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Filhos do crack uma realidade nas ruas do país

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Filhos do crack
No triste cenário do crack em Belo Horizonte, nada incomoda mais do que flagrar grávidas carregando suas barrigas, que sobressaem nos corpos emagrecidos pela droga pesada. Dominadas pelo vício, estas mães fritam a pedra no cachimbo, mesmo sabendo dos danos irreversíveis aos filhos, como baixo peso, problemas neurológicos e até paralisia cerebral. Na região da Lagoinha, uma delas admite que já teve 13 filhos, enquanto a outra completa a 18ª gestação, mas não sabe dizer com quem estão seus filhos agora. Neste momento, exatos 91 bebês lotam quatro abrigos especializados em cuidar de recém-nascidos em Belo Horizonte, segundo a Central de Regulação de Vagas da Secretaria Municipal Adjunta de Assistência Social. Na sexta-feira, já não havia vagas disponíveis nas instituições para encaixar outras 15 crianças prestes a receber alta médica.
Retirados das maternidades logo após o parto, os bebês estão sendo afastados de suas mães biológicas, dependentes de álcool, de crack e de outras drogas, por recomendação das promotoras de Justiça da Infância e da Juventude Matilde Fazendeiro Patente e Maria de Lurdes Rodrigues Santa Gema. A proposta é que estas crianças permaneçam nos abrigos até que a mãe se recupere do vício. Caso contrário, serão entregues a pais adotivos, dentro da própria família (avós, tios etc.) ou em famílias substitutas, desde que o processo de adoção passe pelo crivo da equipe do Juizado da Infância e da Juventude de BH.
As promotoras afirmam que são compelidas a tomar esta atitude extrema em decorrência da falta de políticas públicas para gestantes usuárias de crack, que ganham os bebês sem acompanhamento pré-natal e frequentam a cracolândia mesmo grávidas, pondo em risco a vida delas e a da criança na barriga. “O poder público está inerte em relação ao crack não é de hoje. Não existem clínicas nem vagas em hospitais para internar involuntariamente estas gestantes. Ocorre que a vida não pertence somente a elas. Acima de tudo, a Constituição manda proteger o nascituro”, defendem as promotoras, que não escondem o temor em relação ao futuro dessas crianças. 
As duas, bem como o colega Celso Penna Fernandes Júnior, afirmam estar sendo fortemente pressionadas a derrubar as recomendações 05 e 06, ambas de 2014, que estão enchendo os abrigos municipais de “órfãos do crack”, embora estejam embasadas em 11 artigos da lei. Entre eles, o artigo 19 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que estabelece que toda criança tem direito (…) a ser criada e educada em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes. “Ninguém está aqui querendo tomar as crianças das mães delas. Mas será que nossa insensibilidade chegou ao ponto de achar normal deixar um recém-nascido com uma usuária de crack, que não consegue cuidar dela mesma?”, protesta Matilde Patente. 
No sábado, o EM visitou a Maternidade Odete Valadares, mas foi impedido de entrar para conversar com a Ouvidoria. Tampouco teve acesso por meio da assessoria de imprensa, que explicou pelo telefone se tratar de questão muito delicada por expor bebês. Segundo um funcionário da maternidade, apesar de estar em reforma havia pelo menos cinco recém-nascidos internados no hospital, filhos de mães com histórico de envolvimento com o crack. “É o que mais tem aqui ultimamente. A última teve 22 filhos e ameaçou vender a criança para comprar droga. Nossa equipe segura o bebê o maior tempo possível no hospital, enquanto localiza uma avó ou uma tia que possa receber a criança. Nem todos vão para a adoção”, explicou.
Na Casa Mãos de Maria, no Bairro do Prado, que recebe exclusivamente recém-nascidos, a coordenadora, Maria Célia Rios Barbosa, faz um trabalho incansável para realocar os bebês nas chamadas famílias extensas. “Sou mãe também. É muito sério sugerir que um filho seja retirado da mãe e encaminhado para adoção. Aqui isso só acontece em último caso. Esta semana, vamos entregar três bebês, um para a avó, outro para uma tia e outra para a prima, que manifestou interesse em ficar com a menina”, explica. Ela conta ainda sobre o resgate de uma mãe que havia perdido os quatro filhos para o abrigo, devido a maus-tratos e problemas com drogas do companheiro. “Encaminhamos ao SOS Drogas, pagamos psicólogo particular e, no Natal, ela irá receber de volta os filhos”, completa.
A dependência química e a negligência dos pais são as principais causas da perda da guarda no Brasil. Em 2013, 81% dos acolhimentos de crianças em abrigos aconteceram por esses motivos, segundo o levantamento do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). Também fazem parte da lista o abandono (78%) e a violência doméstica (57%), entre tantos outros problemas.
Existem hoje 45.237 crianças e adolescentes vivendo nessas instituições pelo Brasil, segundo o Cadastro Nacional de Crianças Acolhidas. Não são divulgadas informações sobre quantas delas têm pais usuários de drogas, mas os profissionais envolvidos com a assistência são categóricos ao afirmar que elas já são maioria tanto nos abrigos como na fila de adoção.
“As razões para o acolhimento das crianças se misturam. O fato de os pais usarem drogas por si só não leva à perda da guarda. Mas isso costuma se associar à falta de cuidados e abusos. Nesse cenário, o crack é uma das drogas que mais fulmina a capacidade de autocontrole dos responsáveis e os leva a praticar atos de violência”, esclarece Antônio Carlos Ozório Nunes, promotor da Comissão da Infância e Juventude do CNMP.
Em um primeiro momento, a Justiça tenta a reinserção das crianças com outros membros da família ou com os próprios pais, caso eles aceitem se tratar. Só quando não há mais perspectivas de reinserção é que elas entram na fila de adoção. 
 O crack está presente no Brasil desde o início dos anos 90, mas só foi alvo de estudo que traçasse um perfil de seus usuários em 2013. Ou seja, a pesquisa da Fiocruz chegou após mais de duas décadas de medidas de repressão e internações forçadas que fracassaram em impedir o aumento de seu consumo e sua disseminação. Hoje, 98% dos municípios brasileiros dizem possuir algum dependente da droga. Para o professor de psiquiatria da Unifesp, Dartiu Xavier, o estudo lança luz a um problema que sempre foi tratado na base do improviso. “O mais importante do estudo é derrubar mitos: o primeiro é o de que o crack é um problema de segurança pública, quando na verdade é uma questão social; o segundo é o de que o crack é uma epidemia e, por fim, o de que os usuários não querem abandonar o vício”, afirma Xavier. Além dos Caps, a rede de tratamento para dependentes também conta com leitos do Sistema Único de Saúde (SUS), unidades de acolhimento ambulatorial, Caps e comunidades terapêuticas. “A cocaína fumada, como é chamado o crack, é um problema regional, que afeta a Argentina, o Uruguai, o Paraguai, a Colômbia e o Chile”, diz Maximiano. “E a solução não está no controle de fronteiras, mas em ações de combate à exclusão social. Prova disso são os Estados Unidos, que têm a maior fronteira murada do mundo e, ainda assim, são os maiores consumidores de cocaína."
Os achados da pesquisa realizada pela Fiocruz vão de encontro com o cenário relatado pelo secretário. Segundo o estudo, 80% dos usuários de crack no País são homens, não brancos (negros ou pardos), sem ensino médio e sem emprego ou renda fixa. Ou seja, em flagrante situação de marginalização social.
A pesquisa, realizada com 30 mil pessoas, em 26 capitais, ainda revela que 40% dos usuários estão em situação de rua, 60% são solteiros, e geralmente sem vínculo familiar, com média de 28 anos e que metade já esteve preso. Entre as mulheres, metade tem filhos ou se prostitui. Ao todo, 0,8% das pessoas das capitais brasileiras são usuárias regulares de crack.
No estado de São Paulo, as mulheres usam em média 21 pedras de crack por dia, e os homens, 13.  O estudo da Unifesp foi realizado com 131 mulheres usuárias de crack durante 12 anos, e apontou que 60% delas foram assassinadas. A maioria das mortes acontecem nos primeiros cinco anos deuso da droga, e 10% das mulheres analisadas foram presas por crimes de roubo e homicídio. Em oito segundos o vapor do crack chega ao cérebro e desperta o prazer passageiro. Depois de cinco minutos o efeito passa. Tão grave quanto o efeito que a droga causa no organismo é o ambiente violento criado pelo crack. Segundo a psicóloga Laura Fracasso, o ambiente de violência e o uso de substâncias deixa a mulher  muito fragilizada. "Não é só uma fragilidade orgânica, de debilidade física, mas também social, porque temos ainda muito forte o preconceito contra a mulher usuária de droga", afirma. Em Campinas (SP), uma usuária de 32 anos e mãe de quatro filhos tem a calçada como casa e afirma que usa a pedra quase todos os dias. Outra usuária, com 23 anos e três filhos, a jovem também não tem casa e para comer depende de doação.

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