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das idéias torna-se parte da tradição da escola. Que eu saiba, a tradição crítica ou racionalista foi inventada uma vez apenas. Perdeu-se dois ou três séculos depois, devido, talvez, à ascensão da doutrina aristotélica da episteme, do conhecimento certo e demonstrável (...). E foi redescoberta e conscientemente revivida no Renascimento, em especial por Galileu Galilei. POPPER, Karl. Conjecturas e Refutações. [Tradução de Benedita Bettencourt]. Coimbra: Almedina, 2003, p. 189 e 205-208. 8 Anexo - Atividades Estudos Socio-Antropológicos Bloco de notas e anotações Este espaço é para você anotar suas observações com relação a disciplina estudada. Importante: Leia todas as orientações passo a passo no “Tutorial do Aluno” de como realizar suas Atividades. A fi losofi a como atitude - Módulo 1 Filosofi a 2 Aula 3 - A atitude crítica da Filosofi a e a naturalização dos discursos de senso comum Para a mentalidade fi losófi ca, nada é evidente, nada deve ser vivido como dado e espontâneo. A Filosofi a é livre para interpelar sobre o sentido de várias palavras que usamos no dia-a-dia – palavras que tomam parte em nossas conversações sem que nos preocupemos muito com a forma como as empregamos. Marilena Chauí formula a mesma observação de maneira ainda mais elegante nesta passagem: Imaginemos [...] alguém que tomasse uma decisão muito estranha e começasse a fazer perguntas inesperadas. Em vez de “que horas são?” ou “que dia é hoje?”, perguntasse: O que é o tempo? Em vez de dizer “está sonhando” ou “fi cou maluca”, quisesse saber: O que é o sonho? A loucura? A razão? Se essa pessoa fosse substituindo sucessivamente suas perguntas, suas afi rmações por outras: “Onde há fumaça, há fogo”, ou “não saia na chuva para não fi car resfriado”, por: O que é causa? O que é efeito?; “seja objetivo” ou “eles são muito subjetivos”, por: O que é a objetividade? O que é a subjetividade?; “Esta casa é mais bonita do que a outra”, por: O que é “mais”? O que é “menos”? O que é o belo? Em vez de gritar “mentiroso!”, questionasse: O que é a verdade? O que é falso? O que é o erro? O que é a mentira? Quando existe verdade e por quê? Quando existe ilusão e por quê? Se, em vez de falar na subje- tividade dos namorados, inquirisse: O que é o amor? O que é o desejo? O que são os sentimentos? Se, em lugar de discorrer tranquilamente sobre “maior” ou “menor” ou “claro” e “escuro”, resolvesse investigar: O que é a quantidade? O que é a qualidade? E se, em vez de afi rmar que gosta de alguém porque possui as mesmas ideias, os mesmos gestos, as mesmas preferências e os mesmos valores, preferisse analisar: O que é um valor? O que é um valor moral? O que é um valor artístico? O que é a moral? O que é a vontade? O que é a liberdade? Alguém que tomasse essa decisão, [...] teria passado a indagar o que são as crenças e os sentimentos que alimentam, silenciosamente, nossa existência. [...] Estaria interrogando a si mesmo, desejando conhecer por que cremos no que cremos, por que sentimos o que sentimos e o que são nossas crenças e nossos sentimentos. Esse alguém estaria começando a adotar o que chamamos de atitude fi losófi ca (CHAUÍ, 2011, p. 20-21). A Filosofi a possui essa característica: a não conformidade com o que está estabelecido como verdadeiro ou como óbvio ou evidente. As ideias são sempre discursos que se impõem. O posicionamento sobre esses discursos é o que o defi ne. Uma vez defi nido, é sempre questionável. Por consequência, a fi losofi a passa se debruçar sobre todos os campos do conhecimento. Propõe problemas para estes campos, mesmo que seu conhecimento pareça encerrado por uma determinada arrumação histórico-social de seu quadro conceitual ou das suas rotinas de inquérito. Um bom exemplo está nos questionamentos sobre os sentidos dos discursos que orientam a prática da disciplina que você estuda. Há Filosofi as do Direito, da Economia, das Ciências Matemáticas, da Biologia, da Psicologia etc. Gabriel Perissé nos diz a respeito deste ponto: 3 A fi losofi a como atitude - Módulo 1 Filosofi a O fi lósofo é aquele que mete o nariz em tudo. Daí a proliferação de ‘fi losofi as de...’ – fi losofi a da ciência, fi losofi a da história, fi losofi a da cultura, fi losofi a da comunicação, fi losofi a da religião, fi losofi a da linguagem, fi losofi a da arte, fi losofi a do direito e... fi losofi a da educação (PERISSÉ, 2008, p. 10). Refl etir, por exemplo, sobre o lugar da tecnologia e da crescente administração da vida hoje, sobre o lugar quase divino do mercado em nossa cultura e sobre o impacto das descobertas e dos conceitos científi cos na imagem do sujeito contemporâneo são questões que deveriam interessar a todos. É assim que, para a Filosofi a, importa, mais particularmente, que renovemos “o espanto” sobre o sentido das práticas em que estamos engajados e que procuremos, novamente, imaginá-las e transformá-las à luz de ideais os mais interessantes. É assim que nossas ideias recebidas da tradição sobre como o trabalho se organiza, sobre a justiça dessa organização ou sobre como avaliar conhecimentos mais confi áveis e como podemos diferençá-los de falsos conhecimentos etc. são objetos do pensar fi losófi co. O que se ganha com isso? Você já deve imaginar a resposta. Aquele que se debruça sobre o conhecimento da Filosofi a passa a interpelar o que a consciência mais ingênua apenas reproduz. Torna-se, portanto, mais refl exivo – e isto implica em maior autonomia, maior capacidade de resistir à doutrinação. Ora, se isto é verdadeiro, note que a Filosofi a não pode ser tomada como um pensamento meramente contemplativo: ela é um pensamento que toma por objeto temas que são caros ao nosso cotidiano e pretende nos posicionar, no plano da ação, com relação aos mesmos. A consciência “ingênua” exibe uma mansidão surpreendente diante das amarras da imaginação. Ela sequer percebe esse tolhimento em que se encontra. O processo de construção do repertório de crenças e opiniões, a “aculturação”, ocorre de uma maneira tal que não nos damos conta normalmente de que a ele estamos submetidos. Trata-se de uma forma tácita, sutil de conhecimento que, uma vez internalizado, nos permite estar em perfeita sintonia com a tradição dentro da qual fomos feitos sujeitos. Chamamos a esse conhecimento de “senso comum”. Via de regra, não reconhecemos a ação do senso comum, porque uma das suas carac- terísticas inerentes é justamente a de não se entender como circunstancial, como uma construção contingente. O senso comum não se apresenta como uma construção, mas como opinião. Para o usuário do senso comum, as opiniões por ele emitidas parecem ser retiradas diretamente da “ordem natural das coisas”. Tudo parece “ser óbvio”, tudo parece “ser evidente”. É importante que se perceba este ponto: o que foi produzido em um momento histórico, o que é resultado de uma tradição particular, aparece à mentalidade de senso comum como dado. Assim, o senso comum sempre apoiará muito mais o conformismo do que a curiosidade. O senso comum se apresenta com tal superabundância de “evidências”, com um aspecto tão imperioso de natureza e de universalidade, que o sujeito crítico começa a estranhar os automatismos com que a vida se encontra organizada e a interrogar sobre a necessidade de nós prosseguirmos reforçando-os cegamente. Este sentimento de estranhamento é A fi losofi a como atitude - Módulo 1 Filosofi a 4 raro, por mais que o banalizemos, supondo-o sob o nosso domínio. “Estranhar” aqui signifi ca “deixar de ver como necessário”. Ora, isso supõe uma inter- rogação sobre os saberes que organizaram nossas crenças e experiências como se elas fossem necessárias. Somos submetidos a uma tradição cultural e por isso a transmissão e a ratifi cação do senso comum é sempre efi ciente: é um saber que não se apresenta como um saber construído. Clifford Geertz diz que procura analisar