Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Ilya Prigogine, famoso químico da Universidade Livre de Bruxelas e da Universidade de Austin no Texas e laureado com o prémio Nobel em 1977, pensa que o nascimento do nosso tempo não é o nascimento do tempo. Se o leitor não teve fôlego para "A Nova Aliança" (Gradiva, 1987) ou se sentiu intimidado com "Entre o Tempo e a Eternidade" (Gradiva, 1990) tem agora, com a publicação de "O Nascimento do tempo", uma oportunidade excelente para conhecer o homem e se interessar pela ideia que a ciência faz do tempo. Os textos de dois colóquios em Milão são completados com uma sucinta nota biográfica e uma breve entrevista. Tudo em 75 páginas, para o leitor que não tem tempo a perder. A tese é forte e já não se via uma coisa assim desde o tempo de S. Tomás de Aquino, para quem o tempo era eterno. O tempo, a acreditar em Prigogine, já existia antes do nosso tempo. A conclusão prigoginiana pode parecer bastante confusa para quem ande atento às novidades da ciência e já tenha ouvido falar da grande explosão que teria iniciado o nosso tempo. Andaram físicos de partículas como Weinberg, astrofísicos como Hawking e mais meia duzia de outros a persuadir-nos, perseverantemente, da história do tempo, do nascimento do tempo, do modelo padrão da cosmologia, para agora aparecer um químico a dizer, descaradamente, que o "início do tempo é uma ideia difícil de aceitar". O título do livro poderia pois ser "O nascimento do tempo?", sendo essencial o ponto de interrogação. Trata-se, no entanto, de pôr em causa o "nascimento do tempo" e não de anunciar a morte do tempo. Que o tempo existe é a mensagem que Prigogine tem propagandeado desde há muito, com um sucesso que é indubitável. O tempo, segundo a doutrina que Prigogine tem vindo a apregoar, deve ser o mesmo em todo o lado, deve ser o mesmo em todos os fenómenos em que a mudança se manifesta. É um facto que existe a mudança, a história, a irreversibilidade. Agora, o Prémio Nobel da Química acrescenta que, se é um facto que apenas conhecemos a história, a mudança, a irreversibilidade no nosso universo, não é intelectualmente aceitável a ideia do instante inicial. O nascimento deste universo seria o resultado de uma transição de fase num outro universo precedente: uma flutuação que se alargou, originando o universo que hoje se vê. Aquilo que parecia um truque de mágica no circo de coisa nenhuma seria afinal uma banalíssima instabilidade num mundo anterior. O tempo, apesar de real, seria assim de alguma forma eterno. Soa mais a filosofia do que a física, uma vez que a memória do tempo anterior está irremediavelmente apagada. Para a física, as memórias apagadas devem ser dadas como inexistentes. Mas Prigogine não recusa abandonar as posições mais ortodoxas da física se, em contrapartida, se puder aproximar das posições da filosofia ou da arte, de onde ele de resto na entrevista confessa que partiu. O cientista russo-belga-americano afirma (afirmação essa à qual não é alheio um certo sentido estético) que o tempo, além de um papel destrutivo, tem um papel construtivo. Tal como houve, no nosso tempo, criação de seres vivos, assim também houve antes, num outro tempo, criação de universos. Os universos têm algo de semelhante aos seres vivos, na medida que evoluem no sentido de estruturas cada vez mais ordenadas (pelo menos o nosso é assim). A morte térmica do nosso universo teria sido no seu início, no momento da grande turbulência do "Big Bang", e não no fim. É decerto consolador que a morte térmica esteja atrás de nós e não, como receavam os catastrofistas do século passado, à nossa frente, e que o futuro cósmico se defina pelo triunfo da ordem sobre a desordem. Suponhamos que o leitor, apesar desta recensão, não tem tempo para ler as 75 páginas. Deixamos-lhe pois um excerto, escrito pela pena do autor. À maneira dos filmes, esperamos que esta curta apresentação lhe abra o apetite para o resto: "Não devemos esquecer-nos: a ciência não pode descrever fenómenos irrepetíveis. Se se deu um fenómeno único, uma singularidade com o Big Bang, eis que nos encontramos perante um elemento que introduz aspectos quase transcendentais, que escapam à ciência. Da mesma maneira, não creio que a vida corresponda a um fenómeno único: forma-se sempre que as circunstâncias planetárias forem favoráveis a tal evento. O nascimento do nosso tempo não é, por conseguinte, o nascimento do tempo. Já no vazio flutuante o tempo preexistia em estado potencial". Vá agora ler o resto. Aceite o conselho de não se deixar intimidar por aquilo que não entenda. A escala cósmica é um domínio privilegiado da especulação. Sublinhe alguma coisa que julgue que entendeu. Não se preocupe se esses sublinhados forem pouco extensos porque até se dá o caso que alguns físicos não entendem Prigogine, pelo que não sublinhariam quase nada. Um aviso sobre a edição. Há erros de tradução e revisão que são demasiados para o número de páginas. Não vale a pena falar do erro de aparecer "quilaridade", que não existe, em vez de "quiralidade", pois o leitor vulgar de Lineu nem dá por ele. Mas, no excerto transcrito atrás, em vez de "irrepetíveis" vem "repetíveis" na tradução portuguesa: convenhamos que se trata de uma alteração completa de sentido. Resta-nos esperar que na colecção "Universo da Ciência", que nos tem dado outros títulos provocantes como "o relojoeiro cego" de Dawkins ou "Gaia" de Lovelock, erros como esse sejam irrepetíveis.
Compartilhar