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Reflexões sobre o conteúdo do Estado Democrático de Direito Julia Maurmann Ximenes 1 Resumo No âmbito da Teoria do Estado, a problemática acerca do conteúdo do Estado Democrático de Direito tem sido uma constante nos debates. O Estado contemporâneo atual deve primar pelos direitos individuais e pelos direitos sociais e assim ser qualif icado como Democrático de Direito? Essa e outras questões são objeto de análise no presente artigo. 1 Introdução Na disciplina Teoria Geral do Estado, ministrada normalmente nos primeiros semestres do Curso de Direito, emerge uma problemática que, na verdade, acompanha muitos alunos durante todo o curso e quiçá durante o exercício da nova profissão. Trata-se do conceito de Estado Democrático de Direito, expressão comumente apregoada de forma simplista e que não traduz seu verdadeiro conteúdo. A expressão “Estado de Direito”, conhecida na vertente contemporânea, é atribuída à segunda metade do século XVII I e início do XIX, com o surgimento da doutrina l iberal e com as duas principais revoluções, a Americana e a Francesa, que consolidaram um processo iniciado anteriormente de l imitação do poder do Estado frente aos indivíduos, principalmente na Inglaterra. Os detentores do poder passam a ter seu arbítr io cerceado por princípios como o da legalidade, da l iberdade e da igualdade individuais. 1 Doutoranda em Sociologia na Universidade de Brasília. Mestre em Direito pela Universidade Metodista de Piracicaba. Bacharela em Direito pela Universidade de Brasília. Professora de Teoria Geral do Estado no IESB. Contudo, é notório que, apesar dos anseios revolucionários, a s ituação do cidadão no seu dia-a-dia pouco se alterou com o surgimento do “Estado de Direito”. A Revolução Industrial do início do século XIX demonstrou as atrocidades cometidas por empregadores contra seus empregados, cuja jornada de trabalho era excessiva, as condições de trabalho eram sub-humanas, uma verdadeira exploração do trabalhador. Aparecem, então, vários t ipos de manifestações contrárias ao status quo, buscando dignidade da pessoa humana, um Estado que se responsabil izasse pelo social. Várias vertentes surgem dessas reações como o socialismo, o comunismo, o welfare-state (Estado de Bem-estar social). Desse rápido histórico da formação do Estado Moderno assoma uma questão: o famoso Estado Democrático de Direito seria, então, a soma do Estado Liberal e do Estado Social? O Estado contemporâneo, que observamos mundialmente, deve prezar direitos individuais e direitos sociais e, assim, ser qualif icado como Democrático de Direito? Não, essa não é a concepção que podemos verificar com a expressão. A expressão Estado Democrático de Direito vai além do somatório das duas abordagens verif icadas durante os séculos XVII I e XIX. Trata-se de um modelo que, obviamente, respeita os direitos proclamados pelos dois momentos históricos abordados, mas, mais do que isto, permite uma interpretação do Direito que ainda precisa de muito amadurecimento em uma sociedade como a brasileira, que continua buscando a democracia social. Isso porque a democracia polít ica, ou seja, a participação do cidadão na vida pública é apenas um dos aspectos do conceito de democracia hodiernamente. O presente artigo visa traçar alguns parâmetros doutrinários sobre a formação do Estado Democrático de Direito, seu conteúdo formal e material, apontar algumas problemáticas que sua inserção nas Constituições contemporâneas acarreta, em especial no tocante ao dogma da separação dos poderes e do próprio papel do Poder 2 Judiciário, realçando ainda algumas questões de fundo no debate sobre o Estado Democrático de Direito no Brasil. 2 O Estado Democrático de Direito e Sua Relação Com o Estado de Direito Conforme já mencionado, o “Estado de Direito” emerge da formação que normalmente se chama de Estado Liberal e de uma necessidade básica: controlar o uso arbitrário do poder por parte do Estado. Nesse sentido, a concepção dos direitos fundamentais se baseava na fi losofia polít ica que imperou durante o século XVII I e início do século XIX: o l iberalismo 1. Esse l iberalismo é o l iberalismo polít ico, que visa firmar os direitos naturais: Esse era o direito de l iberdade num dos dois sentidos principais do termo, ou seja, como autodeterminação, como autonomia, como capacidade de legis lar para s i mesmo, como antítese de toda forma de poder paterno ou patriarcal, que caracterizara os governos despóticos tradic ionais” (BOBBIO, 1992, p. 86). 2 John Locke (1632-1704), um dos principais f i lósofos polít icos do l iberalismo, desenvolveu toda uma teoria em que defendia os direitos naturais inalienáveis do homem, ou seja, direitos individuais acima de qualquer coisa, uma expropriação dos poderes privados, traço t ípico da organização polít ica durante a Renascença (Monarquia Absolutista). Ademais, Locke subordinava todos os poderes ao Poder Legis lativo, e, conseqüentemente, ao poder contido na lei. Trata-se do princípio da legalidade: não há nenhuma outra fonte de autoridade a não ser sob o manto da lei e do Poder Legis lativo. O objetivo era delimitar o poder do Estado. O Estado passa a ser visto como um Estado-Polícia, que vigia a aplicação das l iberdades e igualdades formais (posit ivadas). 3 3 No Estado Social 4, o rol de direitos fundamentais se amplia, exigindo que as l iberdades e igualdades formais apregoadas pelo Estado Liberal t ivessem, inclusive, o amparo do Estado para que ocorressem. Assim, apesar de, durante o Estado Liberal, o empregado formalmente ter os mesmos direitos que o patrão, na realidade era este últ imo que t inha o controle da s ituação, determinando todos os deveres de seus subordinados, que não t inham direitos reais. A partir do Estado Social, o Estado se insere nessa relação, estabelecendo uma igualdade material, na medida que o empregado passa a ter direitos amparados pelo próprio Estado, como direito a férias, a l icença maternidade, a l icença médica e outros. Bobbio aponta que o Estado Moderno nasce justamente dessa inversão: Primeiro l iberal, no qual os indivíduos que reivindicam o poder soberano são apenas uma parte da sociedade; depois democrático, no qual são potencialmente todos a fazer tal reivindicação; e, f inalmente, social, no qual os indivíduos, todos transformados em soberanos sem dist inções de c lasse, reivindicam – além dos direitos de l iberdade – também os direitos sociais , que são igualmente direitos do indivíduo: o Estado dos cidadãos, que não são mais somente os burgueses, nem os cidadãos de que fala Aristóteles no início do Livro I I I da Polít ica, definidos como aqueles que podem ter acesso aos cargos públicos, e que, quando excluídos os escravos e estrangeiros, mesmo numa democracia, são uma minoria (BOBBIO, 1992, p. 100). Nesse contexto, oEstado Democrático de Direito não representaria apenas o somatório dos direitos de cunho “individualista”, apregoados no Estado Liberal, e dos direitos sociais, do Estado de Bem-Estar Social. Isso porque, na verdade, o próprio conceito de “Estado de Direito” poderá caracterizar essa 4 “somatória”, na medida que o “Estado de Direito”, como um status quo inst itucional provém, originariamente, da concepção individualista e racionalista do Direito, durante o século XVII I, mas que, na verdade, teve o rol dos direitos fundamentais, em especial, ampliados por ocasião da Revolução Industrial e do surgimento das polít icas do welfare state. Nosso objetivo, aqui, é destacar que o Estado Democrático de Direito implica, s im, uma interpretação diferenciada do Direito e não apenas elencar os direitos. Dessa feita, hoje a fórmula do “Estado de Direito”, representada pela vinculação jurídica do poder do Estado submetido ao Direito, traduzido em institutos como The Rule of Law ( inglês) 5, always under law (americano) 6, Rechtsstaat (alemão) 7, tornou-se insuficiente diante dos Estados policêntricos e das sociedades plurais. O que faltava era a legit imação democrática do poder. O elemento democrático busca legit imar o poder: a soberania popular diz de onde vem o poder e sem ela o Estado se torna “a-polít ico” (CANOTILHO, 1998). A concepção de Estado Democrático de Direito acarreta controvérsias que se baseiam na forma de se ver a questão da l iberdade na busca pela legit imidade do poder: no “Estado de Direito”, a l iberdade é negativa, de defesa ou de distanciamento do Estado; no Estado Democrático, a l iberdade é posit iva, pois representa o exercício democrático do poder, que o legit ima. Os crít icos dessa forma de Estado dizem que essa concepção de l iberdade representa o l iberalismo polít ico: o homem civil precede o homem polít ico. Assim, o l iberalismo consagrou uma concepção estática de Constituição, eliminando o problema dos pressupostos ideológicos e sócio-econômicos, indispensáveis à compreensão do conteúdo constitucional (BONAVIDES, 1999, p. 216). Nesse sentido, o Estado Democrático de Direito, dentre outras questões passíveis de serem levantadas, acrescenta aos conceitos referentes à própria formulação do Estado Moderno um novo espaço: um espaço necessário para interpretações construtivistas. Trata-se 5 de discutir o papel da Constituição e do próprio Poder Judiciário, como últ ima instância de interpretação desse documento essencial para a caracterização de um “Estado de Direito”. Na verdade, uti l izando Habermas, o Estado Democrático de Direito visa buscar uma nova forma de legit imação: É que o Direito não somente exige aceitação; não apenas sol icita dos seus endereçados reconhecimento de fato, mas também pleiteia merecer reconhecimento. Para a legit imação de um ordenamento estatal, constituído na forma da lei , requerem-se, por i sso, todas as fundamentações e construções públicas que resgatarão esse pleito como digno de ser reconhecido (HABERMAS, 2003, p. 68). A preocupação com a legit imidade é a tônica do Estado Democrático de Direito já que um dos seus pressupostos é a eliminação da rigidez formal, ou seja, não existe uma forma preestabelecida, que deva ser s implesmente adotada independentemente das circunstâncias históricas e culturais dos diferentes Estados. Oportuno salientar que tal concepção de legit imidade e, conseqüentemente, legit imidade da própria Constituição, no caso específico do Brasil, exige um olhar mais crít ico. Isso porque o peculiar processo histórico da polít ica brasileira possibil ita a percepção de que a Constituição não é realmente legít ima vontade nacional e popular. A sociedade brasileira é carente, historicamente, de mentalidade cívica e de cultura polít ica democrática. Ainda que se defenda a existência de valores e princípios de uma Constituição, o seu aspecto substancial, eles, no caso brasileiro, constituem mais uma recepção do patrimônio polít ico-cultural de posit ivações constitucionais estrangeiras. Urge, portanto, assegurar, à maioria da população que não “participa”, a 6 possibil idade de conquistar uma democracia de cidadãos. Disso se retira a percepção de duas democracias da Constituição – a da representação e a da participação, esta últ ima mais dependente da mediação do Direito (VIANNA, 1999, p. 38-44) O atual momento histórico brasileiro representa o processo de consolidação democrática, no qual a sociedade tenta efetivar os direitos adquir idos na Constituição de forma substantiva, realmente exercendo a cidadania. Nesse contexto, o Poder Judiciário adquire uma concepção polít ica de proteção ao ideal democrático, não só de representação via procedimentos eleitorais, mas de efetiva participação, em uma espécie de “ativismo judicial”. Esse pode ser analisado de diversas formas, mas aqui salientamos justamente a “emergência de discursos acadêmicos e doutrinários, vinculados à cultura jurídica, que defendem uma relação de compromisso entre Poder Judiciário e soberania popular” (CITTADINO, 2000). Desta feita, o elemento democrático cunhado na expressão ora trabalhada não se restr inge ao voto, ao exercício dos direitos polít icos, como possa aparentemente transparecer. O que se propõe é uma nova forma de interpretar as funções do Estado e do próprio conceito de democracia. Zimmermman (2002, p. 64-5) aponta as seguintes característ icas básicas do Estado Democrático de Direito, tendo em vista a correlação entre os ideais de democracia e a l imitação do poder estatal: a) soberania popular, manifestada por meio de representantes polít icos; b) sociedade polít ica baseada numa Constituição escrita, refletidora do contrato social estabelecido entre todos os membros da coletividade; c) respeito ao princípio da separação dos poderes, como instrumento de l imitação do poder governamental; d) reconhecimento dos direitos fundamentais, que devem ser tratados como inalienáveis da pessoa humana; 7 e) preocupação com o respeito aos direitos das minorias; f) igualdade de todos perante a lei, no que implica completa ausência de privi légios de qualquer espécie; g) responsabil idade do governante, bem como temporalidade e eletividade desse cargo público; h) garantia de pluralidade partidária; i) “império da lei”, no sentido da legalidade que se sobrepõe à própria vontade governamental. Percebe-se, portanto, que a visão predominante nessas característ icas implica as característ icas que embasaram a formação do “Estado de Direito”, ou seja, a preocupação com a l imitação do poder do Estado. Essa visão é a que estamos colocando em discussão no presente artigo. Por intermédio do conceito formal e do conceito material de “Estado de Direito”, é possível cr iar o vínculo entre “Estado de Direito” e democracia e, dessa forma, explicitar melhor o conteúdoda expressão Estado Democrático de Direito. O conceito formal implica o s istema jurídico e constitucional efetivo e o conceito material envolve um sistema em aplicação da justiça da ordem jurídico-posit iva. O “Estado de Direito” material pressupõe o formal, contudo avança para alcançar os padrões exigíveis minimamente de democracia ocidental. O pressuposto originário dessa análise é a fragil idade dos mecanismos de controle da ação administrativa: a cidadania não se esgota na escolha dos candidatos. Dessa feita, novos campos de ação, em que o direito não tem como atuar, são propostos. O Estado não é ente isolado no quadro social: ele age e interage mediante a atuação social, a atuação popular, a atuação de grupos, etc. Esses novos mecanismos públicos ou privados (“público” não é s inônimo de “estatal”) de encaminhamento de reclamações, queixas, soluções, sugestões é que caracterizam o Estado Democrático de Direito. Alguns exemplos: direito às informações (art. 5º, XXXII I, CF/88), direito de petição (art. 5º, XXXIV, a, CF/88), direito à 8 publicidade, a hábeas corpus (art. 5º, LXVII I, CF/88), a ação popular (art. 5º, LXXII I, CF/88), a mandado de segurança individual (art. 5º, LXIX, CF/88) e coletivo (art. 5º,LXX, CF/88), a hábeas data (art. 5º, LXXII, CF/88), à iniciativa popular (art. 61, § 2º), a mandado de injunção (art. 5º, LXXI, CF/88), a controle judicial (art. 5º, XXXV, CF/88), a controle da constitucionalidade das leis, direta ou indiretamente (na indireta, são partes legít imas o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, os partidos polít icos representados no Congresso, as confederações s indicais – art. 103, CF/88). São exemplos da defesa de uma participação efetiva, direta e indireta, na vida “pública” e não só na “polít ica” (sentido partidário). Afinal, ainda que o ativismo judicial transforme em questão problemática os princípios da separação dos poderes e da neutralidade polít ica do Poder Judiciário e, ao mesmo tempo, inaugure um tipo inédito de espaço público, desvinculado das clássicas inst ituições polít ico-representativas, isso não s ignifica que os processos deliberativos democráticos devam conduzir as inst ituições judiciais, transformando os tr ibunais em regentes republicanos das l iberdades posit ivas dos cidadãos (CITTADINO, 2000). Infere-se, portanto, que esta percepção do conteúdo do Estado Democrático de Direito demanda um novo papel, não apenas por parte dos Poderes Executivo e Legis lativo, que deverão ter a preocupação com a legit imidade de seus atos, mas do próprio Poder Judiciário. Aqui inserimos um exemplo particular, o brasileiro. A Constituição Federal de 1988, ao inserir a expressão “Estado Democrático de Direito”, incluiu algumas alterações que afetam diretamente o papel do Poder Judiciário. Inst itutos, como o mandado de injunção, colocam em xeque o dogma da separação dos poderes, na medida que o Poder Judiciário pode defrontar-se, em qualquer instância, não com um pedido de resolução de conflito 9 direto, mas sim de pedido de “criar” o direito, quando o Poder Legis lativo foi omisso. Essa nova visão ultrapassa a concepção de direitos subjetivos para dar lugar às l iberdades posit ivas: l imita-se e condiciona-se, em prol do coletivo, a esfera da autonomia individual, ou seja, os direitos fundamentais não mais podem ser pensados apenas do ponto de vista dos indivíduos, enquanto faculdades ou poderes de que eles são t itulares. 3 Considerações Finais – Constituição e Democracia Diante do exposto, podemos refletir sobre algumas questões inferidas da abordagem ora proposta sobre o conteúdo da expressão Estado Democrático de Direito. A primeira delas diz respeito ao próprio conceito de Constituição. Considerando o Estado como referência máxima da lei fundamental, um conceito seria: [...] a organização de seus elementos essenciais : um sistema de normas jurídicas, escr itas ou costumeiras, que regula a forma do Estado, a forma de seu governo, o modo de aquis ição e o exercício do poder, o estabelecimento de seus órgãos e os l imites de sua ação. Em s íntese, a constituição é o conjunto de normas que organiza os elementos constitutivos do Estado (S ILVA, 1991, p. 37-8). Poderíamos atribuir a uma suposta concepção posit ivista a definição de Constituição, em seu sentido formal: norma máxima do ordenamento jurídico, “situada no topo da pirâmide jurídica, fonte primária de todos os direitos, deveres e garantias”, conferindo fundamento de validade às leis e atos normativos, no sistema lógico de normas que forma a ordem jurídica. 10 O que propomos é analisar a Constituição à luz de seu conteúdo e, nesse sentido, destacar o importante papel do Judiciário em sua interpretação. No tocante à interpretação constitucional, Häberle (1996) afirma que as influências, expectativas, pressões sociais, a que o juiz está exposto, contêm um fragmento de legit imação e impedem a arbitrariedade da interpretação. Isto porque o povo não é apenas fonte de legit imidade democrática no dia das eleições, mas também consiste em fonte de legit imação como partido polít ico, como opinião pública, como grupo de interesses, como cidadãos. Trata-se de visualizar a democracia como democracia dos cidadãos e não como democracia popular, no sentido rousseauniano, que seria mais restr ito, pois coloca o povo em últ imo lugar, por intermédio dos direitos fundamentais. Na concepção da democracia dos cidadãos, o povo atua em todas as partes, universalmente, em muitos níveis, por muitos motivos e de muitas formas. Infere-se, portanto, que, mais uma vez, a questão da legit imidade não se reduz à questão do poder legít imo, mas sim que, por intermédio das leis jurídicas que este proclama e impõe, se exerça a Justiça e não o mero poder (MAIHOFER, 1996). Inclusive porque, como já salientado anteriormente, a concepção de lei como estatuto da “vontade geral”, corporizada na representação parlamentar composta por deputados l ivres de qualquer dependência, não condiz com a realidade do Estado moderno, em que a lei expressa a vontade do partido ou coligação majoritária, e o governo dita à maioria parlamentar o programa legis lativo e o conteúdo das leis (MOREIRA, 1995). Torna-se claro, portanto, o grande papel da Constituição e a sua contribuição substancial no tocante ao controle que exerce justamente nestas leis que nem sempre representam a Justiça. Trata-se de ressaltar a importância da Constituição, não somente sob o aspecto de lei fundamental de todo o ordenamento jurídico, mas sob o aspecto substancial, inclusive de seu papel na consolidação do Estado Democrático de Direito. 11 Ao inserir a expressão Estado Democrático de Direito na Constituição de 1988, o constituinte se orientou por uma visão menos individualista de Estado, provocando maior participaçãodos componentes individuais, em uma perspectiva ascendente de baixo para cima (ZIMMERMANN, 2002, p. 109). Vários mecanismos processuais são instituídos no sentido de buscar dar eficácia a seus princípios e essa tarefa é responsabil idade de uma cidadania juridicamente participativa que depende, é verdade, da atuação do Poder Judiciário, mas, sobretudo, do nível de pressão e mobil ização polít ica que, sobre eles, se fizer (CITTADINO, 2000). É este o novo desafio do Poder Judiciário na proposta ora apresentada: perceber a relação entre Estado e sociedade a partir da perspectiva de um conceito de cidadania que ultrapasse o conceito clássico de exercício dos direitos polít icos. Esse novo conceito implica também a flexibil ização do dogma da separação dos poderes, haja vista que o Poder Judiciário representa o mecanismo de defesa do cidadão não apenas contra o uso arbitrário do poder por parte do Estado, mas também de exigir-se sua atuação prospectiva. 12 Referências Bibliográficas BITTAR, E.C.B. Doutrinas e fi losofias políticas . São Paulo: Atlas, 2002. BOBBIO, N. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. BONAVIDES, P. Teoria do Estado. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1999. CANOTILHO , J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 2. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1998 CITTADINO, G. Pluralismo, direito e justiça distributiva. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000. ______ . Poder judiciário, ativismo judicial e democracia . Encontro da ANPOCS, 21., 2001,. Caxambu, Anais do XXI Encontro da ANPOCS. [s.e: s.n.], 2002. DALLARI, D. A. Elementos de teoria geral do Estado . 23 ed. São Paulo: Saraiva, 2002. HÄBERLE, P. Retos actuales de Estado Constitucional . Oñati: [s.n.], 1996. ______ . Hermenêutica constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1997. HABERMAS, J.; HÄBERLE, P. Sobre a legitimação pelos direitos humanos. In: MERLE, J.; MOREIRA, L.(Org). Direito e legitimidade. São Paulo: Landy, 2003, p. 67-82. 13 MAIHOFER, W. Princípios de una democracia en libertad. In: BENDA, E. et al. Manual de derecho constitucional. Madrid: Marcial Pons Ediciones Jurídicas y Sociales, S.A., 1996, p. 217-323. MOREIRA, V. Principio da maioria e princípio da constitucionalidade. In: COLÓQUIO NO 10º ANIVERSÁRIO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL. Legitimidade e legitimação da justiça constitucional. Coimbra: Coimbra, 1995, p. 177-198. SILVA, J. A. Curso de direito constitucional positivo. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991. VIANNA, L. W. et al. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Renavan, 1999. ZIMMERMANN, A. Curso de direito constitucional. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. Notas 1 Cumpre salientar que na Inglaterra esse processo de delimitação do poder do Estado se inicia muito antes: a Magna Carta de 1215, apesar do cunho aristocrático, na medida que apenas delimitou a atuação do então monarca perante a nobreza, é tida como um exemplo da preocupação com a problemática do poder concentrado e de formação da consciência l iberal posteriormente aprofundada pelos fi lósofos do I luminismo. Ademais, o Bil l of Rights inglês, de 1689 é outro exemplo. 2 Apesar do destaque dado ao século XVII I para a formação do “Estado de Direito”, a Inglaterra é, na verdade, a fonte de inspiração para os fi lósofos polít icos do I luminismo. Montesquieu (1689-1755), por exemplo, retira a teoria da separação dos poderes 14 de fontes inglesas, com a proibição da confusão das mesmas pessoas no exercício das funções executiva, legis lativa e judicante e a l iberdade definida como possibil idade de fazer tudo que a lei não proíbe. 3 Na verdade, é justamente esta abordagem de cunho mais “individualista” das duas Revoluções do século XVII I, a Americana e a Francesa, que será responsável pela própria crise do Estado Liberal: “...a concepção da sociedade que está na base das duas Declarações [Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão e Declaração de Independência Americana] é aquela que, no século seguinte, será chamada (quase sempre com uma conotação negativa) de individualista. ... Ambas as Declarações partem dos homens considerados singularmente; os direitos que elas proclamam pertencem aos indivíduos considerados um a um, que os possuem antes de ingressarem em qualquer sociedade” (BOBBIO, 1992, p. 90). 4 Denominamos de Estado Social, para fins didático-pedagógicos, a reação à visão individualista mencionada anteriormente, ou seja, uma nova percepção do papel do Estado, que deverá ser mais intervencionista. 5 Cujas quatro dimensões básicas são: observância de um processo justo legalmente regulado quando se julgar e punir cidadãos com privação de l iberdade e propriedade; proeminência das leis e costumes do país perante a discricionariedade do poder real; sujeição dos atos do Executivo à soberania do parlamento; igualdade de acesso aos tr ibunais por parte dos cidadãos (CANOTILHO, 1998, p. 74-76). 6 Império do Direito, com três tópicos: lei superior, juridicidade do poder à justif icação do governo – razões do governo devem ser públicas – e tr ibunais que exercem a Justiça em nome do povo. 15 7 “Estado de Direito” do século XIX, que se l imita à defesa da ordem e segurança públicas, remetendo os domínios econômicos e sociais para os mecanismos da l iberdade individual e da l iberdade de concorrência. 8 Dalmo de Abreu Dallari, autor de um dos mais importantes l ivros de Teoria Geral do Estado, aponta quatro pressupostos para o Estado Democrático de Direito, a saber: eliminação da r igidez formal (não existe forma preestabelecida, ela deve se adaptar à concepção dos valores fundamentais de certo povo numa determinada época); supremacia da vontade do povo, desde que seja l ivremente formada e amparada na igualdade substancial de todos os indivíduos; preservação da l iberdade (tendo em vista a qualidade da l iberdade e não a quantidade) e preservação da igualdade (converter o direito em possibil idade). Retomaremos esses pressupostos posteriormente (2002, p. 304-307). 9 A partir do século XIX a teoria da separação dos poderes passou a ser encarada também com o objetivo de aumentar e eficiência do próprio Estado, pela distr ibuição de suas atr ibuições entre órgãos especializados. Assim, um mesmo poder pode realizar funções diversas, como uma mesma função pode ser levada a cabo por poderes dist intos: o poder legis lativo legis la, administra e julga; o poder executivo administra, emana preceitos normativos, com força de lei (medidas provisórias) na conformidade do disposto na Constituição, ou decretos administrativos e regulamentares; o poder judiciário julga, administra e expede normas internas, dentro do âmbito de suareconhecida competência (aptidão jurídica para agir). Na verdade, é importante salientar que, para a efetiva garantia da l iberdade e atuação democrática do Estado, é preciso maior dinamismo e presença constante na vida social, o que é incompatível com o tradicional dogma da separação dos poderes. 16 1 0 O Mandado de Injunção implica amplo debate sobre o conceito de “jurisdição”, ou seja, de dizer o Direito. Nosso propósito no momento é apenas apontar um exemplo de nova demanda imposta ao Poder Judiciário pela Constituição de 1988. 1 1 Essa é a abordagem adotada pelo constitucionalismo comunitário, expressa principalmente na obra de Peter Haberle (1997). 17
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