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1 OS INTELECTUAIS ESTÃO FORA DO JOGO?1 entrevista com Pierre Bourdieu P - Quando você estudava a escola e o ensino, sua análise das relações sociais no campo cultural remetia a uma análise das instituições culturais. Hoje, ao analisar o discurso, parece que você faz um curto-circuito nas instituições; e no entanto você tem um interesse explícito pelo discurso político e pela cultura política. - Ainda que isto só tenha interesse biográfico, quero lembrar-lhe que meus primeiros trabalhos foram sobre o povo argelino e tratavam, entre outras coisas, das formas da consciência política e dos fundamentos das lutas políicas. Se, em seguida, me interessei pela cultura, não foi por lhe dar uma espécie de prioridade "ontológica" e, sobretudo, não por considerá-la um fator de explicação privilegiado para compreender o mundo social. De fato, esse terreno estava abandonado. Os que dele se ocupavam oscilavam entre um economicismo redutor e um idealismo ou espiritualismo, o que funcionava como um perfeito "casal epistemológico". Acho que não sou daqueles que transpõem, de maneira não crítica, os conceitos econômicos para o domínio da cultura, mas quis, e não apenas metaforicamente, fazer uma economia dos fenômenos simbólicos e estudar a lógica específica da produção e da circulação dos bens culturais. Havia uma espécie de desdobramento do pensamento que fazia com que na cabeça de muita gente pudesse coexistir um materialismo aplicável ao movimento dos bens materiais e um idealismo aplicável ao dos bens culturais. As pessoas contentavam-se com um formulário muito pobre: "a cultura dominante é a cultura das classes dominantes, etc.". O que permitia a muitos intelectuais viver sem grande mal-estar suas contradições: desde que se estude os fenômenos culturais como obedecendo a uma lógica econômica, como determinados por interesses específicos, irredutíveis aos interesses econômicos no sentido restrito, e pela busca de lucros específicos, etc., os próprios intelectuais são obrigados a se perceberem como determinados por interesses que podem explicar suas tomadas de posição, em lugar de se situarem no universo do puro desinteresse, do "engajamento" livre, etc. E compreende-se melhor, por exemplo, 1 Entrevista a François Hincker, La Nouvelle Critique, n° 11/112, fevereiro/março de 1978 (extrato). 2 porque no fundo é muito mais fácil para um intelectual ser progressista no terreno da política geral do que no terreno da política cultural, ou mais precisamente da política universitária, etc. Se você quiser, eu coloquei no jogo o que estava fora do jogo: os intelectuais estão sempre de acordo em deixar seu próprio jogo e suas próprias disputas fora do jogo. Assim, voltei à política a partir da constatação que a produção das representações do mundo social, que é uma dimensão fundamental da luta política, é o quasi-monopólio dos intelectuais: a luta pelas classificações sociais é uma dimensão capital da luta de classes e é através deste viés que a produção simbólica intervêm na luta política. As classes existem duas vezes, uma objetivamente e outra na representação social mais ou menos explícita que delas se fazem os agentes e que é um objeto de disputa. Se dissermos a alguém "isto está lhe acontecendo porque você tem uma relação infeliz com o seu pai" ou se lhe dissermos "isto está lhe acontecendo porque você é um proletário de quem a mais- valia é roubada", não é a mesma coisa. O terreno em que se luta para a imposição da maneira conveniente, justa, legítima, de falar o mundo social, não pode ser eternamente excluído da análise; mesmo se a pretensão ao discurso legítimo implica, tácita ou explicitamente, a recusa desta objetivação. Os que pretendem o monopólio do pensamento do mundo social não aceitam ser pensados sociologicamente. No entanto, me parece muito mais importante levantar a questão a respeito do que se joga neste jogo já que os que teriam interesse em levantá-la, isto é, os que delegam aos intelectuais, aos porta-vozes, a defesa de seus interesses, não possuem os meios para levantá-la, e os que se beneficiam desta delegação não têm interesse em colocá-la. É preciso levar a sério que os intelectuais são objeto de uma delegação de fato, delegação global e tácita que, com os responsáveis dos partidos, torna-se consciente e explícita, mantendo-se, ao mesmo tempo global (as pessoas remetem-se a eles), e analisar as condições sociais em que esta delegação é recebida e utilizada. P - Mas, pode-se falar da mesma maneira desta delegação que, em certa medida,não pode ser negável, quando se trata do trabalhador próximo ao 3 partido comunista ou do trabalhador ligado a um partido ou a um político reacionário? - Freqüentemente, a delegação é operada a partir de índices que não são aqueles que se imagina. Um operário pode se "reconhecer" na maneira de ser, no "estilo", no sotaque, na relação com a linguagem do militante comunista, muito mais do que em seu discurso que, às vezes, serviria muito mais para "esfriá-lo". Ele se diz: "Esse aí não recuará diante do patrão". Este "sentido de classe" elementar não é infalível. Portanto, sob esse aspecto, e mesmo no caso em que a delegação só tenha como fundamento uma espécie de "simpatia de classe", a diferença existe. Não podemos esquecer, porém, que em relação ao controle do contrato de delegação, do poder sobre a linguagem e as ações dos delegados, a diferença não é tão radical como se poderia desejar. As pessoas sofrem este desapossamento e quando pendem para a indiferença ou para posições conservadoras, é em geral porque, com ou sem razão, sentem-se cortados do universo dos delegados: "são todos iguais", "valem a mesma coisa". P - Ao mesmo tempo, ainda que o que você constata desapareça rapidamente, o comunista, mesmo silencioso no discurso, age: sua relação com a política não é da linguagem. - A ação depende em grande parte das palavras com as quais ela é falada. Por exemplo, as diferenças entre as lutas dos operários de "primeira geração", filhos de camponeses, e as dos operários filhos de operários, enraizados numa certa tradição, estão ligadas a diferenças de consciência política e portanto de linguagem. O problema dos porta-vozes é oferecer uma linguagem que permita aos indivíduos em questão universalizar suas experiências, sem no entanto excluí-los de fato da expressão de sua própria experiência, o que significa mais uma vez desapossá-los. Como tentei mostrar, o trabalho do militante consiste precisamente em transformar a aventura pessoal, individual ("fui demitido"), em caso particular de uma relação mais geral ("você foi demitido porque..."). Esta universalização passa necessariamente pelo conceito; portanto, traz o perigo da fórmula pronta, da linguagem automática e autônoma, da palavra ritual onde aqueles de quem se fala e para quem se fala não se reconhecem mais, como se diz. Esta palavra morta (estou pensando nas grandes palavras da linguagem política que permitem falar sem pensar em nada) bloqueia o pensamento, tanto o de quem a pronuncia quanto o daqueles a quem ela se dirige e que deveria mobilizar primeiro intelectualmente; 4 que deveria preparar para a crítica (inclusive a si mesma) e não somente para a adesão. P - É verdade que há um intelectual em cada militante, mas um militante não é um intelectual como qualquer outro, principalmente quando sua herança cultural não é aquela do intelectual. - Uma das condições para que ele não seja um intelectual como outro qualquer, insisto que se trata de uma condição entre outras, que se soma a tudo aquilo em que se costuma confiar como, por exemplo, o "controle das massas" (sobre o qual seria preciso perguntar em que condições ele poderia se exercer verdadeiramente,etc.), é também que ele esteja em condições de controlar a si mesmo (ou de ser controlado por seus concorrentes, o que é ainda mais seguro...) em nome de uma análise sobre o que é ser "intelectual", ter o monopólio do discurso sobre o mundo social, estar engajado num espaço de jogo, o espaço político com sua própria lógica, onde são investidos interesses de um tipo particular, etc. A sociologia dos intelectuais é uma contribuição à sócio-análise dos intelectuais: tem como função tornar difícil a relação facilmente triunfante que os intelectuais e os dirigentes têm com eles mesmos; lembrar que somos manipulados em nossas categorias de pensamento, em tudo aquilo que permite pensar e falar o mundo. Ela também deve chamar a atenção para o fato de que as tomadas de posição sobre o mundo social talvez devam algo às condições nas quais são produzidas, à lógica específica dos aparelhos políticos e do "jogo" político, da cooptação, da circulação de idéias, etc. P - O que me incomoda é que seu postulado da identidade entre militante político e intelectual perturba, interdita uma posição adequada das relações entre ação e teoria, consciência e prática, "base" e "cúpula", sobretudo entre militantes de origem operária e militantes de origem intelectual, sem falar nas relações entre classes - classe operária e camadas intelectuais. - De fato, há duas formas de discursos sobre o mundo social, muito diferentes. Isto pode ser visto muito bem no problema da previsão: se um intelectual comum, um sociólogo faz uma previsão falsa, isto não tem conseqüências, pois de fato ele só engaja a si mesmo, só envolve a si mesmo. Ao contrário, um dirigente político é alguém que tem o poder de fazer existir aquilo que ele diz; é a 5 característica da palavra de ordem. A linguagem do dirigente é uma linguagem autorizada (pelas próprias pessoas às quais ela se dirige), é portanto uma linguagem de autoridade, que exerce um poder, que pode dar vida ao que diz. Neste caso, o erro pode ser uma, falta. Sem dúvida, é isto que explica − sem nunca, em minha opinião, justificá-lo − que a linguagem política se consagre tão freqüentemente ao anátema, à excomungação, etc. ("traidor", "renegado", etc.). O intelectual "responsável" que se engana leva as pessoas que o seguem ao erro, porque sua palavra tem uma força na medida em que li acreditada. Pode ocorrer que uma coisa boa para aqueles por quem falo ("por" tendo sempre um duplo sentido, "a favor de" e "em lugar de"), pode ocorrer que essa coisa que poderia ser feita não se faça e, ao contrário, que uma coisa que não poderia se fazer se faça. Suas palavras contribuem a fazer a história, a mudar a história. Há várias maneiras que competem entre si de produzir a verdade e que tem cada uma seu ângulo de visão e seus limites. O intelectual "responsável", em nome de sua "responsabilidade", tende a reduzir seu pensamento pensante a um pensamento militante e pode ocorrer, o que freqüentemente é o caso, que aquilo que era uma estratégia provisória se torne habitus, maneira permanente de ser. O intelectual "livre" tem uma propensão ao terrorismo: ele levaria de bom grado para o campo político as guerras da verdade, que são guerras de vida ou de morte que ocorrem no campo intelectual ("se estou certo, você está errado"), mas que assumem uma forma inteiramente diferente quando o que está em jogo não é apenas a vida e a morte simbólicas. Parece-me capital para a política e para a ciência que os dois modos de produção concorrentes das representações do mundo social tenham igualmente direito à cidadania e, em todo caso, que o segundo não abdique diante do primeiro, somando o terrorismo ao simplismo, como se fez muito em certas épocas na relação entre os intelectuais e o partido comunista. Pode-se dizer que isto é óbvio, e pode-se em princípio concordar comigo muito facilmente, mas ao mesmo tempo sei que sociologicamente isto não é óbvio. No meu jargão, direi que é importante que o espaço onde é produzido o discurso sobre o mundo social continue a funcionar como um campo de luta onde o pólo dominante não esmague o pólo dominado, a ortodoxia não esmague a heresia. Porque neste domínio, enquanto houver luta, haverá história, isto é, esperança. Extraído de: BOURDIEU, Pierre. 1983. Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero. p. 49-53.
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