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, , o novo espírito do capitalismo , ' ,L o novo espírito do capitalismo , Lue Boltanski e Eve Chiapello \ Tradução IVONE C. BENEDETTI Revisão técnica BRASÍLIO SALLUM JR. ~ WI1 if martinsfontes SÃO P/lU LO 2009 ÍNDICE Agradecimentos ................................. '" ...................................................... . Prólogo ....................................................................................................... . Um capitalismo regenerado e uma situação social degradada .............. .. A ameaça ao modelo de sociedade do pós-guerra e a perplexidade ideo- lógica ..................................................................................................... .. INTRODUÇÃO GERAL O espírito do capitalismo e o papel da critica 1. O espírito do capitalismo .................................................................... . Uma definição mínima do capitalismo .................................................. . A necessidade de um espín'to para o capitalismo ................................... . D 'fi 't "t d 't I' e que e el o o espm o o capl a lsmo ........ ......................................... .. Os diferentes estados históricos do espírito do capitalismo ................... .. Origem das justificações incorporadas no espírito do capitalismo .......... . As cidades como pontos de apoio nonnativos para construir justificações .. O espírito do capitalismo legitima e restringe o processo de acumulação. 2. O capitalismo e seus críticos ............................................................... . Efeitos da crítica sobre o espírito do capitalismo .... ............................... .. Provas de força e provas legitimas ......................................................... . O papel da crítica na dinâmica das provas .............. .............................. . Fonnas históricas da crítica ao capitalismo .......................................... .. Incompletude da crítica ............................................... ........................... . Modificações do espírito do capitalismo que independem da crítica ...... . 13 19 20 25 31 35 35 38 43 49 52 55 58 61 62 65 67 71 76 78 ~"'~.':""-. ,,. ". r ,'I, PRIMEIRA PARTE Emergência de uma nova configuração ideológica 81 I. O DISCURSO EMPRESARJAL DOS ANOS 90 ............................................. . 83 1. Fontes de informação sobre o espírito do capitalismo ..................... . 83 A literatura da gestão empresarial como 110rmatividade do capitalismo 83 Sobre os textos centrados 110 mobilização dos executivos ........................ . 89 2. Evolução da problemática da gestão empresarial dos anos 60 aos anos 90 .................................................................................................. . 91 Anos 60: em defesa da admillÍstração por objetivos ............................... . 91 Anos 90: rumo ao modelo de rede de empresas ...................................... . 98 3. Mudança nas formas de mobilização ................................................ . 117 Anos 60: estímulo ao progresso, certeza nas carreiras ............................ . 117 Anos 90: realização pessoal graças à multiplicidade de projetos ............ . 121 Conclusão: A nova gestão empresarial respondendo a críticas ........... . 129 lI. F01;:'\lAÇÃO DA CIDADE rOR PROJETOS ................................................ . 133 1. A cidade por projetos .......................................................................... . 138 Princípio de julgmliellto e hierarquia dos seres na cidade por projetos .. ' 139 Formas de justiça da cidade por projetos .............................................. .. ' 154 Antropologia e naturalidade da cidade por projetos ............................... . l(iO 2. Originalidade da cidade por projetos ............................................... . 162 Em relação à cidade inspirada ............................................................... . l(i2 Em relação à cidade mercantil .............................................. ................. . 163 Em relação à cidade da fama ................................................................. . 166 Em relação à cidade doméstica .............................................. ................. . 167 Em relação à cidade industrial... .............................. .............................. . 170 Especificação do corpus dos anos 90 pela cidade por projetos ............... . 171 3. Generalização da representação em rede .......................................... . 174 Proliferação dos trabalhos sobre redes ................................................. ... . 174 A rede: do ilegítimo ao legítimo ............................................................. . 177 Observações sobre a origem dos trabalhos acerca das redes ................... . 179 Naturalização das redes lias ciêucias sociais .......................................... . 186 Conclusão: Mudanças provocadas pelo novo espírito do capitalismo no plano mora1. ................................................................... . 189 l \ h Mudança da relação com o dinheiro e as propriedades .......................... 189 Mudança da relação com o trabalho................................. ..... ................. 192 SEGUNDA PARTE Transformações do capitalismo e desarmamento da critica 195 m. 1968, CRlSE E RENOVAÇÃO DO CAPITALISMO ........................................ 197 1. Anos críticos.......................................................................................... 199 Associação entre crítica social e crítica estética ....................................... 199 Desorganização da produção................................................................... 203 Reivindicações........................................................................ ................. 206 2. Reações e respostas às críticas............................................................. 209 Primeira resposta em termos de crítica social......................................... 211 Segunda resposta em termos de crítica estética .......... ............................. 218 A geração 68 /10 poder: os socialistas e a flexibilidade ............................ 230 Conclusão: Papel da crítica na renovação do capitalismo ..................... 234 IV. DESCONSTRUÇÃO DO MUNDO DO TRABALHO........ ............................. 239 1. Extensão das transformações em pauta.............................................. 240 Mudanças da organização intema do trabalho....................................... 240 Transfomwções do tecido produtivo ........................................................ 242 2. Transformações do trabalho................................................................. 247 Precarização do emprego ......................................................................... 247 Dualização dos assalariados ............ .................. ............ ....... .................. 254 Resultado de um processo de seleção/exclusão.... ............ ............. ............ 258 Redução da proteção aos trabalhadores e retrocesso social...................... 270 Aumento da intensidade do trabalho sem mudança do salário............... 272 Repasse dos custos trabalhistas para o Estado ........................................ 280 V. ENFRAQUECIMENTO DAS DEFESAS DO MUNDO DO TRABALHO ............ 285 1. Dessindicalização.................................................................................. 286 Amplitude da dessir/dicalização .............................................................. 287 Repressão aos si11dicatos ............................................ ................... 292 Reestruturações como f 011 te da dessi11dicnlização.......................... 295 Co/no o nova gestão empresarialsc livrou dos sindicatos............. . 298 A ambiguidade paralisante dos novos dispositivos.. ....... ..... .... ........ ....... 300 Efeitos não previstos dos avanços legislativos... ... ..... ....... ... ...... ... ... ... ..... 303 O sindicalismo como vítima quase conivente da crítica estética ..... ........ 306 O funcionamento sindical desfavorável à sindicalização ........................ 309 2. Questionamento das classes sociais ........................... ........................ 311 Representação da sociedade como conjunto de classes sociais no âmbito de um Estado-nação ................................................................................ 312 Crise do modelo das classes sociais ......................................................... 316 Papel dos deslocamentos do capitalismo no processo de desconstrução das classes sociais.......................................................................................... 318 Efeito do questionamento das classes sociais sobre a crítica.................... 329 Efeito da descategorização sobre as provas do trabalho.. ........ ...... .......... 332 3. Efeitos dos deslocamentos do capitalismo sobre as provas regula- mentadas ............................................................................................... 333 Papel da categorização na orientação das provas para a justiça ............. 334 Deslocamentos e descategorização: da prova de grandeza à prova de força .. 339 Identificação das novas provas e reconstituição de categorias de julga- mento ...................................................................................................... 342 Conclusão: O fim da crítica? .................................................................... 344 TERCEIRA PARTE O novo espírito do capitalismo e as novas formas da crítica 349 VI. RENASCIMENTO DA CRÍTICA SOCIAL .................................................. .. 351 1. O despertar da crítica social: da exclusão à exploração .................... . 353 Das classes sociais à exclusão ................................................................ . 353 Ação humanitária .................................................................................. . 356 Novos movimentos sociais ..................................................................... . 358 Dificuldades da exclusão como conceito crítico ....................................... . 361 Atitudes egoístas num mundo conexionista .......................................... .. . 363 Exploração num mundo em rede ............................................................ . 369 A exploração das pessoas imóveis pelas móveis em momentos de prova .. 375 2. Rumo a dispositivos conexionistas de justiça? .................................. . 383 Elementos de uma gramática geral da exploração .. ................................ . 383 Condições para a instauração da cidade por projetos ............................. . 387 Visão de conjunto das propostas para reduzir a exploração conexionista 392 l __ L Novos quadros para recCl1sear as contribuições .......... ............................ 394 Rumo a regras mais justas de remuneração ................ ............................ 397 Rumo à igualdade das chances de 1I10bilidade ........................................ 405 Conclusão: O lugar do direito ................................................................. 414 VII. À PROVA DA CRÍTICA ESTÉTICA ................................ ............................ 417 1. Manifestações de uma inquietação ..................................................... 419 A anomia num mundo conexiOlústa............................................ ............ 419 Indicadores de anomia hoje..................................................................... 421 2. Que libertação? .................... ... .............................................................. 423 A libertação oferecida pelo primeiro espírito do capitalismo ....... ............ 424 Crítica ao capitalismo como fator de libertação ...................................... 426 Do segundo espírito do capitalismo à sua fomw atual........................... 428 Autorrealização imposta e novas formas de opressão.............................. 429 Os dois sCl1tidos de "libertação" de que se vale o capitalismo em sua cooptação................. ... ........................................... ........... ............ ... ........ 434 3. Que autenticidade?.............................................................................. 440 Crítica à inautenticidade associada ao segundo espírito do capitalismo: uma crítica à massificação .. .................................................. .................. 440 Mercantilização da diferença como resposta do capitalismo ................... 444 Fracassos da mercadização da autenticidade e retomo da inquietação ... 445 Suspeita sobre os objetos: o exemplo dos produtos ecológicos .................. 450 Uma nova demanda de autCl1ticidade: a crítica ao fabricado ................. 452 4. Neutralização da crítica à inautenticidade e seus efeitos perturba- dores ....................................................................................................... 454 Desqualificação da busca de autenticidade ................. ............................ 456 A inquietação sobre as relações: mtre a amizade e os negócios............... 459 A nova gestão empresarial e as dmúncias de manipulação .................... 462 Ser alguém e ser flexível.. ............................................ ............................ 466 A cidade por projetos e a redefinição do mercantilizável......................... 468 Conclusão: Resgate da crítica estética? ................................................... 472 Garantias no trabalho como fator de libertação ...................................... 474 Limitação do campo do mercado ............................................................. 477 , ' .' I II l I CONCLUSÃO A força da crítica 479 L Axiomática do modelo de mudança """""",,""","""",,""""",,"""" 481 2, Etapas da mudança do espírito do capitalismo .""""" .. """""""""" 489 A crítica em regil/le de acordo sobre as provas importantes .................... 489 Tel1são das provas regulamel1tadas sob efeito da crítica ..... ".................. 492 Desloca1l1f11tos e esquivas às provas regulamentadas ............................. 496 Os deslocamentos el1contram seus primeiros elementos de legitimidade ao tirar partido dos diferel1ciais el1tre as forças críticas ........... "............. 501 Neutralização da crítica às provas regulamf11tadas sob o efeito dos des- locamentos .. " ................................. , ................................... , ............ ,........ 504 Retomada da acumulação e reestruturação do capitalismo." ............. "... 508 Efeitos destruidores dos deslocamel1tos e riscos criados para o próprio capitalismo ...... , ...... " ....................... " ...... ................................................ 508 Papel da crítica na idf11tificação dos perigos ........................................... 513 Retomada da crítica ............... " .............. " ................................ ,,"........... 515 Construção de 11OVOS dispositivos de justiça ..... " .................... "." .......... " 518 Formação das cidades ........... " .. " .... " ........... "." ... " ............. " .... "............ 519 POST-SCRIPTUM A sociologia contra os fatalismos 525 APÊNDICES 535 Al1exo 1 - Características dos textos de gestão empresarial utilizados". 537 Anexo 2 - Lista dos textos-fonte dos corpom de gestão empresarial.... 539 Anexo 3 - Imagem estatística global dos textos de gestão empresarial.. 543 A11exo 4 - Presençarelativa das diferentes "cidades" nos dois corpara." 550 Notas ...... " .. , .. , ............. " .. , .. , ... , ...... , ...... , .. " ................ , ..... , ............. , ..... ",,, .. Bibliogm fia., ..... , .. , ... , .. " .. , .. , .... , .. , ... , .. , ..... , ... , ......... , ....... " .. ............... , .. , .. " .. . Í11dice dos 110111es próprios ., ... , ...... , .. , ... , ............ , ...... , ... ,.,., ......... , ......... , ...... . Í11dice remissivo .... " .. " .. , ...... , ............. , .. , ... , ......... , ...... , ... , .......... , ................ . \ 555 653 679 691 r , 6 AGRADECIMENTOS Esta obra pôde ser levada a termo graças à participação e ao apoio de numerosas pessoas que, de diversas maneiras, contribuíram com seu tempo, seus conhecimentos e sua atenção, quando não também com a amizade - não menos necessária à realização de um programa de longo prazo -, a afeição ou, sobretudo no que tange aos mais próximos, com uma incansá- vel resistência. A todos consignamos aqui os nossos agradecimentos. Para a preparação desta obra contamos com o respaldo financeiro do grupo HEC e da fundação HEC, bem como com o apoio de Gilles Laurent, então diretor de pesquisas, e de Bernard Ramanantsoa, diretor-geral do grupo HEC, bem como dos subsídios do grupo de sociologia política e mo- ral (EHESS-CNRS), com especial destaque para a ajuda inestimável ofere- cida pela secretária do grupo, Danielle Burre. Sem o auxílio de Sophie Montant, não teríamos levado a bom termo, pelo menos dentro de prazos razoáveis, o trabalho difícil e não raro ingra- to de constituir os corpara de textos de gestão empresarial e em preparar em computador os arquivos destinados à operação por meio do aplicativo Prospero@, cujo manejo os seus criadores - Francis Chateauraynaud e Jean- Pierre Charriaud - nos ensinaram com grande competência. Yves-Marie Abraham, sociólogo e doutorando do HEC, e Marie-Noelle Godet, engenheira do CNRS (GSPM), ajudaram-nos a completar a documen- tação, o primeiro compilando dados estatísticos, a segunda analisando as notícias políticas e sindicais dos anos 70 e 80. A versão final deste livro é produto de um trabalho longo e cansativo de clarificação, depuração e também destilação, com o objetivo de passar de UIn manuscrito quase intransportáve} para U111 objeto que, apesar de não ser cxatalncntc aerodinâmico, fosse pelo Incnos mais Inancjável. Este tra- :-.. 14 o novo espírito do capitalismo balho deve muito às discussões mantidas com pessoas próximas, em especial com Laurent Thévenot e com nossos diferentes leitores: Francis Chateau- raynaud, Bruno Latour, Cyril Lemieux e Peter Wagner leram fragmentos ou versões intermediárias, contribuindo com críticas vivazes. Agradecemos. Isabelle Baszanger, Thomas Benatouil, Alain Desrosieres e François Eymard- Duvernay encarregaram -se da tarefa ingrata de ler tudo e propor aclara- mentos' emendas e complementos. Élisabeth Claverie, ao longo de toda a redação deste livro, contemplou-nos com suas observações pertinentes e com seu apoio afetivo. Mas o acompanhamento mais constante decerto nos foi dado por Lydie Chiapello e Guy Talbourdet, que leram várias vezes o manuscrito sem esmorecimento da vigilância. A versão final contém a marca de sua sagacidade. Apresentamos juntos e submetemos à prova grande número de temas desenvolvidos neste livro em diferentes seminários, especialmente no se- minário "Ordens e classes", dirigido por Robert Descimon na EHESS (onde as críticas implacáveis, mas perspicazes, de P. -A. Rosental nos estimula- ram)' e no seminário "Os mundos possíveis", organizado na École norma- le supérieure por Thomas Bénatoui1 e Elie During. Tiramos grande proveito da contribuição do seminário semanal dirigido por Luc Boltanski na EHESS. A possibilidade que tivemos de assim submeter à discussão diferentes es- tágios de elaboração deste trabalho constituiu inestimável vantagem. Tam- bém foram muito proveitosos os trabalhos apresentados nesse seminário por doutorandos ou pesquisadores pertencentes a outras instituições. Fo- ram de grande utilidade as observações e exposições de Yves-Marie Abra- ham (sobre os mercados financeiros), Thomas Bénatoui1 (sobre a relação entre sociologia pragmática e sociologia crítica), Damien de Blic (sobre os escândalos financeiros), Damien Cartron (sobre as técnicas de supervisão direta do trabalho), Sabine Chalvon-Demersay (sobre as representações atuais da família), Julien Coupat (sobre o situacionismo), Emmanuel Didier (sobre a formação da noção de exclusão), Claude Didry (sobre os planos sociais), Pascal Duret (sobre a prova esportiva), Arnaud Esquerre (sobre a noção de manipulação), François Eymard-Duvernay e Emmanuelle Mar- chai (sobre os métodos de recrutamento), Francis Ginsbourger e Francis Bruggeman (sobre as contraperícias realizadas a pedido de comitês de em- presa), Christophe Hélou (sobre a resistência ao controle), Jacques Hoarau (sobre Marx e a moral), Dominique Linhardt e Didier Torny (sobre a ras- treabilidade num mundo em rede), Thomas Périlleux (sobre a reorganização de uma manufatura de armas), Claudie Sanquer (sobre avaliações de com- petências)' Isabelle Saporta e Éric Doidy (sobre os novos movimentos so- ciais), David Stark (sobre a recombinação em rede do tecido econômico hún- \ r r , Agrndecilllelltos 15 garo). A todos os nossos agradecimentos pela contribuição, bem como aos outros participantes daqueles seminários, cujas obselVações e críticas nos foram também muito úteis. Também fomos beneficiados por entrevistas com Alain Desrosieres, ) ean- David Fermanian, Baudouin Seys e Maryvonne Lemaire no INSEE. Finalmente, devemos agradecer a nosso editor, Éric Vigne, a confiança que depositou em nós e a inflexibilidade demonstrada na poda de trechos de pura erudição, notas inúteis ou digressões supérfluas. Este livro, na for- ma como é apresentado hoje ao público, deve-lhe muito. Para terminar, cabe-nos admitir que, escrevendo quase cada página deste livro, não pudemos deixar de nos perguntar o que pensaria sobre ele Albert Hirschman, cuja obra, mais que qualquer outra, nos acompanhou por todo esse longo trajeto. Por isso, é justo que esta obra lhe seja dedicada. Que ele encontre nestas páginas, que alcançam algumas centenas, uma home- nagem ao papel insubstituível que desempenhou na formação das dispo- sições, não só intelectuais, que nos guiaram durante todo este trabalho: na qualidade de pesquisador, pelos conceitos que introduziu na análise 50- cioeconômica, em especial pela importância que, há muito, vem atribuindo à crítica e, na qualidade de ser humano, pelo exemplo que tem dado. ;0,_ Já conhecemos, já tocamos um mundo (quando crianças, dele participamos) em que todo aquele que se confinasse na pobreza estava pelo menos garantido na pobreza. Era uma espécie de contrato tácito entre o homem e o destino, contrato que o destino nunca deixara de honrar antes da inauguração dos tempos modernos. Estava acertado que quem se entregasse à fantasia e ao arbitrário, quem criasse um jogo ou quisesse escapar à pobreza arriscaria tudo. Jogando, podia perder. Mas quem não jogasse não poderia perder. Ninguém podia desconfiar que chegaria um tempo, já iminente, precisamente o tempo moderno, no qual quem não jogasse perderia sempre e com mais certeza do que quem jogasse. C. PÉGUY, r:argent r , i l PRÓLOGO Este livro - cujo projeto foi concebido no início de 1995 - nasceu da preocupação, comum a numerosos observadores, provocada pela coexistên- cia entre a degradação da situação econômica e social de um número cres- cente de pessoas e um capitalismo em plena expansão e profundamente transformado. Essa preocupação foi recrudescida pelo estado da crítica so- cial- à qual asociologia, sua vizinha, raramente fica indiferente -, que nunca pareceu tão desarmada no último século como durante os últimos quinze anos, seja por manifestar uma indignação que não oferecia propostas alter- nativas, seja (na maioria das vezes) por ter simplesmente desistido de denun- ciar uma situação cujo caráter problemático - é o mínimo que se pode dizer - não podia escapar-lhe, como se, tacitamente, admitisse sua fatalidade. Sob muitos aspectos, vivemos hoje uma situação inversa à do fim dos anos 60 e início dos 70. Naquela época, o capitalismo experimentava uma redução de crescimento e rentabilidade, ligada, pelo menos segundo análi- ses regulacionistas, à diminuição dos ganhos de produtividade associada à alta contínua dos salários reais, que prosseguia no mesmo ritmo de antes'. A crítica, por sua vez, estava no auge, como mostraram os acontecimentos de maio de 1968, que associaram, ao mesmo tempo, uma crítica social de fei- ção marxista clássica e reivindicações de um tipo muito diferente, com apelos à criatividade, ao prazer, ao poder da imaginação, à liberação referente a to- das as dimensões da existência, à destruição da "sociedade de consumo" etc. O ambiente macroeconômico era de uma sociedade de pleno empre- go, e seus dirigentes não paravam de lembrar que ela estava "voltada para o progresso"; nela, as pessoas mantinham a esperança numa vida melhor para os filhos e desenvolvia -se a reivindicação - sustentada pela denúncia das desigualdades nas chances de acesso ao sistema escolar - de uma as- ! ' 20 O novo espírito do capitalismo censão social franqueada a todos, por intermédio de uma escola democra- tizada' de cunho republicano. As questões que deram origem a este livro nasceram da guinada qua- se completa da situação e das pequenas resistências críticas que, afinal de contas, foram opostas a essa evolução. Quisemos compreender com mais detalhes - para além dos efeitos de neutralização da crítica gerado por um poder de esquerda' - por que a crítica não estava "ligada" na situação, como ela foi impotente para compreender a evolução que estava ocorren- do, por que sumiu repentinamente no fim dos anos 70, deixando o campo livre para a reorganização do capitalismo durante quase duas décadas, res- tringindo-se, na melhor das hipóteses, ao papel pouco glorioso, embora necessário, de registro das crescentes dificuldades do corpo social, e, para terminar, por que numerosos integrantes dos movimentos de 68 se senti- ram à vontade na nova sociedade a ponto de se tornarem seus porta-vozes e de levá-la a essa transformação. Mas, antes de abordarmos o tipo de resposta que demos a essas inda- gações, não nos parece inútil traçar neste preâmbulo - tomando por base indicadores macroeconõmicos ou estatísticos - um rápido quadro do con- texto, no mínimo cheio de contrastes, que serve de fundo não só a nossas análises, mas também ao questionamento (para não dizer à consternação) que, ao longo destes quatro anos, estimulou nosso trabalho. Um capitalismo regenerado e uma situação social degradada Contrariando o recurso frequente ao tópico da "crise", regularmente invocado desde 1973, ainda que em contextos muito diferentes, considera- mos que os últimos vinte anos foram marcados por um capitalismo flores- cente. Durante esse período, o capital teve múltiplas oportunidades de in- vestimento, com oferta de taxas de lucro frequentemente mais elevadas que em épocas anteriores. Esses anos foram favoráveis a todos os que dis- punham de uma poupança (um capital), em vista do retorno da renda, de- saparecida durante a grande depressão dos anos 30 e impossibilitada de se restabelecer nas décadas seguintes, devido à inflação. Sem dúvida, o crescimento se manteve desacelerado1, mas os rendi- mentos do capital se elevaram. A taxa de margem4 das empresas não indi- viduais, que diminuíra muito nos anos 60 e 70 (- 2,9 pontos de 1959 a 1973, - 7,8 pontos de 1973 a 1981), foi restabelecida nos anos 80 (+ 10 pontos de 1981 a 1989) e mantém-se desde então (- 0,1 ponto de 1989 a 1995). De 1984 a 1994 o Pffi em francos constantes de 1994 aumentou 23,3%. As contri- I / i r Prólogo buições sociais cresceram nas mesmas proporções (+ 24,3%), mas não os salários líquidos (+ 9,5%). Durante os mesmos dez anos, os rendimentos da propriedade (aluguéis, dividendos, mais-valias realizadas) aumentavam 61,1 % e os lucros não distribuídos', 178,9%. Taddei e Coriat (1993), reto- mando as evoluções das taxas de margens das empresas e lembrando a evolução descendente do percentual de imposto das empresas (passagem de 50% para 42% em 1988 e depois para 34% em 1992, mas com nova su- bida para 41,1 % em 1997), assim como a estagnação das taxas de contri- buições sociais patronais desde 1987, mostram que a França, no início dos anos 90, apresenta taxas de rendimento do capital em forte alta, relativa- mente ao início dos anos 80. As finanças das empresas francesas - segun- do esses dois autores - estão em grande parte restauradas sob o efeito de um sistema tributário aliviado e de uma distribuição lucro-salários muito mais favorável às empresas. Os operadores financeiros, no mesmo período, recobraram "uma li- berdade de ação que não tinham desde 1929 e às vezes até mesmo desde o século XIX" (Chesnais, 1994, p. 15). A desregulamentação dos mercados financeiros, sua descompartimentação, a falta de intermediação e a criação de "novos produt05 financeiros" multiplicaram as possibilidades de lucros puramente especulativos, por meio dos quais o capital cresce sem passar por um investimento em atividades produtivas. Os chamados "anos críti- cos", portanto, são marcados pelo fato de que, a partir de então, a rentabi- lidade do capital é melhor nas aplicações financeiras do que em aplicações na indústria (que, aliás, sofre por causa do custo do dinheiro). Assistimos ao aumento do poder de certos operadores, como os fundos de pensão, que havia muito tempo eram detentores bastante estáveis de lotes de ações, mas ganharam notoriedade com as transformações dos mercados (seus meios são consideráveis), e seu comportamento se transformou, alinhan- do-se com "o modelo do ganho de lucro financeiro em estado puro" (Chesnais, 1994, p. 222). A liquidez concentrada nas mãos dos fundos mú- tuos de investimento (SICAV), das companhias de seguro e dos fundos de pensão é tal, que é inegável a sua capacidade de influenciar os mercados no sentido de seus interesses6 • Essa evolução da esfera financeira é insepa- rável da evolução das empresas registradas em bolsa, que estão submeti- das aos mesmos imperativos de rentabilidade dos mercados; empresas que, por sua vez, obtêm uma parte cada vez maior de seus lucros por meio de tran- sações puramente financeiras. Entre 1983 e 1993, a capitalização da Bolsa de Paris (número de títulos multiplicados por seu preço) passou de 225 para 2 700 bilhões de francos para ações e de 1000 a 3 900 bilhões de fran- cos para obrigações (Fremeaux, 1995). \ 21 22 O novo espírito do capitalismo As empresas multinacionais também saíram ganhando desses anos de reestruturação do capitalismo mundial. A desaceleração da economia mun- dial há trinta anos não as afetou realmente, sua participação no Pffi mundial (ele mesmo em alta) não deixou de aumentar, de 17% em meados da dé- cada de 60 para mais de 30% em 1995 (Clairmont, 1997). Considera-se que elas controlam dois terços do comércio internacional, metade do qual, mais ou menos, é constituída por exportações dentro de grupos', entre matrizes e filiais ou entre duas filiais de um mesmo grupo. Sua participação nos custos de "Pesquisa e Desenvolvimento" certamente é ainda maior. Seu desenvol- vimento há dez anos tem sido garantido principalmente por fusões e aqui- sições realizadas no mundo inteiro, acelerando o processo de concentração e de constituição deoligopólios mundiais. Um dos fenômenos mais mar- cantes desde os anos 80, sobretudo depois de 1985, é o crescimento do "In- vestimento direto no exterior" (IDE) que se diferencia da troca internacio- nal de bens e serviços pelo fato de haver transferência de direitos patrimo- niais e tomada de poder local. Mas, apesar de o impacto das multi nacionais ser um fenômeno econômico de grande importância, quase nenhum estu- do lhes é dedicado. A Conferência das Nações Unidas para as sociedades transnacionais (UNCTNC) foi dissolvida no início de 1993 a pedido do go- verno dos Estados Unidos. Uma parte dos titulares foi transferida para a CNUCED em Genebra, com um programa de trabalho muito reduzido (Chesnais, 1994, p. 53). Enquanto de 200 a 500 empresas, cuja lista corres- ponde mais ou menos à apresentada pela revista For/une a cada ano, domi- nam a economia mundial, a definição imposta aos pesquisadores daquilo que é uma empresa multinacional não deixou de ser flexibilizada, para afo- gar num oceano de empresas o punhado de firmas superpoderosas que não sofreu com a crisc~. Por fim, a reestruturação do capitalismo ao longo das duas últimas dé- cadas, que, como vimos,ocorreu em torno dos mercados financeiros e dos movimentos de fusão-aquisição das multinacionais num contexto de políti- cas governamentais favoráveis em matéria fiscal, social e salarial, também foi acompanhada por fortes incentivos ao aumento da flexibilização do trabalho. As possibilidades de contratação temporária, uso de mão de obra substituta e horários flexíveis, bem como a redução dos custos de demissão desenvol- veram-se amplamente no conjunto dos países da OCDE, cerceando aos pou- cos os dispositivos de proteção instaurados durante um século de luta social. Paralelamente, as novas tecnologias de comunicação, encabeçadas pela tele- mática, possibilitaram gerar encomendas em tempo real em nível planetário, conferindo meios para uma reatividade mundial até então desconhecida. Foi \ c ~ , i Prólogo 23 um modelo completo de gestão da grande empresa que se transformou sob esse impulso, para dar origem a uma maneira renovada de obter lucros. O capitalismo mundial, entendido como a possibilidade de fazer o ca- pital frutificar por meio do investimento ou da aplicação econômica, por- tanto, vai muito bem. Quanto às sociedades - para retomar a separação en- tre o social e o econômico, com a qual vivemos há mais de um século' -, não vão nada bem. Os dados aqui são muito mais conhecidos, a começar pela curva do desemprego na França: 3% da população ativa em 1973, 6,5% em 1979, cerca de 12% hoje em dia. Em fevereiro de 1998, contava-se pouco mais de 3 milhões de desempregados no sentido da categoria 1 da ANPElO, que está longe dar conta de todos os que procuram emprego e são conhe- cidos pela ANPE e tampouco engloba os desempregados dispensados da procura de emprego por motivo de idade, os que estão para se aposentar, os beneficiários de cursos de formação profissional ou de contratos precá- rios de tipo CES ou similares. O número de pessoas "privadas de empre- go", portanto, deve ser estimado em 5 milhões em 1995" contra 2,45 em 1981 (Cerc-association, 1997 a). A situação média da Europa não é muito melhor". Os Estados Unidos apresentam índices menores de desemprego, mas, enquanto na França os assalariados conservaram até certo ponto o poder aquisitivo, lá este foi bastante degradado. Enquanto o PIB america- no por habitante cresceu 36% entre 1973 e meados de 1995, a hora de tra- balho do pessoal sem cargo de direção, que constitui a maioria dos empre- gos, baixou 14%. No fim do século, nos Estados Unidos, o salário real dos trabalhadores (sem cargo de direção) terá voltado ao que era cinquenta anos antes, ao passo que o PIB terá mais que dobrado durante o mesmo período (Thurow, 1997). Em toda a zona OCDE assiste-se a um nivelamen- to por baixo das remunerações. Em países como a França, onde os políticos procuraram manter o poder aquisitivo do salário mínimo, os índices de de- semprego aumentaram regularmente e a degradação das condições de vida afetaram prioritariamente os desempregados e o número sempre crescen- te dos trabalhadores em tempo parcial (15,6% dos ativos ocupados em 1995, contra 12,7% em 1992 e 9,2% em 1982). Entre estes últimos, 40% gosta- riam de trabalhar mais. O emprego dos que têm trabalho também é muito mais precário. O número dos "empregos atípicos" (CDD, aprendizes, tem- porários, estagiários remunerados, contratos de trabalho subsidiados e CES no funcionalismo público) dobrou entre 1985 e 1995". Embora o número de famílias abaixo do limiar de pobreza!4 tenha de- crescido (de 10,4% das famI1ias em 1984 para 9,9% em 1994), a estrutura da população afetada evoluiu muito. A pobreza afeta cada vez menos idosos e cada vez mais pessoas em idade ativa. A evolução da população protegida \ rI"f-T-:"", ,., '. 24 O novo espírito do capitalismo pelas alocações sociais mínimas (Cerc~association, 1997 b) é um bom refle~ xo das modificações do perfil da pobreza: essa população passou de 3 mi ~ Ihões de pessoas (2,3 milhões de famílias) no fim de 1970 para cerca de 6 milhões no fim de 1995 (ou seja, 3,3 milhões de famílias). O número médio de pessoas beneficiadas por família passou progressivamente de 1,3 para 1,8, visto que a participação de casais e famílias aumentou. As alocações mínimas destinadas a desempregados (Alocação de solidariedade específi~ cal e o Rendimento Mínimo de Inclusão (RMI)" explicam a maior parte desse aumento, enquanto o número de beneficiários do salário mínimo ve~ lhice era dividido por 2 entre 1984 e 1994 com a chegada à aposentadoria de faixas etárias que haviam pagado contribuições sociais durante toda a vida ativa. No entanto, deve~se ressaltar que o esforço despendido não acompanhou o aumento do número de beneficiários: 1 % do PIB lhes é de~ dica do em 1995, tal como em 1982 (ao passo que, de 1970 a 1982, passara~ se de 0,3% a 1 %). Em porcentagem de gastos com proteção social, a parte dedicada às alocações mínimas em 1995 chega a ser inferior à de 1982"'. O conjunto dessa evolução (empobrecimento da população em idade ativa, crescimento regular do número de desempregados e da precarieda~ de do trabalho, estagnação dos rendimentos do trabalho) concomitante ao crescimento dos proventos que só beneficiam uma pequena parcela da po~ pulação se traduz no fato de que as desigualdades na distribuição da ren~ da voltaram a aumentar na França a partir da segunda metade dos anos 80, movimento que, no entanto, começou antes dessa data nos outros países". Essas mudanças na situação econômica das famílias foram acompa~ nhadas por uma série de dificuldades que se concentraram sobretudo em certas periferias (formação de guetos, criação de fato de zonas de não di~ reito em favor de atividades mafiosas, desenvolvimento da violência por parte de pessoas cada vez mais jovens, dificuldade de integração das popu~ lações oriundas da imigração) e por fenômenos marcantes - porque muito visíveis - na vida cotidiana dos habitantes das grandes cidades como, por exemplo, o aumento da mendicância e dos "sem~teto"", frequentemente jo~ vens que, em número nada desprezível, são dotados de um nível de quali~ ficação que deveria dar~lhes acesso ao emprego. Essa irrupção da miséria no espaço público desempenha papel importante na nova representação comum da sociedade francesa. Essas situações extremas, embora ainda só afetem diretamente um número relativamente reduzido de pessoas, acen~ tuam o sentimento de insegurança de todos aqueles que se veem sob a amea~ ça da perda do emprego, seja para si mesmos, seja para um de seus fami~ liares - cônjuge ou filhos em especial -, ou seja, no fim das contas, de uma grande fração da população ativa. \ L Pr6logo 25 A família, durante esses mesmosanos de deterioração social, passou por uma evolução cujos efeitos ainda estamos longe de dimensionar (Sullerot, 1997). Ela se tornou uma instituição muito mais móvel e frágil, adicionan- do uma precariedade suplementar àquela do emprego e ao sentimento de insegurança". Essa evolução é, decerto, em parte independente da evolu- ção do capitalismo, se bem que a procura de flexibilidade máxima nas em- presas esteja em harmonia com a desvalorização da família como fator de rigidez temporal e geográfica, de modo que, como veremos adiante, esque- mas ideológicos similares são mobilizados para justificar a adaptabilidade nas relações de trabalho e a mobilidade na vida afetiva. O fato é que as mu- danças ocorridas na esfera econômica e na esfera da vida privada estão su- ficientemente sintonizadas para que o mundo familiar se mostre cada vez menos capaz de funcionar como um escudo de proteção, em especial para garantir aos filhos posições equivalentes às dos pais, sem que a escola, para a qual fora maciçamente transferido o trabalho de continuidade cultural a partir dos anos 60, esteja em condições de realizar as esperanças que nela foram depositadas. A ameaça ao modelo de sociedade do pós-guerra e a perplexidade ideológica Essas mudanças põem em risco o compromisso estabelecido no pós- guerra em torno do tema da ascensão das" classes médias" e dos "executi- vos", que constituíra uma saída aceitável para as preocupações da pequena burguesia. Pequenos proprietários e autônomos empobrecidos ou mesmo arruinados pela crise de 1929, burocratas de nível intermediário ameaçados pelo desemprego, membros das categorias sociais médias assustados pela ascensão do comunismo (cujas greves de 1936 tornaram a ameaça tangi- vel), foram muitos a ver no fascismo, durante a segunda metade dos anos 30, a única salvação contra os excessos do liberalismo. O desenvolvimento do papel do Estado depois da Segunda Guerra Mundial e o advento da grande empresa lhes ofereceram novas possibilidades de viver "burgues- mente", compatíveis com o cunho salarial crescente da economia. Sabe-se que, até a metade do período entre guerras, mais ou menos, o salário raramente era o recurso único ou mesmo principal dos membros da burguesia. Eles também eram beneficiados por substanciais rendimentos pa- trimoniais, e o dinheiro que recebiam pelo fato de pertencerem a uma orga- nização não era considerado um 11 salário": os termos li salário" e /I assalariado" eram reservados na prática aos operários. Aqueles patrimônios, compostos sobretudo de bens imobiliários, mas também, de modo crescente entre as > 26 O novo espírito do cnpitnlis1llo duas guerras, de valores mobiliários (rendas, obrigações), vão sendo aos poucos achatados, de início pela desvalorização da moeda nos anos 20, de- pois pela crise dos anos 30. Os engenheiros e, com eles, frações cada vez mais extensas da burguesia, entram então na esfera do salariato, o que cor- responde a uma baixa importante no nível de vida até a implantação, no pós-guerra, de uma nova organização dos recursos econômicos. Esta acar- retou um novo estilo de vida para as profissões de nível superior, apoiadas em novos dispositivos de garantia, não mais patrimoniais, porém sociais: regime de aposentadoria dos executivos, importância crescente dos diplo- mas na determinação dos salários e das carreiras, promoção regular nas carreiras ao longo da vida (que facilita o acesso ao crédito), sistemas de se- guro social reforçados por fundos mútuos, estabilidade dos proventos salariais pela institucionalização de processos de revisão dos salários em função da evolução passada dos preços ao consumidor, quase garantia do emprego em grandes organizaçôes que asseguravam a seus executivos "planos de car- reira" e ofereciam serviços sociais (refeitórios, cooperativas, colônias de fé- rias, clubes esportivos) (Boltanski, 1982, pp. 113-20). Surgiu assim uma nova possibilidade de viver "burguesmente", dessa vez em regime salarial. Sem se beneficiarem no mesmo grau de dispositivos que haviam sido inspirados pela preocupação de favorecer seu acesso ao consumo, integrá- las melhor no ciclo econômico e afastá-las do comunismo, as classes po- pulares, durante o mesmo período, assistiam a um aumento regular do seu poder aquisitivo e - sobretudo a partir dos anos 60 - das chances de esco- larização de seus filhos no ensino secundário. Elementos essenciais desse compromisso - a saber, diploma, carreira e aposentadoria - foram abalados ao longo dos últimos vinte anos. Os efei- tos dessas mudanças foram deplorados, é verdade, mas não modificaram realmente a certeza das elites dirigentes de que eram resultado de uma im- periosa necessidade, enquanto só afetavam os membros mais frágeis das classes populares - mulheres, imigrantes, deficientes ou jovens sem quali- ficação (os que "ficaram por conta do progresso" nos anos 70; os indivi- duos incapazes de "adaptar-se" ao endurecimento da concorrência inter- nacional nos anos 80'·'). Em compensação, foram considerados alarmantes quando a própria burguesia foi atingida, nos anos 90. O aumento do desemprego dos portadores de diploma superior e dos executivos tornou -se evidente, ainda que sem termo de comparação com o dos menos privilegiados. Por outro lado, embora continuem oferecendo pers- pectivas de carrcira a seus quadros considerados mais talentosos, as em- presas agora se abstêm de oferecer garantias de longo prazo. São testemu- nhos disso o desemprego e as aposentadorias antecipadas das pessoas com Prólogo 27 mais de 55 anos, que é um dos aspectos marcantes do desemprego à fran- cesa. As garantias oferecidas pelos diplomas, embora continuem consti- tuindo um bom seguro contra o desemprego, foram também alvo de acusa- ção diante da constatação de que, com o mesmo diploma, na maioria das vezes os jovens têm acesso a posições inferiores às atingidas pelos mais ve- lhos quando tinham a mesma idade, frequentemente ao cabo de uma série de empregos precários que agora marca o ingresso das novas gerações na vida ativa. Aos receios ligados ao emprego vieram somar-se preocupações referentes ao nível das aposentadorias que serão pagas. Como o acesso a condições de vida exemplificadas pela burguesia constituiu, desde o século XIX, um dos maiores estímulos para tomar supor- tável o esforço exigido das outras classes, é geral o efeito desmoralizador dessa nova ordem das coisas - que repercute na mídia em forma de repor- tagens, romances, filmes, novelas. Uma das manifestações mais evidentes disso é o aumento do ceticismo quanto à capacidade das instituições do ca- pitalismo - quer se trate de organizações internacionais como a OCDE, o FMI ou o Banco Mundial, das multinacionais ou dos mercados financeiros - em manter para as gerações atualmente escolarizadas o nível econômico de vida e, de modo mais geral, o estilo de vida de seus pais. Esse aumento do ceticismo foi acompanhado, especialmente nos últimos três anos, por uma demanda social crescente de pensamento crítico capaz de dar forma a essa preocupação difusa e mesmo de fornecer, no mínimo, instrumentos para a sua inteligibilidade e, no melhor dos casos, uma orientação para a ação, ou seja, nesse caso, uma esperança. Ora, é forçoso constatar que a crença no progresso (associada ao capi- talismo desde o início do século XIX, mas com formas variáveis), que des- de os anos 50 constituíra o credo das classes médias, quer estas se afirmas- sem à esquerda ou à direita, não encontrou sucedâneo afora o lembrete pouco estimulante "das duras leis da economia", logo estigmatizado com a designação de "pensamento único". Ao mesmo tempo, as antigas ideo- logias críticas antissistêmicas, para retomar o vocabulário de lmmanuel Wallerstein, fracassavam em sua função de desestabilização da ordem ca- pitalista e deixavam de se mostrar como portadoras de alternativascríveis. A perplexidade ideológica foi, assim, um dos traços mais manifestos destas últimas décadas, marcadas pela decomposição das representações associadas ao compromisso socioeconômico instaurado depois da guerra, sem que surgisse nenhum pensamento crítico em condições de acompa- nhar as mudanças em curso, em parte - como veremos melhor adiante - porque os únicos recursos críticos mobilizáveis tinham sido constituídos para denunciar o tipo de sociedade que atingiu o apogeu na transição dos F--- \ 28 O novo espírito do capitnlís1110 anos 60 para os anos 70, ou seja, precisamente, logo antes de tcr início a grande transformação cujos efeitos se fazem sentir hoje com toda a força. Os dispositivos críticos disponíveis não oferecem por ora nenhuma alter- nativa dc envergadura. Só restam a indignação em estado bruto, o trabalho humanitário, o sofrimento como espetáculo e, sobretudo desde as greves de dezembro de 1995, ações centradas em causas específicas (moradia, es- trangeiros em situação irregular etc.) que, para adquirirem a amplitude de representações mais adequadas, carecem de modelos de análise renovados e de utopia social. Embora, a curto prazo, o capitalismo vá muito bem, já que suas forças conseguiram se libertar em alguns anos de grande parte dos entraves acu- mulados ao longo do século passado, ele poderia ser também conduzido a uma daquelas crises potencialmente mortais que já enfrentou. E nada ga- rante que, desta vez, a crise dê origem (a que custo?) a um "mundo me- lhor", como ocorreu com os países desenvolvidos nas décadas que se se- guiram à Segunda Guerra Mundial. Sem falar dos efeitos sistêmicos da li- beração ilimitada da esfera financeira, que começam a preocupar até os responsáveis pelas instituições capitalistas, parece-nos pouco duvidoso que o capitalismo venha a deparar com dificuldades cada vez maiores no plano ideológico - ao qual esta obra é principalmente dedicada -, caso não volte a dar razões de esperança a todos aqueles cujo empenho é necessá- rio ao funcionamento do sistema como um todo. Nos anos seguintes à guerra, o capitalismo precisou transformar-se para responder à preocupação e à força reivindicatória de gerações da burguesia e da pequena burguesia, cuja esperança de mobilidade ascendente (sustentada pela poupança ou pela redução da natalidade·') ou de conservação das vantagens conquista- das havia sido desenganada. É evidente que está ameaçado todo sistema social que deixe de satisfazer as classes que ele supostamente deve servir com prioridade (ou seja, no caso do capitalismo, a burguesia), quaisquer que sejam as razões pelas quais ele não consiga fazê-lo, razões que não são todas controláveis pelos atores que têm ou acreditam ter o poder. * Ao escrevermos esta obra, o nosso objetivo não foi tanto propor solu- ções para corrigir as características mais chocantes da situação do trabalho de hoje em dia nem somar a nossa voz aos que a denunciam - tarefas es- tas, aliás, úteis -, quanto compreender o enfraquecimento da crítica ao lon- go dos últimos quinze anos e seu corolário, ou seja, o fatalismo atualmente dOll1inante, quer as lnudanças recentes sejan1 apresentadas C01no muta- \ .L Prólogo 29 ções inevitáveis, mas benéficas a longo prazo, quer como resultado de in- junções sistêmicas com efeitos cada vez mais desastrosos, sem que se pos- sa prever uma mudança tendencial. As instâncias políticas de esquerda, mas também de direita, assim como os sindicatos e os intelectuais, que tendem a influir sobre os proces- sos econômicos, criando condições para uma vida humana melhor, não tendo levado a bom termo o trabalho de análise consistente em compreen- der por que não puderam impedir uma reestruturação do capitalismo tão custosa em termos humanos, tendo até, em várias ocasiões, favorecido - voluntária ou involuntariamente - essa tendência, hoje não têm outra al- ternativa senão optar entre duas posições, insatisfatórias de nosso ponto de vista: por um lado, a utopia do retorno a um passado idealizado (com na- cionalizações, economia pouco internacionalizada, projeto de solidariedade social, planificação estatal e sindicatos fortes); por outro, o acompanha- mento muitas vezes entusiástico das transformações tecnológicas, econô- micas e sociais (que abrem a França para o mundo, concretizam uma so- ciedade mais liberal e tolerante, multiplicam as possibilidades de realização pessoal e ampliam cada vez mais os limites da condição humana). Nenhu- ma dessas duas posições possibilita resistir realmente aos desgastes ocasio- nados pelas novas formas assumidas pelas atividades econômicas: a pri- meira, porque é cega para aquilo que toma o neocapitalismo sedutor para grande número de pessoas e por subestimar a ruptura realizada; a segunda, porque minimiza seus efeitos destrutivos. Ainda que polemizando entre si, têm o efeito comum de difundir um sentimento de impotência e, ao impo- rem uma problemática dominante (crítica do neoliberalismo versus balan- ço em geral positivo da globalização), fechar o campo de possibilidades. Nossa ambiçãc foi reforçar a resistência ao fatalismo, mas sem encora- jar o fechamento num passadismo saudoso, e suscitar no leitor uma mu- dança de disposição, ajudando-o a considerar de outro modo os problemas do tempo, sob outro enquadramento, ou seja, como processos sobre os quais é possível ter controle. Parece-nos útil, para tanto, abrir a caixa-preta dos últimos trinta anos e olhar o modo como os homens fazem sua história. Voltando para o momento em que as coisas se decidem e mostrando que elas poderiam ter enveredado por direção diferente, a história constitui o instrumento por excelência da desnaturalização do social e está de mãos da- das com a crítica. Procuramos, por um lado, descrever uma conjuntura única, na qual o capitalismo pôde livrar-se de certo número de entraves ligados a seu modo de acumulação anterior e às reivindicações de justiça que provocara e, por outro lado, tomando por base esse período histórico, estabelecer um mo- ~~;-~. ,'I. 30 O 110VO espírito do cnpitnlislIlo delo da mudança de valores da qual dependem ao mesmo tempo o sucesso e o caráter tolerável do capitalismo, pretendendo uma validade mais geral. Assim, revisitamos a chamada evolução inelutável dos últimos trinta anos, evidenciando os problemas que os empresários devem ter enfrenta- do, especialmente em decorrência da elevação, sem precedentes desde o pós-guerra, do nível de crítica, as tentativas que fizeram para enfrentar es- sas dificuldades ou delas escapar, o papel das propostas e das análises oriundas da crítica nas soluções que escolheram ou conseguiram aplicar. Ao longo deste trabalho, também se evidenciaram as oportunidades perdi- das, por parte daqueles que deveriam ter sido mais vigilantes quanto aos riscos induzidos por tais transformações, oportunidades de resistir a certas micromudanças prenhes de consequências, especialmente por não terem visto que a "cooptação-implementação" pelo capitalismo de algumas de suas propostas devia levá-los necessariamente a reinvestir em análise e a avançar, por sua vez. Nesse sentido, nossa intenção não era apenas sociológica, voltada para o conhecimento, mas também orientada para o despertar da ação política entendida como formulação e aplicação de um propósito coletivo em ter- mos de modo de vida. Embora nem toda ação seja possível a qualquer mo- mento, nada será possível enquanto forem esquecidas a especificidade e a legitimidade do domínio próprio da ação (Arendt, 1983) - entendida como escolha orientada por valores em conjunturas únicas, portanto incertas, cujas consequências são parcialmente imprevisíveis -, o que favorece a introversão, satisfeita ou aterrorizada, otimista ou catastrofista, na matriz acolhedora dos determinismos, sejam estes apresentados como sociais,econômicos ou biológicos. Essa é também a razão pela qual não procuramos dissimular, sob um cientificismo de fachada, nossas opções e nossas aversões, nem se- parar com uma fronteira (outrora chamada "epistemológica") intransponível os "juízos de fato" e os "juízos de valor". Pois, como ensinava Max Weber, sem o recurso de um "ponto de vista" que implique valores, como seria pos- sível selecionar, no fluxo intrincado daquilo que ocorre, o que merece ser ressaltado, analisado, descrito? \ , ' \ INTRODUÇÃO GERAL o espírito do capitalismo e o papel da crítica r Esta obra tem como objeto as mudanças ideológicas que acompanharam as recentes transformações do capitalismo. Propõe uma interpretação do mo- vimento que vai dos anos que se seguem aos acontecimentos de maio de 1968, durante os quais a crítica ao capitalismo se expressa alto e bom som, aos anos 80, quando, no silêncio da crítica, as formas de organização sobre as quais repousa o funcionamento do capitalismo se modificam profunda- mente, até a busca hesitante de novas bases críticas na segunda metade da década de 1990. Esta obra não é apenas descritiva. Ela também pretende, através desse exemplo histórico, propor um quadro teórico mais geral para compreender o modo como se modificam as ideologias associadas às ati- vidades econômicas, contanto que se dê ao termo ideologia não o sentido redutor - que tantas vezes lhe foi dado pela vulgarização marxista - de dis- curso moralizador voltado a velar interesses materiais e incessantemente desmentido peias práticas, mas sim o sentido - desenvolvido, por exemplo, na obra de Louis Dumont - de conjunto de crenças compartilhadas, inscritas em instituições, implicadas em ações e, portanto, ancoradas na realidade. Talvez sejamos criticados por termos abordado uma mudança global a partir de um exemplo local: o da França dos últimos trinta anos. Evidente- mente, não acreditamos que o caso da França, em si, possa resumir todas as transformações do capitalismo. Mas, parecendo-nos nada convincentes as aproximações e os quadros gerais esboçados pela maioria dos discursos sobre a globalização, esperamos estabelecer· o modelo de mudança apre- sentado aqui com base em análises de ordem pragmática, ou seja, capazes de levar em conta os modos como as pessoas se engajam na ação, suas jus- tificativas e o sentido que elas atribuem a seus atos. Ora, tal esforço, essen- cialmente por razões de tempo e meios, é irrealizável na prática, tanto em r-T;:'7T""Y"j :,. 34 o novo espírito do capitalismo escala global quanto continental, tamanho é o peso que as tradições e as conjunturas políticas nacionais continuam tendo na orientação das práticas econômicas e das formas ideológicas de expressão que as acompanham. Provavelmente, essa é a razão pela qual as abordagens globais são muitas vezes levadas a atribuir importância preponderante a fatores explicativos - habitualmente de ordem tecnológica, macroeconômica ou demográfica -, tratados como forças exteriores aos homens e às nações, que padeceriam seus efeitos do mesmo modo como se enfrenta uma tempestade. Para esse neodarwinismo histórico, as "mutações" se nos imporiam tal como se im- põem às espécies: a nós compete a adaptação ou a morte. Mas os homens não apenas padecem os efeitos da história, eles a fazem e nós queremos vê-los em ação. Não pretendemos que aquilo que ocorreu na França seja exemplo para o restante do mundo, nem que os modelos por nós estabelecidos a partir da situação francesa tenham validade universal, tais como se apresentam. No entanto, temos boas razões para pensar que processos bastante seme- lhantes marcaram a evolução das ideologias que acompanharam a reestru- turação do capitalismo nos outros países desenvolvidos, segundo modali- dades que, em cada caso, decorrem das especificidades da história política e social que somente análises regionais detalhadas permitiriam esclarecer com precisão suficiente. Procuramos elucidar as relações que se instauram entre o capitalismo e seus críticos, de tal modo que pudéssemos interpretar alguns dos fenômenos que afetaram a esfera ideológica durante as últimas décadas: enfraquecimento da crítica, simultâneo à forte reestruturação do capitalismo, cujas conse- quências sociais, porém, não podiam passar despercebidas; novo entusias- mo pela empresa privada, orquestrado pelos governos socialistas, durante os anos 80 e o esmorecimento depressivo dos anos 90; dificuldades encon- tradas hoje pelos esforços de reconstituir a crítica sobre novas bases e seu poder mobilizador por ora bastante fraco, embora não faltem motivos de in- dignação; transformação profunda do discurso empresarial e das justifica- ções da evolução do capitalismo desde meados dos anos 70; emergência de novas representações da sociedade, de modos inéditos de pôr pessoas e coi- sas à prova e, assim, de novas maneiras de ter sucesso ou fracassar. Para realizar esse trabalho, rapidamente se nos impôs a noção espírito do capitalismo, pois, como veremos, ela permite articular os dois conceitos centrais sobre os quais repousam nossas análises - o de capitalismo e o de crítica - numa relação dinâmica. Apresentamos abaixo esses diferentes con- ceitos nos quais se fundamenta nossa construção, bem como os mecanis- mos do modelo que elaboramos para dar conta das transformações ideoló- \ f i o espírito do capitalismo e o papel da crítica 35 gicas em relação ao capitalismo durante os últimos trinta anos, mas que nos parece ter um alcance mais amplo do que apenas o estudo da situação francesa recente. 1. O ESPÍRITO DO CAPITALISMO Uma definição mínima do capitalismo . Entre as diferentes caracterizações do capitalismo (ou, frequentemen- te hoje, dos capitalismos) feitas no último século e meio, escolheremos uma fórmula mínima que enfatiza a exigência de acumulação ilimitada do ca- pital por meios formalmente pacíficos. Trata-se de repor perpetuamente em jogo o capital no circuito econômico com o objetivo de extrair lucro, ou seja, aumentar o capital que será, novamente, reinvestido, sendo esta a princi- pal marca do capitalismo, aquilo que lhe confere a dinâmica e a força de transformação que fascinaram seus observadores, mesmo os mais hostis. O acúmulo do capital não consiste num amontoamento de riquezas - ou seja, de objetos desejados por seu valor de uso, por sua função ostentatória ou como signos de poder. As formas concretas da riqueza (imobiliária, bens de capital, mercadorias, moeda etc.) não têm interesse em si e, por sua falta de liquidez, podem até constituir obstáculo ao único objetivo que importa realmente: a transformação permanente do capital, de equipamentos e aqui- sições diversas (matérias-primas, componentes, serviços ... ) em produção, de produção em moeda e de moeda em novos investimentos (Heilbroner, 1986). Essa dissociação entre capital e formas materiais de riqueza lhe confe- re um caráter realmente abstrato que vai contribuir para perpetuar a acumu- lação. Uma vez que o enriquecimento é avaliado em termos contábeis, sen- do o lucro acumulado num período calculado como a diferença entre dois balanços de duas épocas diferentes', não existe nenhum limite, nenhuma saciedade possível' como ocorre, ao contrário, quando a riqueza é orientada para necessidades de consumo, inclusive o luxo. Certamente há outra razão para o caráter insaciável do processo capita- lista, ressaltada por Heilbroner (1986, pp. 47 ss.). Como o capital é constan- temente reinvestido c só pode crescer circulando, a capacidade que o capita- lista tem de recuperar sua aplicação aumentada pelo lucro está perpetua- mente ameaçada, em especial pelos atos dos outros capitalistas com os quais ele disputa o poder de compra dos consumidores. Essa dinâmica cria uma I inquietação permanente c dá ao capitalista um poderosomotivo de autocon- L""'O pM' CO",;OO" ;ofirui,wlm,,"" o P'O~"O de "omol",o --~------------ \ "1~"'~"'"f __ . c· 36 o novo espírito do capitalismo A rivalidade entre operadores que procuram obter lucro, porém, não gera necessariamente um mercado no sentido clássico, no qual o conflito entre uma multiplicidade de agentes que tomam decisões descentralizadas tem como desfecho a transação que faz aparecer um preço de equilíbrio. O capitalismo, na definição mínima aqui considerada, deve ser distinguido da autorregulação mercantil baseada em convenções e instituições, especial- mente jurídicas e estatais, que visam a garantir a igualdade de forças entre operadores (concorrência pura e perfeita), a transparência, a simetria de in- formações, um banco central garantidor de uma taxa de câmbio inalterável para a moeda de crédito etc. Sem dúvida o capitalismo se apoia em transa- ções e contratos, mas esses contratos podem dar sustentação apenas a ar- ranjos discretos em benefício das partes ou comportar apenas cláusulas ad hoc, sem publicidade nem concorrência. Na esteira de Fernand Braudel, faremos uma distinção entre capitalis- mo e economia de mercado. Por um lado, a economia de mercado constituiu- se "passo a passo" e é anterior ao aparecimento da norma de acumulação ilimitada do capitalismo (Sraudel, 1979, Les Jeux de l'échange [Os jogos das trocas], p. 263). Por outro lado, a acumulação capitalista só se dobra à regu- lação do mercado quando lhes são fechados caminhos mais diretos para o lucro, de tal modo que o reconhecimento dos poderes benfazejos do mer- cado e a aceitação das regras e injunções das quais depende seu funciona- mento "harmonioso" (livre-comércio, proibição de cartéis e monopólios etc.) podem ser considerados uma forma de autolimitação do capitalismo-'. O capitalista, no âmbito da definição mínima de capitalismo que utili- zamos' é, teoricamente, qualquer um que possua um excedente e o invista para extrair um lucro que venha a aumentar o excedente inicial. O exem- pIo típico disso é o acionista que aplica seu dinheiro numa empresa e fica à espera de uma remuneração, mas o investimento não assume necessaria- mente essa forma jurídica - pensemos, por exemplo, no investimento em locação de imóveis ou na compra de bônus do Tesouro. O pequeno aplica- dor, o poupador que não quer que seu "dinheiro fique parado" mas "dê cria" - como diz a linguagem popular -, pertence, portanto, ao grupo dos capi- talistas tanto quanto os grandes proprietários, que costumam ser mais fa- cilmente imaginados com essa designação. Em sua extensão mais ampla, o grupo capitalista reúne, pois, o conjunto dos detentores de um patrimônio rentável', grupo que constitui, porém, apenas uma minoria, desde que seja ultrapassado certo limiar de poupança: embora isso seja difícil calcular, em vista das estatísticas existentes, pode-se acreditar que ele representa apenas 20% das famílias na França, apesar de se tratar de um dos países mais ricos do mundo'. Em escala mundial, essa porcentagem deve ser bem menor. r I o espírito do capitalismo e o papel da crítica 37 Neste ensaio, porém, reservaremos prioritariamente a designação de "capitalistas" aos principais atores responsáveis pela acumulação e pelo crescimento do capital, aqueles que exercem pressão diretamente sobre as empresas para que estas produzam lucros máximos. Evidentemente, seu número é muito mais reduzido. Seu grupo é formado não só por grandes acionistas, pessoas físicas capazes de influir sobre a marcha dos negócios apenas em virtude de seu peso, mas também por pessoas jurídicas (repre- sentadas por alguns indivíduos influentes - dirigentes empresariais de pri- meira plana) que possuem ou controlam, por meio de seus atos, as maiores parcelas do capital mundial (holdings e multinacionais - inclusive bancárias - por meio de filiais e participações, ou fundos de investimento, fundos de pensão). Sendo eles grandes proprietários, diretores assalariados de gran- des empresas, administradores de fundos ou grandes acionistas, sua in- fluência sobre o processo capitalista, sobre as práticas empresariais e sobre as taxas de lucros obtidas é indubitável, dif~rentemente dos pequenos in- vestidores mencionados acima. Mesmo formando uma população que apresenta grandes desigualdades patrimoniais, mas com uma situação mé- dia muito favorável, eles merecem o nome de capitalistas, uma vez que as- sumem a responsabilidade de exigir a maximização de lucros e repassam essa exigência para as pessoas, físicas ou jurídicas, sobre as quais exercem poder de controle. Deixando de lado por ora a questão das injunções sistê- micas que pesam sobre o capitalista, deixando de indagar, em especial, se os diretores de empresa podem deixar de se submeter às regras do capita- lismo, consideraremos apenas que se submetem, e que seus atos são em grande parte guiados pela busca de lucros substanciais para seu próprio ca- pital ou para o capital que lhes é confiado". Também caracterizaremos o capitalismo pelo trabalho assalariado. Marx, assim como Weber, põe essa forma de organização do trabalho no centro de sua definição do capitalismo. Consideraremos o trabalho assalariado in- dependentemente das formas jurídicas contratuais que ele pode assumir: o que importa é que uma parte da população que não possui capital ou o possui em pequena quantidade, para a qual o sistema não é naturalmente orientado, extrai rendimentos da venda de sua força de trabalho (e não da venda dos produtos de seu trabalho), pois não dispõe de meios de produ- ção e, para trabalhar, depende das decisões daqueles que os possuem (pois, em virtude do direito de propriedade, estes últimos podem recusar-lhe o uso de tais meios); enfim, que essa parcela lhes cede, no âmbito da relação salarial e em troca de remuneração, todo o direito de propriedade sobre o re- sultado de seu esforço, estando certo de que ele reverte totalmente para os donos do capitaL Uma segunda característica importante do trabalho as- 38 o novo espírito do capitalismo salariado é que o trabalhador é teoricamente livre para recusar-se a traba- 1har nas condições propostas pelo capitalista, assim como este tem a liber- dade de não propor emprego nas condições demandadas pelo trabalhador, de tal modo que essa relação, embora desigual no sentido de que o traba- 1hador não pode sobreviver muito tempo sem trabalhar, distingue-se mui- to do trabalho forçado ou da escravidão e sempre incorpora, por isso, cer- ta parcela de submissão voluntária. O trabalho assalariado em escala francesa, assim como em escala mundial, não parou de se desenvolver ao longo de toda a história do capi- talismo' de tal modo que hoje ele atinge uma porcentagem da população ativa nunca antes atingida'. Por um lado, ele aos poucos substituiu o traba- lho por conta própria, encabeçado historicamente pela agricultura'; por ou- tro lado, a própria população ativa aumentou muito, devido ao ingresso das mulheres no trabalho assalariado, exercido por elas em número crescente fora do larlO • A necessidade de um espírito para o capitalismo O capitalismo, sob muitos aspectos, é um sistema absurdo: os assalaria- dos perderam a propriedade do resultado de seu trabalho e a possibilidade de levar uma vida ativa fora da subordinação. Quanto aos capitalistas, es- tão presos a um processo infindável e insaciável, totalmente abstrato e dis- sociado da satisfação de necessidades de consumo, mesmo que supérfluas. Para esses dois tipos de protagonistas, a inserção no processo capitalista ca- rece de justificações. Ora, a acumulação capitalista, embora ocorra em graus desiguais con- forme o caminho do lucro pelo qual se enverede (em maior grau, por exem- plo, para auferir benefícios industriais do que para obter lucros mercantis ou financeiros), exige a mobilização de um número imensode pessoas cujas chances de lucro são pequenas (especialmente quando seu capital de par- tida é medíocre ou inexistente), e para cada uma delas é atribuída uma res- ponsabilidade ínfima, em todo caso difícil de avaliar, no processo global de acumulação, de tal modo que elas não são particularmente motivadas a empenhar-se nas práticas capitalistas, quando não lhes são hostis. Algumas pessoas poderão mencionar a motivação material para a par- ticipação, mais evidente, aliás, para o assalariado que precisa de seu salário para viver do que para o grande proprietário cuja atividade, ultrapassado certo nível, não está mais ligada à satisfação de necessidades pessoais. Mas essa motivação, por si só, mostra-se bem pouco estimulante. Os psicólogos \ r , , A o espírito do capitalismo e o papel da crítica 39 do trabalho têm evidenciado com regularidade a insuficiência de remune- ração para provocar o empenho e aguçar o entusiasmo no cumprimento das tarefas; o salário constitui, no máximo, um motivo para ficar num em- prego, mas não para empenhar-se. Do mesmo modo, para que seja vencida a hostilidade ou a indiferença desses atores, a coerção é insuficiente, sobretudo quando o empenho exi- gido pressupõe adesão ativa, iniciativas e sacrifícios livremente assumidos, como aquilo que, cada vez mais, se espera não só dos executivos, mas do conjunto dos assalariados. Assim, a hipótese do "empenho forçado", cres- cente diante da ameaça da fome e do desemprego, já não nos parece mui- to realista. Pois, embora seja provável que as fábricas "escravagistas" ainda existentes no mundo não venham a desaparecer em futuro próximo, pare- ce difícil contar unicamente com essa forma de incentivo ao trabalho, no mínimo porque a maioria dos novos modos de obter lucro e das novas pro- fissões inventadas durante os últimos trinta anos, que geram hoje uma par- te significativa dos lucros mundiais, enfatizou aquilo que em recursos hu- manos se chama de "envolvimento do pessoal". A qualidade do compromisso que se pode esperar depende, antes, dos argumentos alegáveis para valorizar não só os benefícios que a participação nos processos capitalistas pode propiciar individualmente, como também as vantagens coletivas, definidas em termos de bem comum, com que ela contribui para todos. Chamamos de espírito do capitalismo a ideologia que justifica o engajamento no capitalismo. Atualmente, ele está passando por uma grande crise, manifestada pela perplexidade e pelo ceticismo social crescente, de tal modo que a salva- guarda do processo de acumulação, ameaçado pelo estrangulamento de suas justificações numa argumentação mínima em termos de submissão neces- sária às leis da economia, supõe a formação de um novo conjunto ideoló- gico mais mobilizador. Isso vale pelo menos para os países desenvolvidos que, situados no centro do processo de acumulação, esperam continuar sendo os principais fornecedores de pessoal qualificado, cujo envolvimen- to positivo é necessário. O capitalismo precisa ter condições de dar a essas pessoas a garantia de uma segurança mínima em verdadeiros santuários - onde é possível viver, formar família, criar filhos etc. -, tais como os bairros residenciais dos centros econômicos do hemisfério norte, vitrines do suces- so do capitalismo para os adventícios das regiões periféricas e, por isso mesmo, elemento crucial na mobilização ideológica mundial de todas as forças produtivas. Em Max Weber, o "espírito do capitalismo"ll remete ao conjunto dos mo- tivos éticos que, embora estranhos em sua finalidade à lógica capitalista, \ 40 J o novo espírito do capitalismo inspiram os empresários em suas ações favoráveis à acumulação do capi- tal. Em vista do caráter singular e até transgressivo dos modos de compor- tamento exigidos pelo capitalismo em relação às formas de vida constata- das na maioria das sociedades humanas", ele foi levado a defender a ideia de que a emergência do capitalismo supusera a instauração de uma nova relação moral entre os homens e seu trabalho, determinada por uma voca- ção, de tal forma que cada um, independentemente de seu interesse e de suas qualidades intrínsecas, pudesse dedicar-se a ele com firmeza e regu- laridade. Segundo M. Weber, foi com a Reforma que se impôs a crença de que o dever é cumprido em primeiro lugar pelo exercício de um ofício no mundo, nas atividades temporais, em oposição à vida religiosa fora do mun- do, privilegiada pelo éthos católico. Essa nova concepção, na aurora do ca- pitalismo' teria possibilitado esquivar-se à questão das finalidades do es- forço no trabalho (enriquecimento sem fim) e assim superar o problema do empenho proposto pelas novas práticas econômicas. A concepção do tra- balho como Beru! - vocação religiosa que exige cumprimento - servia de ponto de apoio normativo para os comerciantes e os empreendedores do capitalismo nascente, dando-lhes boas razões - "motivação psicológica", como diz M. Weber (1964, p. 108) - para entregar-se sem descanso e cons- cienciosamente à sua tarefa, para empreender a racionalização implacável de seus negócios, indissociavelmente ligada à busca de um lucro máximo, para perseguirem o ganho, sinal de sucesso no cumprimento da vocação13• Ela também lhes servia porque os operários compenetrados da mesma ideia mostravam -se dóceis, trabalhadores incansáveis e - convencidos de que o homem deve cumprir seu dever onde quer que a providência o tenha co- locado - não procuravam questionar a situação que se lhes oferecia. Deixaremos de lado a importante contravérsia pós-weberiana, essencialmen- te relativa à questão da influência efetiva do protestantismo sobre o desen- volvimento do capitalismo e, de modo mais geral, das crenças religiosas so- bre as práticas econômicas, para considerarmos, da posição weberiana, sobre- tudo a ideia de que as pessoas precisam de poderosas razões morais para aliar-se ao capitalismo l4 • Albert Hirschman (1980) reformula a indagação weberiana ("como uma atividade no máximo tolerada pela moral pôde transformar-se em vo- cação no sentido de Benjamin Franklin") da seguinte maneira: "Como ex- plicar que, em determinado momento da época moderna, se tenha chega- do a considerar honrosas atividades lucrativas como o comércio e o banco, ao passo que tinham sido reprovadas e amaldiçoadas durante séculos, por nelas se ver a encarnação da cupidez, do amor ao ganho e da avareza?" (p.13). Mas, em vez de recorrer a máueis psicológicos e à busca, por novas elites, de r I o espírito do capitalismo e o papel da critica 41 um meio de garantir a sua salvação pessoal, A. Hirschman menciona moti- vos que teriam, em primeiro lugar, afetado a esfera política antes de tocar a economia. As atividades lucrativas teriam sido valorizadas pelas elites, no século XVIII, devido às vantagens sociopolíticas que delas eram esperadas. Na interpretação de A. Hirschman, o pensamento laico do Iluminismo jus- tifica as atividades lucrativas como um bem comum para a sociedade. A. Hirschman mostra também como a emergência de práticas em harmonia com o desenvolvimento do capitalismo foi interpretada como algo compa- tível com o abrandamento dos costumes e o aperfeiçoamento do modo de governo. Em vista da incapacidade da moral religiosa para coibir as paixões humanas, da impotência da razão para governar os homens e da dificuldade de submeter as paixões por meio da pura repressão, restava a solução que consistia em utilizar uma paixão para compensar as outras. Assim, o lucro, que até então encabeçava a ordem das desordens, obteve o privilégio de ser eleito paixão inofensiva sobre a qual passou a recair o encargo de subjugar as paixões ofensivas15 • Os trabalhos de Weber insistiam na necessidade de o capitalismo apre- sentar razões individuais, ao passo que os de Hirschman lançam luzem so- bre as justificações
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