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História do Ensino da Matemática: uma introdução historia do ensino da matematica.indd 1 13/03/2013 10:37:22 historia do ensino da matematica.indd 2 13/03/2013 10:37:24 História do Ensino da Matemática: uma introdução Belo Horizonte CAED-UFMG 2013 Maria Laura Magalhães Gomes historia do ensino da matematica.indd 3 13/03/2013 10:37:26 UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS Profº Clélio Campolina Diniz Reitor Profª Rocksane de Carvalho Norton Vice-Reitoria Profª Antônia Vitória Soares Aranha Pró Reitora de Graduação Profº André Luiz dos Santos Cabral Pró Reitor Adjunto de Graduação CENTRO DE APOIO DE EDUCAÇÃO À DISTÂNCIA Profº Fernando Selmar Rocha Fidalgo Diretor de Educação a Distância Prof º Wagner José Corradi Barbosa Coordenador da UAB/UFMG Profº Hormindo Pereira de Souza Junior Coordenador Adjunto da UAB/UFMG EDITORA CAED-UFMG Profº Fernando Selmar Rocha Fidalgo CONSELHO EDITORIAL Profª. Ângela Imaculada Loureiro de Freitas Dalben Profº. Dan Avritzer Profª. Eliane Novato Silva Profº. Hormindo Pereira de Souza Profª. Paulina Maria Maia Barbosa Profª. Simone de Fátima Barbosa Tófani Profª. Vilma Lúcia Macagnan Carvalho Profº. Vito Modesto de Bellis Profº. Wagner José Corradi Barbosa COLEÇÃO EAD – MATEMÁTICA Coordenador: Dan Avritzer LIVRO: História do Ensino da Matemática: uma introdução Autora: Maria Laura Magalhães Gomes Revisão: Jussara Maria Frizzera Projeto Gráfico: Laboratório de Arte e Tecnologia para Educação/EBA/UFMG Formatação: Sérgio Luz Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Biblioteca da Escola de Belas Artes da UFMG, MG, Brasil) historia do ensino da matematica.indd 4 13/03/2013 10:37:26 SUMáRIo APRESENTAÇÃO 7 NOTA DO EDITOR 11 UNIDADE 1: ASPECTOS GERAIS DA HISTóRIA DO ENSINO DE MATEMÁTICA NO BRASIL 13 Introdução 13 Brasil Colônia (1500-1822) 14 Brasil Império (1822-1889) 15 Brasil República (a partir de 1889) 17 Para Concluir 27 Referências 29 Leituras Complementares 30 Atividades Referentes à Unidade 1 31 UNIDADE 2: OS CONTEúDOS MATEMÁTICOS ESCOLARES SE MODIFICAM AO LONGO DO TEMPO: OS NúMEROS RACIONAIS E IRRACIONAIS NOS LIVROS DIDÁTICOS USADOS NO BRASIL 33 Introdução 33 No início do século XX: racionais e irracionais nos livros de Aritmética 34 Dois tipos de números e sua caracterização nos livros de Aritmética 36 Entre a reforma Francisco Campos e o movimento da matemática moderna 39 Durante o movimento da matemática moderna 42 Um balanço dos três momentos 46 Referências 48 Leituras complementares 50 Atividades referentes à Unidade 2 51 UNIDADE 3: MEMóRIAS E REFLEXõES: HISTóRIAS DE ENSINO DE MATEMÁTICA 53 Introdução 53 Álvaro Moreyra e suas lembranças de um professor de Matemática 55 Felicidade Arroyo Nucci e o ensino da tabuada na escola primária 56 Augusto Meyer e suas dificuldades com a Matemática 58 Sylvia Orthof e sua professora de Matemática no ginásio 59 Humberto de Campos e as práticas com a Matemática na escola do final do século XIX 60 Nelson Werneck Sodré e a Matemática ensinada na formação militar 62 Breves reflexões sobre o ensino da Matemática nas memórias de seis brasileiros 65 Referências 66 Atividades referentes à Unidade 3 67 Lista de tópicos para orientar a escrita do texto de memórias 68 historia do ensino da matematica.indd 5 13/03/2013 10:37:26 historia do ensino da matematica.indd 6 13/03/2013 10:37:26 7 APRESENTAção Somos devedores de parte do que somos aos que nos precederam. O dever de memória não se limita a guardar o rastro material, escrito ou outro, dos fatos acabados, mas entretém o sentimento de dever a outros, dos quais diremos mais adiante que não são mais, mas já foram. Pagar a dívida, diremos, mas também submeter a herança a inventário. Paul Ricoeur1 O texto aqui apresentado foi escrito para o curso de Licenciatura em Matemática a distância, oferecido pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG2. Este trabalho visa à disciplina História do Ensino da Matemática, que compõe a matriz curricular do curso e está alocada ao final de seu 3º ano. A história tem sido apontada, tanto nas pesquisas quanto nas propostas curriculares3, como um dos componentes importantes nas questões que envolvem o ensino e a aprendizagem da Matemática, salientando-se suas diversas potencialidades. Essa posição favorável à participação da história nas práticas pedagógicas da educação escolar se tem feito acompanhar, em geral, de uma preocupação com a presença de disciplinas que envolvam história nos cursos de formação de professores. O exame dos projetos curriculares das licenciaturas em Matemática de muitas instituições públicas e privadas revela, com frequência, que tais disciplinas vêm, de fato, fazendo parte do elenco proposto para formar o professor da escola básica brasileira. No entanto, é oportuno lembrar que, em geral, a inclusão da História da Matemática na formação de professores tem se referido ao enfoque do desenvolvimento, ao longo do tempo, dos conhecimentos matemáticos, sem atenção específica às dimensões históricas do ensino. Tais dimensões constituem o objeto do campo de investigação que tem se estabelecido no Brasil e em outros países com o nome de História da Educação Matemática. Na maioria das vezes, mesmo quando as matrizes curriculares dos cursos de licenciatura acusam a presença de conhecimentos históricos, os aspectos relativos ao ensino não são mencionados nas ementas e programas das disciplinas. Contudo, a compreensão histórica de diversos aspectos ligados à formação e à atuação docentes, a partir de concepções passadas e presentes, é um elemento de importância 1 RICOEUR, P. A memória, a história, o esquecimento. Tradução de Alain François [et al.]. Campinas: Editora da UNICAMP, 2007, p. 101. 2 O curso iniciou-se em 2009, com turmas ingressantes em quatro polos: Araçuaí, Conceição do Mato Dentro, Governador Valadares e Montes Claros. Em 2011, iniciaram suas atividades novas turmas em Araçuaí, Conceição do Mato Dentro e Governador Valadares, além de turmas nos dois novos polos de Januária e Teófilo Otoni. Em 2012, foram abertas inscrições para ingresso de mais turmas em Governador Valadares e Montes Claros e ainda em mais dois polos: Bom Despacho e Corinto. 3 Distinguem-se, na investigação sobre essa temática, os trabalhos dos pesquisadores Antonio Miguel e Maria Ângela Miorim, entre os quais destacamos o livro História na Educação Matemática: propostas e desafios. Já no âmbito das propostas curriculares, é possível notar a defesa dos componentes históricos, por exemplo, nos documentos publicados pelo Ministério da Educação desde 1997-1998, a partir da divulgação dos Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental. historia do ensino da matematica.indd 7 13/03/2013 10:37:26 8 história do ensino da matemática considerável na formação docente, pois esses conhecimentos, adequadamente problemati- zados, podem levar os estudantes a entenderem melhor suas próprias concepções sobre a profissão de professor e sobre as práticas docentes em relação à Matemática. Mais ainda, esses conhecimentos têm o potencial de contribuir para a proposição, pelos professores, de formas alternativas positivas de atuação em relação ao que se tem feito na maioria das vezes – reproduzir práticas inadequadas do passado, mesmo sem entendê-las. Na criação do curso a distância da UFMG, a elaboração do projeto curricular valorizou a focalização de aspectos históricos do ensino da Matemática e aprovou a inclusão da disciplina a que este texto se destina, com a proposta de ementa transcrita abaixo, considerando-se uma carga horária de 30 horas-aula no curso a distância: A evolução do ensino de Matemática na educação básica no Brasil: surgimentoe principais momentos; a “escola nova” e o “movimento da matemática moderna”; décadas recentes, com os movimentos de universalização e inclusão na educação básica. Ainda que o escopo previsto seja o da história do ensino da Matemática no Brasil, a proposta é bastante ampla e poderia acolher uma grande variedade de abordagens. O presente texto foi elaborado levando em conta que uma disciplina não tem espaço para abordar “tudo” e que, mais importante do que apresentar informações, é criar as condições para que os estudantes, no futuro (quando estiverem atuando como professores) possam estudar mais e compreender melhor o que estudam fundamentados em uma postura crítica e investigativa. O título escolhido para o trabalho – História do ensino da Matemática: uma introdução – procura retratar que não se pretendeu escrever um livro panorâmico sobre a história do ensino da Matemática no Brasil, guiado pela ementa proposta para a disciplina do curso de licenciatura a distância da UFMG. Por outro lado, essa ementa está contemplada nas três unidades em que o trabalho foi organizado e sobre as quais discorremos brevemente a seguir. Na Unidade 1, apresentamos uma visão geral da história do ensino da Matemática no Brasil, organizada cronologicamente, na qual procuramos abranger os itens que compõem a ementa da disciplina. Esboçam-se, então, considerações mais genéricas acerca de questões da história da educação brasileira nos períodos colonial, imperial e republicano, com alguma atenção específica ao ensino da Matemática. Considerando que a consolidação de um sistema de ensino no país veio a ocorrer somente no século XX, o espaço maior é dedicado ao Brasil República. Nessa parte, a Matemática é focalizada mais de perto, destacando- se a reforma Francisco Campos (que, em 1931, conferiu ao ensino brasileiro a primeira organização nacional) e o movimento da matemática moderna, marco na história do ensino da Matemática em todo o mundo, nas décadas de 1960 e 1970. A Unidade 2 se destina à tarefa específica de mostrar como os conteúdos matemáticos veiculados na escola, mesmo que estejam sempre presentes, se transformam com o transcorrer do tempo. Para isso, foi escolhido o tema dos números racionais e irracionais, que é abordado a partir de uma fonte muito relevante para a história do ensino da Matemática – os livros didáticos, particularizando três diferentes períodos do século XX: as três primeiras décadas; de 1931 até o início dos anos 1960; e os anos 1960-1970 – período de penetração e difusão do movimento da matemática moderna em nosso país. historia do ensino da matematica.indd 8 13/03/2013 10:37:26 9 Para complementar o trabalho desenvolvido nas Unidades 1 e 2, são solicitadas leituras de outros textos, a serem disponibilizados aos estudantes com os recursos da plataforma Moodle. Com base na leitura do texto de cada unidade e desse material complementar, são propostas algumas atividades, que podem ser usadas na avaliação da disciplina. A Unidade 3 tem um objetivo duplo. Pretende-se, primeiramente, mostrar ao aluno a relevância das fontes autobiográficas para que se conheça o passado do ensino da Matemática no Brasil, por intermédio da apresentação de excertos de livros de memórias de autores brasileiros que viveram no século XX e relatam, em suas obras, suas experiências escolares. Na valorização da escrita autobiográfica para a história, recorremos às palavras de Paul Ricoeur ao referir-se à memória como matriz da história, “na medida em que ela continua sendo a guardiã da problemática da relação representativa do presente com o passado”4. Em segundo lugar, visa-se conduzir o licenciando à própria inserção, como sujeito da história do ensino da Matemática no Brasil, pela proposição de uma tarefa reflexiva sobre sua vida pessoal e escolar consubstanciada na escrita de um texto memorialístico, desencadeado a partir da leitura dos fragmentos autobiográficos incluídos na terceira unidade, subsidiado pelo conteúdo das unidades anteriores. Busca-se, com essa proposta, aproveitar a oportunidade do trabalho com a história do ensino da Matemática para explorar as potencialidades das narrativas autobiográficas dos estudantes, que vêm sendo crescentemente valorizadas na pesquisa sobre formação de professores. Finalizando esta apresentação, registro meus agradecimentos ao professor Dan Avritzer pelo convite para escrever este texto e ministrar, pela primeira vez, no curso de Licenciatura em Matemática a distância da UFMG, a disciplina História do Ensino da Matemática. Cabe- me, ainda, estender esses agradecimentos à professora Maria Cristina Costa Ferreira, pela leitura e cuidadosa revisão deste texto, bem como pelas muitas trocas de ideias e sugestões que contribuíram para o aperfeiçoamento do trabalho que me foi solicitado. Belo Horizonte, fevereiro de 2012 Maria Laura Magalhães Gomes 4 RICOEUR, op. cit., p. 100. historia do ensino da matematica.indd 9 13/03/2013 10:37:26 historia do ensino da matematica.indd 10 13/03/2013 10:37:26 11 NoTA Do EDIToR A Universidade Federal de Minas Gerais atua em diversos projetos de Educação a Distância, que incluem atividades de ensino, pesquisa e extensão. Dentre elas, destacam-se as ações vinculadas ao Centro de Apoio à Educação a Distância (CAED), que iniciou suas atividades em 2003, credenciando a UFMG junto ao Ministério da Educação para a oferta de cursos a distância. O CAED-UFMG (Centro de Apoio à Educação a Distância da Universidade Federal de Minas Gerais), Unidade Administrativa da Pró-Reitoria de Graduação, tem por objetivo administrar, coordenar e assessorar o desenvolvimento de cursos de graduação, de pós-graduação e de extensão na modalidade a distância, desenvolver estudos e pesquisas sobre educação a distância, promover a articulação da UFMG com os polos de apoio presencial, como também produzir e editar livros acadêmicos e/ou didáticos, impressos e digitais, bem como a produção de outros materiais pedagógicos sobre EAD. Em 2007, diante do objetivo de formação inicial de professores em serviço, foi criado o Programa Pró-Licenciatura com a criação dos cursos de graduação a distância e, em 2008, com a necessidade de expansão da educação superior pública, foi criado pelo Ministério da Educação o Sistema Universidade Aberta do Brasil – UAB. A UFMG integrou-se a esses programas, visando apoiar a formação de professores em Minas Gerais, além de desenvolver um ensino superior de qualidade em municípios brasileiros desprovidos de instituições de ensino superior. Atualmente, a UFMG oferece, através do Pró-licenciatura e da UAB, cinco cursos de graduação, quatro cursos de pós-graduação lato sensu, sete cursos de aperfeiçoamento e um de atualização. Como um passo importante e decisivo, o CAED-UFMG decidiu, neste ano de 2011, criar a Editora CAED-UFMG como forma de potencializar a produção do material didático a ser disponibilizado para os cursos em funcionamento. Fernando Selmar Rocha Fidalgo Editor historia do ensino da matematica.indd 11 13/03/2013 10:37:26 1 Aspectos gerais da história do ensino de Matemática no Brasil historia do ensino da matematica.indd 12 13/03/2013 10:37:28 13Unidade 1: aspectos gerais da história do ensino de MateMática no Brasil UNIDADE 1: ASPECToS GERAIS DA HISTóRIA Do ENSINo DE MATEMáTICA No BRASIL objetivo • Apresentar uma visão panorâmica da história do ensino da Matemática no Brasil, com atenção particular às questões que envolvem a tríade professor-aluno-conhecimento matemático. INTRoDUção A organização atual da educação no Brasil foi estabelecida na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB –, em 20 de dezembro de 1996, quase quinhentos anos depois do descobrimento. Os cursos de Licenciatura em Matemática têm como objetivo a formação de professores paraa educação básica proposta pela LDB, que é composta pela educação infantil, pelo ensino fundamental e pelo ensino médio. Em particular, os licenciandos se preparam para serem os docentes que atuarão nos quatro últimos anos do ensino fundamental e nos três anos do ensino médio. Poderão ser também os professores de Matemática da educação de jovens e adultos, da educação profissional, da educação indígena, da educação especial. A Matemática é componente de todos esses currículos, e há grande quantidade de materiais atualmente disponíveis para o seu ensino, alguns deles muito difundidos, como os livros didáticos. Pode parecer aos futuros docentes que tudo isso é natural, e que sempre foi assim em nosso país. Entretanto, um breve olhar para o passado nos revela que houve muitas mudanças no que diz respeito ao oferecimento das oportunidades de educação e, especialmente para aqueles que pretendem ser professores, em relação aos objetivos, conteúdos e modos de ensinar os conhecimentos matemáticos para a população no longo intervalo de tempo decorrido desde a época em que o Brasil era uma colônia portuguesa até os dias atuais. Cabe também chamar a atenção para algo que pode passar despercebida, quando se focaliza a formação de professores de Matemática: em geral, ao abordar esse tema, esquecemo-nos de que os anos iniciais da escolarização constituem a época em que se ensinam e aprendem os primeiros conhecimentos matemáticos. Ao lado da língua materna, esses conhecimentos são o principal componente do processo de alfabetização, e integram a célebre tríade “ler, escrever e contar”. A compreensão de dimensões históricas do ensino da Matemática não pode, portanto, desconsiderar conhecimentos gerais relativos ao passado dos níveis mais elementares da educação brasileira. Neste texto, apresentamos um panorama da educação em nosso país ao longo do tempo no qual buscamos ressaltar alguns aspectos relativos ao ensino da Matemática. Fazemos uma abordagem extremamente geral, com referência aos períodos colonial, imperial e republicano de nosso país, buscando situar, para o estudante de licenciatura, alguns marcos importantes na história do ensino de sua disciplina. Valemo-nos de muitas leituras, e, entre elas, destacamos o livro Introdução à história da educação matemática, de Maria Ângela historia do ensino da matematica.indd 13 13/03/2013 10:37:28 14 história do ensino da matemática Miorim1. Um conhecimento mais profundo dos temas aqui apenas sobrevoados demandará muitas outras leituras e estudos complementares, para os quais podem contribuir as referências bibliográficas listadas no final do texto. Alertamos nossos leitores para as dificuldades da empreitada que ousamos esboçar e para a consciência que temos das muitas lacunas resultantes. As escolhas aqui realizadas trazem os limites naturais advindos da intenção de abarcar um tema tão complexo em tão longo período. Todavia, há alguma coisa de muito útil a se aprender das falhas inerentes a uma tarefa como essa – não há histórias do ensino da Matemática completas, e num país imenso e diverso como o Brasil, muito existe e muito existirá sempre a se pesquisar para conhecer essas histórias, para compreender melhor o nosso passado. BRASIL CoLôNIA (1500-1822) Desde o descobrimento, o ensino no Brasil foi quase uma prerrogativa dos padres da Companhia de Jesus. O primeiro grupo de jesuítas chegou ao Brasil em 1549, junto com o primeiro governador-geral, Tomé de Souza. Esses seis padres, liderados pelo padre Manuel da Nóbrega, foram os responsáveis pela criação da primeira escola elementar, na cidade de Salvador. A rede de educação jesuíta ampliou-se com a fundação de outras escolas elementares (em Porto Seguro, Ilhéus, São Vicente, Espírito Santo e São Paulo de Piratininga) e dos colégios, gradualmente estabelecidos na Bahia (1556), no Rio de Janeiro (1567), em Olinda (1568), no Maranhão (1622), em São Paulo (1631) e, posteriormente, também em outras regiões. Nas escolas elementares, no que diz respeito aos conhecimentos matemáticos, contempla- va-se o ensino da escrita dos números no sistema de numeração decimal e o estudo das operações de adição, subtração, multiplicação e divisão de números naturais. Nos colégios, o ensino ministrado era de nível secundário, e privilegiava uma formação em que o lugar principal era destinado às humanidades clássicas. Havia pouco espaço para os conhecimen- tos matemáticos e grande destaque para o aprendizado do latim. Sobre o ensino desses conhecimentos, conhece-se pouco: por exemplo, sabe-se que a biblioteca do colégio dos jesuítas no Rio de Janeiro possuía muitos livros de Matemática. No entanto, estudos realiza- dos por muitos pesquisadores conduzem à ideia geral de que os estudos matemáticos eram realmente pouco desenvolvidos no ambiente jesuíta. Em 1759, Sebastião José de Carvalho e Melo, o marquês de Pombal, primeiro-ministro de Portugal no período 1750-1777, ordenou a expulsão dos jesuítas de todas as colônias. Como esses padres eram os responsáveis pela maior parte das instituições educacionais no Brasil – havia 17 colégios em vários locais nesse momento –, considera-se que sua retirada do país é um marco importante na história da educação brasileira. Restaram poucas escolas, dirigidas por outras ordens religiosas e instituições de ensino militar. Em 1772, um alvará do marquês de Pombal criou as “aulas régias”, nas quais isoladamente se ensinaram primeiramente a gramática, o latim, o grego, a filosofia e a retórica, e, 1 MIORIM, M. A. Introdução à história da educação matemática. São Paulo: Atual, 1998. historia do ensino da matematica.indd 14 13/03/2013 10:37:28 15Unidade 1: aspectos gerais da história do ensino de MateMática no Brasil posteriormente, as disciplinas matemáticas: aritmética, álgebra e geometria. Eram aulas avulsas, e, em relação aos conhecimentos matemáticos, há indícios de que havia poucos alunos e, também, que era difícil conseguir professores. Em resumo, o que se conhece dessa fase é que o número de aulas de Matemática era pequeno e essas aulas tinham baixa frequência. Uma ocorrência importante, no Brasil do fim do século XVIII, no que diz respeito ao destaque à Matemática e às ciências, foi a criação do Seminário de Olinda pelo bispo de Pernambuco, Dom Azeredo Coutinho, em 1798. Essa instituição, que funcionou a partir de 1800 e não formava somente padres, tornou-se uma das melhores escolas secundárias do Brasil2. Ela conferiu importância ao ensino dos temas matemáticos e científicos, e era estruturada em termos de sequenciamento dos conteúdos, duração dos cursos, reunião dos estudantes em classes e trabalho de acordo com um planejamento prévio. Enquanto o Brasil foi colônia de Portugal e mesmo durante o império, além das aulas avulsas, havia seminários e colégios mantidos por ordens religiosas, escolas e professores particulares, e os chamados Liceus nos atuais estados do Rio Grande do Norte, da Bahia e da Paraíba. A chegada de D. João VI e da corte portuguesa ao Brasil, em 1808, trouxe mudanças em muitos campos, entre os quais é preciso enfatizar os ligados à educação e à cultura em geral. Muitas instituições culturais e educacionais foram implantadas, como a Academia Real de Marinha (1808), no Rio de Janeiro, a Academia Real Militar (1810), também no Rio, destinadas a formar engenheiros civis e militares; cursos de cirurgia, agricultura e química, a Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios (1816), o Museu Nacional, no Rio de Janeiro, entre outras. BRASIL IMPéRIo (1822-1889) Após a independência, em 1822, na instalação dos trabalhos da Assembleia Constituinte, que elaboraria a Constituição, D. Pedro I chamou a atenção para a necessidade de uma legislação especial sobre a instrução pública. A Constituição de 1824, que prevaleceu durante todo o período imperial, afirmavaa gratuidade da instrução primária para todos os brasileiros, mas foi somente depois de muitos debates sobre a educação popular que, em 15 de outubro de 1827, a Assembleia Legislativa votou em favor da primeira lei de instrução pública nacional no Império do Brasil. Essa lei estabelecia que houvesse escolas de primeiras letras em todas as cidades, vilas e lugares populosos. No ensino das primeiras letras, a Matemática estava presente: “primeiras letras” significavam, afinal, “ler, escrever e contar”. É interessante notar que a lei de outubro de 1827 diferenciava a educação para meninos e meninas, prevendo escolas separadas para os dois sexos. O currículo para as escolas de meninos envolvia “ler, escrever, as quatro operações aritméticas, prática de quebrados3, decimais e proporções, noções gerais de 2 Conforme SAVIANI, D. História das ideias pedagógicas no Brasil. Campinas: Autores Associados, 2007. 3 Trata-se do estudo das frações ordinárias. historia do ensino da matematica.indd 15 13/03/2013 10:37:28 16 história do ensino da matemática geometria, gramática da língua nacional, moral cristã e doutrina católica”4. As escolas para meninas existiriam nas localidades mais populosas, seriam dirigidas por professoras e em seu currículo eliminava-se a geometria e a prática de quebrados, incluindo-se o ensino de práticas importantes para a economia doméstica. No entanto, se é nesse momento que se pode situar a primeira colocação da educação da população como direito social, com a descentralização que o governo do Brasil promoveu em 1834, passando o encargo das “primeiras letras” para as administrações provinciais5, não foi possível a constituição de um sistema escolar capaz de atender a população. Há que se ter sempre em mente a marca antiga da exclusão em nosso país, colonizado por uma metrópole contrarreformista, que considerava os índios como bárbaros e os escravos negros como propriedade de seus senhores; para essa grande parcela da população, a educação era, pois, perfeitamente dispensável. A essas circunstâncias, associavam-se as dificuldades naturais de prover instituições escolares em um país imenso, despovoado, com enormes distâncias6. No que concerne ao ensino secundário, no início do século XIX, os colégios, liceus, ginásios, ateneus, cursos preparatórios anexos às faculdades e seminários religiosos tinham como objetivo a preparação dos estudantes para os exames de acesso às academias militares e poucas escolas superiores existentes no país. A partir da metade do século, cresceu o número de colégios particulares em quase todas as províncias, que também passaram a oferecer ensino público no nível secundário. O currículo não era uniforme, mas as disciplinas priorizadas eram o latim, o grego, a retórica, a poética, a filosofia e as línguas modernas. No Rio de Janeiro, o Município da Corte, em 1837, o ministro Bernardo Pereira de Vasconcelos, inspirado na organização dos colégios franceses, criou o Imperial Colégio de Pedro II, concebido para funcionar como internato e externato. O Colégio dava o grau de bacharel em letras aos alunos aprovados em todas as disciplinas durante os sete anos do curso e os alunos concluintes eram dispensados dos exames de ingresso aos cursos superiores. As matemáticas, que eram as disciplinas de Aritmética, Álgebra, Geometria, e, posteriormente a Trigonometria, apesar do predomínio das disciplinas literárias e humanistas, estavam presentes em todas as séries do curso do Colégio de Pedro II, em todas as várias reformas que modificaram o seu plano de estudos ao longo do tempo. O Colégio Pedro II tornou-se a instituição modelo para o ensino secundário no Brasil, e de acordo com a História da educação escrita por Cynthia Greive Veiga7, professora da Faculdade de Educação da UFMG, até 1873, alunos de outras províncias tinham que ir ao Rio de Janeiro para realizar seus exames, que lá eram centralizados. Posteriormente, uma lei autorizou a aplicação desses exames nas próprias províncias. O Colégio Pedro II, os liceus provinciais, os estabelecimentos religiosos e outros laicos ofereciam, durante a época imperial, o ensino secundário no Brasil. Fundamentalmente, 4 De acordo com VEIGA, Cynthia. G. História da Educação. São Paulo: Ática, 2007. 5 Em 1834, promulgou-se um ato adicional à Constituição, que transferiu para as assembleias das províncias a tarefa de administrar a instrução pública. Cada província passou a ter sua legislação educacional particular. 6 CURY, Carlos R. J. A educação como desafio na ordem jurídica. In: LOPES, Eliane M.; FARIA FILHO, Luciano M.; e VEIGA, Cynthia G. 500 anos de educação no Brasil. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. 7 VEIGA, C. G., op. cit. historia do ensino da matematica.indd 16 13/03/2013 10:37:28 17Unidade 1: aspectos gerais da história do ensino de MateMática no Brasil o público desse ensino era constituído pela elite econômica masculina do país, que se preparava para ocupar cargos político-administrativos e/ou para ingressar nos cursos superiores. As filhas das classes privilegiadas geralmente eram educadas para as atividades do lar e para a convivência social em colégios femininos – leigos ou religiosos – ou em casa, com o auxílio de preceptoras estrangeiras. Aprendiam as primeiras letras, o francês, música, piano e prendas femininas. As mulheres das classes populares podiam frequentar as aulas de instrução elementar, as escolas normais (para formação de professores) e cursos profissionalizantes. Na década de 1880, algumas mulheres passaram a estudar no Colégio Pedro II. Em 1887, a primeira mulher recebeu o diploma de médica no Rio de Janeiro, sendo a única presença feminina na turma. BRASIL REPúBLICA (A PARTIR DE 1889) A proclamação da República se deu num momento em que 85% da população era analfabeta8. O primeiro titular do Ministério da Instrução, Correios e Telégrafos, Benjamin Constant (1836-1891), foi o responsável por uma reforma do ensino, em 1890, que ficou conhecida pelo seu nome. Essa reforma, consubstanciada no Decreto 981, referia-se somente à instrução pública de nível primário e secundário no Distrito Federal, então situado no Rio de Janeiro. A lei buscava romper com a tradição humanista e literária do ensino secundário pela adoção de um currículo que privilegiava as disciplinas científicas e matemáticas. A Matemática era tida como a mais importante das ciências no ideário positivista do filósofo francês Auguste Comte (1798-1857), ao qual aderiram Benjamin Constant e o grupo de militares brasileiros que liderou a proclamação da República. Assim, essa disciplina adquiria grande relevância na proposta da Reforma Benjamim Constant, particularmente nos sete anos que compunham a educação secundária. É importante assinalar que o Colégio Pedro II, referência para esse nível da educação, passou a se chamar Ginásio Nacional quando se estabeleceu a República. A frequência ao ensino secundário, cujo objetivo principal, como vimos, era a preparação para a educação superior, não era obrigatória, e muitos estudantes, sem realizar um curso regular, faziam os chamados exames preparatórios para o ingresso nos cursos superiores, entre os quais figuravam os das disciplinas matemáticas: Aritmética, Álgebra, Geometria e Trigonometria. No que diz respeito ao ensino primário, o início da República foi o momento da implantação de um novo modelo de organização, o dos grupos escolares, e o estado pioneiro nessa medida foi São Paulo, em 1893. Esse modelo, que logo se difundiu pelos outros estados, reunia as classes em séries, estruturadas progressivamente, com cada série numa sala, com um professor, e grupos de quatro ou cinco séries reunidos em um mesmo prédio. Em Minas Gerais, os grupos escolares foram estabelecidos em 1906, durante o governo de João Pinheiro, e se organizavam em quatro séries. Na década de 1920,num contexto de profundas mudanças políticas, econômicas e sociais, realizaram-se, em diversos estados brasileiros e no Distrito Federal9, reformas no sistema 8 Conforme ROMANELLI, O. História da educação no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2001. 9 As reformas que ocorreram nesse período foram lideradas por autoridades ligadas à educação em cada local. Alguns historia do ensino da matematica.indd 17 13/03/2013 10:37:28 18 história do ensino da matemática de ensino relativas à educação primária e à formação de professores para esse nível. As mudanças efetivadas pelas legislações estaduais e do Distrito Federal vinculavam-se ao movimento pedagógico conhecido, entre outras denominações, como Escola Nova ou Escola Ativa10. Com esse movimento, procurava-se implementar, na escola primária, ideias em desenvolvi- mento na Europa e nos Estados Unidos desde o século XIX apresentadas nos trabalhos de diversos educadores de países distintos. Embora a Escola Nova se tenha nutrido de um amplo espectro de teorias, alguns princípios se constituíram como seus traços identificadores. Segundo Diana Vidal11, esses princípios eram “a centralidade da criança nas relações de aprendizagem, o respeito às normas higiênicas na disciplinarização do corpo do aluno e de seus gestos, a cientificidade da escolarização de saberes e fazeres sociais e a exaltação do ato de observar, de intuir, na construção do conhecimento do aluno”. Maria Ângela Miorim12 destaca duas ideias fundamentais comuns às diversas correntes escolanovistas: o “princípio da atividade” e o “princípio de introduzir na escola situações da vida real”, que trouxeram mudanças no ensino dos anos iniciais da escolarização, com reflexos específicos na abordagem da Matemática. Em Minas Gerais, no contexto das reformas realizadas por Francisco Campos (1891-1968), o titular da secretaria do governo estadual responsável pela educação, começou a funcionar, a partir de 1929, a Escola de Aperfeiçoamento. Essa instituição situava-se na capital do estado, Belo Horizonte, e tinha como objetivo oferecer às docentes mineiras em exercício no ensino primário um curso sintonizado com os princípios da Escola Nova, a fim de preparar adequadamente profissionais que seguissem as novas diretrizes pedagógicas. Para dar uma ideia de como se manifestavam essas diretrizes em relação ao ensino da Matemática, é oportuno citar um trecho de um texto escrito pela professora Alda Lodi (1898-2002), docente de Metodologia da Aritmética na Escola de Aperfeiçoamento: Como Arith. não deve ser ensinada com o fim de arith. exclusivamente, á parte das necessidades da vida, sem attender ás sit. reaes que a creança encontra, mas sim ajudal-a a estimar, a medir, a comparar, a calcular, a tornal-a socialmente efficiente no manejo das sit. numéricas, entendemos iniciar nosso curso discutindo a creança e o programa escolar. Assim, sempre firmamos as bases do nosso trabalho – giral-o em torno da creança, aproveitando seus interesses imediatos como ponto de partida da educação. (Lodi, 1929, p. 1)13. Segundo Maria Ângela Miorim, esse movimento de renovação pedagógica não alcançou logo a educação secundária, que continuou pautando sua ação “num ensino livresco, sem relação com a vida do aluno, baseado na memorização e na assimilação passiva dos conteúdos” (1998, p. 90). exemplos são: São Paulo (1920), com Sampaio Dória; Ceará (1922-1923), com Lourenço Filho; Distrito Federal (1922- 1926) e Pernambuco (1928), com Carneiro Leão; Minas Gerais (1927-1928), com Francisco Campos; Bahia (1928), com Anísio Teixeira. No Distrito Federal, em 1928, ocorreu nova reforma, sob a liderança de Fernando de Azevedo (Conforme Veiga, C. G., op. cit.). 10 De acordo com Veiga (2007), utilizaram-se ainda os termos “escola moderna”, “escola progressista” e “escola do trabalho”. 11 VIDAL, D. Escola nova e processo educativo. In: LOPES, E. M.; FARIA FILHO, L. M.; VEIGA, C. G. (Orgs.) 500 anos de Educação no Brasil.3. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. p. 497-517. 12 Miorim, 1998, p. 90. 13 Preservamos a ortografia e as abreviações da autora em Lodi, A. [Relato de atividades desenvolvidas nos três primeiros meses como docente da Escola de Aperfeiçoamento] (1929). Belo Horizonte: não publicado. historia do ensino da matematica.indd 18 13/03/2013 10:37:28 19Unidade 1: aspectos gerais da história do ensino de MateMática no Brasil Em 1908, realizou-se em Roma o quarto congresso internacional de Matemática, no qual foi criada uma comissão internacional14 para tratar de questões do ensino, presidida pelo matemático alemão Felix Klein (1849-1925). Essa comissão estabeleceu como meta proceder a um estudo sobre o ensino secundário da Matemática em vários países, entre os quais estava o Brasil, e sua constituição assinala a existência de um primeiro movimento internacional para a modernização do ensino. As principais propostas desse movimento eram: promover a unificação dos conteúdos matemáticos abordados na escola em uma única disciplina, enfatizar as aplicações práticas da Matemática e introduzir o ensino do cálculo diferencial e integral no nível secundário. No Brasil, o maior adepto das ideias modernizadoras foi o professor catedrático de Matemática do Colégio Pedro II15, Euclides Roxo (1890-1950), que liderou a proposição de uma mudança radical nos programas de ensino da instituição, aprovada por sua congregação em 1928. A característica mais evidente dessa proposta era a unificação das antigas disciplinas de Aritmética, Álgebra, Geometria e Trigonometria, que eram ensinadas por docentes distintos e faziam uso de livros diferentes, em uma nova disciplina chamada Matemática. A introdução das ideias modernizadoras em âmbito mais amplo nas escolas secundárias brasileiras concretizou-se, porém, somente em 1931, com uma série de decretos que se propunham a organizar nacionalmente a educação no país, e que ficaram conhecidos como a reforma Francisco Campos, porque foram publicados quando da gestão desse mineiro como o primeiro titular do Ministério da Educação e da Saúde, instituído no governo Getúlio Vargas. A proposta curricular da nova disciplina Matemática na reforma Francisco Campos é bastante detalhada, ultrapassando uma simples lista de conteúdos a serem ensinados na escola secundária. Seu texto se inicia por uma exposição das finalidades do ensino da Matemática: O ensino da Matemática tem por fim desenvolver a cultura espiritual do aluno pelo conhecimento dos processos matemáticos, habilitando-o, ao mesmo tempo, à concisão e ao rigor do raciocínio pela exposição clara do pensamento em linguagem precisa. Além disso, para atender ao interesse imediato da sua utilidade e ao valor educativo dos seus métodos, procurará, não só despertar no aluno a capacidade de resolver e agir com presteza e atenção, como ainda favorecer-lhe o desenvolvimento da capacidade de compreensão e de análise das relações quantitativas e espaciais, necessárias às aplicações nos diversos domínios da vida prática e à interpretação exata e profunda do mundo objetivo.16 A proposta enfatizava a necessidade de se ter sempre em vista, no ensino, o grau de desenvolvimento mental do aluno e seus interesses, e insistia em que sua atividade fosse constante, de modo que o estudante fosse “um descobridor e não um receptor passivo de conhecimentos17”. Por isso, recomendava a renúncia “à prática da memorização sem 14 Trata-se da Comission Internationale de l’Enseignement Mathématique – CIEM – ou Internationalen Mathematischen Unterrichts Kommission – IMUK –, que ficou conhecida, desde 1954, pela sigla ICMI – International Comission on Mathematical Instruction. 15 A instituição, que havia tido seu nome trocado com a proclamação da República, voltou a usar o nome antigo em 1911. 16 Novíssimo Programa do Ensino Secundário (nos termos do art.10, do decreto n. 19.890de 18 de abril de 1931). Rio de Janeiro, 1931. 17 Os trechos entre aspas neste parágrafo são expressões transcritas da proposta de Matemática da reforma Francisco Campos. historia do ensino da matematica.indd 19 13/03/2013 10:37:28 20 história do ensino da matemática raciocínio, ao enunciado abusivo de definições e regras e ao estudo sistemático das demonstrações já feitas”. Além disso, salientava-se que o ensino deveria partir da intuição; para a geometria, em particular, o estudo das demonstrações formais precisa ser precedido de atividades de experimentação e construção. A proposta atribuía papel importantíssimo ao conceito de função, como “ideia central do ensino”, apresentada primeiro intuitivamente, e desenvolvida gradativamente ao longo das séries. Na quinta série, prescrevia-se o ensino das noções básicas do cálculo diferencial e integral – limite, derivada e integral. Havia, ainda, orientações específicas quanto à Aritmética, à Álgebra e à Geometria, e, por fim, a lista de conteúdos para cada uma dessas áreas a serem trabalhados nas cinco séries do ensino fundamental, que se sucederiam ao curso primário de quatro anos. Deve-se chamar a atenção para a estruturação do ensino secundário introduzida pela reforma: após o primário, vinha o curso fundamental, de cinco anos, com a presença da Matemática em todos eles, e posteriormente seguia-se o curso complementar, com duração de dois anos, já dirigido para o ensino superior almejado pelo aluno. No curso voltado para as carreiras de medicina, farmácia e odontologia, a Matemática comparecia em um dos dois anos; para os que desejassem ser engenheiros, químicos ou arquitetos, estava presente em todo o curso. Uma característica central da proposta de educação secundária da reforma Francisco Campos é sua afirmação do caráter de formação desse nível de ensino, em contraposição à natureza anterior que se lhe associava, de preparação para os cursos superiores. Essa caracterização do ensino secundário, como uma etapa de formação, está explícita, na exposição de motivos do ministro Francisco Campos ao presidente Getúlio Vargas, em abril de 1931, como se pode notar no trecho a seguir: A finalidade do ensino secundário é, de fato, muito mais ampla do que a que se costuma atribuir-lhe. Via de regra, o ensino secundário tem sido considerado entre nós como um simples instrumento de preparação para dos candidatos ao ensino superior, desprezando-se, assim, a sua função eminentemente educativa que consiste, precisamente, no desenvolvimento das faculdades de apreciação, de juízo e de critério, essenciais a todos os ramos da atividade humana, e, particularmente, no treino da inteligência em colocar os problemas nos seus termos exatos e procurar as suas soluções mais adequadas18. Sendo revolucionária em relação à tradição de ensino vigente, a proposta de Matemática da reforma Francisco Campos foi atacada de muitas maneiras. Maria Ângela Miorim19 destaca alguns dos problemas ocorridos. Os professores da época tiveram dificuldades de adaptação, agravadas, num primeiro momento, pela falta de livros didáticos de acordo com as novas diretrizes. Havia os defensores do ensino das humanidades clássicas, e especialmente do latim, como o padre Arlindo Vieira, que criticaram fortemente o que consideravam um excesso de conteúdos no programa da reforma, bem como a fusão das disciplinas matemáticas em uma única disciplina. 18 Novíssimo Programa do Ensino Secundário (nos termos do art.10, do decreto n. 19.890 de 18 de abril de 1931). Rio de Janeiro, 1931. 19 MIORIM, 1998, op. cit. historia do ensino da matematica.indd 20 13/03/2013 10:37:28 21Unidade 1: aspectos gerais da história do ensino de MateMática no Brasil Professores de Matemática que se posicionavam favoravelmente ao ensino tradicional, no qual a Matemática era concebida principalmente como disciplina mental, consideraram que a nova proposta, que começou a ter repercussões em alguns livros didáticos de caráter mais intuitivo, rebaixava o ensino. O principal representante desse grupo era um professor do Colégio Pedro II, Almeida Lisboa, que, em muitos artigos publicados em jornais da época, atacava frontalmente o professor Euclides Roxo, o principal responsável pela reforma no que diz respeito à Matemática. No que toca à educação superior20, nos anos iniciais da República, foram criadas várias faculdades no país. O controle desse nível de ensino pertencia ao governo federal. A primeira instituição de ensino superior brasileira com o nome de universidade foi a Universidade de Manaus, surgida em 1909, no auge da exploração da borracha, que teve existência até 1926. Em São Paulo (1911) e no Paraná (1912), criaram-se outras universidades, que também duraram pouco; a primeira universidade duradoura foi a do Rio de Janeiro, estabelecida em 1920, pela reunião das faculdades de Medicina, Direito e Engenharia já existentes. Em 1927, as faculdades do mesmo tipo situadas em Belo Horizonte, juntamente com a de Odontologia e Farmácia, foram reunidas na Universidade de Minas Gerais, que veio a ser, a partir de 1965, a atual Universidade Federal de Minas Gerais. Cabe assinalar, ainda, que a formação específica de professores para o ensino secundário em nível superior só teve início no Brasil em 1934, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (USP). No Rio de Janeiro, tem destaque a criação da Universidade do Distrito Federal, em 1935, extinta em 1939 para dar lugar à Universidade do Brasil. Nesse mesmo ano, criou-se a Faculdade Nacional de Filosofia, na qual, bacharelando-se primeiramente em Matemática e, posteriormente, cursando Didática, o estudante poderia obter o diploma de licenciado em Matemática. De 1942 a 1946, a educação brasileira passou por novas reformas, pela via de uma série de decretos-lei que criaram o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial –Senai – e o Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial – Senac – e normatizaram os ensinos industrial, comercial, primário, secundário, normal e agrícola. O conjunto de decretos ficou conhecido como a reforma Gustavo Capanema. O ensino secundário, regulamentado em 1942 por meio da Lei Orgânica do Ensino Secundário, foi organizado em dois ciclos: o ginasial, de quatro anos, e o colegial, de três anos, nas modalidades clássico e científico. Criou-se o ramo secundário técnico-profissional, subdividido em industrial, comercial e agrícola, além do normal, para formar professores para a escola primária. Esse conjunto de reformas tinha caráter centralista e dualista no sentido de separar o ensino secundário, destinado às elites, e o ensino profissional, para o povo, pois somente os egressos do ensino secundário tinham o direito de acesso aos cursos superiores21. 20 Baseamo-nos, aqui, no texto de Luiz Antônio Cunha: CUNHA, L. A. Ensino superior e universidade no Brasil. In: LOPES, E. M.; FARIA FILHO, L. M. e VEIGA, C. G. 500 anos de educação no Brasil. 3ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. 21 Conforme SAVIANI, 2007, op. cit. historia do ensino da matematica.indd 21 13/03/2013 10:37:28 22 história do ensino da matemática A Lei Orgânica do Ensino Secundário foi acompanhada por uma portaria ministerial, datada de 17 de julho de 1942, na qual se estabeleciam os programas para as disciplinas do curso ginasial do ensino secundário. Diferentemente do ocorrido com a reforma Francisco Campos, a reforma Gustavo Capanema não detalhou esses programas, limitando-se a portaria a apresentar listas de conteúdos, sem quaisquer indicações metodológicas para a abordagem dos diversos assuntos. Os programas de Matemática das duas primeiras séries se subdividem em dois temas: Geometria Intuitiva e Aritmética Prática, enquanto os das duas últimas séries contêm, separadamente, os itens relativos à Álgebra e à GeometriaDedutiva. Após a reforma Campos, foram publicadas várias coleções de livros didáticos em cinco volumes que visavam atender ao disposto em sua proposta para o curso fundamental. Com a reforma Capanema, autores e editoras reorganizaram essas coleções em quatro volumes e as colocaram no mercado para atender a nova estruturação do ensino secundário22. A partir da década de 1950, as disciplinas escolares, e entre elas a Matemática, começam a se modificar. Uma transformação das condições econômicas, sociais e culturais do Brasil e das possibilidades de acesso à escola começa a requerer alterações no funcionamento e nas finalidades dessa instituição, o que repercute no ensino das diversas disciplinas. Modifica-se o público de estudantes, com a inserção, na educação escolar, de alunos provenientes das camadas populares, que vinham reivindicando há muito tempo o direito à escolarização. Trata-se de uma democratização da escola, que passa a receber também os filhos da classe trabalhadora, e cresce enormemente o número de alunos no primário e no secundário. As necessidades de professores para atender a esse público expandido levam à diminuição das exigências na seleção desses profissionais. Assinala-se, nesse momento, portanto, uma mudança significativa das condições escolares e pedagógicas, das necessidades e exigências culturais23. De fato, e também por fatores além dos que acabamos de comentar, o ensino da Matemática no Brasil se alteraria muito a partir do final da década de 1950, quando tiveram início os primeiros congressos nacionais de ensino realizados em nosso país. O primeiro desses encontros ocorreu em Salvador, em 1955, com a participação de 115 professores de sete estados, e o segundo em Porto Alegre, em 1957, com a presença de 240 professores. Muitos matemáticos e professores de Matemática se envolveram, desde essa época, no movimento internacional que ficou conhecido como o Movimento da Matemática Moderna. Apresentamos, a seguir, uma síntese dos aspectos principais desse movimento, cujos desenvolvimentos e desdobramentos vêm sendo pesquisados profunda e minuciosamente no Brasil e em outros países. Em 1957, os soviéticos, superando os norte-americanos na corrida espacial, foram os primeiros a lançar o Sputnik, o primeiro satélite artificial da Terra. O governo dos Estados Unidos, que já se mobilizava em torno de uma reforma dos currículos escolares de Ciências e Matemática 22 De acordo com VALENTE, W. R. (Org.). o nascimento da matemática do ginásio. São Paulo: Annablume; FAPESP, 2004. 23 Conforme SOARES, M. Português na escola: História de uma disciplina curricular. In: LOPES, E. M.; PEREIRA, M. R. (orgs.). Conhecimento e inclusão social: 40 anos de pesquisa em Educação. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011. historia do ensino da matematica.indd 22 13/03/2013 10:37:28 23Unidade 1: aspectos gerais da história do ensino de MateMática no Brasil para vencer a defasagem entre esses currículos e o progresso científico-tecnológico do momento, intensificou seus esforços e financiamentos para desenvolver recursos didáticos, inclusive livros, e disseminar as novas propostas no país e no estrangeiro24. Ao mesmo tempo, na Europa, especialmente na França, matemáticos e educadores promoviam eventos e também propagavam um ideário renovador do ensino da Matemática. Em 1959, a Organização Europeia de Cooperação Econômica – OECE – realizou uma conferência de duas semanas de duração na cidade de Royaumont, na França, reunindo especialistas de vinte países para discutir propostas de mudanças para o ensino de Matemática no nível secundário. Buscava-se, com o Movimento da Matemática Moderna, renovar o ensino pela introdução, no currículo, de aspectos da Matemática desenvolvida mais modernamente, isto é, a partir do século XVIII. Foi nessa conferência que se estabeleceram as bases do movimento modernista: além da introdução, nos currículos, de uma Matemática produzida mais recentemente, defendia-se o realce na precisão da linguagem matemática; uma nova abordagem dos conteúdos tradicionais na qual estivessem presentes a linguagem dos conjuntos, as relações (subconjuntos do conjunto dos pares ordenados do produto cartesiano de dois conjuntos) e as estruturas matemáticas (anéis, grupos, corpos, espaços vetoriais), a sequenciação dos conteúdos de acordo com a moderna construção lógica da Matemática, o destaque para as propriedades das operações em lugar da ênfase nas habilidades computacionais. A penetração das ideias do Movimento da Matemática Moderna no Brasil foi grande. Em 1959, o 3º Congresso Brasileiro de Ensino de Matemática, realizado no Rio de Janeiro, agregou 500 professores de 18 estados e nesse evento se verificaram as primeiras manifestações sobre o Movimento da Matemática Moderna em nosso país. Formaram-se, em vários estados, grupos cujo objetivo era preparar os professores para atuar em sintonia com as novas diretrizes propostas. Desses grupos, um dos mais importantes foi o Grupo de Estudos do Ensino da Matemática –GEEM –, fundado em São Paulo, em 1961, sob a liderança de Osvaldo Sangiorgi, que havia realizado, em meados do ano anterior, um estágio nos Estados Unidos, na Universidade do Kansas. Outros grupos de destaque foram o Grupo de Estudos de Ensino da Matemática – GEEMPA –, de Porto Alegre; o Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Matemática – GEPEM –, do Rio de Janeiro; o Núcleo de Estudo e Difusão do Ensino da Matemática – NEDEM –, de Curitiba; e o grupo da Bahia, coordenado pelo professor Omar Catunda25. Em 1962, durante o 4º Congresso Brasileiro de Ensino de Matemática, em Belém do Pará, o GEEM apresentou algumas experiências realizadas com a Matemática Moderna, bem como um programa para a Matemática da escola secundária, baseado nas ideias modernizadoras. Em 1966, o 5º Congresso Brasileiro de Ensino de Matemática, realizado em São José dos Campos, no estado de São Paulo, teve como foco principal a implantação da Matemática Moderna no Brasil, e contou com a presença de defensores da reforma modernista em 24 Ver, por exemplo, Fiorentini (1995), Miorim (1998). 25 Conforme MIORIM, 1998, e VALENTE, W. Programas e livros didáticos modernos para o ensino de matemática no Brasil. In: MATOS, J. M. e VALENTE, W. R. A reforma da Matemática Moderna em contextos ibero-americanos. Lisboa: Faculdade de Ciência e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, 2010, pp. 77-102. historia do ensino da matematica.indd 23 13/03/2013 10:37:28 24 história do ensino da matemática outros países, como os professores Marshall Stone, dos Estados Unidos, e Georges Papy, da Bélgica, entre outros26. O Movimento da Matemática Moderna tinha, como um de seus principais objetivos, integrar os campos da aritmética, da álgebra e da geometria no ensino, mediante a inserção de alguns elementos unificadores, tais como a linguagem dos conjuntos, as estruturas algébricas e o estudo das relações e funções. Enfatizava-se, ainda, a necessidade de conferir mais importância aos aspectos lógicos e estruturais da Matemática, em oposição às características pragmáticas que, naquele momento, predominavam no ensino, refletindo-se na apresentação de regras sem justificativa e na mecanização dos procedimentos. Como a Matemática havia se tornado, desde o século XIX, mais precisa e fundamentada logicamente, buscava-se que os conhecimentos veiculados na escola refletissem essa característica27. Por outro lado, para a geometria, os defensores do movimento propunham a substituição da abordagem clássica inspirada nos Elementos, de Euclides, que dominava as escolhas dos autores e professores há séculos, pelo enfoque das transformações geométricas, com o estudo dos conceitos de vetor, espaço vetorial e transformação linear. Torna-se agora importante sublinhar um aspecto mais geral da educação brasileira desde, principalmente,os anos 1960. De acordo com Magda Soares28, a necessidade de um recrutamento mais amplo e menos seletivo de professores em decorrência do crescimento da necessidade desses profissionais, já comentada anteriormente, levou a uma intensificação do processo de depreciação da função docente, que se manifestou no rebaixamento salarial e na maior precariedade das condições de trabalho. Nesse momento, os professores precisam de recursos que suavizem as atribuições docentes, e uma das estratégias para isso é transferir ao livro didático a tarefa de preparar aulas e exercícios. Observa-se, então, um aumento da importância dos livros didáticos no ensino de todas as disciplinas escolares. No caso específico da Matemática, nesse período de propagação das ideias do Movimento da Matemática Moderna, muitas coleções de livros didáticos, publicados a partir de 1963, tiveram papel importantíssimo na disseminação do ideário modernista. Esses livros, fundamentados na organização estrutural dos conjuntos numéricos, na maior parte das vezes se iniciavam pela abordagem dos conjuntos, em que se evidenciava fortemente a presença da linguagem simbólica. Somente depois se focalizavam os conjuntos numéricos, na seguinte ordem: naturais, inteiros, racionais e reais, enfatizando a relação de inclusão de cada um deles naquele que o seguia. Na abordagem dos conjuntos numéricos, insistia-se nas propriedades estruturais das operações neles definidas, destacando-se, para a adição e a multiplicação, a associatividade, a comutatividade, os elementos neutro e inverso, a distributividade da multiplicação em relação à adição. Em um estudo publicado em 2005, Maria Ângela Miorim29 aponta as dificuldades dos autores de livros didáticos para chegar a uma abordagem em conformidade com o ideário 26 De acordo com MIORIM, 1998, op. cit. 27 De acordo com FIORENTINI, D.; Miguel, A.; MIORIM, M. A. Álgebra ou Geometria: para onde pende o pêndulo? In: Pro- Posições. São Paulo, v.3, n.1 (7), pp.39-54. 28 SOARES, M., op. cit. 29 MIORIM, M. A. Livros didáticos de matemática do período de implantação do movimento da matemática moderna no Brasil. In: V Congresso Ibero-americano de educação matemática, 2005, Porto. V CIBEM - Congresso Ibero-americano de educação matemática. Porto: Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, 2005. v. 1, p. 1-20. historia do ensino da matematica.indd 24 13/03/2013 10:37:28 25Unidade 1: aspectos gerais da história do ensino de MateMática no Brasil modernista. A autora salienta que tais dificuldades parecem ter sido ainda maiores no tocante à geometria, pois os enfoques adotados nas obras não se distanciaram muito do que era feito anteriormente. Consequentemente, houve realizações distintas, e cada autor ou grupo de autores trabalhou de forma diferenciada os conteúdos geométricos, embora se possa perceber, nas apresentações desses conteúdos em diversos livros, um aspecto comum: a utilização da linguagem dos conjuntos. A geometria escolar, tendo assumido abordagens muito variadas nos livros, foi, de acordo com Maria Ângela Miorim, traduzida pelos autores em suas obras segundo suas próprias experiências pedagógicas e leituras das propostas modernistas. Pode se dizer, porém, que resultou dos modos de apropriação das ideias do movimento, em parte, a descaracterização da tradicional abordagem axiomático-dedutiva da geometria em favor da presença de uma abordagem eclética, na qual se tornou patente o abrandamento da exigência das demonstrações. Um dos efeitos da disseminação das ideias do Movimento da Matemática Moderna, de acordo com vários autores, foi uma diminuição da presença dos conteúdos geométricos nas práticas pedagógicas realizadas nas escolas, tanto pelo papel de relevo adquirido pela álgebra quanto pela falta de subsídios dos professores para efetivar as propostas modernistas para a geometria. Regina Pavanello30 sublinha que, em decorrência da ampliação da rede de escolas públicas e das políticas educacionais daquele momento em que o país era governado por uma ditadura militar, a partir de 1968 criaram-se cursos de natureza aligeirada para formar professores para atender as demandas urgentes que se colocavam. Nesses cursos, não havia investimento suficiente em relação à preparação para o ensino da geometria, e como consequência da penetração do ideário modernista e desse contexto, configurou-se, no Brasil, aquilo que se passou a denominar “o abandono do ensino da geometria”. Um ponto importante a ser destacado na história da organização do ensino brasileiro são as mudanças trazidas pela Lei de Diretrizes e Bases para o Ensino de 1º e 2º graus (LDB 5692) de 1971. Essa lei dividiu o ensino em dois níveis. O primeiro grau, com duração de oito anos, unia os antigos primário e ginásio sem a necessidade de que o estudante se submetesse, como anteriormente, ao chamado Exame de Admissão que o habilitava a prosseguir os estudos depois dos quatro primeiros anos de escolarização. O 2º grau foi proposto como curso de preparação profissional, buscando desviar parte da demanda pelo ensino superior, que não oferecia vagas suficientes para todos os concluintes da escola secundária. Segundo Regina Pavanello, não foi possível realizar essa profissionalização nas escolas públicas, que careciam de recursos humanos e materiais para tais tarefas, enquanto as escolas particulares, interpretando de acordo com seus interesses a legislação, mantiveram um ensino preparatório para o nível superior. O que se verificou, em parte devido à expansão da rede escolar desacompanhada do oferecimento de uma formação docente de qualidade em larga escala, num contexto em que a álgebra assumiu papel preponderante, foi quase a total ausência do ensino da geometria nas escolas públicas nas décadas de 1970 e 1980. 30 PAVANELLO, R. M. o abandono da geometria no Brasil: causas e conseqüências. Zetetiké, Campinas, n. 1, p. 7-17, mar. 1993. historia do ensino da matematica.indd 25 13/03/2013 10:37:28 26 história do ensino da matemática No final dos anos 1970, surgem críticas ao Movimento da Matemática Moderna em muitos países. Pessoas de grande credibilidade entre os matemáticos, como Morris Kline31, nos Estados Unidos, e René Thom32, na França, posicionam-se contra as propostas do movimento. Critica-se a ênfase na Matemática pela Matemática, em seu formalismo e nos aspectos estruturais, assim como a preocupação excessiva com a linguagem e os símbolos. No Brasil, a crítica à Matemática Moderna e a discussão sobre seu fracasso no ensino, no final da década de 1970 e início dos anos 1980, fizeram parte de um contexto de renovação dos ideais educacionais, estimulado pelo fim da ditadura militar. Em relação às propostas curriculares para a Matemática, no nível anteriormente chamado 1º grau, surgem alternativas ao ideário modernista, como a representada pelo documento oficial do estado de São Paulo, em 1986, que, centrada em três grandes temas – números, medida e geometria – apresenta características opostas às prevalecentes durante a predominância das concepções associadas à Matemática Moderna. Entre essas alternativas destacam-se a preocupação com uma abordagem histórica dos temas, a ênfase na compreensão dos conceitos, levando-se em conta o desenvolvimento dos alunos, a acentuação na importância da geometria e a eliminação do destaque conferido aos conjuntos, à linguagem simbólica e ao rigor e à precisão na linguagem matemática. Outros marcos relevantes quanto ao ensino da Matemática no Brasil, nos últimos trinta anos do século XX, são a implantação de programas de pós-graduação em Matemática nas universidades, desde 1971, e, a partir de 1987, a criação de cursos específicos de pós- graduação em Educação Matemática, em nível de especialização, mestrado e doutorado, em vários estados brasileiros. Salienta-se, ainda, a realização deinúmeros encontros locais, estaduais e nacionais de Educação Matemática e a fundação, em 1988, da Sociedade Brasileira de Educação Matemática – SBEM – 33, uma sociedade civil, de caráter científico e cultural, cuja finalidade principal é congregar profissionais da área de Educação Matemática ou áreas afins. Os membros da SBEM são pesquisadores, professores e alunos que atuam na educação básica e superior no Brasil. 31 Morris Kline (1908-1992), professor da Universidade de Nova Iorque e historiador da Matemática norte-americano, publicou, em 1973, um livro em que expunha sua oposição radical ao ideário do Movimento da Matemática Moderna, intitulado Why Johnny Can’t Add: The Failure of the New Mathematics, que foi editado no Brasil em 1976, com o título de o fracasso da Matemática Moderna. 32 René Thom (1923-2002), matemático francês, ganhador, em 1958, do mais importante prêmio internacional de Matemática, a medalha Fields, é o criador da Teoria das Catástrofes. Escreveu textos contra as ideias do Movimento da Matemática Moderna. Como exemplo, tem-se o artigo denominado Matemática “moderna”: um erro pedagógico e filosófico? 33 Para mais informações, consultar o site da SBEM, cujo endereço é <www.sbem.com.br>. historia do ensino da matematica.indd 26 13/03/2013 10:37:28 27Unidade 1: aspectos gerais da história do ensino de MateMática no Brasil PARA CoNCLUIR Em 1996, como já foi comentado no início deste texto, publicou-se a atual Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), que contém os principais parâmetros relacionados à educação em nosso país, inclusive sua estruturação. As mudanças ocorridas em relação às recomendações para o ensino da Matemática vinculadas à crise do Movimento da Matemática Moderna, à emergência e ao desenvolvimento da área da Educação Matemática, com a realização de um número enorme de pesquisas que contemplam muitas tendências e os mais diversos contextos em que se ensina a Matemática, têm repercutido nas propostas curriculares mais recentes. Entre elas, a de maior relevo é a dos Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental, de responsabilidade do Ministério da Educação – MEC –, publicada em 1997-1998. Posteriormente, surgiram propostas análogas para o Ensino Médio, a Educação de Jovens e Adultos e a Educação Indígena, também vinculadas ao MEC. Todas essas propostas incorporaram os resultados de pesquisas acadêmicas em Educação Matemática no Brasil e no exterior, desde o final da década de 1970. Elas trazem alguns elementos comuns, como a colocação da necessidade de incorporação, nas práticas pedagógicas escolares, das tecnologias da informação e da comunicação, dos jogos e materiais concretos, da história da Matemática, e almejam, sobretudo, que os conhecimentos matemáticos na formação escolar básica tenham realmente significado para os estudantes, ultrapassando a simples preparação para as carreiras profissionais que eventualmente venham a seguir. Outra mudança recente a ser sublinhada na atualidade brasileira é a extensão do Ensino Fundamental de oito para nove anos, com a inclusão das crianças de seis anos nesse nível. Essa modificação traz novas demandas à formação de professores e à produção de materiais didáticos, no contexto da alfabetização, proposta para ser iniciada mais cedo. O Brasil modificou-se completamente em suas dimensões políticas, sociais, econômicas e culturais no final do século XX e início do século atual. A educação está sempre atrelada às demandas e características das sociedades que a sustentam, e o ensino de Matemática integra essa educação. Em cada momento histórico, a Matemática, como qualquer outra disciplina escolar, tece-se pelos fatores externos – as condições sociais, políticas, culturais e econômicas que compõem a escola e o ensino – e pelos fatores internos – aqueles referentes à natureza dos conhecimentos de uma área específica. Para a Matemática, como também ocorre em outros campos, os fatores internos têm se constituído, cada vez mais, não apenas em relação aos conteúdos específicos, já que conhecimentos sobre a natureza dos processos de ensino e aprendizagem e a formação dos profissionais da área da Educação Matemática têm repercutido com força nas propostas e recursos curriculares e didático-pedagógicos. A maior demanda da atualidade brasileira para a melhoria do ensino da Matemática é a formação de professores para atender a uma enorme e diversa população. Por isso, também se têm ampliado consideravelmente, nos últimos anos, os cursos de preparação de docentes, na graduação e na pós-graduação. Não podemos deixar de aludir, nesse contexto, aos programas de formação inicial de professores de Matemática a distância, inseridos na Universidade Aberta do Brasil – UAB –, como uma das iniciativas de destaque dos últimos anos, da qual faz parte o curso de licenciatura à distância da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. historia do ensino da matematica.indd 27 13/03/2013 10:37:28 28 história do ensino da matemática Não podemos, também, ao concluir este texto, deixar de chamar a atenção, uma vez mais, para o seu caráter de incompletude e para a consequente necessidade de outras leituras e estudos para que o futuro professor conheça mais acerca do passado do ensino dos conhecimentos matemáticos no Brasil. Apêndice: notas explicativas sobre alguns nomes usados para instituições de ensino Ao longo do tempo, alguns substantivos de origem grega e latina têm sido utilizados para designar instituições de ensino e algumas vezes também de pesquisa. Entre eles, procuramos dar uma breve explicação para os termos escola, colégio, liceu, academia, ateneu e museu. Academia: A origem da palavra é o nome de um ginásio (para a prática de esportes) dedicado ao herói Academo, em Atenas, perto do lugar em que Platão residiu e em que fundou sua escola de filosofia. Lá, Platão ensinou durante quarenta anos, de 387 a. C. até sua morte no ano 347 a. C. Essa escola ficou conhecida como a Academia de Platão e existiu até o ano 529, quando foi fechada por ordem do imperador romano Justiniano. Ateneu: Originalmente, em Atenas, na Grécia antiga, o Ateneu era um lugar público dedicado à deusa da sabedoria, Palas Atena (chamada de Minerva pelos romanos). Nesse lugar, poetas e literatos liam suas obras. Por extensão de sentido, a palavra foi usada para nomear instituições ou associações com finalidade cultural e também instituições de ensino. Colégio: A palavra é de origem latina (collegium) e significa associação, confraria, corporação. É usada para indicar uma reunião de indivíduos da mesma categoria (colégio eleitoral, colégio de sacerdotes) e instituições de ensino. Escola: Sua origem mais próxima é a palavra schola, do latim clássico, advinda, por sua vez, do termo grego skolé, que significava ócio ou lazer, descanso, repouso. Para os gregos antigos, a busca do conhecimento tinha esse sentido. Por essa razão, o significado mais comum da palavra é o de instituição em que se ministra qualquer tipo de ensino coletivo. Liceu: Palavra de origem grega (lyceum) foi o nome da escola de filosofia fundada em 335 a. C. por Aristóteles. Ela se situava a leste de Atenas, num bosque consagrado a Apolo Lykeios. O nome foi e ainda é usado em várias línguas para indicar lugares de instrução. Na França, o termo lycée se refere a estabelecimentos para os três últimos anos do ensino secundário. Em Portugal, até o final da década de 1970, os liceus eram as escolas voltadas para a formação geral em ciências e humanidades e a preparação para o ensino superior, e funcionavam paralelamente a diversos tipos de escolas técnicas profissionais. A partir de 1975, os liceus e escolas técnicas começaram a se transformar em escolas secundárias que deveriam ministrar o ensino liceal e também o ensino técnico. Em 1978, concluiu-se o processode extinção dos liceus e todas as escolas que ainda eram assim designadas passaram a ter o nome de escolas secundárias. Museu: O museu (mouseion) era, na Grécia Antiga, um templo de devoção às musas, que eram divindades protetoras da música, da poesia, da história, da tragédia, da comédia, da dança, da oratória e da astronomia. A palavra pode designar: uma instituição que busca, conserva, estuda e expõe objetos de valor artístico, histórico etc.; o local em que esses objetos são expostos; ou uma coleção de objetos raros. historia do ensino da matematica.indd 28 13/03/2013 10:37:28 29Unidade 1: aspectos gerais da história do ensino de MateMática no Brasil REFERêNCIAS BúRIGO, E. Z. Matemática Moderna: progresso e democracia na visão de educadores brasileiros dos anos 60. Teoria e Educação, n. 2, p. 255-265, 1990. Porto Alegre (RS). CUNHA, L. A. Ensino superior e universidade no Brasil. In: LOPES, E. M.; FARIA FILHO, L. M. e VEIGA, C. G. (Orgs.). 500 anos de Educação no Brasil. 3 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. p. 151-204. CURY, C. R. J. A educação como desafio na ordem jurídica. In: LOPES, Eliane M.; FARIA FILHO, Luciano M. e VEIGA, Cynthia G. 500 anos de educação no Brasil. 3 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. DASSIE, B. A.; ROCHA, J. L.; SOARES, F. S. 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M.; FARIA FILHO, L. M.; e VEIGA, C. G. (Orgs.) 500 anos de Educação no Brasil. 3 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. p. 497-517. LEITURAS CoMPLEMENTARES Como complementação ao texto “Aspectos gerais da história do ensino de Matemática no Brasil”, propomos a leitura e algumas atividades que tomam como referência dois outros textos, a serem disponibilizados na plataforma Moodle. O primeiro desses textos foi extraído do Novíssimo Programa do Ensino Secundário, nos termos do artigo 10 do Decreto n. 19.890, de 18 de abril de 1931 – um dos decretos da reforma Francisco Campos. A primeira parte do material consiste da Exposição de Motivos da reforma do ensino secundário feita pelo ministro da Educação, Francisco Campos, ao Chefe do Governo Provisório, Getúlio Vargas, em 10 de janeiro de 1931. Nesse texto, o ministro apresenta considerações sobre as finalidades do ensino secundário e justifica a proposta de reforma. A segunda parte refere-se especificamente à Matemática no ensino secundário, apresentando os objetivos da disciplina, orientações metodológicas (gerais e específicas em relação a alguns conteúdos) para o trabalho dos professores e uma lista de tópicos a serem focalizados em cada uma das cinco séries do ginásio. O segundo texto importante para complementar a Unidade 1 é o artigo Alguns modos de ver e conceber o ensino da Matemática no Brasil, de autoria de Dario Fiorentini, publicado em 1995 na revista Zetetiké, da Faculdade de Educação da UNICAMP-Universidade Estadual de Campinas. O texto está disponível no site da revista Zetetiké:<http://www.fae.unicamp. br/zetetike/index.php>. No artigo, Fiorentini se propõe a descrever e caracterizar alguns modos de ver e conceber a melhoria do ensino da Matemática, historicamente produzidos no Brasil. O autor identificou seis tendências que tiveram presença marcante na configuração do conjunto de ideias acerca da Educação Matemática em nosso país e expõe, no texto, o que distingue as tendências quanto aos seguintes aspectos: concepção de Matemática; crença sobre como se forma o conhecimento matemático; finalidades e valores atribuídos ao ensino da Matemática; concepção de ensino-aprendizagem; cosmovisão (visão de mundo) subjacente; relação professor-aluno; perspectiva de estudo/pesquisa com vistas à melhoria do ensino da Matemática. historia do ensino da matematica.indd 30 13/03/2013 10:37:29 31Unidade 1: aspectos gerais da história do ensino de MateMática no Brasil ATIVIDADES REFERENTES à UNIDADE 1 Atividade 1 Após ler o texto Aspectos gerais do ensino de Matemática no Brasil até o fim do trecho que focaliza a reforma Francisco Campos e, também, o texto extraído do Novíssimo Programa do Ensino Secundário (especialmente a parte relativa à Matemática na reforma Francisco Campos): 1. Faça uma síntese das ideias quanto ao papel da noção de função expostas no texto extraído do Novíssimo Programa do Ensino Secundário (reforma Francisco Campos). 2. Destaque e explique três das recomendações feitas no texto da reforma Francisco Campos acerca do ensino da geometria. Atividade 2 Depois de terminar a leitura do texto Aspectos gerais do ensino de Matemática no Brasil, escreva um texto de 1 a 3 páginas (se for digitado, use Times New Roman, tamanho 12, espaçamento 1,5), comentando três pontos que chamaram sua atenção quanto à história do ensino de Matemática no Brasil. Considere, para elaborar o seu trabalho, além do texto mencionado, a parte de Matemática da reforma Francisco Campos no texto extraído do Novíssimo Programa
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