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Caio Navarro de Toledo O Governo Goulart E o Golpe de 64 Índice Um governo no entreato golpista O "golpe branco" ou "a solução de compromisso" A crise político-institucional na versão parlamentarista Um governo no trapézio A politização da sociedade — esquerda e direita mobilizam-se O golpe político-militar Conclusões Indicações para leitura Um governo no entreato golpista O governo João Goulart nasceu, conviveu e morreu sob o signo do golpe de Estado. Se, em agosto de 1961, o golpe militar pôde ser conjurado, em abril de 1964, no entanto, ele deixaria de se constituir no fantasma — que rondou e perseguiu permanentemente o regime liberal-democrático inaugurado em 1946 — para se tornar nu- ma concreta realidade. No dia 25 de agosto de 1961, Jânio Quadros resignava sem ao menos completar sete meses na Presidência da República. Na carta- renúncia — autêntica paródia e pastiche da carta-testamento de Ge- túlio Vargas, como observaram diversos autores —, Quadros não for- mulou uma única razão convincente para explicar e justificar o seu teatral gesto. Se, naquele momento, a denúncia do golpe janista soava como uma mera especulação, hoje restam poucas dúvidas a esse respeito. A rigor, a renúncia constituía-se no primeiro ato de uma trama golpista. Julgava o demissionário que os ministros militares não apenas impediriam a posse de João Goulart, como também procu- rariam impor, juntamente com o massivo e sonoro "clamor popular", o retorno do "grande líder". Na sua fantasia, Quadros voltaria, pois, nos "braços do povo". As ilusões do renunciante, contudo, logo se desvaneceram. Nem os ministros militares e, menos ainda, as massas populares tomaram qualquer iniciativa no sentido de reivindicar a volta de Quadros. Em várias partes do país, os setores populares e democráticos sai- riam às ruas para defender, isto sim, a posse de João Goulart, a- meaçada por um arbitrário veto militar, plenamente respaldado pela UDN e demais setores conservadores. As manifestações populares, associadas com as de políticos democráticos e de militares nacio- nalistas, conseguiram impedir o golpe militar que se configurava em agosto de 1961. Assim, com a diferença de poucos dias, duas tentativas de gol- pe se sucediam: a de Jânio Quadros e a dos setores militares. Três anos depois, tendo sido alcançada uma forte coesão ideológica no seio das Forças Armadas, os militares impuseram, juntamente com a significativa mobilização política das classes dominantes e de se- tores das classes médias, uma nova ordem político-institucional no país. Os setores populares e democráticos, a partir de então, pa- gariam um preço muito elevado pela resistência oferecida aos gol- pistas em 1961. Foi, portanto, no entreato de alguns ensaios golpistas e de um golpe político-militar, plenamente vitorioso, que existiu o gover- no João Goulart. Nos seus dois anos e meio de vigência (setembro de 1961 a março de 1964), um novo contexto político-social emergiu no país. Este novo quadro caracterizou-se por uma intensa crise econômico-financeira, freqüentes crises político-institucionais, extensa mobilização política das classes populares, ampliação e fortalecimento do movimento operário e dos trabalhadores do campo, crise do sistema partidário e acirramento da luta ideológica de classes. Este período da história política brasileira é significativo ainda pois nele se intensificam e se condensam alguns dos impasses e dos conflitos da democracia burguesa. Se entendemos que as con- tradições sociais são processos constitutivos da formação social capitalista e de seus regimes políticos, então o período de 1961/1964 deve ser visto como um momento privilegiado da vida po- lítica brasileira posto que nele ocorreu uma polarização política e ideológica com dimensões inéditas e com características singula- res. Para os que vêem nos conflitos e nos antagonismos o sinal da desagregação social, os "tempos de Goulart" só podem ser encarados como trágicos "tempos do caos e da anarquia". 1964 é, pois, um marco divisor e uma referência obrigatória em qualquer avaliação sobre o passado recente. Decorridos menos de 20 anos da queda do regime liberal-democrático, não deixam de ser a- inda conflitantes as interpretações sobre o período Goulart. A nosso ver, motivações antagônicas parecem estar presentes em algu- mas dessas interpretações. As esquerdas — não obstante reconheçam os reais avanços sociais e políticos ocorridos no período —, bus- cam, fundamentalmente, investigar as razões dos limites e das im- possibilidades da democracia burguesa com características "popu- listas". A direita, ao definir os "tempos de Goulart" como a ex- pressão acabada de toda a perversidade social (subversão, cor- rupção, crise de autoridade, desordem etc), procura justificar a implantação do regime autoritário e a perpetuação do poder de Es- tado militarizado. O "GOLPE BRANCO" OU "A SOLUÇÃO DE COMPROMISSO" O veto militar Com a renúncia de Jânio Quadros, o Congresso Nacional, reunido extraordinariamente no dia 25 de agosto de 1961, dava posse, na Presidência da República, a Ranieri Mazzilli (presidente da Câmara dos Deputados). Tal solução era encontrada em virtude de se encon- trar ausente do país o vice-presidente da República, João Goulart. Imediatamente, os meios de comunicação do país passavam a di- vulgar versões — cuja veracidade seria confirmada nos dias seguin- tes — segundo as quais haveria, da parte de expressivos círculos militares, uma forte oposição à posse constitucional de João Gou- lart na Presidência da República. As notícias iam mais longe: a- firmava-se que os ministros militares não apenas desaconselhavam o retorno imediato de Goulart, como estavam decididos a detê-lo no momento em que pisasse o território nacional. Ao mesmo tempo que difundiam estas informações, vários jornais da chamada grande im- prensa — expressando a opinião política dos setores conservadores das classes dominantes — conclamavam as Forças Armadas a assumirem um papel decisivo na crise política que se configurava com a re- núncia de Jânio Quadros. Em outras palavras, tais setores estimu- lavam e apoiavam o golpe militar. No dia 28 de agosto, através do presidente-interino, os três ministros militares buscaram impor ao Congresso a aprovação de uma breve nota onde — sem qualquer justificativa — era vetada a posse de Goulart. Por uma expressiva maioria, os congressistas manifes- taram-se contra aquela arbitrária e ilegal exigência. No dia 30, os ministros militares voltariam à carga. Através de um manifesto à nação, agora se dignavam a explicitar as razões do veto a João Goulart. A certa altura, afirmava o documento: "Na Presidência da República, em regime que atribui ampla autoridade e poder pessoal ao chefe do governo, o sr. João Goulart constituir-se-á, sem dú- vida alguma, no mais evidente incentivo a todos aqueles que dese- jam ver o País mergulhado no caos, na anarquia, na luta civil". Todas estas "previsões" eram feitas na base do passado político de Goulart. Na ótica dos militares e dos demais setores civis golpis- tas, Jango simbolizava tudo aquilo que havia de "negativo" na vida política brasileira: demagogo, subversivo e implacável inimigo da ordem capitalista. Seria o "diabo" tão vermelho como o pintavam? Goulart: por um capitalismo "humano" e "patriótico" Nos primeiros anos de sua rápida trajetória política, os es- treitos laços de amizade mantidos com o ex-ditador — seu vizinho de estância na longínquaSão Borja (RS) — transformavam Goulart em figura altamente suspeita aos olhos dos setores antigetulistas. Como deputado pelo Rio Grande do Sul, eleito em 1950, Goulart so- freu contundentes ataques pela imprensa; esteve seriamente ameaça- do de perder o mandato parlamentar, pois raramente comparecia à Câmara Federal. Dedicava-se às suas tarefas de presidente do Dire- tório Estadual do PTB e, desde então, orientava toda a sua ação política em direção ao movimento sindical. Destacando-se neste ti- po de atividade, foi escolhido, em 1953, por Vargas, para o cargo de ministro do Trabalho. Foi um "deus nos acuda". Como admitir, num Ministério do Esta- do, indagavam os setores de direita e liberais conservadores, o "chefe do peronismo brasileiro", o "demagogo sindicalista", o "corrupto negociante"? Pior ainda, prognosticavam: controlando e manipulando a classe operária e as massas populares, a partir do Ministério do Trabalho, Jango se constituiria numa peça importante para o sucesso de um novo golpe de Estado que estaria sendo engen- drado pelo "maquiavélico" Vargas. Como ministro do Trabalho, Goulart é diariamente acusado de insuflar greves e de pregar a luta de classes. Seu maior sonho, afirmam ainda seus críticos, seria o de implantar no Brasil a "Re- pública sindicalista" nos moldes do justicialismo peronista. Fa- zendo blague, mas iradamente, um influente periódico das classes dominantes denunciava que Jango, ao invés de ser ministro do Tra- balho, transformara-se num autêntico "ministro dos Trabalhado- res"... Diante desta lamentação, a resposta de Goulart seria ex- tremamente elucidativa. Numa entrevista, expressou com muita cla- reza a estratégia do Estado democrático-burguês quanto à questão sindical: "(...) essa confiança do proletariado na secretaria de Estado que dirijo deveria constituir-se num motivo de tranqüilida- de (para os patrões), e nunca de alarme. Pretender-se-ia, talvez, que o operariado brasileiro, já tão desencantado, não acreditasse nos poderes constitucionais?" (grifo nosso). Como herdeiro de imensa fortuna pessoal e grande proprietário de terras ("um latifundiário com saudável instinto de propriedade privada", como afirmou um de seus colaboradores), Goulart era, tal como seus críticos de direita, um fiel defensor do capitalismo. No entanto, asseverava ele, sua diferença em relação a estes residia na sua aspiração a um capitalismo mais "humanizado" e "patrióti- co"; ou seja, Jango dizia opor-se àquilo que hoje se convencionou chamar de "capitalismo selvagem". "Não passa de torpe intriga o boato de que sou contra o capitalismo. Ã frente do Ministério do Trabalho estou pronto a estimular e a aplaudir os capitalistas que fazem de sua força econômica um meio legítimo de produzir rique- zas, dando sempre às suas iniciativas um sentido social, humano e patriótico." Pouco mais de oito meses permaneceria no Ministério do Traba- lho do segundo governo Vargas. Enquanto Goulart defendia publica- mente um aumento de 100% para os trabalhadores que ganhavam salá- rio mínimo, Vargas, através de seu ministro da Guerra, tomava co- nhecimento de um documento ("Memorial dos Coronéis") assinado por 81 oficiais do Exército. Nele se advertia o Exército e a Nação dos perigos do "comunismo solerte sempre à espreita", do "clima de ne- gociata, desfalques e malversação de verbas", da "crise de autori- dade" que solapava a coesão de "classe militar" etc. Em nenhum instante o nome de Jango era citado no "Memorial", mas a conse- qüência da sua divulgação pela imprensa foi a sua imediata demis- são do Ministério do Trabalho. (Entre os signatários do documento, redigido pelo então ten.cel. Golbery do Couto e Silva, estavam mi- litares que, dez anos mais tarde, afastariam Goulart definitiva- mente da vida política brasileira: Amaury Kruel, Syzeno Sarmento, Sílvio Frota, Ednardo D'Ávila, Euler Bentes, etc.) Como vice-presidente da República, durante o qüinqüênio desen- volvimentista de Juscelino Kubitschek, João Goulart não deixaria de estar sob o fogo cerrado da direita e de setores liberais- conservadores. No manifesto de agosto de 1961, os ministros mili- tares alinhavam algumas acusações: "No cargo de vice-presidente, sabido é que usou sempre de sua influência em animar e apoiar, mesmo ostensivamente, manifestações grevistas promovidas por co- nhecidos agitadores. E, ainda há pouco, como representante oficial em viagem à URSS e à China Comunista, tornou clara e patente sua incontida admiração ao regime destes países, exaltando o êxito das comunas populares". Desta forma, na ótica dos políticos e militares, comprometidos com as ideologias liberal-conservadora e de direita, de nada adi- antava Goulart reiteradamente afirmar a sua crença no capitalismo. Deixavam, pois, de reconhecer que a atuação política de Jango (se- ja na condição de ministro de Trabalho, seja na de vice-presi- dente) contribuía objetivamente para um melhor controle do Estado burguês sobre as atividades sindicais. Igualmente, aqueles setores deixavam de perceber que — tal como concebia e exercia suas fun- ções políticas e administrativas — Jango era uma eficiente porta- voz, nos meios sindicais e populares, da ideologia populista do Estado protetor e "acima das classes". Obstinadamente reacionários e intransigentemente anticomunistas, não conseguiam deixar de re- presentar Jango na figura de "perigoso agitador" e de "demagogo sindicalista". A luta pela legalidade Nem todos os setores sociais e políticos, no entanto, inter- pretavam nessa direção a trajetória política de João Goulart. Não viam, pois, razões para lhe negar o direito de assumir a Presidên- cia da República. Ideologicamente, estes setores afinavam-se com o nacionalismo reformista, com a liberal-democracia, com a esquerda revolucionária. Governadores de estados, parlamentares federais e estaduais, sindicatos de trabalhadores, entidades de empresários (CONCLAP), estudantes e alguns setores militares, se manifestavam em defesa da ordem constitucional. Dos governadores estaduais que declararam seu apoio à posse de Goulart (Carvalho Pinto, São Paulo; Ney Braga, Paraná; Mauro Bor- ges, Goiás e Leonel Brizola, Rio Grande do Sul), foram estes dois últimos os que mais intensamente se empenharam na" "defesa da le- galidade". Contudo, foi a partir de Porto Alegre que se unificou a oposição nacional ao golpe militar, em virtude da decidida ação política de seu governador e da adesão do III Exército, sob o co- mando do gal. Machado Lopes. Brizola mobilizou amplos recursos de seu estado, chegando, inclusive, a se dispor a distribuir armas à população civil para combater eventuais ataques das forças golpis- tas. Através das emissões da "Rede da Legalidade", acompanhava-se o desenrolar dos acontecimentos em todo o país e articulava-se o movimento antigolpista em nível nacional. Militares nacionalistas (o mal. Lott fora preso por ter lança- do um manifesto contra o golpe), altos-oficiais do Exército, orga- nizações militares sediadas nos estados do Pará, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, São Paulo, Goiás, Guanabara e até mesmo em Brasí- lia, almirantes, associavam-se ao movimento contra a solução cons- piratória. Apesar de proibidas e reprimidas, manifestações popula- res sucediam-se nos grandes centros urbanos (passeatas, comícios, panfletagem etc). Várias entidades de classe condenavam os golpis- tas e defendiam a posse de Goulart. Inúmeras greves políticas em diversos setores (têxtil, transportes, bancários, metalúrgicos, portuários, etc.) culminam numa greve nacional em "defesa da lega- lidade", deflagrada pelo Comando Geralda Greve (CGG), embrião do CGT. A UNE decretou "greve nacional"; na Bahia os estudantes cria- vam a Frente de Resistência Democrática. A "solução de compromisso" O Congresso Nacional, expressando o sentimento geral dos seto- res democráticos e populares, negava-se, no primeiro momento, a transigir com os golpistas. Contudo, os dois grandes partidos con- servadores (UDN e PSD) articulavam, desde as primeiras horas da crise, a chamada "solução de compromisso": a emenda constitucional que instituía o regime parlamentarista no País. Se o golpe militar era derrotado, um golpe político, no entanto, era perpetrado con- tra o regime vigente, pois a carta de 1946 proibia, taxativamente, toda e qualquer reforma constitucional num clima insurrecional. Um outro significado deste "golpe branco" é que a emenda parlamenta- rista retirava a eleição do presidente da República do âmbito po- pular, transferindo-a para o espaço reduzido da Câmara Federal. Por 236 votos a favor e 55 contra (40 eram do PTB), a emenda constitucional era aprovada no Congresso Nacional. Os congressis- tas julgavam-se vitoriosos, pois afirmavam ter evitado uma "guerra civil" no país. Na verdade, o Congresso, através de sua maioria conservadora e liberal-democrata — com o incentivo dos militares dissidentes e com a anuência dos golpistas —, adiantou-se em ofe- recer tal solução, pois o avanço das forças populares passava a se constituir numa ameaça política indesejável. Para os ideólogos burgueses da Ciência Política, o Congresso Nacional, neste episó- dio, dava uma excelente lição daquilo que denominam de "realismo político" ou da "arte de conciliação". Alguns analistas afirmam, hoje, que o parlamentarismo não se configurava, naquela conjuntura, como uma saída política inescapá- vel. Argumentam que o tempo corria na direção favorável à manu- tenção do regime presidencialista, posto que o crescimento da par- ticipação popular e a ampliação dos setores políticos e militares antigolpistas punham na defensiva e em minoria as forças reacioná- rias. Como sugere o ex-deputado Almino Afonso: "Com mais alguns dias de resistência política do presidente João Goulart teria ha- vido a solução normal, que seria a sua posse dentro do sistema presidencial". Ao contrario disso, João Goulart não apenas concor- dou com a emenda constitucional, como se apressou em escolher uma solene efeméride nacional para ser empossado. No dia 7 de setembro de 1961, João Belchior Marques Goulart recebia no Congresso Nacio- nal a faixa presidencial, sob o manto do regime parlamentarista. De acordo com a emenda parlamentarista, o Poder Executivo pas- sava a ser exercido pelo presidente da República e por um Conselho de Ministros (Gabinete Parlamentar), a quem caberia a "direção e a responsabilidade da política do governo, assim como a administra- ção federal". Ao presidente competiria nomear o presidente do Con- selho de Ministros (primeiro-ministro) ou chefe do governo e, por indicação deste, os demais membros ministros de Estado. Na verda- de, transformava-se o presidente da República em autêntico chefe de Estado, perdendo a sua iniciativa de elaborar leis, orientar a política externa, elaborar propostas de orçamentos, etc. O governo se efetivava fundamentalmente através do Conselho de Ministros que, por sua vez, dependia permanentemente do voto de confiança do Congresso Nacional. A emenda constitucional nº 4, nas suas Dispo- sições Transitórias, previa a realização de um plebiscito que vi- esse a decidir acerca da "manutenção do sistema parlamentar ou volta ao sistema presidencial". Tal consulta popular devia ocorrer nove meses antes do término do período presidencial de Goulart. Sob rédeas relativamente curtas, João Goulart iniciava, assim, seu governo na versão parlamentarista. Mas, conforme confessaria a um assessor, faria ele de tudo para abreviar a vida do novo regi- me. Recusava-se a representar o papel de uma "Rainha Ehzabeth". Queria governar, não apenas reinar... A CRISE POLlTICO-INSTITUCIONAL NA VERSÃO PARLAMENTARISTA Na curta existência do regime parlamentarista (setembro de 1961 a janeiro de 1963), o país veria sucederem-se três Conselhos de Ministros, além de se defrontar com o agravamento de sua situa- ção econômico-financeira e se debater ainda com novas crises polí- tico-institucionais. Administrativamente ineficiente e politica- mente inviável, o parlamentarismo — sistema natimorto, como alguns o denominaram — teria os seus dias contados dentro da vida repu- blicana brasileira. Do ponto de vista econômico, o governo parlamentarista não a- penas herdava as profundas distorções da política desenvolvimen- tista do governo Kubitschek como também tinha de fazer face às conseqüências imediatas das medidas econômico-financeiras postas em prática pela fracassada administração Quadros. No período Ku- bitschek, ao se optar por um elevado nível de investimentos e ao se manter as importações de equipamentos necessários ao de- senvolvimento econômico, apelou-se para um progressivo endivida- mento externo. No período 1956/60, mostram os dados oficiais, o déficit nas transações correntes (mercadorias e serviços) alcançou a elevada cifra de 1,2 bilhões de dólares. De outro lado, "como o investimento externo fazia-se com a regalia da Instrução 113, isto é, sem cobertura cambial, o atendimento do déficit fez-se, princi- palmente, através de empréstimos a curto prazo e de atrasos comer- ciais, aumentando o endividamento externo" (Cibilis Viana, Refor- mas de Base e a Política Nacionalista de Desenvolvimento). A taxa inflacionária elevou-se significativamente nos últimos anos do go- verno Kubitschek, agravada fundamentalmente pela "deterioração das relações de troca, acúmulo de estoques invendáveis de café adqui- ridos pelas autoridades monetárias; crescimento insuficiente da oferta de produtos agrícolas e oligopolização do comércio ataca- dista de gêneros alimentícios" (Idem, ibidem). No período desen- volvimentista anterior, houve um acentuado descompasso entre o crescimento do setor industrial e o da agricultura. Ainda segundo o autor acima, "a produção agrícola apresentou a taxa anual média de crescimento de 4,3% inferior a de todos os demais períodos". Com o aumento da população urbana (75% entre 1952 a 1961) e um au- mento do poder de compra dos assalariados em geral, houve, conse- qüentemente, a expansão da demanda de alimentos. Com o insuficien- te crescimento da produção agrícola para o mercado interno, pas- saram a ocorrer, a partir de 1961, agudas crises de abastecimento, gerando inquietações sociais e movimentos reivindicatórios de grande extensão nos campos e nas cidades. Além desses problemas, o governo que se empossava tinha de en- frentar as graves conseqüências da reforma cambial precipitadamen- te realizada por Quadros. Através da famigerada Instrução 204 da SUMOC, instituiu-se o regime de liberdade cambial (enganosamente denominado de "verdade cambial"). A partir de agora, as importa- ções passavam a ser realizadas a taxas de mercado livre, ficando suprimidos os subsídios governamentais às compras de petróleo, trigo e papel. Na justificativa oficial, buscava-se alcançar o e- quilíbrio das transações com o exterior, altamente comprometido no governo Kubitschek. A eliminação dos subsídios teve como con- seqüência uma brusca e imediata alta do custo de vida, particular- mente daqueles produtos que eram fundamentais no orçamento das classes trabalhadoras. Um gabinete de "união nacional" No dia 8 de setembro de 1961, o Congresso Nacional aprovava o primeiro Conselhode Ministros; era ele presidido por Tancredo Ne- ves, conhecida figura do PSD mineiro. Goulart e Tancredo denomi- naram o gabinete de "união nacional". Uma vez mais, pois, a fórmu- la da "união nacional" era desenterrada do arsenal ideológico das classes dominantes a fim de encobrir a existência de conflitos e antagonismos no interior da conjuntura política. Na verdade, o primeiro gabinete representava uma nítida derrota do movimento po- pular que, alguns dias antes, havia empolgado o país. Como as es- querdas viriam a denunciar, tratava-se de um autêntico "gabinete de conciliação": "conciliação para evitar que fossem colhidos os frutos da vitória popular. Conciliação com os imperialistas, con- ciliação com os golpistas" (Paulo M. Lima, in Revista Brasiliense, nº 22). A vitória das forças politicamente conservadoras do Congresso evidenciava-se mediante a composição do Gabinete, onde 4 ministros representavam o PSD e 2 a UDN; ao partido do qual o presidente da República era o presidente nacional, PTB, coube apenas uma pasta: o Ministério das Relações Exteriores, na figura de Francisco San Tiago Dantas. O importante Ministério da Fazenda teve sua respon- sabilidade entregue ao banqueiro Walter Moreira Salles — ideologi- camente identificado com os manuais ortodoxo-conservadores em ma- téria de política econômico-financeira. Procurava-se, assim, con- quistar o apoio do FMI e das autoridades financeiras norte- americanas. Em matéria de política econômica, pode-se afirmar que "o pro- grama do Conselho de Ministros obedecia aos mesmos princípios con- servadores enunciados nos efêmeros governos Café Filho e Jânio Quadros, revelando-se, sob muitos aspectos, antagônicos ao ideário do nacionalismo desenvolvimentista" (Cibilis Viana, op. cit.). Se- gundo este programa, por exemplo, não se fazia nenhuma crítica à reforma cambial implementada pelo governo anterior. Não seria es- te, no entanto, o pensamento que orientava a assessoria econômica de Goulart (Goulart e Tancredo tinham assessorias distintas). Com- posta de petebistas e nacionalistas-reformistas, a assessoria de Goulart buscaria influir sobre a orientação conservadora do gabi- nete ao defender, por exemplo, o fortalecimento do setor estatal da economia. Nos seus primeiros pronunciamentos, Goulart faria críticas ao regime de "verdade cambial" e postularia a realização das Reformas de Base. Embora majoritariamente conservador, o gabinete de Tancredo Neves, logo nos seus primeiros meses de existência, tomou duas de- cisões amplamente apoiadas pelos setores progressistas e nacio- nalistas. A rigor, contudo, estas duas medidas nada mais faziam do que concretizar estudos oriundos do governo Quadros. Por proposta do ministro das Minas e Energia, Gabriel Passos (um nacionalista quase solitário na "constelação entreguista" da UDN), o Conselho de Ministros cancelava todas as autorizações feitas ao truste nor- te-americano Hanna Corporation (companhia de mineração que explo- rava jazidas em Minas Gerais). A outra decisão que repercutiu fa- voravelmente nos meios progressistas do país foi o restabelecimen- to das relações diplomáticas com a URSS (rompidas no governo Du- tra, em plena "guerra fria"). Dava-se, assim, continuidade à polí- tica externa independente cujos princípios básicos ("não interven- ção de um Estado nos negócios internos de outro" e "autodetermina- ção dos povos") foram enunciados no governo do contraditório Jânio Quadros. Exatamente dois meses depois, uma prova decisiva teria de en- frentar a política externa independente do Brasil. Em Punta Del Este, Uruguai, reunia-se a Organização dos Estados Americanos (OE- A) a fim de debater a situação de Cuba, após seu governo revolu- cionário ter-se definido oficialmente pelo socialismo. Além da ex- pulsão, proposta pelos EUA, pretendiam estes fazer aprovar sanções contra o governo presidido por Fidel Castro. O Brasil se opôs a qualquer forma de sanção (militar, econômica, rompimento das rela- ções comerciais e diplomáticas) contra Cuba. No entanto, aprovou uma declaração onde se afirmava a "incompatibilidade entre um re- gime marxista-leninista e os princípios democráticos do sistema interamericano". Cedendo parcialmente às fortes pressões norte- americanas, o governo brasileiro se absteria na votação que propu- nha a expulsão de Cuba da OEA. As relações norte-americanas/brasileiras sofreriam ainda um sério abalo quando, duas semanas após o encerramento da reunião da OEA, o governador Leonel Brizola, cunhado de João Goulart, de- sapropriou os bens da Companhia Telefônica Nacional, no Rio Grande do Sul, subsidiária da International Telephone & Telegraph (ITT). "O Departamento do Estado protestou, energicamente, classificando o ato de Brizola como um 'passo atrás' nos planos da Aliança para o Progresso (...) E o Congresso dos EUA, diante da perspectiva de outras estatizações, votou a emenda Hinckenlooper, que determinava a suspensão de qualquer ajuda aos países que desapropriassem bens americanos, sem indenização imediata, adequada e efetiva" (Moniz Bandeira, O Governo João Goulart). Diante de futuras tentativas de encampações (Carlos Lacerda, governador da Guanabara, anunciou — demagogicamente — que expro- priaria empresas estrangeiras em seu estado), o governo federal apressou-se em declarar sua disposição em negociar um acordo geral com as empresas de serviços públicos de propriedade estrangeira. Procurava, assim, o governo brasileiro demonstrar sua "boa vonta- de" face ao capital estrangeiro; ao mesmo tempo tentava limpar o terreno dos possíveis obstáculos que poderiam dificultar as con- versações a serem mantidas, nas semanas seguintes, entre os presi- dentes do Brasil e dos EUA. Assessorado pelo embaixador brasileiro nos EUA, Roberto Cam- pos, e por Moreira Salles, o presidente Goulart — no discurso pro- nunciado perante o Congresso norte-americano e no comunicado con- junto dos presidentes do Brasil/EUA — procura tranqüilizar a opi- nião pública e os homens de negócios norte-americanos quanto aos caminhos a serem trilhados pelo governo brasileiro nos próximos anos. Entre outros temas, Goulart manifestou a adesão de seu go- verno aos "princípios democráticos"; defendeu enfaticamente a par- ticipação do capital privado estrangeiro no desenvolvimento brasi- leiro; aprovou o princípio da "justa compensação" nos casos de de- sapropriações de empresas estrangeiras operando no Brasil, etc. Embora revelasse preocupações quanto às dificuldades de execução do programa reformista da Aliança para o Progresso, Goulart elogi- ou a iniciativa de Kennedy (provocada pela Revolução Cubana). Ad- vertindo sobre os perigos que representaria o fracasso deste pro- grama para os "povos democráticos", o presidente brasileiro fez seu o ideário reformista de Kennedy: "Aqueles que tornarem impos- sível a revolução pacífica, farão inevitável a revolução violen- ta". Apesar de todas as "juras de fidelidade e de amor" feitas por Goulart à democracia e ao capital estrangeiro, o país pouco lucra- ria com a festejada viagem de Goulart aos EUA e México. Como ob- servou um estudioso: "(...) o FMI e os outros principais credores do Brasil voltaram à sua atitude de esperar-para-ver dos últimos anos do governo Juscelino. Sentiam-se pessimistas. Não confiavam em que Jango tivesse o desejo, nem o poder de continuar o duro programa antiinflacionário empreendido por Jânio" (Thomas Skidmo- re, De Getúlio a Castelo). A campanha das Reformas. Goulart X Gabinete Internamente, a viagem de Goulart aos EUA rendeu-lhe alguns proveitos; pela primeira vez, em toda a sua carreira política, adireita mais conservadora prestou-lhe homenagens. A UDN, através de seu líder na Câmara, Herbert Levy, saudou a sua performance nos EUA como a de um verdadeiro estadista. Porém, muito curto seria o período de tréguas que a oposição conservadora concederia ao go- verno de Goulart. A partir do dia 1º de maio, a guerra novamente lhe seria declarada. Em reiteradas oportunidades, o presidente da República tinha se pronunciado acerca da urgência de o Executivo e de o Congresso aprovarem as reformas estruturais exigidas para a superação dos graves problemas econômicos, sociais e institucionais enfrentados pelo país. Não obstante se pudesse afirmar que era praticamente consensual — no Gabinete, no Congresso, nas Forças Armadas, nas associações e confederações rurais, na Igreja, nas organizações de trabalhadores rurais, etc. — o reconhecimento da necessidade da Reforma Agrária, as concepções acerca do seu sentido social e po- lítico, da sua extensão e das pré-condições legais à sua realiza- ção eram conflitantes. No seu discurso de 1º de maio, em Volta Re- donda, Goulart chamou sobre si a fúria dos conservadores. Embora não explicitamente, Jango se opôs à forma moderada e conciliadora pela qual o gabinete de Tancredo Neves vinha encaminhando o debate do anteprojeto de Reforma Agrária de autoria do ministro da Agri- cultura, o conhecido usineiro pernambucano Armando Monteiro (PSD). Apesar de ter criado importantes assessorias técnicas (Superinten- dência da Reforma Agrária, SUPRA, e o Conselho Nacional de Reforma Agrária), o primeiro gabinete não chegou a enviar nenhum projeto de Reforma Agrária ao Congresso. A rigor, o que provocou a violenta reação dos setores de di- reita foi o apelo do presidente ao Congresso no sentido de este realizar uma reforma da Carta de 1946. A reforma constitucional reivindicada por Goulart visava basicamente a alterar o § 16 do Art. 141 que condicionava as desapropriações de terra à "prévia e justa indenização em dinheiro". A vigência de tal preceito consti- tucional, na prática, impedia — pelos altos recursos a serem des- pendidos pelo governo — a realização de uma Reforma Agrária que implicasse uma ampla redistribuição de terras àqueles que nela e- fetivamente trabalhavam. Diante da proposta do presidente da Repú- blica, unem-se proprietários rurais, setores da Igreja, congres- sistas liberais e conservadores, imprensa etc, para denunciar a "reforma agrária radical" cogitada, segundo eles, por Goulart. Na ótica desses grupos, a "revolução agrícola" deveria se fixar na "obediência aos preceitos constitucionais aliada ao interesse pri- oritário pelo estímulo à produção" (Aspásia Camargo, "A Questão Agrária", in Brasil Republicano). Como observou a autora acima, o discurso de Volta Redonda pode ser considerado como um importante marco político: seja porque re- presentou o primeiro esforço concentrado do governo em torno da realização das Reformas de Base (o segundo momento dessa campanha ocorreria a partir de abril de 1963), seja porque significou o a- fastamento político do presidente da República face ao Conselho de Ministros e ao regime parlamentarista propriamente dito. Reconhe- ce-se, também, nessa data, o início da intensificação da luta pela antecipação do Plebiscito. Sem o apoio do presidente da República, o Gabinete Tancredo Neves tinha os seus dias contados. Sob o pretexto de terem de cum- prir a exigência legal de desincompatibilização funcional a fim de poderem concorrer às eleições de outubro de 1962, todos os membros do Gabinete Tancredo pediram demissão em junho. As crises de Gabinete A formação do 2º gabinete parlamentarista implicou uma compli- cada batalha política para o presidente Goulart. Os dois grandes partidos conservadores do Congresso, PSD e UDN, uniam suas forças para rejeitar o nome do petebista San Tiago Dantas, indicado por Jango para presidir o novo gabinete. As razões da recusa eram evi- dentes: San Tiago, que fazia parte da chamada "esquerda positiva", notabilizara-se, nos meses anteriores, pela condução da política externa independente. O febril anticomunismo da direita brasileira jamais poderia perdoar-lhe o reatamento das relações diplomáticas do Brasil com a URSS; igualmente, a sua intransigente oposição, dentro da OEA, a qualquer sanção contra Cuba socialista lhe vale- ria a pecha de "traidor da pátria", por parte dos setores conser- vadores. Além do mais, era um elemento da estrita confiança de Goulart, estando, pois, inteiramente solidário na luta que este movia contra o parlamentarismo e a favor das reformas de base. Sendo forçado a buscar apoio no PSD, Goulart apresentou um ou- tro candidato: Auro Soares de Moura Andrade, presidente do Senado. No entanto, esta decisão desagradou as lideranças sindicais com- prometidas com a luta pelas Reformas e que, desde o mês de junho, vinham defendendo a formação de um "Conselho de Ministros naciona- lista e democrático". Diante da negativa face ao nome de San Tiago e da eminente aprovação do Conselho de Ministros a ser chefiado pelo conservador Moura Andrade, o Comando Geral da Greve (CGG) de- cretou uma greve geral em todo o país para o dia 5 de julho. No dia anterior, porém, o senador do PSD desistia da sua indicação a primeiro-ministro. Apesar da renúncia de Moura Andrade e dos in- sistentes apelos de Jango, a greve foi mantida. Na Guanabara, es- tado onde se concentrou praticamente todo o movimento paredista, os militares do I Exército — sob o comando do general nacionalista Osvino Alves — colaboraram com os grevistas; não cederam veículos de seu uso para transporte público e também participaram das nego- ciações para a libertação dos líderes sindicais reprimidos pela polícia do reacionário governador da Guanabara, Carlos Lacerda (S. Amad Costa, CGT e as Lutas Sindicais Brasileiras). A greve — con- siderada pelo líder comunista Jover Telles como a maior da histó- ria do movimento operário brasileiro — foi igualmente vitoriosa pelo fato de o presidente Goulart sancionar, uma semana depois, a lei que instituiu o 13º salário, uma das principais reivindicações da greve geral. O novo gabinete, presidido por Brochado da Rocha (PSD), rece- bia voto de confiança no dia 13 de julho. Tratava-se de um gabine- te de centro com orientação reformista. Nos seus dois curtos meses de existência, este conselho distinguiu-se basicamente por duas iniciativas políticas. A primeira consistiu num projeto de lei en- viado ao Congresso visando antecipar a realização do Plebiscito; propunha-se o dia 7 de outubro, data marcada para as eleições da renovação do Congresso e escolha de alguns governadores de estado. Nova derrota de Goulart e do gabinete; nova greve geral seria de- cretada pelas lideranças sindicais. Embora tivesse uma extensão menor do que a anterior, a greve foi igualmente vitoriosa pois, na madrugada de 15 de setembro (data fixada para a paralisação dos trabalhadores), o Congresso aprovou um projeto conciliador dos pessedistas Gustavo Capanema e Benedito Valadares. O Plebiscito, finalmente, tinha agora seu dia definido: 6 de janeiro de 1963. No entanto, a greve não reivindicava apenas a convocação do referen- dum popular; exigia, também, a sanção da Lei de Remessa de Lucros (aprovada pelo Congresso mas ainda não regulamentada pelo Executi- vo), a elevação dos níveis de salário mínimo na base de 100%, etc. Posto que o governo prometeu realizar estudos no sentido de aten- der àquelas reivindicações, o Comando Geral do Trabalhadores (CGT), recentemente criado, suspendia a greve. A segunda importante iniciativa do Gabinete Brochado da Rocha consistiunuma mensagem enviada ao Congresso na qual se solicitava a autorização deste para que o Conselho de Ministros pudesse le- gislar, através de decretos, sobre as Reformas de Base, remessa de lucros, regulamentação do direito de greve, abuso do poder econô- mico, etc. Expressando os interesses dos proprietários e das asso- ciações rurais, bem como da burguesia associada ao capital multi- nacional, a aliança PSD/UDN fechava a questão contra a "delegação de poderes" pedida pelo gabinete. Prevendo a iminente derrota no plenário do Congresso, Brochado da Rocha demitiu-se. Desta forma, o Congresso cedia quanto à convocação do Plebiscito, mas a sua maioria não abriria mão de sua condição de intransigente defensora dos interesses das classes proprietárias e dos setores politi- camente conservadores e de direita. Uma vez mais, Brizola se en- carregaria de expressar a insatisfação dos movimentos populares e das correntes políticas nacionalistas e de esquerda: "O povo não poderia esperar outra coisa de um Congresso constituído, em sua maioria, de latifundiários, financistas, ricos comerciantes e in- dustriais representantes da indústria automobilística, empreitei- ros e integrantes da velha oligarquia brasileira" (apud M. Victor, 5 Anos que Abalaram o Brasil). A campanha do plebiscito O terceiro e último Conselho de Ministros, presidido pelo ex- ministro do Trabalho, Hermes Lima, duraria pouco mais de 4 meses. A rigor, a partir de meados de setembro de 1962, o comando do Exe- cutivo passava praticamente para as mãos do presidente da Repúbli- ca. Como viria a assinalar mais tarde o último premier do governo parlamentarista: "Vivia-se no país uma atmosfera mais presidencia- lista que parlamentarista" (Hermes Lima — apud M. Bandeira, op. cit). Nesse sentido, deve-se reconhecer que o Gabinete provisório — oficialmente empossado dois meses depois — estava inteiramente solidário com o mais importante objetivo político perseguido por Goulart naquele momento: articular as forças políticas e sociais do país a fim de derrotar o parlamentarismo na eleição plebiscitá- ria de 6 de janeiro. Pode-se afirmar que este gabinete esteve inteiramente envolvi- do com a campanha do Plebiscito. Excluída a direita mais ardorosa- mente anticomunista e antijanguista (a maioria da UDN IPES/ IBAD, imprensa conservadora, etc), poucos "moveram uma palha" em defesa do parlamentarismo. Em contrapartida, inúmeras foram as entidades e organizações que se empenharam na batalha política pelo retorno do presidencialismo. Importantes figuras políticas nacionais (al- gumas delas particularmente interessadas em se candidatar, em e- leições diretas, para a sucessão presidencial de Jango) apoiaram ostensivamente a derrubada do regime parlamentarista. Entre eles se incluíam Juscelino Kubitschek, Leonel Brizola, Cid Sampaio, Ma- galhães Pinto, Juraci Magalhães e Carlos Lacerda (a UDN, partido dos três últimos, defendia a manutenção do parlamentarismo). Durante a campanha do Plebiscito, importantes figuras da ofi- cialidade militar posicionaram-se a favor da volta do presidencia- lismo. Poucas razões igualmente tinham os trabalhadores para apoi- arem o regime parlamentarista. Nas últimas semanas de 1962, a CNTI (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria) conclamava os trabalhadores brasileiros a comparecer ao referendum: "Todos, no, dia 6 de janeiro de 1963, assinalem o NÃO: NÃO à espoliação do país; NÃO aos exploradores do povo; NÃO à carestia e à fome. Por- tanto, companheiro, um NÃO grande ao parlamentarismo". A rigor, para os trabalhadores, a luta pela retomada do presidencialismo significava, simplesmente, dar um "voto de confiança" ao presiden- te da República que vinha defendendo publicamente a realização de reformas fundamentais na estrutura da sociedade brasileira. No dia 6 de janeiro de 1963, depois de uma intensa e dispendiosa campanha político-publicitária contra o regime parlamentarista — comandada por Goulart e financiada por setores da burguesia brasileira —, cerca de 13 milhões de eleitores compareciam às urnas. Numa pro- porção de 5 votos para 1, rejeitava-se o regime implantado na cri- se político-militar de agosto de 1961. O regime parlamentarista fracassou pois se revelou altamente ineficaz do ponto de vista administrativo, como também pelo fato de ter-se constituído numa fonte permanente de crises institucio- nais e políticas. O caráter híbrido e dualista do sistema — o pre- sidente da República e o Conselho de Ministros, além de disputarem o controle do Executivo, divergiam quanto aos seus programas e prioridades de governo — dificultava a tomada de decisões que a realidade econômica e social do país urgentemente demandava. Não se sustentam, pois, aquelas interpretações que atribuem exclusiva- mente à "má vontade" ou ao "desinteresse" de Goulart a responsabi- lidade pela "triste sorte" que veio a ter o parlamentarismo no pa- ís. Ressalte-se que o gabinete presidido por Brochado da Rocha buscou agilizar as decisões no campo administrativo e econômico; mas as Reformas de Base e outras medidas que estavam previstas pa- ra serem implementadas esbarraram na intransigente oposição da a- liança PSD/UDN. O Congresso que encerrava a sua legislatura em 1962, sendo majoritariamente conservador, constituiu-se, assim, num forte obstáculo ao encaminhamento de políticas de caráter re- formista oriundas do Executivo (seja da Residência da República, seja do Gabinete). Na crise político-militar de agosto de 1961, os dois maiores partidos conservadores apressaram-se em instituir no país um regi- me que lhes permitiria deter maiores possibilidades para o contro- le do Executivo. Como vimos, em certa medida, foram bem-sucedidos nesse intento, pois conseguiram impor limites e barreiras à ação do Executivo reformista — reconhecidamente mais eficazes do que aqueles tradicionalmente utilizados em regime presidencialista. No entanto, o parlamentarismo — forjado a toque de clarim e em ritmo marcial — não resistiu às inúmeras crises políticas que seu fun- cionamento provocou e não conseguiu resolver. Um governo no trapézio No dia 23 da janeiro de 1963, com a revogação da emenda parla- mentarista, João Goulart reassumia os plenos poderes que a Carta de 1946 conferia ao presidente da República. Após o malogro da ex- periência parlamentarista, todas as indagações políticas resumiam- se na seguinte: conseguiria o governo presidencialista de Goulart superar a crise econômico-financeira, aliviar as tensões sociais e afastar as crises políticas que vinham continuadamente desgastando a administração pública? Não seria exagerado afirmar que — entre os diferentes setores sociais — era praticamente consensual o re- conhecimento de que da solução da crise econômico-financeira de- pendia fundamentalmente o encaminhamento satisfatório dos demais problemas que afetavam o país. As propostas que as diversas clas- ses sociais e grupos políticos ofereciam para resolver os proble- mas da inflação, do déficit da balança de pagamentos, da continui- dade do desenvolvimento econômico etc, não deixavam de ter orien- tações diferentes e, por vezes, antagônicas. A este respeito deve- se ressaltar que os tempos de Goulart constituíram-se em anos "ex- tremamente férteis" na medida em que neles se processaram intensos debates sobre os rumos e direções que deveriam ser trilhados pela economia e sociedade brasileiras. Como observou um economista: "Ao contrário dos anos anteriores, em que reduzidas minorias controla- vam a formulação política, nestes anos novos agrupamentos passaram a fazer ouvirsua voz no processo de decisão social. A política econômica não foi indiferente a este contexto social mais comple- xo" (Carlos Lessa, 15 Anos de Política Econômica) . Como tende a ocorrer em todo regime democrático-burguês, o E- xecutivo anunciava que o seu Plano de Governo tinha condições de resolver em profundidade os impasses e as dificuldades enfrentados pelo conjunto da sociedade brasileira. Essa ambiciosa proposta foi denominada de "Plano Trienal de Desenvolvimento Econômico-Social: 1963-1965", tendo sido elaborada pelo economista Celso Furtado (ministro do Planejamento), com a colaboração de San Tiago Dantas (ministro da Fazenda). A concepção e a execução do Plano Trienal — bem como as reações dos diferentes setores sociais e políticos a ele — contribuem de forma significativa para entendermos o que foi o governo Goulart. A análise da composição do primeiro ministério presidencialis- ta, bem como o exame crítico do Plano Trienal, anunciavam muito expressivamente o estilo conciliador que iria predominar durante o governo Goulart — autêntico "governo de trapézio", segundo o jul- gamento de um jornalista político. No Ministério encontravam-se políticos conservadores do PSD (Antônio Balbino e Amaral Peixoto), petebistas do grupo "fisiológico" (San Tiago Dantas e José Ermírio de Moraes — um dos expoentes da chamada "burguesia nacional"), um petebista do "grupo compacto" ou "ideológico" (Almino Afonso), técnicos "apartidários" como Celso Furtado e militares "duros" co- mo o gal. Amaury Kruel. Por outro lado, o Plano Trienal, na sua formulação teórica, julgava poder harmonizar e satisfazer interes- ses contraditórios — de patrões e empregados, de proprietários e trabalhadores assalariados. Quais os principais objetivos e pro- postas do Plano? Plano Trienal: "combater a inflação com desenvolvimento" Diante das duas mais importantes tendências do comportamento da economia brasileira no início dos anos 60 — "aceleração infla- cionária" (37% em 1961 e 51% em 1962) e "desaceleração do cresci- mento"-(taxa de 7,3% em 1961 e 5,4% em 1962) —, o Plano trienal pretendia compatibilizar o combate ao surto inflacionário com uma política de desenvolvimento que permitisse ao país retomar as ta- xas de crescimento do PIB (em torno de 7%) alcançadas durante o período de 1957 a 1961. Como reconheciam os setores de esquerda, o Plano constituía-se num avanço em relação às teses ortodoxas domi- nantes, pois buscava combater o processo inflacionário "sem sacri- fício do desenvolvimento". Paralelamente a estes dois objetivos principais, o Plano pretendia contribuir para uma melhor distribu- ição dos frutos do desenvolvimento econômico, juntamente com "a redução das desigualdades regionais de níveis de vida". Enfatiza- va, porém, o Plano Trienal, que se o processo inflacionário não fosse reduzido a limites toleráveis, o País — com uma iminente hi- perinflação (prevista em 100% para fins de 1963, caso o plano de estabilização falhasse) — teria toda a sua atividade econômica pa- ralisada e, conseqüentemente, passaria a ser o palco de perigosas lutas sociais. Tanto a análise feita pelo Plano sobre as causas do processo in- flacionário, como as soluções ali apontadas, não deixariam de ser objeto de intensas polêmicas. Do lado do setor externo, admitiam as esquerdas que era correta a afirmação segundo a qual a inflação era provocada pela drenagem de recursos de recursos para o exteri- or (através da "deterioração das relações de trocas") e pela transferência de renda (na forma de subsídios governamentais) para o setor exportador. Contudo, os "remédios" propostos — "refi- nanciamento da dívida externa" e "entrada de recursos externos" para a amortização de empréstimos anteriormente contraídos — eram praticamente ineficazes como medidas antiinflacionárias; além do mais, amortizar dívidas com a entrada de capitais estrangeiros a- gravaria ainda mais o nosso endividamento no exterior. Para as es- querdas, o Plano constituía-se numa nova capitulação ao latifúndio e ao imperialismo: não se propunha a eliminação dos subsídios ao setor latifundiário-exportador nem se reconhecia o papel inflacio- nário representado pelas remessas ao exterior de "juros, lucros e royalties, e a entrega de enorme soma de recursos públicos às grandes companhias estrangeiras, diretamente e através de isenções de impostos e favores cambiais" (H. Hoffmann, "O Plano Trienal e a Inflação", in Estudos Sociais, nº 16). Em relação ao setor público, a estratégia adotada para reduzir a pressão inflacionária consistia num "conjunto de medidas de ação convergente". Destacava, contudo, a "redução do dispêndio público programado" como o mais importante fator responsável pela inflação no País. Contra esta perspectiva, críticos à esquerda advertiam: "(...) o nível de gastos públicos não pode ser comprimido se se quer que a economia se desenvolva" (Paul Singer, Análise Crítica do Plano Trienal). Como se verá mais adiante, a realidade não dei- xará de dar razão a esses críticos. Um plano antipopular e capitulacionista Para o ministro da Fazenda, San Tiago Dantas, o êxito da polí- tica econômico-financeira passava a depender da "compreensão geral das áreas oficiais e não oficiais" acerca da "dramática situação" que enfrentava o País. Era voz corrente, nos círculos oficiais, que "o País não suportaria, no momento, nem reivindicações salari- ais nem a pressão por maiores lucros, e as medidas que se adotam para evitar que à conjuntura desemboque num colapso financeiro de- vem ter a compreensão e a colaboração dos dirigentes das classes produtoras e dos sindicatos de trabalhadores" (Carlos Castello Branco, Introdução à Revolução de 1964). Na perspectiva do gover- no, nivelavam-se, assim, as "boas vontades": de um lado, a dos em- presários que deveriam moderar, provisoriamente, o apetite por lu- cros crescentes; de outro, a dos trabalhadores assalariados, que deveriam deixar de pressionar — adiando, pois, suas greves e rei- vindicações — por salários mais elevados. Ora, bem se sabia que tais reivindicações visavam, simplesmente, recompor para a classe trabalhadora um nível de participação menos deteriorado na renda nacional. (Como mostrou um economista, a partir de 1958, com a ú- nica exceção de 1961, houve uma acentuada deterioração do salário mínimo real.) (Francisco de Oliveira, "Crítica à Razão Dualista", in Estudos Cebrap.) Apesar da sua formulação teórica não conside- rar os salários como fatores inflacionários, na prática, no entan- to, o Plano pedia aos trabalhadores — como sempre o fazem os pla- nos de "salvação nacional" — "colaboração", "paciência" e "patrio- tismo". Mas, acima de tudo, que (novamente) "apertassem os cin- tos"... O entusiasmo governamental começou a se esboçar em fevereiro e março, em virtude do apoio que o Plano recebia de associações das "classes produtoras" (a Confederação Nacional da Indústria, CNI), de governadores de estados etc; contudo, ele sofreria seus primei- ros e fortes abalos com as críticas vindas de setores sindicais e das organizações políticas nacionalistas e de esquerda. Logo nos primeiros dias de fevereiro um manifesto do CGT revelaria que se- ria tormentosa a administração do presidente Goulart. Nesse docu- mento combatia-se a política financeira do Plano Trienal, pois en- quanto este deixava intactos os lucros fabulosos do capital es- trangeiro, dos latifundiários e dos grandes grupos econômicos na- cionais, impunha, por outro lado, maiores sacrifícios às classes populares e trabalhadoras. Um crítico de esquerda assinalaria: "(...) o Plano Trienal visaa combater a inflação sem reduzir o crescimento econômico do país, no que se manifesta, tipicamente, a inspiração da burguesia nacional. Do ponto de vista dos defensores do Plano esta seria uma razão suficiente para que os trabalhadores o apoiassem. A verdade é, porém, que esta não é uma razão sufi- ciente, mas uma razão burguesa e, portanto, inaceitável para os trabalhadores" (Jacob Gorender, "O Plano Trienal e o Combate à In- flação", Novos Rumos, fevereiro de 1963). As críticas avolumaram-se e se intensificaram a partir do mo- mento em que as conseqüências da política de eliminação de subsí- dios ao trigo e ao petróleo (uma das medidas prioritárias no com- bate à inflação) começaram a ser sentidas pelos setores populares. Em fevereiro, calculou-se que o fim da política de subsídios au- mentaria o custo do transporte em 40% e o preço do trigo e do pão em 177%. Nos três primeiros meses de 1963, o índice geral dos pre- ços subiu 16%, enquanto no mesmo período de 1962 o índice de au- mento foi de 8%. A condenação ao Plano, unânime por parte dos se- tores sindicais e populares e das organizações políticas de es- querda (CGT, PUA, FPN, UNE, "grupo compacto" do PTB, etc), iria ter repercussões dentro do próprio Ministério, na medida em que a "diretriz de Almino Afonso no Ministério do Trabalho, ao fortale- cer as direções operárias mais independentes, como o CGT, PUA, etc, colidiu com os interesses de Goulart" (Moniz Bandeira, op. cit.). Do lado dos empresários (particularmente da poderosa indús- tria automobilística concentrada em São Paulo) havia "queixas ge- neralizadas de falta de crédito". Diante das "violentas críticas" destes setores — encampadas pela própria CNI — haverá, no segundo trimestre de 1963, o relaxamento da política monetária que fará os meios de pagamento crescerem de 179,4 bilhões de cruzeiros contra a expansão projetada de 74,1 bilhões, "o que afetou definitivamen- te o esquema do Plano Trienal" (C. Lessa, op. cit.). Os aspectos antinacionais da política econômico-financeira do governo Goulart ficariam também evidenciados quando das conversa- ções entre Brasil e EUA acerca da negociação da assistência econô- mica norte-americana e refinanciamento da dívida externa. Em março de 1963, San Tiago Dantas viajava a Washington com um forte argu- mento para convencer o governo norte-americano a fornecer assis- tência financeira ao Brasil: o Plano Trienal era a decisiva prova de que o País passava a se enquadrar dentro do receituário econô- mico-financeiro propugnado pelo governo dos EUA e pelo FMI. Mas- os EUA, além de exigirem um compromisso formal por parte do gover- no brasileiro de que o plano "não ficaria apenas no papel", impu- seram ainda uma nova condição para a concessão do empréstimo soli- citado: o governo Goulart deveria resolver com a máxima urgência a questão da desapropriação da AMFORP (American Foreign Power, sub- sidiária da Bond & Share). Duas cartas de Goulart foram entregues a Kennedy por intermédio de San Tiago Dantas: nelas o governo bra- sileiro comprometia-se a cumprir as duas exigências norte-ameri- canas. (Entre os políticos norte-americanos circulava a versão de que a chamada "ajuda externa" dos EUA era freqüentemente desperdi- çada pela má administração aos governos latino-americanos. No caso brasileiro, deixava, pois, de ser informado que, "na verdade, o que ocorria não era uma transferência de capitais dos EUA para o Brasil e, sim, ao contrário, um escoamento de recursos do Brasil para os EUA". Entre 1947 e 1960 entraram (empréstimos e investi- mentos) US$ 1.814 milhões e "saíram no mesmo período.... US$ 2.459 milhões sob a forma de remessas de lucros e juros, deixando um saldo negativo da ordem de USS 645 milhões" que, "acrescidos de US$ 1.022 milhões, sob a rubrica Serviços, ou seja, remessas de lucros clandestinas, perfaziam um total de USS 1.667 milhões. Em suma, num período de 13 anos, um volume considerável de dólares foi transferido do Brasil para os EUA. Rigorosamente, exportávamos muito mais capitais do que recebíamos" — Moniz Bandeira, op. cit.) Para tornar ainda mais complicada a situação do governo brasi- leiro nas negociações de Washington, um porta-voz do Departamento de Estado — baseado nos relatórios de Mr. Gordon enviados regular- mente da embaixada norte-americana no Brasil — alertava a opinião pública de seu país sobre a "perigosa atuação de comunistas" den- tro da assessoria técnica de Goulart. Apesar das duas cartas do governo brasileiro (onde se garantia o acatamento às exigências norte-americanas) e de uma solene declaração oficial que negava a existência de "esquerdistas" na assessoria governamental, os EUA aprovaram um empréstimo de apenas USS 84 milhões, prometendo USS 314,5 milhões para o ano fiscal de 1964, caso as medidas de con- tenção inflacionária fossem efetivamente aqui aplicadas; antes, contudo, deveriam elas ser aprovadas por uma comissão do FMI, cuja visita ao Brasil estava prevista para meados de 1963. Embora os "brios nacionalistas" do governo brasileiro fossem feridos — noti- ciou-se que San Tiago Dantas ameaçara abandonar as negociações com os EUA —, "razões pragmáticas" fizeram com que as imposições nor- te-americanas fossem aceitas, conforme se verificou através do a- cordo Dantas/ Bell. O caso da compra da AMFORP — o "escândalo da AMFORP" como fi- cou conhecido na imprensa da época — transformou-se em grave pro- blema político para a administração Goulart. Enquanto retirava os subsídios para o trigo e o petróleo e cortava alguns investimentos públicos, sob o pretexto de combater a inflação, o governo brasi- leiro anunciava, em fins de abril, que se ultimavam os entendimen- tos para a compra da AMFORP (que congregava 12 empresas de servi- ços públicos). San Tiago Dantas e Roberto Campos (que a esquerda nacionalista ironicamente chamava de "Bob Fields", por ser ele um "refinado entreguista") tinham acertado com os representantes da empresa norte-americana o valor da transação: 188 milhões de dóla- res. Na mesma ocasião, um grupo de trabalho integrado por técnicos brasileiros (CONESP) — dissolvido logo a seguir por Goulart — ava- liava os bens da AMFORP em torno de 57 milhões de dólares. Para os setores nacionalistas, estava-se diante de uma imensa negociata, pois, além do preço extorsivo, as 12 usinas norte-americanas esta- vam obsoletas, constituindo-se em verdadeiro "ferro velho". Tais denúncias tiveram ampla repercussão Política. Goulart recuou, pro- telando a realização da compra, para desagrado do governo norte- americano. (Em outubro de 1964, demonstrando eloqüente "boa vonta- de" para com os empresários e governo dos EUA, o governo do mal. Castelo Branco adquiria a AMFORP.) O prestígio político de Goulart foi seriamente abalado neste episódio; inclusive os setores conservadores não lhe pouparam du- ras críticas, ao ser conivente com negociações que os grupos na- cionalistas classificavam de autêntico "crime de lesa-pátria". O plano, antes de completar 6 meses de duração, inviabilizava-se po- lítica e economicamente. Nem os emprésários, nem os trabalhadores lhe ofereciam qualquer apoio. Em maio, o Ministério da Fazenda, diante das fortes pressões dos assalariados, tomava uma decisão inteiramente contrária às projeções do Plano, ao conceder um au- mento de 70% aos funcionários civis e militares, quando estava previsto apenas 40%. De outro lado, como já foi mencionado, o go- verno — face às reivindicações de setores industriais — voltaria atrás em suas medidas de contenção do crédito. O malogro do Plano se revelou de forma completa ao se proceder ao balanço do ano de 1963: nem desaceleraçãoda inflação, nem ace- leração do crescimento foram alcançadas. Houve, sim, inflação sem desenvolvimento. Razão, pois, tinham os críticos de esquerda quan- do — denunciando a retórica progressista do Plano — advertiam para os aspectos recessionistas, antipopulares e antinacionais das me- didas concretas ali propostas. As reformas: como garantir a propriedade e impedir a "convulsão social" Outra batalha política que esteve em pauta durante todo o go- verno Goulart foi a das Reformas de Base (Agrária, Bancária, Admi- nistrativa, Fiscal, Eleitoral, Urbana, etc). Recorde-se que esta problemática fazia parte dos programas dos três gabinetes parla- mentaristas e agora aparecia como um dos objetivos básicos do Pla- no Trienal. (Como se encarregavam de divulgar os confidentes e cronistas palacianos, Goulart queria notabilizar-se na história política do Brasil como o "presidente da Reforma Social".) Reco- nhece-se, no entanto, que a bandeira das Reformas passou a ser em- punhada pelo governo, de forma mais enérgica, no período presiden- cialista, apenas a partir do instante em que se começou a perceber o malogro do Plano Trienal. Logo nos primeiros meses do ano, aná- lises feitas pelas esquerdas não apenas denunciavam o "cozimento em água fria das reformas" — amplamente agitadas por Goulart du- rante a campanha do Plebiscito —, como também passavam a duvidar do conteúdo efetivamente transformador de que poderiam se revestir as propostas governamentais (Caio Prado Jr., Revista Brasiliense, nº 44). Qual seria, enfim, a perspectiva oficial acerca das Refor- mas de Base? Assinala um sociólogo que, na visão dos governantes, "se não houvesse Reformas de Base (...) não se criariam as novas 'condi- ções institucionais' para o desenvolvimento de outra etapa da eco- nomia brasileira" (Octavio Ianni, Estado e Planejamento Econômico no Brasil); significava isso — conforme o reconhecimento do pró- prio Plano Trienal — que as Reformas de Base eram indispensáveis, ao lado do planejamento, a fim de que o capitalismo industrial brasileiro pudesse alcançar um nível de desenvolvimento superior. Afirmava o Plano, por exemplo, que as reformas fiscal e agrária eram essenciais se se pretendesse a "eliminação de entraves insti- tucionais à utilização ótima dos fatores de produção". Razões eco- nômicas e sociais impunham a urgente realização das reformas, den- tre elas a que mais debates provocou naquele período: a Reforma Agrária. De um lado, era preciso aumentar a produção agrícola (alimen- tos que suprissem as demandas da população urbana em crescimento; matérias-primas para a expansão industrial etc), ao mesmo tempo que se buscava criar um mercado interno mais amplo para os bens manufaturados. De outro lado, prevendo-se situações incontroláveis de tensões e distúrbios sociais, propunha-se uma melhor redistri- buição da terra (em mãos de um reduzido número de latifundiários e freqüentemente mantida de forma improdutiva). É exemplar a este respeito o testemunho de um dos mais íntimos colaboradores de Gou- lart, acerca da concepção que este defendia de Reforma Agrária: "(...) o que Jango tentava fazer não tinha nada de muito ousado nem de radical. Ele dizia sempre que, se o número de proprietários rurais fosse elevado de 2 para 10 milhões, a propriedade seria muito melhor defendida, e simultaneamente possibilidades maiores seriam abertas a mais gente de comer mais, de se educar melhor, de viver mais dignamente. Por isso é que Jango, latifundiário, queria fazer a Reforma Agrária para defender a propriedade e assegurar a fartura, evitando o desespero popular e a convulsão social" (Darci Ribeiro, "Governo Goulart caiu por suas qualidades, não por seus defeitos", in A História Vivida II — O ESP, grifos nossos). Apesar de não ter nenhum sentido revolucionário, corresponden- do, pois, de um lado, às necessidades da consolidação do capita- lismo industrial e, de outro lado, à estratégia da dominação soci- al burguesa, a Reforma Agrária proposta por Goulart será objeto de intensa e constante oposição por parte dos proprietários rurais e seus setores políticos, de setores da Igreja Católica, etc. (Re- corde-se que, no período parlamentarista, idêntica foi a reação desses grupos. A diferença estava no fato de que naquele momento Goulart não tinha ainda formulado oficialmente a sua proposta de Reforma Agrária e de Reforma Constitucional.) Tais setores não ad- mitiam, por exemplo, a alteração dos preceitos constitucionais sob a alegação de que — caso isso viesse a ocorrer — corria-se o risco de ser invalidado o estatuto da propriedade privada no Brasil... Além do mais, conforme assinalou um historiador, as demais refor- mas propostas (eleitoral, educacional etc.) poderiam implicar a "alteração do equilíbrio político" e permitia até então a hegemo- nia das forças conservadoras e de direita, particularmente no Le- gislativo. A preocupação política maior das classes dominantes di- ante das possíveis mudanças no campo são ressaltadas por uma estu- diosa: "Havia, sem dúvida, o incontrolável temor de se ver ingres- sar na cena política camadas sociais constituídas em 'clientelas políticas' que pudessem ser enquadradas, tal como o fora a classe operária com Getúlio Vargas. Tais temores eram, sem dúvida, reali- mentados pela aceleração da eclosão de conflitos rurais, que cada vez mais se orientavam para a ocupação de terras" (Aspásia Camar- go, op. cit.). Enquanto setores do PSD — apesar dos fortes compromissos do partido com os proprietários rurais — chegaram, num primeiro mo- mento, a aceitar a discussão do anteprojeto do Executivo, a UDN fechava a questão contra qualquer alteração constitucional. Mas, a posição do PSD será outra a partir da Convenção da UDN realizada em abril de 1963. (Na cronologia do golpe de 64, esta reunião da UDN teve um papel decisivo: nela, ilustres figuras do partido de- fenderam a intervenção das Forças Armadas e dos EUA a fim de porem termo ao "comunismo legal" de Goulart.) Influenciado pelas mani- festações das chamadas "bases" da UDN, o PSD recuará definitiva- mente face às suas primeiras conversações com o governo. Tal fato mostrou-se de forma evidente na votação da "emenda Bocaiúva" (e- menda constitucional, apresentada pelo PTB, que buscava tornar fi- nanceiramente viável a Reforma Agrária). Por 7 votos (PSD, UDN e PSP) contra 4 (PTB e PDC), a emenda seria rejeitada na Comissão Especial da Câmara, no mês de maio. Em Plenário, a emenda foi der- rotada, em outubro, graças à aliança PSD e UDN — após intensa mo- bilização dos proprietários rurais, comandados principalmente pela Confederação Rural Brasileira(CRB). Como ainda observaria a autora acima, a partir do veto na Co- missão Especial, os setores nacionalistas desencadeariam uma cam- panha de pressão nacional sobre o Congresso para a imediata apro- vação das reformas. Através de comícios, passeatas, manifestos, os setores nacionalistas e populares exigem "reformas já!", ao mesmo tempo que denunciam o reacionarismo do Congresso controlado pelo PSD UDN e pelo "milionário IBAD". (Brizola diria que o PSD e a UDN, ao exigirem o pagamento prévio e em dinheiro, tornavam a questão agrária em autêntico "negocio agrário".) De outro lado, após ter sido batido na Comissão Especial, Gou- lart — apesar das fortes críticas vindas dos grupos nacionalistas e de esquerda — volta-se novamente para o PSD. Em busca de apoio, aceita mudanças no anteprojeto de Reforma Agrária do executivo, a fim de torná-lo "menos radical" e, assim, aceitável para o conser- vadorismo do PSD. Para isso, afastou toda a "assessoria gaúcha", vinculadapoliticamente a Leonel Brizola, que não concordava em fazer "concessões programáticas" no anteprojeto. Porém, serão in- frutíferos os esforços do novo ministro da Justiça, Abelardo Jure- ma, figura de relevo do PSD, a quem foi atribuída a específica ta- refa de articular a antiga aliança PSD/PTB. (Jurema sintetizaria a visão conciliadora do governo através de uma famosa frase: "O PSD sem o PTB irá para a reação; o PTB sem o PSD irá para a Revolu- ção".) Idêntica missão foi confiada a Tancredo Neves (PSD) ao ser indicado líder da bancada do Governo na Câmara. Porém, o fosso en- tre o PTB e o PSD aprofundava-se na razão direta da aproximação deste com a UDN, os quais se alarmavam com a "agitação social", a "desordem" e a "comunização crescente do país" promovidas — segun- do estes — por Goulart, pelo PTB e pelas "forças subversivas" (CGT, UNE, FMP, etc). De outro lado, os setores nacionalistas e de esquerda, criti- cavam Goulart pela sua indecisão e indefinição em relação a uma série de medidas concretas de caráter nacionalista e popular que poderiam ser tomadas pelo governo, independentes de qualquer re- forma constitucional. Entre essas medidas — algumas delas defendi- das pelo próprio presidente em seus discursos — ressaltavam as se- guintes: regulamentação da Lei de Remessa de Lucros (aprovada pelo Congresso, mas "engavetada" pelo Executivo); nacionalização das concessionárias de serviços públicos, moinhos, frigoríficos e in- dústria farmacêutica; intervenção no mercado de gêneros alimentí- cios; monopólio das operações de câmbio pelo Banco do Brasil; mo- nopólio das exportações de café pelo IBC; ampliação do monopólio estatal do petróleo, etc. Administrativamente pouco se realizava, pois o governo se con- sumia em sucessivas crises políticas. Como assinalavam os observa- dores políticos, havia — do ponto de vista administrativo — "uma pasmaceira geral contaminando todas as hostes governistas"; da mesma forma, o Congresso apresentaria em 1963 um dos seus períodos de maior improdutividade legislativa. Esta realidade dava munição aos setores de direita que alardeavam a "incompetência administra- tiva" do Executivo e a "crise de autoridade". O isolamento e debilidade política do governo A sucessão de crises políticas advinha das contradições em que se debatia o governo: ao mesmo tempo que agitava a bandeira do nacio- nalismo e das Reformas — solicitando, pois, o apoio das massas po- pulares e dos setores políticos de esquerda — Goulart, por outro lado, protelava indefinidamente a realização de medidas populares, afastava colaboradores ideologicamente progressistas, combatia os setores independentes (não pelegos) do movimento sindical, conde- nava abertamente iniciativas políticas de esquerda (em abril de 1963, na cidade de Marília, SP, usou a típica linguagem de direita ao proibir um congresso "comuno-fidelista"). As concessões à rea- ção não se reduziam a estes fatos, pois o governo reservava os cargos mais importantes da administração federal (particularmente aqueles responsáveis pelapolítica econômico-financeira) apenas pa- ra os representantes das classes dominantes, indicava também "du- ros" das Forças Armadas para estratégicos postos de comando e man- tinha compromissos com o conservador PSD. Sob a permanente desconfiança da direita e da esquerda, o go- verno Goulart acabaria isolando-se politicamente. A ambigüidade e a debilidade política do governo se mostrariam de forma definitiva no episódio do Estado de Sítio. No dia 4 de outubro, o presidente da República encaminhava ao Congresso mensagem solicitando a de- cretação do Estado de Sítio em todo o território nacional, pelo prazo de 30 dias. A justificativa do Ministério da Justiça escla- recia que o Executivo necessitava de poderes especiais para impe- dir "grave comoção intestina com caráter de guerra civil" que pu- nha em "perigo as instituições democráticas e a ordem política". Explicitamente eram indicadas algumas das situações internas que perturbavam a ordem institucional: "manifestações coletivas de in- disciplina" nas polícias militares de alguns estados; "sublevação de graduados e soldados" (Revolta dos Sargentos) que punha em ris- co a disciplina e hierarquia militares; as freqüentes reivindica- ções salariais que passavam a "ser fatores de agravamento da crise político-social" (na ocasião ocorria a greve dos bancários em São Paulo e o PUA anunciava a decretação de uma greve geral caso aque- la paralisação fosse julgada ilegal por parte da justiça traba- lhista) e, por fim, o fato de existirem governadores de importan- tes estados "conspirando contra a Nação". A ira de Goulart e de seus ministros militares voltava-se particularmente contra o go- vernador da Guanabara que, em entrevista a um jornal norte-ameri- cano (Los Angeles Times), havia ridicularizado a autoridade do presidente da República, além de insinuar que os militares brasi- leiros estavam confusos e desorientados diante de uma administra- ção inteiramente "desastrosa" para o país. Coerente com a "vocação golpista" de seu partido, Carlos Lacerda conclamava o Departamento de Estado a deixar de lado sua "passividade" face à grave situação em que se encontrava o Brasil, presidido por um "totalitário à mo- da sul-americana" e que "descambava para a esquerda". Não havia dúvida de que o Estado de Sítio objetivava, imediatamente, a in- tervenção na Guanabara e a conseqüente derrubada do conspirador- mor da UDN. (Carlos Lacerda afirmaria, posteriormente, que havia escapado, naqueles dias, de um atentado por parte de um comando pára-quedista a mando de Goulart. Embora a denúncia fosse negada por oficiais militares, a UDN e o PSD conseguiram aprovar a cons- tituição de uma Comissão Parlamentar de Inquérito a fim de apurar a denúncia de Lacerda.) Logo a seguir, caso manifestasse solidari- edade ao seu aliado da Guanabara, poderia "rolar a cabeça" do go- vernador de São Paulo, Adhemar de Barros — acusado de fornecer ar- mas (contrabandeadas da Bolívia) a grupos paramilitares ("milícias patrióticas"). Mas, indagavam os setores de esquerda: quem garanti- ria que Miguel Arraes também não fazia parte da "lista de sanea- mento" elaborada pelos militares, com a inteira complacência de Goulart? Idêntica pergunta faziam as lideranças sindicais e popu- lares de todo o País acerca do destino que viriam a ter as organi- zações em que militavam. Embora por razões distintas, todos os grupos políticos e asso- ciações de classe — à direita e à esquerda — opuseram-se à conces- são do Estado de Sítio (apenas os setores "pelegos" do movimento sindical e fração do PTB tradicionalmente fiel a Goulart tentaram o apoio inútil à medida de força). Os setores nacionalistas e de esquerda viam no Estado de Sítio uma grave ameaça às liberdades democráticas e aos movimentos progressistas. Afirmava, por exem- plo, uma nota do CGT: "Somos, por princípio, contrários ao Estado de Sítio porque entendemos que a manutenção e ampliação das liber- dades democráticas são meios insubstituíveis e necessários às lu- tas contra os inimigos do Brasil e aos interesses da povo". A di- reita, por seu lado, via no Estado de Sítio uma tentativa de golpe tramada por Goulart a fim de permanecer no poder, tal como o fize- ra Getúlio Vargas em 1937. Diferentemente da ditadura estadono- vista, estaríamos, então, face a uma "ditadura esquerdizante", proclamavam os setores de direita. Quem dará o golpe? Nos meses seguintes ao frustrado pedido de Estado de Sítio — retirado pelo governo tão logo se deu conta da fragorosa derrota que sofreria no Congresso —, ressurgiria, mais vigorosamente
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