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Autora: Profa. Siomara Ferrite Pereira Pacheco Colaboradores: Profa. Cielo Festino Profa. Joana Ormundo Prof. Adilson Silva Oliveira Linguística Professora conteudista: Siomara Ferrite Pereira Pacheco Mestre em Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) e doutoranda pela mesma Instituição desde o início de 2010. Atualmente professora nas Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU). Além da experiência no nível superior, já lecionou no ensino básico, tanto em escolas particulares quanto em escola pública. Participa de bancas de correção como Enem, Enade, entre outras. © Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Universidade Paulista. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) P116l Pacheco, Siomara Ferrite Pereira Linguística / Siomara Ferrite Pereira Pacheco. – São Paulo, 2012. 100 p. il. Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e Pesquisas da UNIP, Série Didática, ano XVII, n. 2-045/12, ISSN 1517-9230. 1. Linguística. 2. Língua portuguesa. 3. Linguagem. I. Título. CDU 801 Prof. Dr. João Carlos Di Genio Reitor Prof. Fábio Romeu de Carvalho Vice-Reitor de Planejamento, Administração e Finanças Profa. Melânia Dalla Torre Vice-Reitora de Unidades Universitárias Prof. Dr. Yugo Okida Vice-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa Profa. Dra. Marília Ancona-Lopez Vice-Reitora de Graduação Unip Interativa – EaD Profa. Elisabete Brihy Prof. Marcelo Souza Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar Prof. Ivan Daliberto Frugoli Material Didático – EaD Comissão editorial: Dra. Angélica L. Carlini (UNIP) Dra. Divane Alves da Silva (UNIP) Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR) Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT) Dra. Valéria de Carvalho (UNIP) Apoio: Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos Projeto gráfico: Prof. Alexandre Ponzetto Revisão: Juliana Mendes Sumário Linguística APRESENTAÇÃO ......................................................................................................................................................7 INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................................8 Unidade I 1 LINGUAGEM, LÍNGUA E SOCIEDADE ..........................................................................................................9 2 OS ESTUDOS SOCIOLINGUÍSTICOS ........................................................................................................... 13 2.1 As contribuições de William Labov ............................................................................................... 13 2.1.1 A sociolinguística e sua área de atuação ...................................................................................... 15 3 VARIEDADES LINGUÍSTICAS ........................................................................................................................ 18 3.1 A heterogeneidade da língua e suas dimensões ..................................................................... 18 3.2 A variação linguística ......................................................................................................................... 21 3.2.1 A variação lexical .................................................................................................................................... 22 3.2.2 A variação diatópica no nível fonético .......................................................................................... 23 3.2.3 A variação diafásica ............................................................................................................................... 24 3.2.4 A variação morfológica ........................................................................................................................ 25 3.3 Variação e mudança linguística ..................................................................................................... 26 3.3.1 Mudanças na língua portuguesa...................................................................................................... 26 3.3.2 Mudanças linguísticas na língua inglesa ...................................................................................... 28 3.3.3 Outras variações na língua e questões variacionistas ............................................................. 28 4 VARIAÇÃO LINGUÍSTICA E ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA .................................................... 29 4.1 Variedade linguística e PCN ............................................................................................................. 29 Unidade II 5 FONÉTICA E FONOLOGIA ............................................................................................................................... 35 5.1 Consoantes do português ................................................................................................................. 37 5.2 Sons vocálicos ........................................................................................................................................ 41 5.3 Fonemas e alofones ............................................................................................................................. 44 5.4 A sílaba ..................................................................................................................................................... 45 5.5 Vogais do português ........................................................................................................................... 48 5.6 Fonologia e ortografia ........................................................................................................................ 49 6 MORFOLOGIA .................................................................................................................................................... 51 6.1 Morfemas e alomorfes ....................................................................................................................... 53 6.2 Processos de formação de palavras em português ................................................................ 54 6.3 Fonologia, morfologia e ensino-aprendizagem ....................................................................... 55 6.3.1 Ensino-aprendizagem de línguas estrangeiras ........................................................................... 56 Unidade III 7 SINTAXE E SEMÂNTICA ................................................................................................................................. 63 7.1 A semântica ............................................................................................................................................ 67 8 PERSPECTIVAS ESTRUTURALISTA, GERATIVISTA E DISCURSIVA CONFORME OS PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS ..............................................................................................71 8.1 Língua ou linguagem? .........................................................................................................................71 8.2 Perspectivas estruturalista e gerativista ..................................................................................... 72 8.3 Linguagem e prática social ............................................................................................................... 74 8.4 Linguagem e dialogismo ................................................................................................................... 75 8.5 Aquisição da linguagem ....................................................................................................................77 8.6 A perspectiva sociointeracionista .................................................................................................. 78 8.7 Linguagem e transformação social ............................................................................................... 80 8.8 Linguagem e produção de sentidos .............................................................................................. 81 8.9 O aluno como sujeito ativo de sua aprendizagem ................................................................. 81 8.10 A noção de erro na perspectiva linguística e da gramática ............................................. 82 8.11 A falsa premissa da deficiência linguística .............................................................................. 83 8.12 Conhecimento prévio do aluno e reflexão .............................................................................. 85 7 APRESENTAÇÃO Caro aluno, seja bem-vindo à disciplina Linguística, que passamos a apresentar-lhe para que possa ter uma visão do que encontrará ao longo deste material. Primeiramente, o foco da disciplina está no estudo das variedades linguísticas do português do Brasil, assim como nos conceitos básicos para a descrição da língua. Para completar o programa de estudos, teremos também algumas noções sobre os modos e as práticas de ensino de língua portuguesa e/ou outras línguas do ponto de vista da linguística. O objetivo geral da disciplina é demonstrar a relevância das reflexões sobre a linguagem, na perspectiva da ciência que se denomina linguística, tanto para o ensino da língua materna quanto para o de outras línguas, relacionando os conceitos teóricos ao processo de análise descritiva do idioma. Assim, esperamos que você, aluno, desenvolva a habilidade de observação e de análise da sua língua materna a partir de sua intuição linguística enquanto falante, relacionando-a aos conceitos que as teorias linguísticas propõem. É importante, ainda, que desenvolva uma postura crítico-reflexiva em relação ao uso da língua e ao seu papel social, assim como o raciocínio abstrato, tanto por meio de práticas discursivas quanto da análise do uso da língua em práticas sociais. Nesse contexto, é importante compreender o papel da linguística como instrumento da prática docente, além de desenvolver a capacidade de reflexão crítica sobre o ensino de línguas. Para atingirmos nossos objetivos, teremos como conteúdo: • Fatores socioculturais e linguagem: variedades linguísticas: situacionais, regionais, socioculturais (idade, sexo, jargões profissionais, escolaridade, contexto situacional, classe social etc.); variação linguística e mudança linguística; principais características das variedades linguísticas do português brasileiro; identificação de variedades linguísticas da língua portuguesa: fonológicas, sintáticas e semânticas. • Fonética: conceituação; fonética acústica, perceptual e articulatória; o aparelho fonador; a produção dos sons da fala; o alfabeto fonético internacional; classificação articulatória dos fonemas; modo de articulação; zona de articulação. • Fonologia: conceituação e elementos gerais; fonologia enquanto estudo dos sistemas fonológicos característicos de uma comunidade linguística; conceituação de fonemas, alofones e variações livres; identificação de fonemas, alofones e variações livres do português a partir das variedades linguísticas do português brasileiro; importância para o ensino e a aprendizagem de língua materna e língua estrangeira. 8 • Morfologia: conceituação e elementos gerais; morfologia e fonologia: a dupla articulação da linguagem; conceituação de morfemas e alomorfes; identificação de morfemas e alomorfes do português brasileiro; importância para o ensino e a aprendizagem de língua materna e língua estrangeira (inglês/espanhol). • Sintaxe: conceituação básica dos pontos de vista estruturalista, gerativista e discursivo; aspectos da sintaxe do português brasileiro considerados a partir das variedades linguísticas observadas pelos alunos; importância para o ensino e a aprendizagem de língua materna e língua estrangeira (inglês/espanhol). • Semântica: conceituação básica dos pontos de vista estruturalista, gerativista e discursivo; aspectos da semântica do português brasileiro considerados a partir das variedades linguísticas observadas pelos alunos; importância para o ensino e a aprendizagem de língua materna e língua estrangeira (inglês/espanhol). • Os níveis de análise linguística e as chamadas teorias do texto. INTRODUÇÃO A partir da apresentação dos objetivos e conteúdos de nossa disciplina, vamos falar um pouco sobre ela. Como se trata de uma disciplina específica, você, aluno, deve estar se perguntando do que ela trata, pois não é o mesmo que estudar gramática, por exemplo, ou literatura, não é mesmo? Então, pense que a linguística é a ciência que estuda a língua. Comparada a outras ciências, é relativamente nova porque ganhou expressão no início do século XX com os estudos propostos por Saussure, que foi professor em Genebra (Suíça) e cujas ideias levaram a uma mudança de paradigma, passando a configurar-se o que se conhece hoje por estruturalismo. Você iniciará o estudo tendo alguns conceitos básicos, por exemplo, a diferença entre língua e linguagem, que parecem a mesma coisa, mas têm suas peculiaridades. Em seguida, verá uma síntese dos estudos sociolinguísticos para, em seguida, ter contato com as principais áreas de descrição da língua: a fonética/fonologia, a morfologia e a sintaxe. São esses conceitos que o introduzirão na área que se denomina linguística, e você observará quão importante é essa ciência para a compreensão de outras áreas do conhecimento em nosso curso. 9 Re vi sã o: J ul ia na - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 30 /0 5/ 20 12 LINGUÍSTICA Unidade I Estudar a língua é considerar os vários fatores que podem influenciar os fenômenos de variação quanto ao sistema linguístico em uso. Todavia, além de saber o que pode produzir alterações, é importante descrever também em que nível – fonológico, mórfico, sintático, por exemplo – estas podem ocorrer. Além disso, o léxico pressupõe a língua em uso e pode também variar de acordo com algumas circunstâncias. Essas questões compõem a primeira unidade deste material. 1 LINGUAGEM, LÍNGUA E SOCIEDADE A linguagem é uma peculiaridade do ser humano que o distingue do animal irracional, uma vez que o homem elabora o seu código de comunicação, podendo interferir de acordo com as intenções que existem na situação comunicativa. Para tanto, dispõe de vários sistemas semióticos, entre eles o sistema linguístico, objeto de estudo de nossa disciplina. A linguística é definida, de modo geral, como a disciplina que estuda a linguagem. Mas o que é linguagem? Esse termo pode ter vários sentidos. Alguns linguistas atribuem-no a qualquer processo de comunicação, como a linguagem dos animais, a linguagem corporal, a linguagem computacional, a linguagem das artes, entre outras. Essa ciência privilegia bases teóricas e metodológicas interdisciplinares e multidisciplinares, tais como a aquisição da linguagem, a linguística de texto, a linguística do discurso, a linguística da conversação e a linguística da enunciação. A partir do prisma da pragmática, os estudiosos da língua voltam-se para o uso efetivo, de forma que abra novas perspectivas de investigação. Entende-se que a linguagem humana é definida por diferentes naturezas, tais como a cognitiva, a social, a ideológica, a cultural, a linguística, entre outras. Todas necessitam ser consideradas no ensino da língua. A linguística, enquanto ciência, apresenta diferentes abordagens teóricas que se diferenciam no modo de compreender o fenômeno da linguagem. Entre os estudiosos é necessário estabelecer a diferença entre línguae linguagem. Os seres humanos são os únicos dotados de linguagem como uma habilidade de se comunicar por meio da língua. Desse modo, o termo língua refere-se a um sistema de signos utilizado na comunicação em sociedade. Como o ser humano é um ser social e, portanto, múltiplo, o fenômeno da linguagem é abordado pelos linguistas, cientistas que estudam a língua, de várias maneiras, e cada abordagem incorpora características diferentes no tratamento da linguagem humana. 10 Unidade I Re vi sã o: J ul ia na - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 30 /0 5/ 20 12 Os estudos linguísticos passaram a ter expressão a partir de Saussure, na década de 1920, quando propôs um estudo da língua enquanto sistema, ou seja, ele e seus discípulos estudaram a língua em uma visão unidisciplinar, sem levar em conta o falante dessa língua. Observação Saussure foi o precursor dos estudos linguísticos na Suíça. Seus discípulos, alunos, publicaram mais tarde o livro Curso de linguística geral, em que reuniram a teoria do mestre. Todavia, a natureza da linguagem é heteróclita (multidisciplinar), apresentando várias faces: social, psíquica, histórica, antropológica etc., o que levaria cada uma a ser objeto de um estudo diferenciado, em razão do enfoque pressuposto. Observação Heteróclito: termo utilizado por Saussure para a linguagem, uma vez que seus estudos são da langue (língua enquanto sistema, conjunto de regras), e não da parole (língua em uso). Até a década de 1960, o objeto de estudo é a língua nessa visão unívoca, o que origina dois paradigmas, o estruturalista e o gerativo-transformacionalista. Até essa época, os estudos foram feitos na dimensão da frase, seja pelos estruturalistas, seja pelos gerativo-transformacionalistas. Para os primeiros, o objeto da linguística é o estudo do sistema da língua, e, para os outros, o objeto é a gramática da competência linguística de um falante ideal. Ambos operaram, metodologicamente, com a unidisciplinaridade, e o objeto examinado foi a língua fora do uso, tratada de forma ideal e abstrata. Todavia, a partir da década de 1960 ocorre um conjunto de insatisfações, na medida em que a dimensão da frase não é adequada para explicar a produtividade da linguagem humana. A mudança ocorrida nessa época implica que o objeto da linguística passe a ser o uso efetivo da língua, de forma que se investiguem os processos de produção relativos ao texto e ao discurso. Tal mudança de objeto implica mudança teórica e metodológica. No que se refere à mudança teórica, a linguagem torna-se complexa e exige uma diversidade de prismas para o seu tratamento, tais como o linguístico, o cognitivo, o social, o histórico, o cultural, o ideológico. No que se refere à mudança metodológica, necessária para o procedimento científico desses diferentes prismas, a unidisciplinaridade é substituída por interdisciplinaridade, multidisciplinaridade e transdisciplinaridade. Ainda na década de 1960, as análises transfrásticas (fase intermediária entre frase e texto) preconizam uma interdisciplinaridade porque os estudiosos desse período entendem que é preciso inserir o estudo 11 Re vi sã o: J ul ia na - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 30 /0 5/ 20 12 LINGUÍSTICA da semântica, o qual não era levado em consideração por estruturalistas e gerativistas. Tais análises ultrapassam o enunciado enquanto oração, ou seja, enquanto um conjunto de palavras organizadas de acordo com as regras gramaticais da língua. Observação Enunciado é o produto da enunciação, enquanto esta é o processo, o ato de fala. Assim, enunciado é o que se diz, e enunciação, o que se quer dizer. Foi a partir dos estudos de Benveniste que se iniciaram as análises transfrásticas, uma vez que ele postula que o “que se diz” não é “o que se quer dizer”. Seus estudos levam a diferenciar o enunciado da enunciação. Dessa forma, os que eram estruturalistas passam a tratar a fala como uma forma de ação sobre o outro. Assim, começam a trabalhar a linguagem levando em conta a argumentatividade. Saiba mais Para saber mais sobre esse assunto, leia as obras a seguir: BENVENISTE, E. Problemas de linguística geral. 5. ed. São Paulo: Pontes, 2008. v. 1. ______. Problemas de linguística geral. 2. ed. São Paulo: Pontes, 1989. v. 2. Nesse sentido, um dos estudiosos que trabalham esse enfoque e propõem modelos de análise é Ducrot (1987). No primeiro modelo, ele postula as noções de posto, pressuposto e subentendido, incluindo o primeiro no componente linguístico e os dois últimos no componente retórico. Já em seu segundo modelo, Ducrot insere os dois primeiros no componente linguístico e o último no componente retórico. Observação No primeiro modelo de Ducrot, posto corresponde ao dito (explícito), e pressuposto/subentendido, ao que se quer dizer (implícito). No segundo, posto/pressuposto estão explícitos, enquanto o subentendido está implícito. Outro momento que se configura nessa fase intermediária dos estudos linguísticos é o das gramáticas textuais, propostas pelos gerativistas, que postulam a competência textual, ou seja, a aplicação de 12 Unidade I Re vi sã o: J ul ia na - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 30 /0 5/ 20 12 regras a um texto pelo indivíduo, a fim de demonstrar tal competência. Trata-se, ainda, de um modelo ideacional, quer dizer, a produtividade encontra-se no texto, e não no falante da língua. O terceiro momento da fase intermediária tem como ponto de partida os filósofos de Oxford, que, saindo da unidisciplinaridade, postulam a não existência de relações lógicas entre o que se diz e o que se encontra no mundo. Trata-se, segundo eles, de uma relação analógica, e, nesse sentido, defendem a competência comunicativa, também ideacional ainda. Nesse contexto, a linguística textual instaura-se na década de 1970, a partir de insatisfações dos gramáticos de texto, que chegam à conclusão de que não há regras, mas estratégias para a produção e a interpretação de um texto. Assim, o sujeito passa a ter espaço, uma vez que se trabalha com a língua em uso e o método é observacional. Há duas vertentes desses estudos, que originarão a diversidade atualmente existente nas investigações cuja ciência-mãe seja a linguística. Uma delas é a análise do discurso, tanto a de linha francesa, cuja base são as ciências sociais, quanto a de linha anglo-saxônica, que se baseia nas ciências cognitivas. A outra vertente é a linguística de texto, que se formou a partir dos gramáticos de texto, os quais passaram a utilizar estratégias, e não regras, para explicar a produção de sentido nos textos. É interessante lembrar que, ao delimitar o objeto da linguística como ciência, Ferdinand de Saussure preferiu privilegiar o estudo da língua, em detrimento da fala. A língua era entendida, então, como “algo social” (SAUSSURE, 1972, p. 22), adquirida pelos indivíduos no convívio em sociedade. Para Saussure, a linguística enquanto ciência só poderia estudar a língua, por ser esta um sistema homogêneo e sistemático. Assim, apesar de o estruturalismo, estabelecido a partir das ideias de Saussure, considerar que é em sociedade que o indivíduo adquire o sistema linguístico, não houve, naquele momento, a preocupação com o papel social da linguagem. Como visto, as ideias de Saussure revolucionaram completamente o pensamento linguístico ocidental e foram publicadas no clássico Curso de linguística geral, obra póstuma compilada por dois discípulos dos três cursos de linguística geral ministrados por Saussure de 1906 a 1911 na Universidade de Genebra, onde era titular desde 1896 (CARVALHO, 2000, p. 23). De modo semelhante, a gramática gerativa, proposta pelo americano Noam Chomsky, no final da décadade 1950, assumiu como objeto de estudo a descrição e a explicação de algumas características do conhecimento linguístico adquirido nos primeiros anos de vida do ser humano, pela interação entre o ambiente linguístico (social) e a informação genética (inata), fora do ambiente escolar (NEGRÃO et al. in FIORIN, 2002, p. 96). A teoria linguística conhecida genericamente como gramática gerativa iniciou-se com a publicação de Syntactic Structures (Chomsky, 1957), livro que reuniu notas de um curso que Chomsky ministrava no Massachusetts Institute of Technology (MIT). 13 Re vi sã o: J ul ia na - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 30 /0 5/ 20 12 LINGUÍSTICA Observação Avram Noam Chomsky é professor de linguística no MIT. Seu nome está associado à criação da gramática gerativa transformacional, abordagem que revolucionou os estudos no domínio da linguística teórica. Chomsky postula que a comunidade linguística possui um conhecimento compartilhado sobre os enunciados que podem e os que não podem ser produzidos. Enquanto as teorias estruturalistas eram, em geral, explicitamente descritivas, a teoria de Chomsky pretendia-se explicativa, ou seja, os fenômenos deviam ser deduzidos de um conjunto de princípios gerais (NEGRÃO et al. in FIORIN, 2002, p. 113). Na sequência, estudaremos como os fatores sociolinguísticos passaram a fazer parte dos estudos linguísticos. 2 OS ESTUDOS SOCIOLINGUÍSTICOS Neste item abordaremos a relação entre os estudos linguísticos e os fatores socioculturais. Sabe-se que, embora o estudo da linguagem em si tenha surgido como prioridade, as relações entre linguagem e sociedade ganharam espaço como objeto de estudo a partir do estabelecimento da sociolinguística como área de investigação. Segundo Alkmim (2001, p. 28), em oposição às abordagens voltadas para os aspectos linguísticos em si, o interesse em investigar como linguagem e sociedade se relacionavam surgiu a partir de trabalhos apresentados em um congresso, organizado por William Bright, na Universidade da Califórnia, no ano de 1964. Os referidos trabalhos foram publicados em 1966 sob o título Sociolinguistics. Nessa publicação, o papel dos falantes em suas interações verbais e sociais é destacado por Bright, que relaciona a diversidade linguística a fatores como: • a identidade social do emissor ou falante; • a identidade social do receptor ou ouvinte; • o contexto social; • julgamento social distinto que os falantes fazem sobre o próprio comportamento linguístico e sobre o dos outros. 2.1 As contribuições de William Labov Antes mesmo do estabelecimento da sociolinguística como área de estudos linguísticos, trabalhos pioneiros relacionando linguagem e sociedade já preparavam a cena para a nova abordagem que começava a emergir. 14 Unidade I Re vi sã o: J ul ia na - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 30 /0 5/ 20 12 O nome de William Labov deve ser destacado, dada a importância de seus estudos para o desenvolvimento da teoria variacionista e, consequentemente, para os estudos sociolinguísticos. Saiba mais William Labov nasceu em 4 de dezembro de 1927 em Rutherford, Nova Jersey. Obteve seu ph.D. em 1964 na Universidade de Columbia, onde trabalhou como professor-assistente até 1970. Em 1971, tornou-se professor do Departamento de Linguística da Universidade da Pensilvânia. Sua grande contribuição para os estudos sociolinguísticos inclui, entre outras, publicações como The Social Stratification of English in New York City (1966), The Study of Nonstandard English (1969), Sociolinguistic Patterns (1972) - disponível em português: LABOV, W. Padrões sociolinguísticos. São Paulo: Parábola, 2008 -, Studies in Sociolinguistics by William Labov (2001), além do Atlas of North American English: Phonetics, Phonology and Sound Change (2006). Em um trabalho, publicado em 1963, sobre a comunidade da ilha de Martha’s Vineyard, no litoral de Massachusetts, Labov associou fatores como idade, sexo, ocupação, origem étnica e atitude ao comportamento linguístico manifesto dos nativos (ALKMIM, 2001). Em outro estudo, realizado em 1972, sobre o inglês falado na cidade de Nova Iorque, Labov mostrou que os falantes dessa localidade reconheciam diferenças da ordem de 10% no uso do -r pós-vocálico para fazer julgamentos acerca do status social dos falantes. O pesquisador constatou que deixar de pronunciar o -r e substituí-lo por um alongamento da vogal anterior era considerado sinal de baixo status social em Nova Iorque, de acordo com Beline (in FIORIN, 2002, p. 130). Labov continua a ser uma referência para estudos de cunho sociolinguístico. O linguista brasileiro Marcos Bagno inicia sua novela sociolinguística intitulada A língua de Eulália (publicada em 1997) citando Labov: O serviço mais útil que os linguistas podem prestar hoje é varrer a ilusão da “deficiência verbal” e oferecer uma noção mais adequada das relações entre dialetos padrão e não padrão (LABOV, 1969, apud BAGNO, 2006a). A importância do trabalho de Labov está justamente no enfoque dado a aspectos até então desconsiderados nos estudos linguísticos de inspiração estruturalista e gerativista, já aqui referidos: 15 Re vi sã o: J ul ia na - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 30 /0 5/ 20 12 LINGUÍSTICA o contexto social relacionado a fatores linguísticos. A seguir, enfocaremos a área de atuação da sociolinguística. 2.1.1 A sociolinguística e sua área de atuação A nova área de estudos foi denominada sociolinguística pela necessidade de englobar sua abrangência, isto é, para designar o social, sociedade = socio + linguístico. Lembrete A sociolinguística pode ser definida como área dentro da linguística que trata das relações entre linguagem e sociedade (ALKMIM, 2001, p. 61). O enfoque nas variáveis como objeto de estudo representou uma inovação na teoria da linguagem que, até então, considerava as unidades linguísticas (fones, fonemas, morfemas, sintagmas e orações) como unidades de natureza invariante, discreta e qualitativa. A unidade de análise criada pela sociolinguística tem uma natureza: • variável, por existirem duas ou mais maneiras de expressão; • contínua, porque certas alternativas assumem valores sociais negativos com base na distância da forma padrão; • quantitativa, uma vez que a relevância metodológica das variantes que constituem uma variável é determinada pela frequência percentual de cada uma em relação aos diferentes fatores que as condicionam (ALKMIM, 2001, p. 61). A preocupação em descrever e analisar a língua falada no contexto em que ela ocorre, isto é, em situações reais de uso, é o ponto de partida da sociolinguística. Basicamente essa área de investigação procura verificar de que modo fatores de natureza linguística e extralinguística estão correlacionados ao uso de variantes nos diferentes níveis da gramática de uma língua – a fonética, a morfologia e a sintaxe, segundo Beline (in FIORIN, 2002, p. 125). Observação A fonética estuda os sons como entidades físico-articulatórias isoladas. À fonética cabe descrever os sons da linguagem e analisar suas particularidades articulatórias (produção), acústicas (propriedades físicas das ondas sonoras) e perceptivas (efeitos físicos que provocam no ouvido). 16 Unidade I Re vi sã o: J ul ia na - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 30 /0 5/ 20 12 A morfologia é a parte da gramática que estuda a forma e a estrutura das palavras. A sintaxe preocupa-se com os padrões estruturais, com as relações recíprocas dos termos nas frases e das frases entre si, enfim, com todas as relações que ocorrem entre as unidades linguísticas (SAUTCHUK, 2004, p. 35).O termo extralinguístico é empregado para designar a relação dos fatores sociais e contextuais com os fatores linguísticos. Como já foi mencionado, é o que enfocam os estudos sociolinguísticos. No século XX, com os estudos de Saussure, já referidos anteriormente, houve um desenvolvimento da linguística enquanto ciência, todavia, nessa fase, os linguistas distinguiam uma linguística interna de uma linguística externa, e as investigações dos estruturalistas eram voltadas para a primeira. Essa linguística propriamente dita, a interna, teve como tarefa descrever o sistema formal, isto é, o sistema linguístico, numa perspectiva da língua como um sistema de signos convencionado na sociedade e por esta, que deveria ser descrito. Por privilegiar o caráter formal e estrutural do fenômeno linguístico, esse paradigma denominou-se estruturalismo, e todos os que seguiram o ponto de vista de Saussure foram designados estruturalistas. A sociolinguística, portanto, está situada no que se classificou inicialmente como linguística externa, pois os estudos da língua, nesse contexto, estão relacionados à área das ciências sociais, a qual estuda o homem como um ser social, e, nesse sentido, é preciso relacionar língua à cultura e à sociedade, perspectiva à qual estão vinculados os sociolinguistas. Nessa área de estudos linguísticos, tivemos importantes contribuições de pesquisadores, dos quais selecionamos alguns, que, por terem relevância no contexto, passamos a apresentar. Atualmente, no Brasil, há pesquisadores com trabalhos considerados de expressão nessa área; dentre eles, Marcos Bagno e Dino Preti. Marcos Bagno é linguista, além de escritor e tradutor, tendo recebido o título de doutor pela Universidade de São Paulo. Em sua pesquisa, dedica-se a investigar a influência de fatores socioculturais em relação à norma, principalmente no que diz respeito ao ensino de língua portuguesa e seu padrão normativo nas escolas brasileiras. Entre várias obras publicadas pelo autor, destaca-se A língua de Eulália – uma novela sociolinguística, publicada pela Editora Contexto, em que Bagno, por meio de uma linguagem acessível, apresenta fenômenos socioculturais no uso da língua. 17 Re vi sã o: J ul ia na - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 30 /0 5/ 20 12 LINGUÍSTICA Dino Preti é também linguista e professor, livre-docente pela Universidade de São Paulo desde 1982 (onde atuou até 1995, ano em que se aposentou, passando a lecionar na PUC/SP), considerado um dos introdutores da pesquisa sociolinguística no Brasil, sobretudo no que diz respeito aos estudos da oralidade e análise da conversação. Considera-se Luiz Antônio Marcuschi outro pesquisador de grande expressão nessa área, atuando em outra região do Brasil, uma vez que seu trabalho concentrou-se na Universidade Federal de Pernambuco. O Projeto Norma Urbana Culta (NURC), no Estado de São Paulo, deve sua origem e desenvolvimento ao professor doutor Dino Preti, que foi mais que um precursor, formando um grupo de pesquisa que se multiplicou em outros pontos do Brasil, resultando, assim, em várias publicações. Preti é, ainda, organizador da série Projetos Paralelos, que em 2009 chegou à nona edição. Atualmente, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Dino Preti atua nas seguintes linhas de pesquisa: “Análise da Conversação”; “Estudos do Discurso em Língua Portuguesa” e “Texto e Discurso nas Modalidades Oral e Escrita”. Nessa instituição, ministra as seguintes disciplinas: “Variações Linguísticas no Português do Brasil”, “A Gíria do Brasil”, “Língua Oral e Diálogo Literário” e “Análise da Conversação no Português do Brasil Fonte: Bagno (2007); Urbano, Dias e Leite (2001). O objeto de estudo da área que se denomina sociolinguística é a língua falada, ou seja, a língua em seu uso efetivo, em que se deve considerar o contexto social. Neste, há o que os sociolinguistas chamam de comunidade linguística, a qual não se define por uma localização geográfica, mas por características comuns na realização da fala de uma língua. Ao investigar as comunidades linguísticas, os sociolinguistas deram-se conta de que há variação no uso do código linguístico e esta pode ser descrita tanto do ponto de vista interno (da própria língua) quanto do ponto de vista externo (fatores que determinam essa variação). É disso que passaremos a tratar. A microlinguística corresponde aos estudos que se preocupam com a língua em si, ou seja, a língua enquanto código, sistema. Esses estudos dividem-se em fonética e fonologia, sintaxe, morfologia, semântica e lexicologia. Em contraposição, a macrolinguística prevê uma visão inter, multi e transdisciplinar, em que a linguística relaciona-se a outras áreas do conhecimento. Daí a denominação também diversificada desses estudos: psicolinguística, sociolinguística, linguística antropológica, dialetologia, linguística matemática e computacional, estilística, etnolinguística, entre outras. 18 Unidade I Re vi sã o: J ul ia na - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 30 /0 5/ 20 12 É preciso considerar, então, que esse código chamado língua portuguesa, no Brasil (sem levar em conta outros países), apresenta diversidade de uso. Basta pensarmos no falante que vive no sertão nordestino e no falante que vive em uma metrópole como São Paulo, por exemplo. 3 VARIEDADES LINGUÍSTICAS 3.1 A heterogeneidade da língua e suas dimensões Os linguistas variacionistas, ou sociolinguistas, interessam-se pela heterogeneidade da língua, isto é, pelas variedades linguísticas. Estas estão presentes dentro da própria comunidade linguística sob diversas formas. Observação A comunidade linguística define-se pelo conjunto de indivíduos que se relacionam por meio de várias redes comunicativas e que têm seu comportamento verbal orientado por um mesmo conjunto de regras, segundo Alkmim (2001). É certo afirmar que as línguas variam conforme o espaço geográfico, de acordo com Beline (in FIORIN, 2002, p. 122). Por isso, mesmo havendo semelhanças entre línguas de origem latina, como o português, o espanhol e o italiano, estas são línguas distintas faladas em países específicos. Em um mesmo país, podem existir também diferentes povos que falam idiomas diferentes daquele utilizado como língua oficial. Há, ainda, povos de diferentes regiões que falam idiomas distintos, como é o caso do basco, que é falado em uma região ao norte da Espanha (BELINE in FIORIN, 2002, p. 121). Um dos fatores que influem na variedade é a localização geográfica. Todos concordam que o modo de falar português no Brasil varia de acordo com a região. Frequentemente os falantes de português se deparam com falantes de regiões distintas da sua e logo reconhecem variedades de pronúncia, de palavras e de ordem de palavras. Paulistas podem perceber o -r aspirado dos cariocas, por exemplo, que difere do modo como o mesmo som é articulado em São Paulo. Cariocas, por sua vez, podem dizer, por exemplo, que uma pessoa é do Rio Grande do Sul pelo fato de ela usar palavras como guri. Gaúchos podem perceber a ordem de uma oração negativa como típica dos baianos, por exemplo, “é não”, em vez de “não é”, e assim por diante. Portanto, pode-se dizer que a variedade permeia nossa língua portuguesa. Além disso, o português falado em Portugal também constitui uma variedade da língua portuguesa, no que se refere às diferenças de pronúncia, de palavras ou de ordem de palavras. Por isso, muitos brasileiros sentem dificuldades de compreender os portugueses, e o inverso também é verdadeiro. Veja os exemplos a seguir: 19 Re vi sã o: J ul ia na - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 30 /0 5/ 20 12 LINGUÍSTICA [...] no Brasil dizemos estou falando com você; em Portugaleles dizem estou a falar consigo. [...] O português chama de saloio aquele habitante da zona rural, que no Brasil [é chamado] de caipira [...]. [...] [Em Portugal] cuecas [...] são as calcinhas das brasileiras (BAGNO, 2006a, p. 19). O diagrama a seguir ajuda a entender melhor os diferentes modos como as variedades linguísticas se manifestam: Variedades linguísticas Diferentes línguas Basco = falado em uma pequena região da Espanha Diferentes línguas Diferentes línguas Diferentes países Diferentes regiões Diferentes povos em um mesmo país Diferentes cidades Diferentes modos de falar uma mesma língua Português falado em SP versus português falado no RJ Povos indígenas em suas comunidades Brasil = português EUA = inglês Figura 1 – Variedades linguísticas Note que estar familiarizado com determinada variedade decorre justamente da inserção em certo contexto social, que a usa regularmente. Por isso, o fato de um falante estranhar alguma variedade indica simplesmente que não está familiarizado com ela. A perspectiva variacionista, desenvolvida pela sociolinguística, defende que não existem variedades “melhores” ou “piores”. Todas integram o fenômeno linguístico. No Brasil essa variedade pode ser notada, principalmente, quando se trata da variação diatópica, a que distingue os falares do paulista, do nordestino, do mineiro e assim por diante. Nosso país, em sua 20 Unidade I Re vi sã o: J ul ia na - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 30 /0 5/ 20 12 grande dimensão territorial, abarca uma diversidade muito grande de modos de expressão da mesma língua, a portuguesa, que é o nosso idioma oficial. Essa variedade também pode ser notada entre os falantes que têm acesso à escolaridade e os que não têm. Esse fator é responsável, inclusive, pelo preconceito, um tema abordado por Marcos Bagno em sua obra para mostrar que o preconceito linguístico nada mais é que a consequência do preconceito social. Há um padrão de uso da língua instituído pela classe de prestígio, e aquele falante que foge a esse padrão é discriminado. O texto a seguir ilustra as divergências culturais que existem entre as regiões do país. Entretanto, essas diferenças não chegam a caracterizar dialetos no Brasil, uma vez que nos aceitamos, apesar das “intrigas”, pois podemos até dizer que temos hoje o que os linguistas chamam de português brasileiro (PB). Cariocas e paulistanos Se até irmãos brigam, por que não dois vizinhos tão desiguais? Ivan Ângelo Uma das coisas que divertem o visitante neutro, em São Paulo, é a pendenga dos nativos com os cariocas. Os motivos perdem-se na bruma dos tempos, inútil procurá-los. Seria incorreto dizer: os santos não combinam. Não há no mundo católico notícia de divergências entre São Sebastião e São Paulo, nem entre seus devotos. Quem está de fora assiste aos embates com um sorriso e procura, não no episódico, mas no permanente, entender o que os separa. Quem sabe há alguma explicação no jeito de ser? Se até irmãos se hostilizam por ter personalidades conflitantes, que dirá dois vizinhos? Observam os neutros que ser carioca é mais um comportamento do que uma naturalidade. Há pessoas que nascem cariocas em Bauru, Rolândia, Florianópolis ou Quixadá. Quando vão para o Rio se descobrem subitamente cariocas: folgados, falantes, espertos. Conheci um sujeito em Minas que tantas fez que acabou ficando com o apelido de “Carioca”. Jurava que era capixaba. Ora, capixabas são mineiros com praia, nada a ver. Ele pode ter nascido no Espírito Santo, mas era carioca e não sabia. Outro, que vi no bonde de Santa Teresa, no Rio, ostentava bigodes de cantor de ópera, grandiloquentes, e ria para os passageiros, falava alto: - Eu sou gaiato! Gosto disso! Trago estes bigodes porque sou gaiato! Sou um português gaiato! Engano dele. Era carioca. Já paulistanos não nascem em Goiás ou no Pará. Eles se formam na sua cidade mesmo, em trabalhosa aprendizagem. Ficam diferentes para sempre, e são reconhecidos até pelo 21 Re vi sã o: J ul ia na - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 30 /0 5/ 20 12 LINGUÍSTICA andar. Não batem pernas à toa; andam atarefados, sabem para onde vão, e está indo. Não se adaptam a outra cidade, porque em todo lugar lhes falta alguma coisa. Não é paisagem (que nem têm), como o mineiro que sonha com montanhas, ou o carioca que anseia pelo mar. É a própria cidade que lhes falta, o tumulto. Talvez uma dose diária de gás carbônico, viciados. O carioca ganhou a sua paisagem, herdou da natureza uma obra perfeita. Com verbas do reino, embelezou-a ainda mais. Mora num cartão-postal maltratado. O paulistano teve de fazer tudo a sua custa, e refaz, insatisfeito, e muitas vezes erra, desmancha, faz de novo, e esquece cores, mistura formas, épocas... O que ele fez tem a imperfeição e a inquietação do humano. Por isso se orgulha. Reparem nas roupas. O carioca se veste para si, privilegia o conforto. O paulistano se veste para o olhar do outro, procura um efeito, valoriza o social. O morador clássico de São Paulo, aquele que lhe dá o estilo, tem o espírito do aventureiro e a moral do conservador; vive a ousadia no longo prazo e a cautela no aqui e agora. É um homem do interior, esteve cercado de matos, teve de abrir com as mãos o próprio panorama. Enquanto não o fazia, criou o hábito de olhar para dentro de si. O do Rio tem o espírito batido de ventos, sal marinho no sangue. Caminha à vela. É liberal porque ganhou cedo a corte, com suas licenças. O horizonte foi-lhe oferecido, teve desde sempre, para o espraiar-se dos olhos, o espaço sem portas do mar. Ficou folgazão. Um dia a sorte dele se mudou para Brasília. Acostumado, manteve-se fiel a seu modo de ser. O dinheiro sumiu, não o espírito. No caminho inverso, o matuto enriquecido de Piratininga foi acrescentando alma ao bem que tinha. Não queria apenas fortunas, mas arte e cultura, e viu que era bom. Estrangeiros deram um toque cosmopolita ao caráter paulistano. Aquele não era um visitante em férias, como no Rio, mas um colega, um braço para empurrar o carro. Nasceu uma relação de troca e cumplicidade. Compromisso, prazo, cobrança, horário tornaram-se traços locais. Já o carioca não esquenta. Poderia ser por aí? Fonte: ÂNGELO, I. Cariocas e paulistanos. Originalmente publicada em Veja São Paulo, São Paulo, ago. 1999. Republicada em coletânea comemorativa aos 450 anos da cidade. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/idade/ exclusivo/vejasp/450_anos/index.html>. Acesso em: 18 abr. 2012. 3.2 A variação linguística As línguas variam em diversos níveis. Cabe lembrar, entretanto, que as variações internas da língua são determinadas por fatores extralinguísticos, que se somam aos fatores linguísticos. 22 Unidade I Re vi sã o: J ul ia na - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 30 /0 5/ 20 12 Os primeiros dizem respeito, por exemplo, ao nível social, ao sexo, à escolaridade, à localização geográfica, enfim, a fatores que estão fora da língua, mas determinam sua variação. Já o segundo grupo de fatores, os internos, está relacionado aos níveis linguísticos – fonético, mórfico, sintático, semântico – os quais podem apresentar variantes no uso da língua. Em sua obra intitulada A língua de Eulália: uma novela sociolinguística, Marcos Bagno (2006a) descreve essa variação linguística, exemplificando fenômenos como o rotacismo, que compreende a troca do /l/ por /r/ em sílabas intermediárias, como em alface, cuja variante é [a r f a s i]. Do ponto de vista fonético (talvez a diversidade mais evidente entre os falantes), um indivíduo que vive na primeira região pronunciará o [r] de porta diferentemente,bem como haverá outras realizações do mesmo fonema (variantes) para indivíduos de outras regiões do país. Todavia, não é apenas quanto à fonética que se podem observar a variação e a diversidade linguísticas. Quando se trata de léxico, por exemplo, podem também ocorrer variantes. O que é mandioca para uns pode ser macaxeira ou aipim para outros. O pivete de São Paulo pode ser o guri do Rio Grande do Sul. No nível sintático, é uma “marca” do falante não escolarizado, por exemplo, indicar o plural das palavras apenas por um dos elementos do sintagma, resultando em sentenças como “Os menino vai com você”. Veja que o plural foi determinado apenas pelo artigo, permanecendo o substantivo e o verbo no singular. Esses fatos identificados na investigação do uso da língua são observados por Bagno em sua obra, como dito anteriormente. É sobre essa variação que falaremos em seguida. 3.2.1 A variação lexical Como visto, as línguas variam em relação às palavras usadas por uma comunidade linguística. Tomando como exemplo o português falado no Brasil, podemos afirmar que há, de fato, uma variação de uso de certas palavras para designar a mesma coisa, dependendo, é claro, da região. Beline (in FIORIN, 2002, p. 122) apresenta o exemplo do termo jerimum, usado como regionalismo do nordeste, que corresponde a abóbora nos estados do sul e do sudeste do Brasil. Todo falante do português é capaz de reconhecer tanto jerimum quanto abóbora como palavras de sua língua materna, pois tanto os sons quanto o padrão silábico são típicos do português. Exemplo: “É abóbora?” “É jerimum, oxente!” Logo, um mesmo elemento do mundo enunciado em uma língua pode ser referido por mais de uma palavra dessa língua em razão de questões geográficas. É o que se chama variação diatópica. Nesse 23 Re vi sã o: J ul ia na - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 30 /0 5/ 20 12 LINGUÍSTICA tipo de variação, a mudança ocorre em relação ao termo de acordo com a região, mas o elemento a que, no exemplo citado, jerimum e abóbora se referem tem de ser obrigatoriamente o mesmo. O que varia, nesse caso, é o léxico usado, segundo Beline (in FIORIN, 2002, p. 122). Esse tipo de variação não se dá apenas pela localização geográfica. Se pensarmos, por exemplo, em grupos diferentes na sociedade, veremos que há diferença de vocabulário de um grupo para outro. Os jovens, em sua maioria, caracterizam-se por usarem gírias, as quais podem modificar-se de uma comunidade linguística para outra, assim como podem se atualizar ao longo do tempo. Do mesmo modo, os profissionais de cada área de trabalho podem ter um vocabulário específico a cada uma delas, o qual conhecemos por “jargão”. 3.2.2 A variação diatópica no nível fonético Ainda em relação à variação de palavras de acordo com a localização geográfica, é importante lembrar que um mesmo vocábulo pode ter diferentes pronúncias. Nesse caso, temos a chamada variação diatópica no nível fonético, pois, em uma mesma língua, um mesmo termo pode ser pronunciado de formas diferentes, dependendo da região do falante. Como já foi mencionado, os cariocas são conhecidos por aspirar o -r. O modo de falar dos cariocas, assim como o dos mineiros, baianos etc., enfim, de pessoas de diferentes regiões do Brasil, é característico e permite identificar a origem dessas pessoas. É a comunidade linguística que garante a manutenção de determinado modo de falar. Vejamos um exemplo desse tipo de variação: “O marrrrr esssshhtá demaishhh!!!” Nesse exemplo, a grafia múltipla representa a “marcação” desse som na pronúncia. A região do falante também define sua pronúncia, como se pode observar a seguir: Os limites da fala do carioca são definidos em parte pela pronúncia chiante do -s em final de sílaba, assim como pela aspiração do -r em final de sílaba. A fala do carioca é da maneira que é porque a comunicação entre os membros da comunidade de fala carioca é muito mais intensa do que a comunicação com membros de outras comunidades, o que leva à manutenção de suas características linguísticas, a falta de contato linguístico entre comunidades favorece o desenvolvimento de diferenças linguísticas. Tendemos a falar como aquelas pessoas com quem mais falamos (BELINE in FIORIN, 2002, p. 129). No que se refere ao modo de falar, é interessante acrescentar que o sotaque, que nada mais é que a percepção da variação, é responsável por diversas reações por parte dos ouvintes, seja de aceitação, de surpresa ou até de incômodo. Do mesmo modo que as pessoas tendem a identificar-se com o sotaque 24 Unidade I Re vi sã o: J ul ia na - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 30 /0 5/ 20 12 de sua região, podem demonstrar certo estranhamento, ou até mesmo rejeição, a um sotaque distinto do seu. Nesse sentido, postula-se que: As atitudes linguísticas não estão delimitadas apenas por fronteiras geográficas, mas também por fronteiras sociais. Não assumimos características linguísticas daqueles de que, de algum modo, não gostamos ou daqueles de quem queremos nos distanciar ou ainda daqueles com quem não queremos ser parecidos (BELINE in FIORIN, 2002, p. 129). É mesmo comum achar que “os outros” é que têm sotaque, e não nós. Isso ocorre porque um falante de determinada região está tão habituado a um certo modo de falar que não se dá conta de que o sotaque apenas sinaliza uma variação linguística de sua própria língua materna. Observa-se, então, que há, de fato, uma relação entre fatores sociais e linguagem. 3.2.3 A variação diafásica As pessoas também podem variar seu modo de falar dependendo da situação ou do contexto social em que se encontram. Considerar o contexto social pode remeter a informações interessantes sobre a atitude linguística de um falante, como se pode verificar no seguinte exemplo: “Valei-me, meu Senhor do Bonfim! Que situação!!!” A variação diafásica ocorre em virtude da situação comunicativa. Um falante não tem o mesmo comportamento linguístico quando, por exemplo, está conversando com amigos em um bar e quando está em uma entrevista de emprego. Pelo menos é o que pressupõe a prática. Isso ocorre porque uma situação com amigos é, por si, informal, ao passo que uma entrevista de emprego é, sem dúvida, uma situação formal. Assim, é possível verificar que o falante tende a adequar sua linguagem ao contexto e, consequentemente, ao seu interlocutor. Nesse caso, temos uma variação diafásica, aquela que é caracterizada pela situação de uso da língua. A linguagem usada em determinado contexto pode ser responsável pela impressão que o falante causa em seu interlocutor. Em termos práticos, podemos dizer que o objetivo comunicativo pode ou não ser atingido de acordo com a linguagem usada. É pertinente observar que todo contexto exige um papel específico do falante, que, por sua vez, procura cumprir determinado papel em relação à atitude linguística. Assim, pode-se afirmar que o uso efetivo de variedades linguísticas significa saber adequar o modo de falar a cada contexto, seja ele familiar, de trabalho etc. Isso faz parte da habilidade comunicativa do falante. 25 Re vi sã o: J ul ia na - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 30 /0 5/ 20 12 LINGUÍSTICA 3.2.4 A variação morfológica No que diz respeito ao uso das palavras, verificamos que, em uma situação informal, o falante de português pode, por exemplo, omitir o final das palavras, por exemplo, o -r, no caso dos verbos. Desse modo, ele pode pronunciar o verbo fazer como “fazê”, levar como “levá” e assim por diante. A ausência do -r causa também uma mudança de pronúncia da vogal final, que tende a ser acentuada. No entanto, nesse caso não se trata de uma simples variação fonética, isto é, de pronúncia, pois esse -rfinal constitui um morfema na palavra, trata-se do morfema que indica a desinência modo-temporal do verbo (o infinitivo). Vejamos um exemplo: “E aí, galera!! Vamo fazê uma festa!” No exemplo, houve a supressão do morfema que indica plural no verbo “vamo”, assim como houve a supressão do morfema que indica infinitivo no verbo “fazê”. Lembre-se de que esse tipo de variação não se dá simplesmente em virtude da região (mudança diatópica), pois pode ocorrer com falantes de Minas Gerais, de São Paulo, do Rio de Janeiro, enfim, de qualquer região do Brasil. A ausência ou a presença do -r final em verbos no infinitivo é uma variação morfológica, pois há uma mudança na estrutura da palavra. A variação morfológica é, portanto, caracterizada pela presença ou ausência de determinado morfema e pode ocorrer quando o falante está numa situação informal (por exemplo, numa conversa com amigos falando sobre futebol). Nesse caso, seria uma variação diafásica. Lembrete Morfema é o elemento originário em que se concentra a significação. A partir dele, podemos formar palavras com significado semelhante. Nas palavras certo, certas, incerteza e certamente, o morfema é cert-. Uma outra hipótese de uso da variante diafásica pode ocorrer em razão do nível de escolaridade do falante. É importante ressaltar que o limite da variação individual é estabelecido pelo contato do falante com outros de sua comunidade, pois, uma vez que o indivíduo vive inserido num grupo, deverá haver semelhanças entre a língua que ele fala e a que os outros membros falam. Caso contrário, ocorreria um caos linguístico, isto é, os falantes não se entenderiam (BELINE in FIORIN, 2002, p. 128). 26 Unidade I Re vi sã o: J ul ia na - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 30 /0 5/ 20 12 Vejamos alguns exemplos de variação no quadro a seguir: Quadro 1 – Exemplos de variação linguística Variação geográfica ou diatópica Diferentes países Diferentes regiões em um mesmo país Planos Português Brasileiro (PB) Português Europeu (PE) Português do Brasil Nordeste Sudeste Lexical Caipira Saloio Jerimum Abóbora Fonético Sei [‘sey] Sâi[‘s Ây] “melado“ pronunciado como vogal aberta “melado” pronunciado como vogal fechada Sintático Estou falando com você Estou a falar consigo “Vou não” “Não vou” Variação social ou diastrática Classe social Grupos situados abaixo na escala social • “nós ama” – simplificação das conjugações verbais • “froco” [r] em lugar de [l] em grupos consonantais Grupos situados acima na escala social • “nós amamos” • “floco” Idade Uso de gírias como “maneiro”, “esperto” denota faixa etária jovem Sexo Duração de vogais como recurso expressivo, como em “Maaaravilhoso” costuma ocorrer na fala de mulheres assim como o uso frequente de diminutivos “bonitinho” “gracinha”. Situação ou contexto social Formalidade Vamos fazer isso. Informalidade A gente vai fazê isso. Fonte: Bagno (2000); Beline in Fiorin (2002). A partir dos exemplos citados, é possível notar, portanto, que fatores socioculturais e linguagem relacionam-se de diversas maneiras, o que demonstra a relevância dos estudos de natureza sociolinguística. 3.3 Variação e mudança linguística A forma padrão de uma língua varia também conforme a época, que determina a padronização. Como as línguas mudam incessantemente, a definição do “certo”, do “agradável” e do “adequado” também (ALKMIM, 2001). 3.3.1 Mudanças na língua portuguesa Basta um falante de português entrar em contato com textos de épocas passadas para constatar que a língua portuguesa mudou. Todas as línguas sofrem modificações ao longo do tempo, e a língua escrita registra tais mudanças. Veja o exemplo a seguir: “Onde o profeta jaz, que a lei pubrica” (VII, 34) (Trecho de Os lusíadas, de Camões, in BAGNO, 2000). 27 Re vi sã o: J ul ia na - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 30 /0 5/ 20 12 LINGUÍSTICA Termos como pubrica, atualmente considerado um erro em português, são encontrados em Os lusíadas, de Camões (1572). Lembrete Não existe registro da vida de Camões, considerado um dos maiores poetas portugueses. Provavelmente tenha nascido em 1525, em Lisboa. Seu poema Os Lusíadas conta a viagem de Vasco da Gama. Alkmim (2001, p. 41) cita ainda formas como “dereito”, “despois” e “frecha”, encontradas no texto da carta de Pero Vaz de Caminha, de 1500, para exemplificar mudanças linguísticas ocorridas na língua portuguesa. Observação Pero Vaz de Caminha foi um escritor português que se notabilizou nas funções de escrivão da armada de Pedro Álvares Cabral. Confira, a seguir, um trecho da Carta de Pero Vaz de Caminha na ortografia original e, em seguida, na versão com a ortografia atualizada, a fim de observar as mudanças ocorridas. (1) Snõr (2) posto que o capitam moor desta vossa frota e asy os outros capitaães (3) screpuam a vossa alteza a noua do achamento desta vossa terra noua (4) que se ora neesta nauegaçom achou, nom leixarey tambem de dar disso (5) minha comta a vossa alteza asy como eu milhor poder (6) ajmda que pera o bem contar e falar o saiba pior que todos fazer! (1) Senhor, (2) posto que o capitão-mor desta vossa frota, e assim os outros capitães (3) escrevam a Vossa Alteza a notícia do achamento desta vossa terra nova, (4) que se agora nesta navegação achou, não deixarei de também dar disso (5) minha conta a Vossa Alteza, assim como eu melhor puder, (6) ainda que para o bem contar e falar — o saiba pior que todos fazer! (Alkmim, 2001, p. 41) Dentre as diversas mudanças observadas no trecho citado, podemos listar: 28 Unidade I Re vi sã o: J ul ia na - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 30 /0 5/ 20 12 Quadro 2 – Comparação das grafias presentes na carta de Caminha com as usadas atualmente Ocorrência Grafia na carta Grafia atual Presença de vogais dobradas capitaães (linha 2) neesta (linha 4) capitães nesta Formas desusadas de palavras em uso asy (linhas 2 e 5) noua (linha 3) pera (linha 6) nauegaçom (linha 4) assim nova para navegação Arcaísmo lexical achamento (linha 3) achamento (= descobrimento) Fonte: Alkmim (2001, p. 41). 3.3.2 Mudanças linguísticas na língua inglesa O inglês, como conhecemos hoje, derivou de dialetos germânicos, do latim e do francês e formou-se durante um período de invasões que culminou com a criação do que hoje conhecemos como Reino Unido da Grã-Bretanha. Para mostrar algumas mudanças ocorridas no português, vejamos o quadro a seguir: Quadro 3 – Comparação entre mudanças ocorridas no português e em outras línguas Latim Francês Espanhol Português Ecclesia Église Iglesia Igreja Blasiu Blaise Blas Brás Plaga Plage Playa Praia Sclavu Esclave Sclavo Escravo Fluxu Flou Flojo Frouxo Fonte: Bagno (2000, p. 44). Portanto, os textos escritos no passado são a prova viva de que as línguas mudam. É por meio de documentos, como os que foram apresentados, que podemos realizar estudos acerca de mudanças nas línguas. 3.3.3 Outras variações na língua e questões variacionistas Além das variações que ocorrem no nível da palavra por causa da região do falante, do contexto e do grau de escolaridade, existe ainda um outro tipo de variação linguística que se dá em virtude da posição dos termos em uma oração. Esse tipo de variação é chamado de variação sintática. Como se sabe, a 29 Re vi sã o: J ul ia na - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 30 /0 5/ 20 12 LINGUÍSTICA sintaxe estuda os padrões estruturais, as relações recíprocas dos termos nas frases e das frases entre si. Em português, poderíamos ter uma oração negativacom, pelo menos, três variações: • “Eu não quero.” • “Quero não.” • “Não quero não.” No entanto, a variação sintática não é tão facilmente definida. Em relação ao uso do advérbio de negação, citado anteriormente, Beline (in FIORIN, 2002, p. 124) observa que o sentido de uma oração como a terceira, que apresenta uma dupla negação, é, de algum modo, diferente. Isso ocorre porque a dupla negação confere mais ênfase ao sentido da oração, com uso restrito em alguns contextos. Nesse caso, não teríamos um caso de variação sintática, pois não existe uma equivalência total; o que existe são contextos diferentes em que os enunciados podem ocorrer. Da mesma forma, uma variação lexical só pode ser considerada como tal se diferentes vocábulos forem usados para designar exatamente o mesmo elemento. No exemplo apresentado anteriormente, das palavras jerimum e abóbora, só será possível considerar a variação lexical se os vocábulos forem sinônimos perfeitos uns dos outros e, portanto, variantes de uma variável. Caso se constate que jerimum refere-se a um tipo determinado de abóbora, não podemos considerar uma variação lexical (BELINE in FIORIN, 2002, p. 124). Essas são questões essenciais para um linguista variacionista. 4 VARIAÇÃO LINGUÍSTICA E ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA A questão da variação linguística é fundamental no que se refere ao processo de ensino-aprendizagem de línguas. O professor deve estar a par desse fato para tirar o máximo de proveito dele em suas aulas. Além disso, essa questão está prevista nos Parâmetros Curriculares Nacionais, cujas diretrizes servem para nortear as práticas pedagógicas do ensino oficial, como discutido a seguir. 4.1 Variedade linguística e PCN A variedade linguística é uma realidade oficialmente reconhecida no âmbito governamental. De fato, ela está prevista nos Parâmetros Curriculares Nacionais, conhecidos como PCN, publicados em 1998 pelo Ministério da Educação. Os PCN descrevem a variação como “constitutiva das línguas humanas”. Tais afirmações se sustentam, evidentemente, em teorias linguísticas e estudos aqui discutidos, que demonstraram a variação como um fato incontestável, inerente ao fenômeno linguístico e que, por isso, não pode ser ignorado quando se fala em parâmetros utilizados para regular e direcionar procedimentos pedagógicos de ensino da língua portuguesa. 30 Unidade I Re vi sã o: J ul ia na - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 30 /0 5/ 20 12 A constatação de que as línguas variam traz implicações para o processo de ensino-aprendizagem da língua materna de várias formas. Sabemos, por exemplo, que a expressão linguística é uma forma de interação social e que os falantes podem julgar de forma positiva ou negativa seus interlocutores a partir do modo como falam. Lembrete “Algumas formas de expressão podem estigmatizar socialmente seus falantes, enquanto outras podem valorizá-los socialmente” (ALKMIM, 2001, p. 67). Consequentemente, o ensino de língua portuguesa pode servir como um instrumento para promover maior respeito a quaisquer tipos de variação, considerando: • a necessidade de oferecer iguais condições de aprendizagem a falantes de todas as classes sociais, fazendo que haja respeito mútuo entre as classes; • a democratização de ensino como uma forma de promover o acesso de classes menos prestigiadas. Os PCN assim recomendam em relação às competências e habilidades a serem desenvolvidas em língua portuguesa: A escola não pode garantir o uso da linguagem fora do seu espaço, mas deve garantir tal exercício de uso amplo no seu espaço, como forma de instrumentalizar o aluno para o seu desempenho social. Armá-lo para poder competir em situação de igualdade com aqueles que julgam ter o domínio social da língua (BRASIL, 2000, p. 22). Daí surge uma questão importante para reflexão sobre o ensino da língua portuguesa: Até que ponto a língua padrão ensinada na escola como único referencial pode ser responsável pela marginalização das demais variantes que frequentemente fazem parte do repertório linguístico dos alunos? Essa questão está diretamente ligada à prática do professor em sala de aula. Por um lado, conforme Alkmim (2001), ao assumir o princípio da heterogeneidade inerente à linguagem, a linguística moderna, especialmente a sociolinguística, eliminou preconceitos ao afirmar que todas as línguas e variedades de uma língua são igualmente complexas e eficientes para o exercício de todas as funções a que se destinam (Alkmim, 2001, p. 68). 31 Re vi sã o: J ul ia na - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 30 /0 5/ 20 12 LINGUÍSTICA Por outro lado, se a prática pedagógica de ensino de língua materna se preocupar em ensinar somente uma variedade como correta, desconsiderando outras formas que fogem ao modelo imposto, ela acabará contribuindo para excluir alunos que chegam à escola utilizando outras variedades da língua portuguesa que são parte de seu meio social. Isso ocorre porque o ensino de língua materna tradicional criou a noção de “certo” e “errado”, o que obviamente enseja uma prática discriminatória em relação às variedades linguísticas que fazem parte do repertório dos alunos. Tal prática dedica-se a substituir um modelo supostamente “errado”, que, na verdade, seria uma variante que o aluno traz para a sala de aula, fruto de seu contato com determinado contexto social, pelo modelo “correto”, ditado pela chamada norma culta, ensinada na escola. Nesse sentido, cabe aos professores garantir que todo o conhecimento trazido por estudos linguísticos sobre a diversidade não seja descartado. Caso contrário, aqueles alunos provenientes de uma classe social menos privilegiada serão diretamente afetados, pois: “As crianças socioeconomicamente mais favorecidas seriam as menos prejudicadas, uma vez que se acham familiarizadas com a variedade padrão desde a primeira infância” (ALKMIM, 2001, p. 70). Enfim, ao não reconhecer a variedade linguística, o sistema formal de ensino acaba criando o que o linguista Marcos Bagno chamou de preconceito linguístico. Bagno (2006b, p. 9) afirma que “tratar da língua é tratar de um tema político, já que também é tratar de seres humanos”. Para ele, o chamado preconceito linguístico surgiu a partir de uma grande confusão histórica entre os termos língua e gramática normativa. Bagno (2006b, p. 10) ilustra o fato comparando a língua a um enorme iceberg, “flutuando no mar do tempo”, ao passo que a gramática normativa seria “uma tentativa de descrever apenas uma parcela mais visível dele, a chamada norma culta”. A metáfora usada por Bagno não descarta o mérito de tal descrição, mas lembra que, tal qual o iceberg, cuja parte que emerge não representa sua totalidade, a norma culta não representa todos os fenômenos da língua. É importante ressaltar que as ideias defendidas por Marcos Bagno, bem como por outros estudiosos da linguística, não representam um ponto de vista isolado, defendido por um teórico solitário, para sustentar alguma teoria nova. Como visto, a questão aqui colocada é de cunho educacional, com implicações evidentemente sociais e políticas e que, como tal, mereceu ser abordada para colaborar com a formação dos professores, que precisam se conscientizar da relevância de sua prática pedagógica para proporcionar transformações sociais. Saiba mais Para maior clareza em relação às questões apresentadas, sugere-se a leitura do livro a seguir: BAGNO, M. Preconceito linguístico: o que é, como se faz. São Paulo: Loyola, 1999. 32 Unidade I Re vi sã o: J ul ia na - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 30 /0 5/ 20 12 Resumo Vamos retomar os principais pontos do conteúdo visto nessa Unidade. Iniciamos vendo os conceitos de línguae de linguagem, lembrando que o primeiro é objeto de estudo da área que se denomina linguística, e o segundo diz respeito a toda forma de expressão humana. Em seguida, foi traçado um breve histórico sobre o desenvolvimento dos estudos linguísticos, lembrando que foi com os estudos propostos por Saussure que a linguística adquiriu o status de ciência e esta evoluiu de uma visão unidisciplinar para uma visão inter, multi, transdisciplinar. Vimos, também, a contribuição dos estudos na área da sociolinguística, que pressupõe o homem em sociedade e, portanto, a variação de uso da língua nas mais variadas formas de expressão. Aqui no Brasil, destacam-se os trabalhos desenvolvidos pelo Projeto NURC (Norma Urbana Culta), coordenado pelo professor Dino Preti, que muito contribuiu nessa área. A variação linguística é uma realidade nossa, uma vez que se torna evidente a variação diatópica (localização geográfica), pois sentimos nitidamente a diferença entre um carioca e um nordestino falando, por exemplo. Entretanto, além do fator geográfico, outros podem influir nessa variação, como nível de escolaridade, idade, sexo etc. Além disso, um mesmo falante pode variar sua fala de acordo com a situação comunicativa. Nesse sentido, retomou-se o que consta nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), documento elaborado pelo Ministério de Educação e Cultura (MEC) com o objetivo de padronizar os conteúdos para a educação básica. Exercícios Questão 1. Atribui-se à “Cantiga da Ribeirinha” o título de primeiro texto em língua portuguesa. A data provável de sua criação (1189 ou 1198) é considerada o início do trovadorismo literário. Assinale o tipo de variação presente no trecho da cantiga: Cantiga da Ribeirinha No mundo nom me sei parelha, mentre me for’ como me vai, 33 Re vi sã o: J ul ia na - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 30 /0 5/ 20 12 LINGUÍSTICA ca já moiro por vos – e ai mia senhor branca e vermelha, [...] Fonte: Publifolha (1997). A) Variação geográfica (diatópica), pois o texto é característico da região sul do Brasil. B) Variação estilística (diafásica), pois representa um estilo de falar mais rebuscado. C) Variação histórica (diacrônica), pois indica a fala de um povo em uma época determinada, considerando a linha temporal. D) Variação histórica (diastrática), pois indica uma “língua morta” pelo fator tempo. E) Variação sociocultural (diatópica), pois indica o posicionamento de um determinado grupo social. Resposta correta: alternativa C Análise das alternativas: A) Alternativa incorreta. Justificativa: o texto “Cantiga da Ribeirinha”, de Paio Soares de Taveirós, não é característico da região sul do Brasil. É um texto típico da literatura trovadoresca portuguesa, do século XII. B) Alternativa incorreta. Justificativa: a “Cantiga da Ribeirinha” não apresenta um estilo rebuscado de fala, pelo contrário, é um gênero tipicamente oral, com a presença de termos da linguagem cotidiana da época. C) Alternativa correta. Justificativa: a “Cantiga da Ribeirinha” é um texto com as características das cantigas líricas do trovadorismo português, do século XII. A variação presente é histórica (diacrônica), considerando as mudanças ocorridas na língua portuguesa no decorrer dos tempos. D) Alternativa incorreta. Justificativa: o texto é escrito em português arcaico, portanto, não se pode considerar que foi escrito em uma língua morta. A variação histórica não é diastrática, mas diacrônica. E) Alternativa incorreta. 34 Unidade I Re vi sã o: J ul ia na - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 30 /0 5/ 20 12 Justificativa: embora tenha as características das cantigas de amor do trovadorismo literário, indicando o posicionamento de um determinado grupo, a variação diatópica é geográfica, e não sociocultural. Questão 2. (Enade 2006 - Adaptado). Analise a charge reproduzida na figura a seguir. Figura 2 Tendo em vista a construção da ideia de nação no Brasil, o argumento da personagem expressa: A) A afirmação da identidade regional. B) A fragilização do multiculturalismo global. C) O ressurgimento do fundamentalismo local. D) O esfacelamento da unidade do território nacional. E) O fortalecimento do separatismo estadual. Resolução desta questão na Plataforma.
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