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Antropologia o que � Robert Weaver

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O QUE É ANTROPOLOGIA?
  
“A antropologia é o estudo do homem e seus trabalhos através do tempo e do espaço". 
“A antropologia é a mais humana das ciências e a mais científica das humanidades". 
“Antropologia é o que os antropólogos fazem". 
“Antropologia nada mais é do que sociologia comparada". 
  
Todas estas definições da antropologia, feitas pelos próprios antropólogos, são verdadeiras, pois refletem as distintas facetas da disciplina. A antropologia é uma ciência ao mesmo tempo social e natural; devido ao enorme alcance de sua função — o estudo do homem — é quase um campo sem fronteiras; um mar de conhecimentos. 
A antropologia física, uma de suas subdivisões, estuda a genética humana, a fisiologia e a biologia, bem como os parentes evolutivos do homem — os primatas. A arqueologia, outra das subdivisões da antropologia, pesquisa a origem e a evolução da raça humana, não somente a evolução biológica, mas também a social. A lingüística antropológica deriva do estudo de línguas não escritas e tem dado contribuições notáveis à psicologia, à história e à natureza do conhecimento humano. 
 Os antropólogos são, todavia, provavelmente mais conhecidos pelo estudo dos povos “exóticos”, povos que ainda vivem ou mesmo que viveram até recentemente em formas de vida tribais e tradicionais. Este es​tudo de sociedades simples e sem língua escrita é a grande tradição da antropologia social e cultural. 
 Como se desenvolveu uma disciplina de âmbito tão amplo, diante da especialização crescente do conhecimento nesta época moderna? A resposta pode ser encontrada na sua própria história. A antropologia começou como o estudo de povos sem uma tradição escrita e este fato obrigou os antropólogos a tentarem entender a língua, a economia, a religião, a mitologia, as leis e mesmo a biologia de um povo como partes de um to​do e não como fragmentos estanques. O antropólogo teve de se tornar um generalista ao invés de um especialista, mesmo quando seus interesses eram mais centralizados. 
 A antropologia, como o estudo sistemático de culturas diferentes das do pesquisador, é uma disciplina muito antiga. Com um pouco de es​forço, poder-se-ia remontá-la a Heródoto, ou mesmo ao grande historia​dor chinês Sima Quan, que viveu há centenas de anos antes de Cristo, porém a maioria dos antropólogos reivindicaria uma história mais recente, de pouco mais de um século. A antropologia moderna, na nossa opinião, tem três temas, todos importantes para a compreensão da disciplina, e que podem ser chamados de tema pragmático, tema romântico e tema científico. 
 O pragmatismo pincelado de romantismo é a verdadeira base da antropologia social. Desenvolveu-se como um subproduto do expansionismo da Europa imperial no século passado. As nações europeias, principalmente a britânica, a espanhola, a francesa, a holandesa e a portuguesa, viram-se efetivamente com o domínio e a conquista de enormes áreas e de milhões de pessoas de quem quase nada sabiam. Os primeiros impérios, o espanhol e o português confiaram o papel de conhecer e compreender esses povos conquistados à Igreja Católica Romana. Os missionários, principalmente os jesuítas, realizaram mesmo numerosas pesquisas antropológicas. Houve até um instituto de estudos astecas, fundado na cidade do México logo após a conquista espanhola em 1521. 
 Existe, porém, uma distinção fundamental entre o papel de um missionário e o de um antropólogo. O missionário vem ensinar a ideologia e a fé europeias a um povo não-europeu. O antropólogo vem aprender o que esse mesmo povo tem para ensinar a si e à sua própria sociedade. O interesse do missionário é essencialmente pragmático, embora tenha havido exceções muito valiosas. Ele procura conhecer um povo a fim de mudá-lo e, na maioria dos casos, dominá-lo. Devido a esta profunda contradição dentro do campo missionário, muitos de seus elementos antropológicos, assim como o instituto acima citado, foram finalmente reprimidos, especialmente quando os missionários mais profundamente envolvidos começaram a defender esse mesmo povo contra os próprios interesses imperiais que o sustentavam. Esta foi uma das principais razões da expulsão dos jesuítas da América Latina no século XVIII. 
 Os britânicos, franceses e holandeses estavam, contudo, muito me​nos interessados na religião que no comércio. Não é por acaso que mui​tos dos maiores antropólogos vieram desses países. Alguns dos melhores antropólogos do século XIX estavam abertamente a serviço do governo imperial. Por exemplo, um dos mais completos estudos já realizados sobre a história e a sociedade da ilha de Java foi feito pelo seu governador britânico, Sir Stamford Raffles, que fundou a cidade de Cingapura. Outro foi o de Lord Lugard, o fundador da Nigéria. A Inglaterra produziu centenas desses imperialistas eruditos que, por razões práticas, às vezes, e outras, românticas, vieram a estudar e conhecer povos de todo o mundo, viver com eles e, em muitos casos, escrever sobre eles. O exemplo mais famoso foi o de Lawrence da Arábia, que se tornou mais árabe do que inglês. 
 Porém nos Estados Unidos da América o problema imperial foi me​nos sério. Os povos nativos da América do Norte e do norte do México não eram muito numerosos e tinham sido dizimados pelas doenças européias muito antes da expansão ao oeste do país. Exceto cm poucas áreas isoladas dos planaltos centrais (onde o General Custer fora derrotado pela nação Sioux), os índios americanos raramente ofereceram qualquer sé​ria ameaça à expansão dos Estados Unidos. Apesar disso, foi fundado em 1864, em parte por razões científicas, mas com vistas ao controle pacífico dos povos nativos do oeste, o Departamento Americano de Etnologia (Bureau of American Ethnology), comandado pelo General John Wesley Powell. 
 Este tema prático (o imperial) da história da antropologia é um fato social e econômico. Entretanto, isto não deve sugerir uma crítica moral a toda disciplina, nem mesmo à maioria dos antropólogos, inclusive aos missionários, da época. Aqui, deve-se reconhecer a importância do tema romântico na antropologia. Embora muitos estudiosos e missionários de então aceitassem a visão do “fardo do homem branco” ou de trazer a “civilização” aos “primitivos”, muitos outros se tornaram profundamente envolvidos com o povo que estudaram e, na prática, vieram a ser defensores impetuosos de sua independência cultural. Esta é também uma característica comum aos antropólogos modernos. Pode-se notar que alguns foram além das pesquisas para serem incorporados à tribo estudada. No Brasil, vários antropólogos aceitaram a vida dos nativos. O famoso Kurt Nimendaju manteve várias famílias nativas além de sua família “oficial” no Rio de Janeiro. Um caso célebre foi o do professor Frank Cushing, da Universidade de Colúmbia, que após alguns anos de Pesquisa intensiva sobre a religião dos índios Zuni, do Novo México, tornou-se realmente um sacerdote Zuni — queimou todas as suas notas de pesquisa de campo e jamais voltou à Nova Iorque. Este romantismo da antropologia, o fato de poder compreender e conhecer bem outros povos tem sido uma de suas mais belas características. 
 Contudo, não se deve esquecer que a antropologia é também uma ciência natural e descritiva da língua e da vida de outros povos, e ainda uma ciência comparativa que tenta compreender todas as sociedades humanas. 
 Talvez seja correto dizer que a antropologia como ciência e profissão surgiu no começo deste século, tendo como precursores Franz Boas, nos Estados Unidos, e Bronislaw Malinowski, na Inglaterra. Boas participou da primeira grande expedição antropológica organizada com finalidade especificamente científica — a “Jessup North Pacific Expedition” — para estudar os povos da costa noroeste do Pacifico, do Canadá e do Alasca. Mais tarde, voltou para ocupar a primeira cadeira de antropolo​gia numa universidade americana — a Universidade de Colúmbia, em Nova Iorque. Seus alunos formam a maioria na lista dos grandes antro​pólogos americanos da geração passada: A. L. Kroeber,Melville Herskovits, Ruth Benedict, Ralph Linton, Margaret Mead etc. Muitos deles fundaram departamentos de antropologia em todo o país. Boas era, aci​ma de tudo, um cientista formado em física que exigia muito de seus dis​cípulos, sempre com a visão de que a antropologia devia tentar ser tão rigorosamente científica quanto possível. 
 Por outro lado, Malinowski foi o criador do método científico, essencialmente fundamental na antropologia — o da observação partici​pante. Por uma série de razões, durante a Primeira Guerra Mundial, ele viveu cerca de quatro anos nas ilhas Trobriand, no sul do Pacifico. Lá estudou meticulosamente quase todos os aspectos da vida desse povo melanésio: a produção econômica e o câmbio, a vida familiar, a religião, os mitos e até a poesia. Tendo voltado à Inglaterra após a guerra, aceitou a cadeira de antropologia social da Universidade de Londres e lá permane​ceu até sua morte, em 1941. Sua influência proveio não somente de sua extrema dedicação como professor, mas também de sua extraordinária habilidade em escrita. Da experiência adquirida com os habitantes das ilhas Trobriand, surgiu uma série de livros clássicos em antropologia, to​dos impressos até hoje: Argonauts of the western Pac(fic, Coral gardens and their magic, The sexual life of savages in North Western, A cientific theory of culture e Crime and custom in savage society. Só os títulos já refletem o alcance de seu interesse como antropólogo e pesquisador científico do campo. 
 Esse dois homens, Franz Boas e Malinowski, muito diferentes em experiências e temperamento — um, judeu-alemão formado em física; outro, um polonês expatriado formado em matemática, porém em mui​tos sentidos um aventureiro — criaram a ciência moderna da antropologia como matéria universitária e incentivaram e patrocinaram muitos estudos e pesquisas. Embora suas idéias diferissem em muitos aspectos, ambos ensinaram certas idéias fundamentais que se tornaram preceitos básicos da antropologia moderna. 
 O primeiro desses preceitos é o método da observação participante, desenvolvido por Malinowski, que requer um longo período de convivência (um ano, no mínimo) com o povo a ser estudado. A observação participante implica que um antropólogo não apenas observe uma outra cultura, mas se torne realmente envolvido na vida diária do povo, aprenda sua língua e aceite seus costumes. Certamente há limites para o grau em que um antropólogo possa ou deva tornar-se membro de uma outra cultura. Por exemplo, poucos se casam dentro de uma cultura ou travam combates em guerras locais, ou tiram cabeças de seus inimigos como troféus. Porém, como regra geral, o método tem muita força, já que o pesquisador científico, ao conviver com um povo, tem que se envolver em suas vidas, seus problemas, temores, crenças e aspirações. O antropólogo desenvolve uma dupla visão de vida, torna-se multicultural. De certo modo, converte-se no que estuda. Esta “experiência antropológica” é a marca do pesquisador do campo e ela muda sua personalidade para sempre. A experiência de viver numa outra cultura, com o objetivo de aprender esta cultura, tem efeitos profundos nas pessoas que dela participam. O trauma original é hoje bastante conhecido como “choque cultural” —um distúrbio intenso que pode durar vários meses ou eventualmente não desaparecer de todo. A experiência de uma pesquisa científica extensa não só permite ao antropólogo aprender uma outra cultura, mas também, em muitos casos, faz com que ele esqueça ou questione os dogmas de sua própria cultura. 
 Este é um outro preceito antropológico desenvolvido pelos fundadores da antropologia moderna: a negação do etnocentrismo. 
 O etnocentrismo é simplesmente a crença firme na verdade da própria cultura de alguém. Cultura, no sentido antropológico, é o conjunto de conhecimentos, crenças e valores de uma sociedade. Todas as pessoas crescem aprendendo uma cultura. O etnocentrismo é a ideia de que a própria cultura e crenças de cada um são “a verdade” ou, pelo menos, a maneira superior de lidar com o mundo. É perfeitamente natural acreditar que aquilo que lhe foi ensinado quando criança, sua religião, seus valores, seus modos de conduta são os melhores, os mais corretos e verdadeiros, e que a cultura de outros povos é errada, supersticiosa e inferior. Mas os fundadores da antropologia ensinaram que o etnocentrismo é falso - que todas as culturas são, em geral, iguais, que nenhuma cultura ou sociedade possui o monopólio da verdade e que, de qualquer forma, to​das elas merecem respeito. 
 A destruição do etnocentrismo (a certeza sobre a verdade da própria cultura de alguém) e a aceitação da validade de outras culturas, de outros modos de vida e de outras crenças, foram ensinamentos dos fundadores da antropologia moderna, que são aceito pela maioria dos antropólogos de hoje. O próprio método do trabalho antropológico científico, incluindo longos períodos de convivência com membros de uma outra cultura, destrói o etnocentrismo do pesquisador. O conhecimento de que existem outros meios de fazer certas coisas, outras maneiras de pensar, de falar, outras leis e regras, elimina a confiança natural de uma pessoa na própria cultura. É por isso que a experiência antropológica é tão perturbadora e ao mesmo tempo tão gratificante. O antropólogo perde a certeza de sua própria cultura, porém ganha profunda consciência de uma outra. 
 Ele se torna menos um cidadão de uma nação e mais um cidadão de muitas nações. Isto é tão belo quanto assustador, já que significa que o antropólogo não mais pertence à sua própria sociedade. Ele passa a ser, de uma forma bem real, profissionalmente marginalizado. Mas, no senti​do humanista, torna-se mais desenvolvido. Pertence ao mundo. 
 O próprio fato de o antropólogo conhecer profundamente mais de uma cultura e sociedade é o elemento predominante do campo como ciência. Um outro elemento introduzido pelos fundadores da antropologia moderna foi o conceito de comparação controlada. Esta sugere que através do conhecimento de muitas culturas e sociedades pode-se chegar a um entendimento mais científico do género humano em geral. A antropologia provou que muitas “leis” nas ciências sociais eram em si mesmas etnocêntricas e eliminou vários preconceitos inerentes à visão europeia do mundo. Esta talvez tenha sido a maior contribuição da antropologia às ciências sociais. Hoje, em qualquer campo - da psicologia e da educação à ciência política — a perspetiva multicultural desenvolvida pelos antropólogos é muito importante. Num mundo cada vez mais complexo, a visão multicultural pode ser essencial à sobrevivência humana. 
 Os fundadores da antropologia moderna introduziram um elemento final: a focalização da atenção dos antropólogos sobre sociedades de pequena escala e de tecnologia simples — as chamadas “primitivas”. Na realidade, a última sociedade verdadeiramente primitiva provavelmente tenha desaparecido há 30.000 anos com o Neanderthal. Tanto Boas co​mo Malinowski usaram o termo “primitivo” (ou, no caso de Malinowski, “selvagem”) não no sentido de que pensassem que os povos que eles estudaram eram biológica ou mesmo culturalmente inferiores às sociedades modernas, pelo contrário, tinham profundo respeito por eles. Contudo estavam interessados em estudar povos com tecnologias e estruturas políticas relativamente simples e independentes, tanto quanto possível, das forças econômicas e políticas dos impérios modernos. Desse modo, divergiam acentuadamente dos antropólogos dos séculos anteriores. Seu interesse era realmente científico ao invés de prático. Eles não tiveram a intenção de dominar os povos que estudaram, porém de entendê-los cientificamente (com uma insinuação de romantismo em Malinowski). Mas, em última análise, o esforço para achar tais povos “primitivos” isolados fracassou. Ainda em 1914, quando Malinowski começou seu trabalho científico, tendo Boas realizado o seu há uma década, o número de sociedades verdadeiramente independentes em qualquer parte do mundo era muito limitado; hoje, praticamenteinexistem. 
Ainda persiste em antropologia a tradição de pesquisa em sociedades simples, porém com a crença de que estudando-as, facilita-se a compreensão das mais complexas. Todavia, por muitos anos os antropólogos procuraram ignorar o fato de que a maioria dos povos que pesquisavam era de fato dominada ou pelo menos solidamente influenciada pelos Estados e culturas ocidentais. Eles tentaram recriar uma cultura “pura” e “tradicional”, indagando sobre o passado e ignorando os elementos modernos. Esta ênfase sobre o “primitivo” limitou o campo e foi fonte de muitos erros em trabalhos posteriores. 
 O primeiro dos antropólogos a dar reconhecimento especifico à conexão entre as sociedades pequenas e simples e os Estados modernos foi Robert Redfield (Tepoztlan: a Mexican village, a study of folk life, 1930), que desenvolveu uma nova metodologia de estudo das comunida​des rurais dentro de um Estado maior. Primeiro no México e mais tarde na China, ele pesquisou sobre as vilas rurais como part societies. Desse modo, libertou a antropologia de sua tradição de “primitivismo” e descobriu um novo campo extensivo para pesquisa. Fez também a útil dis​tinção entre a sociedade e cultura da elite urbana e a camponesa rural, ou, com suas próprias palavras, entre a “grande tradição” das cidades e a “pequena tradição” do campo. É interessante observar que Redfield, assim como Boas e Malinowski, é hoje severamente criticado por não ter reconhecido a relação de poder e autoridade que o Estado mantém sobre a comunidade rural. Esta critica é devida ao seu primeiro trabalho no México. Contudo, nos estudos posteriores sobre a China, Redfield exa​minou explicitamente os problemas do comércio e do poder na sociedade rural, sendo esses trabalhos infelizmente pouco conhecidos hoje em dia. 
 Durante a década de 30 e até o presente, o campo da antropologia tem-se desenvolvido constantemente. Antropólogos como Edward Sapir (Language, an introduction to the study of speech, 1921-1954), foram fi​guras fundamentais na criação da ciência da linguística. Psicólogos como Abram Kardiner (The individual in his society, 1956) e antropólogos co​mo Margaret Mead (Coming of age in Samoa, 1928) dedicaram-se à apreciação da personalidade e da cultura e abriram novas áreas no estudo da educação comparada. As pesquisas antropológicas tornaram-se instrumento fundamental para se compreender a organização social. Estudos de religião e de mitologia transformaram-se numa grande área de pesquisa. Enquanto estudo de produção e de troca, a antropologia econômica, iniciada por Malinowski, tem sido sensivelmente desenvolvida por antropólogos como Raymond Firth (Malay fishermen, their peasant economy, 1946) e por marxistas como Maurice Goudlier (Racionalidade e irracionalidade na economia, 1975). A escola estruturalista francesa criada por Claude Lévi-Strauss abriu muitas áreas novas na análise estrutural do parentesco, da linguagem e da mitologia. Todas elas têm dado grande contribuição à ciência social bem como ao humanismo científico. 
 Recentemente, os antropólogos começaram a examinar o fenômeno urbano. Este trabalho envolve várias instituições urbanas, como igrejas e outras organizações religiosas, fábricas e até escolas de samba (da Matta, Carnavais, malandros e heróis; Para uma sociologia do dilema brasileiro, 1979; Velho, A utopia urbana, 1973; Oliven, Urbanização e mudança social no Brasil, 1980). Há também estudos sobre bairros e outros grupos urbanos Como Roberto da Matta já observou, os antropólogos têm uma tradição de estudar povos ignorados pelas outras ciências sociais: favelados, mendigos, índios e outros povos nativos forçados a morar em cidades. A antropologia, assim, tenta dar voz àqueles que são pouco ouvidos. 
Parece possível dizer agora que as velhas raízes pragmáticas da antropologia como elemento de dominação imperial estão sendo gradual​mente substituídas pela antropologia como ciência. Ainda mais que o Código de Ética da Associação Americana de Antropólogos proíbe ao antropólogo profissional participar de qualquer atividade que possa trazer prejuízo ao povo que ele pesquisa. Isto não quer dizer que não possa se esforçar para ajudar tal povo em suas relações com a sociedade moderna ou mesmo nas lutas, para que sobrevivam às provações da modernização. Hoje, esta é uma das mais nobres e úteis tarefas da antropologia moderna, contanto que seja feita a pedido e com apoio das pessoas e não de uma maneira paternalista e dominante. 
Deste modo, a linha pragmática do campo tem sido modificada, mas a ideia de domínio está sendo substituída pela de cooperação, e a assistência ainda não desapareceu. A antropologia como ciência social tem-se tornado mais vigorosa, com novas técnicas e novos métodos de pesquisa, como o estruturalismo, a lingüística, a arqueologia, a economia, a biologia e a genética. Mas ainda nela persiste a linha romântica e provavelmente nunca desaparecerá. O mundo é extremamente complexo para que a antropologia se transforme numa ciência exata num futuro previsível. 
A antropologia — o estudo das sociedades exóticas — tem sido sempre um assunto de romantismo e apesar de todas as técnicas modernas, a maioria dos antropólogos é basicamente humanista. Na realidade, a antropologia como ciência tende a dar um grau de objetividade e rigor, bem como controle de observação, ao que ainda é uma arte — a de ser antropólogo. 
Robert Weaver Shirley, In: “Antropologia jurídica”, São Paulo, 1987, Saraiva, 1-8.
O QUE É ANTROPOLOGIA LEGAL?
  
Para examinarmos os conceitos de antropologia legal, devemos discutir primeiro o problema do direito em si. Para um estudante do direito, a questão é relativamente simples: uma lei é uma regra proposta pelas organizações próprias ao Estado. Geralmente é uma legislação com aprovação do Executivo e dos poderes judiciários. Para o antropólogo e o sociólogo, a lei é algo muito mais complexo. O cientista social não está interessado apenas nas regras formais especificas e nas instituições do Estado, mas em todo o padrão das normas, e nas sanções que mantêm a ordem social e que permitem a uma sociedade funcionar. As leis formais do Estado são somente um elemento desse padrão. De fato, o assunto da antropologia legal clássica é exatamente o do direito “primitivo”, que é a lei nas sociedades simples e sem escrita, onde o Estado é ausente ou muito distante.
 Thomas Hobbes e muitos doutores da lei ensinaram que o Estado é um elemento necessário para garantir a ordem social. De acordo com a filosofia de Hobbes (Leviathan, 1968), sem o poder coercitivo do Estado a vida seria “grosseira, bruta e breve” na “guerra de todos contra todos”. A antropologia moderna provou que esta visão da sociedade é em grande parte falsa. Muitas sociedades existiram e ainda existem sem quaisquer leis escritas, ou poder burocrático, ou violência organizada do Estado. Isto não significa que essas sociedades não tenham regras ou normas sociais, nem quer dizer que não há mecanismos de controle social ou sanções contra aqueles que infringem essas regras. Todavia esses mecanismos existem em outras instituições que não o Estado e, o que é ainda mais importante, estas instituições continuam a funcionar mesmo na moderna Sociedade urbana. 
 Há muitas regras e costumes dentro de qualquer sociedade, que não são leis formais, mas que mesmo assim as pessoas obedecem. Isto é, normas e hábitos que têm efeito real na ordem social ainda que não sejam escritos em códigos ou livros de direito. De fato, provavelmente quase toda interação e comportamento sociais ocorrem sem ação direta alguma de qualquer Estado. Esta é a mensagem fundamental dos grandes sociólogos do direito, como Eugen Ehrlich (Fundamental principles of lhe sociology of law, 1936), Wilhelm Aubert (Sociology of law, 1969) e Jean Carbonnier (Flexible droit, 1971) - o papel relativamente secundário que o Estado representa na vida cotidiana e na manutenção da ordem social. Carbonnier fez uma útil distinção entre o grand droit - as leis e instituições do Estado,e o petit droit - as outras regras e instituições essenciais à ordem e à vida sociais. 
Entretanto isto não significa que as pessoas vivendo em sociedades sem Estado, ou mesmo os modernos cidadãos urbanos, levando uma vida calma e honesta, sejam escravos dos costumes e obedeçam às regras instintivamente e sem questionamento. Quase todos os filósofos jurídicos, inclusive Hans Kelsen (General theory of law and state, 1952) e H. L. A. Hart (The concept of law, 1961), ensinaram que a natureza funda​mental do direito é o poder que tem a sociedade de aplicar sanções ou punir uma conduta disruptiva ou “ilegal”. Hart sugeriu que em qualquer sociedade há “regras primárias”, isto é, sobre o comportamento do indivíduo, e “regras secundárias”, normas da sociedade referentes às primárias, ou seja, fórmulas sociais para aplicar sanções àqueles que não obedecem às regras primárias. O grande antropólogo Paul Bohannan (The differing relms of the law. In: Law and warfare, 1967) propôs uma visão semelhante quando escreveu que a maioria das sociedades tem “dupla institucionalização”, isto é, instituições sobre conduta e instituições para punir condutas extravagantes. 
 Para melhor compreensão deste assunto, tomaremos como exemplo os esquimós (Inuit) do Alasca, Canadá e Groenlândia que sobreviveram por cerca de 3.000 anos sem vestígio qualquer de Estado. “É difícil imaginar um povo que seja mais anárquico”, disse um observador. É sabido, por exemplo, que não há nenhuma palavra para “guerra” na língua esquimó e realmente eles julgam que grupos de pessoas brigando uns contra os outros é uma tolice. 
 Os esquimós vivem numa região onde, na época do inverno, o frio mata uma pessoa em cinco minutos se ela não estiver adequadamente vestida. Eles têm sido tradicionalmente caçadores e muitos ainda o são e, no inverno, essa atividade torna-se bastante árdua. Partindo desse fator geográfico básico, os esquimós desenvolveram durante muitos séculos uma série de leis que lhes permite sobreviver num dos ambientes mais hostis da terra. Uma dessas leis é: quem tem um excesso de carne ou outro alimento deve reparti-lo com os outros. Armazenar comida é um cri​me mortal na visão desse povo. Em seu ponto de vista, é natural as pessoas dividirem seus bens. Devido a essa crença, os primeiros comerciantes ingleses nunca puderam instalar um posto comercial em território esquimó. Os esquimós sempre estavam dispostos a repartir suas peles e ali​mentos com os ingleses, porém nunca conseguiram entender porque estes mantinham um estoque enorme de mantimentos sem dividi-lo. Tal procedimento não lhes era natural ou, melhor, era “crime”. Por três vezes os ingleses estabeleceram postos comerciais no território esquimó no século passado e por três vezes, após algumas discussões sobre justiça e divisão, as comunidades esquimós simplesmente mataram os comerciantes ingleses e distribuíram seus alimentos. Isto foi “justo” para o direito esquimó, já que, para eles, o crime mortal não era o roubo, mas sim a ganância. 
 
Modelos sobre a dualidade da lei
Outra lei esquimó foi relatada pelo antropólogo Knud Rasmussen (Intellectual culture of the Iglulik eskimos. In: Reports of the Fifth Thule Expedition — 1921-1924), da Groenlândia, em 1929. Uma regra geral de todas as sociedades esquimós é: em épocas de privações, geralmente no inverno, os indivíduos que não podem mais produzir ou caçar não devem comer. Portanto, ás vezes, deixavam-se morrer crianças nascidas no inverno e, o que é também de se notar, esperava-se que as pessoas muito velhas, consideradas inúteis à sociedade, se matassem. Este era um dos mais sagrados deveres dos idosos: devido aos rigores do inverno e à escassez de alimentos, eles deviam sacrificar-se para que os demais membros do grupo pudessem sobreviver. Era bem possível, em tais casos, que os velhos perambulassem pela neve e desaparecessem. Porém Rasmussen informou que era mais correto e honroso para o filho mais velho ajudar seus pais a cometerem o suicídio. Qualquer outra coisa era sinal de desrespeito. Ele conta o caso de uma família com quem estava viajando em pleno inverno de 1921, em que a velha mãe da família decidiu que não mais poderia continuar viajando. Para honrá-la, o filho construiu-lhe um iglu sem saída e ela sentou-se nele confortavelmente Depois disto, a família inteira cantou músicas de despedida ao redor do iglu durante to​da a noite e continuou a viagem na manhã seguinte. Isto é homicídio na visão ocidental, mas também é o maior ato de justiça para os esquimós. 
  
Este é, então, um postulado básico da antropologia legal, o de que as regras são feitas a partir de bases sociais e econômicas e precisam ser vistas em seu conteúdo social. Além disso, de acordo com Sally Falk Moore (Law as process, an anthropological approach, 1978) e outros antropólogos jurídicos, as sociedades sem Estado, “primitivas”, raramente têm leis nocivas ou inúteis. Sem um instrumento para fazê-las cumprir e sem maneira de escrevê-las, as leis desnecessárias serão geralmente esquecidas dentro de poucos anos. Desse modo, as leis dos povos “primitivos” são freqüentemente muito mais verdadeiras do que as das sociedades modernas, além de serem geralmente bem conhecidas por quase todos os membros da sociedade. Assim, é possível falar de uma “cultura legal” como aquela estrutura e hierarquia de normas e valores que permitem a uma pessoa sobreviver em seu ambiente, em sua sociedade. Além disso, as leis que compõem o padrão legal das sociedades simples devem ser relativamente poucas, já que não as há escritas e poucos são os especialistas em direito (se é que há algum) para elaborá-las. Assim, o antropólogo legal concordaria não com Kelsen, para quem o direito é uma ciência pura, coerente em si mesma, mas poderia anuir com Oliver Wendell Holmes, ou seja, que a vida do direito não é a lógica, mas a experiência. 
As regras da sociedade sem Estado, o direito “primitivo”, são uma acumulação histórica das normas de vida social que se têm mostrado valiosas ao longo das gerações, no sentido de manter a ordem e a organização sociais. Essas regras são frequentemente expressas em fórmulas que se mostram estranhas aos estudiosos do direito europeu, em formas metafísicas ou religiosas, e o desvio é muitas vezes caracterizado como feitiçaria ao invés de crime. Contudo, a sociedade pode funcionar muito bem desta maneira. 
Não se deve supor, porém, que as sociedades simples e sem Estado não tenham instituições de verdadeiro poder para punir os transgressores. O modelo das regras primárias e secundárias proposto por Hart (The concept of law, cit.) pode aplicar-se igualmente à antropologia legal e ao direito moderno. Para os antropólogos contudo, as burocracias jurídicas formais são apenas algumas dentre as diversas instituições que podem aplicar sanções aos indivíduos. 
Anthony F. C. Wallace (Administratíve forms of social organization, 1968) referiu três instituições principais que formam a ordem social. São elas: a família, a comunidade e a administração. 
As categorias são imperfeitas, porém muito úteis, e podem ser combinadas ou ainda mais divididas. A “administração”, por exemplo, pode incluir tanto corporações como um governo. Ambos têm o poder de aplicar sanções. Porém, em geral, a divisão é útil para uma análise das forças de ordem social em qualquer sociedade. No caso dos esquimós citado acima, pode-se ver a importância tanto da família como da comunidade em fazer cumprir as normas sociais. 
Uma série adicional de conceitos importantes de serem salientados são aqueles desenvolvidos por Max Weber em sua análise de política e lei (Economy and society, 1968). Eles estão correlacionados à contradição fundamental em qualquer estudo jurídico que, por sua vez, se relacione com o problema da dualidade da lei ou com as regras primárias e secundárias. O direito consiste numa série de normas e regras que são consideradas, pelo menos por muitos, como boas e justas, e que deveriam ser obedecidas. Mas a lei é também um sistema de punir os indivíduosque desobedecem a essas regras. Esta é a grande questão, proposta por Weber, que é assunto não só da antropologia legal, mas também de toda a ciência Política: por quê um homem obedece a um outro? 
  Nesta pergunta, Weber fez a distinção fundamental entre: 1) autoridade (Herrschaft) que é a obediência voluntária porque o indivíduo crê que ele deve obedecer; e 2) poder (Macht), que é a obediência obtida apesar da oposição Nas palavras mais exatas: “Autoridade é a probabilidade de que uma ordem com um certo conteúdo seja obedecida por um grupo definido de pessoas qualquer que seja o motivo para esta obediência”, enquanto “poder é a probabilidade de que esta ordem seja obedeci​da apesar da oposição” (Weber Economy and socíety, cit., p. 35). 
Outro conceito básico proposto por Weber é o da legitimação. Este é, fundamentalmente o processo de criar poder, ou um padrão de ordens e obediência justo na opinião das pessoas. A autoridade legítima é a autoridade sem oposição perceptível, obediência livre. É importante observar que na opinião do cientista social, a legitimação não é simples​mente ato de uma legislatura ou de um órgão oficial, porém processo social pelo qual os líderes de uma sociedade demonstram que suas ordens são de interesse geral para o povo. 
Finalmente, há certas distinções básicas no tipo de pesquisa que os antropólogos fazem no domínio da lei. O primeiro é o trabalho clássico do antropólogo legal, já parcialmente discutido, o estudo da ordem social, de regras e sanções em sociedades “simples”, o “direito primitivo” na terminologia mais antiga (v. Hoebel, The law of primitive man: a​ study in comparative legal dinamics, 1954). Este é o campo tradicional da antropologia legal e há centenas de estudos sobre este tema publica​dos, inclusive muitos dos grandes clássicos da antropologia. A essa disciplina denominaremos antropologia legal. 
Um segundo tipo de pesquisa que tem interessado aos antropólogos pode ser chamado de antropologia jurídica. É o emprego de métodos antropológicos de pesquisa, observação participante e comparação com modernas instituições do direito. Trabalhos nesta linha têm sido feitos na Polícia, na magistratura e até em prisões. São feitos estudos também nas instituições jurídicas que ligam o Estado e a lei urbana às comunidades rurais isoladas. Deve-se dizer que este tipo de pesquisa é, às vezes, muito difícil de ser levado a termo, porque, como notou o grande antropólogo do direito norueguês, Wilhelm Aubert (Sociology of law, cit.), os detentores do poder frequentemente não querem vê-lo como alvo de estudos, e já que eles têm poder, podem impedir tal pesquisa, se quiserem. O exemplo mais óbvio disto é a dificuldade que envolve o estudo da sociologia política. 
Um terceiro campo de pesquisa para o antropólogo, bem como para o estudioso da ciência jurídica, é o do direito comparado, cujas principais escolas encontram-se na França e no México. O antropólogo está numa posição excecionalmente boa para auxiliar nesta espécie de trabalho, pelo alcance de seu conhecimento multicultural e de sua consciência de muitos tipos diferentes de instituições jurídicas que não as das sociedades modernas ocidentais. Porém, até agora, a união entre os campos do direito e da antropologia tem-se mostrado bem distante. 
  
ALGUMAS APLICAÇÕES DA ANTROPOLOGIA LEGAL E DA ANTROPOLOGIA JURÍDICA NO BRASIL
Do ponto de vista da ciência jurídica pura e da lógica técnica no elaborar as leis, o Brasil pode ser considerado um país desenvolvido. É na aplicação das leis, entretanto, que surgem os problemas; na divisão nítida entre a teoria e a prática, que permitiu que a forte tendência liberal na filosofia jurídica brasileira (a crença na democracia, os direitos humanos básicos, a remuneração adequada para o trabalho etc.) existisse lado a lado com uma das mais elitistas e estratificadas sociedades de classe do mundo. Algumas leis no Brasil são escritas para atingir o objetivo tencionado pelo legislador ou pelo governo, e para fazer cumpri-las é montado um sistema de aplicação de leis adequado. Outras são escritas com fins de propaganda, para satisfazer oficialmente a alguns grupos de interesses; “para inglês ver”, como diz o velho ditado. Neste caso, não há providências para a execução da lei, e esta simplesmente não surtirá efeito ou, no máximo, somente sobre uma pequena minoria da população. Contudo, outras leis são aprovadas mesmo sabendo-se que na situação brasileira e com o sistema jurídico existente terão um resultado bem diferente daquele determinado. Essa lacuna entre o direito formal e o aplicado é real em todos os países, mas no Brasil alcançou proporções quase surrealistas. Os brasileiros simplesmente não acreditam na lei. Crêem, sim, numa estrutura de poder e em mediadores do poder que se movem paralelamente à ordenação formal das leis substantivas do País. A lei lá está para ser usada seletivamente: para nossos amigos, a amizade; para nossos inimigos, a lei. 
 É por isso que a maioria das pessoas evita tanto quanto possível a estrutura jurídica formal. Se puderem resolver suas disputas ou problemas manipulando o sistema informal, isto é, o “jeitinho” brasileiro, eles o farão. Caso contrário, geralmente sentirão receio de se aproximar do sistema formal, temendo perder de qualquer maneira, já que a verdadeira força reside na estrutura informal. 
 Há exceções, e estas são importantes, pois podem revelar uma nova tendência no direito brasileiro. Nós observamos em mais de uma ocasião, quando da pesquisa do papel do Judiciário nas regiões rurais do Brasil, que alguns juízes constantemente defendem os direitos legais dos pobres da zona rural, como seu direito de posse da terra, de receber pelo menos um salário mínimo, e os numerosos direitos formais que deveria ter um agregado brasileiro, porém que geralmente não são cumpridos. Qualquer juiz que faça cumprir continuamente esses direitos se legitimará aos olhos da população local. É interessante observar, todavia, que esta fé, esta legitimação, é, muitas vezes, pessoal. O juiz se torna, de certo modo, um bom patrão e como tal será logo amplamente respeitado pela população de sua comunidade. Infelizmente, ele também poderá fazer inimigos entre os importantes e ricos, que poderão prejudicá-lo na sua carreira. Mais ainda, é só recentemente que há indicações de uma legitimação além da pessoal: a legitimação da instituição. 
 Essa espécie de legitimação individual não se estende às grandes cidades. Numa metrópole como São Paulo, que tem várias centenas de Varas, é difícil para um juiz conhecer a população pessoalmente, e, ainda que isso fosse possível, não há nenhuma garantia de que qualquer processo particular seja encaminhado ao seu tribunal. Portanto, o tipo de legitimação jurídica que às vezes aparece nas comarcas rurais desaparece nas cidades. 
 Teoricamente, um dos principais papéis do Estado é trazer justiça ao povo. Citaremos um dos mais antigos legisladores, Hamurabi, no Epílogo do seu Código de Hamurabi: 
 “(Estas são) as prescrições de justiça, que Hammurabi, o rei forte, estabeleceu e que fez o pais tomar um caminho seguro e uma direção boa; 
 “Eu (sou) Hammurabi, o rei perfeito. Para com os cabeças-pretas, que Enlil me deu de presente e dos quais Marduk me deu o pastoreio, não fui negligente, nem deixei cair os braços; eu lhes procurei sempre lugares de paz, resolvi dificuldades graves, fiz-lhes aparecer a luz. ... acabei com as lutas, promovi o bem-estar do país. Eu fiz os povos dos lugarejos habitar em verdes prados, ninguém os atormentará. Os grandes deuses chamaram-me e tornei-me o pastor salvador, cujo cetro é reto; minha sombra benéfica está estendida sobre minha cidade.... Para que o forte não oprima o fraco, para fazer justiça ao órfão e à viúva, para proclamar o direito do país em Babel, a cidade cuja cabeça An e Enlil levantaram, na Esagila, o templo cujos fundamentos são tão firmes como o céu e a terra, para proclamar as leis do país, para fazer 
direito aos oprimidos, escrevi minhas preciosaspalavras em minha estela e coloquei-a diante de minha estátua de rei do direito 
 “Que o homem oprimido, que está implicado em um processo, venha diante da minha estátua de rei da justiça, e leia atentamente minha estela escrita e ouça minhas palavras preciosas. Que minha estela resolva sua questão, ele veja o seu direito, o seu coração se dilate!” (Bouzon, O Código de Hamurabi, cit., p. 109-10). 
A estrutura jurídica de um Estado pode ser uma força de legitimação ou um instrumento básico de repressão. Isso é verdadeiro para o Judiciário, para o Ministério Público e para a Policia. Os juizes podem trabalhar muito no sentido de resolver as disputas rapidamente e ignorar ou revogar as leis que sentirem que são contrárias aos interesses da nação como expressas na Constituição. “Para que o forte não oprima o fraco, para fazer justiça ao órfão e à viúva”, ... “para fazer direito aos oprimidos”, o papel do juiz no fundo é de legitimação. Um Judiciário que funciona só como máquina de condenação é uma negação da justiça responsiva. O juiz, como Lobo-do-Dorso-Alto, deve humanizar a lei, tal como, às vezes, faz o júri. É verdade que, na máquina estatal proposta por Kelsen, o Judiciário tem o papel altamente formal de aplicar a lei, mas isso pressupõe um Estado radicalmente democrático, e mesmo assim é muito difícil fazer leis gerais para um país complexo moderno. 
 Wilhelm Aubert (apud Nader, Law in culture, 1969, p. 282-302) mostra como na Noruega, uma nação pequena e unificada, o uso dos tribunais e dos advogados está diminuindo porque o povo desenvolveu outros mecanismos de solucionar suas disputas e problemas. Neste país, a maioria das famílias têm e lêem cópias do Código Civil. Eles conhecem seus direitos e obrigações e possuem meios políticos para modificá-los. No direito criminal, também 83% dos casos são resolvidos pela Polícia na base duma instituição chamada Forelegg, em que o criminoso admite sua culpa e paga uma multa determinada pela Polícia com base na gravidade do delito. Se o crime é muito grave, o suspeito pode optar pelo processo, que pode ser de dois tipos. O sumário, quando o réu admite sua culpa e o processo é feito pelo juiz singular, que tem liberdade quase que total sobre a pena. Ele pode perdoar o culpado, encaminhá-lo a um tratamento psiquiátrico, exigir pagamento à vitima, mandar que o criminoso pare de tomar álcool, ou condená-lo à cadeia. Se o acusado não quer um processo sumário, então pode optar por um processo formal, realizado por um juiz togado e por dois leigos - o tribunal oficial, que tem o poder de absolver ou condenar segundo as leis formais do Código Penal. Somente 30% dos acusados optam por este processo, o que mostra o alto grau de confiança do povo, não só no Judiciário, mas também na Polícia, através do Forelegg. 
Outra instituição jurídica, o Ministério Público, pode operar como agente de uma pequena elite dominante ou servir como força de legitimação, fiscalizando a função e o equilíbrio do processo jurídico em geral. 
 Esta dualidade de repressão versus legitimação é verdadeira mesmo em se tratando da Policia, que, no Brasil, é uma instituição amplamente temida por todas as classes sociais, especialmente a classe operária dos subúrbios das grandes cidades. Um temor que a própria Polícia criou enquanto agente, muitas vezes arbitrário, da elite dominante. Porém não se deve esquecer que o papel original da “Polícia” — os representantes da “polis” — era o serviço público. O agente da Polícia rural inglês, o constable, não era uma figura temida de repressão, mas um cidadão comum, eleito por um ano para fiscalizar as atividades da comunidade nos serviços públicos e para despertar o povo através de hue-and-cry — o chamado para a assistência comunitária — se fosse cometido um crime ou em caso de incêndio, especialmente à noite. Ele também tinha o poder privilegiado e único de aprisionar qualquer pessoa por crime, e era uma figura judicial importante para decidir as disputas menores e as brigas na zona rural, bem como controlar os problemas crônicos da comunidade, auxiliando os débeis mentais e os bêbados. Esta tarefa parece idílica, porém era realmente o papel do antigo policial inglês. 
Esse elo legítimo entre a Polícia e a sociedade não é tão raro como se pode pensar quando se observam somente os países da América Latina. O guarda policial on the beat (no seu território) é uma figura familiar nos Estados Unidos e não é, geralmente, temido — exceto quando se é negro. (A repressão brutal nos Estados Unidos tende a discriminar a cor, embora antigamente a Polícia tenha também reprimido fortemente a formação de sindicatos.) Na verdade, na Inglaterra e no Japão, a Polícia tem um forte papel de legitimação. O policial japonês, por exemplo, mora e trabalha em seu distrito e ali conhece todas as pessoas pelo nome. Os forasteiros não são interrogados diretamente, porém estão sempre sendo observados e sua presença é informada à delegacia central, em caso de que algo fora do comum possa acontecer. Duas vezes ao ano, a Polícia local visita cada família do distrito para (geralmente) tomar chá e ouvir qualquer queixa que os cidadãos da localidade tenham contra eles ou contra os serviços do governo em geral. Tais reclamações são sempre registradas e informadas ao governo. Devido às condições criadas pelas autoridades americanas em 1945, a Polícia japonesa carrega armas de fogo. Porém, nenhum tiro foi dado deliberadamente pelos policiais em toda a cidade de Tóquio nos últimos trinta e seis anos. A Polícia japonesa não é apenas uma força de vigorosa legitimação, acredita ter um dever quase que sagrado de manter a ordem e ajudar os fracos. Os policiais agem como agentes da “polis”. Assim, há sociedades de assistência policial em todo o Japão. Tudo isso provavelmente ajuda a explicar por que a cidade de Tóquio apresenta o mais baixo índice de criminalidade no mundo. (Aqui, “crime” não significa “atividade não-legal”. Tóquio tem um sólido submundo de atividades formalmente ilegais, como a prostituição, que são abertamente toleradas pelo governo e pela Policia.) (V. Bayley, Forces and order: police behavior in Japan and the United States, 1976.) 
O problema do Brasil está na própria estrutura da sociedade. Não há o que faça uma força policial ou um sistema jurídico de Estado se legitimarem se eles operam principalmente como força repressiva contra o povo, na defesa dos direitos e prosperidade de uma pequena classe dominante, ou mesmo de interesses exteriores à nação. 
A antropologia, com suas pesquisas sobre a aplicação real da lei nas ruas e nas comunidades, e não nas bibliotecas e nos escritórios, pode mostrar algumas dessas contradições. A antropologia, mais do que qualquer outra ciência social, estuda as atitudes e o modo de vida do “povão”, dos camponeses, dos bóias-frias, dos trabalhadores e dos desempregados. Até os criminosos e os loucos são analisados. A pesquisa pode revelar o grau dos verdadeiros problemas do direito na sociedade e talvez dar algumas sugestões de aprimoramento. Pode ajudar a trazer ao conhecimento público uma percepção das injustiças e arbitrariedades e auxiliar os aflitos a se defenderem. No mínimo, o antropólogo deve cumprir seu antigo papel de dar voz a quem não a tem e fazer advertências sinceras sobre situações reais. Depois, como dizem os chineses, “se os imperadores não escutarem os seus censores, a dinastia cairá”. 
Robert Weaver Shirley, In: “Antropologia jurídica”, São Paulo, 1987, Saraiva, 79-93
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