foi “o maior homem de cinema de seu tempo”. A Guarany também exibia filmes no Eldorado, como O préstito do Clube Carnavalesco Brilhante, que teve como operador Raphael Grecco, e Panorama de Pelotas, ambos já exibidos