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O Estudo dos Sistemas Juridicos Africano Armando Marques Guedes

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Armando Marques Guedes
O ESTUDO DOS SISTEMAS JURÍDICOS AFRICANOS
ESTADO, SOCIEDADE, DIREITO E PODER
ÍNDICE
PREFÁCIO
Parte I
INTRODUÇÃO
1. ÂMBITOS E MÉTODOS GERAIS 5 
 1.1. POR UMA ABORDAGEM MULTIDISCIPLINAR 10
1.1.1. A ENORME PROFUSÃO DE UNIDADES JURÍDICO-NORMATIVAS PRESENTES EM ÁFRICA: A DIVERSIDADE DAS FONTES 15
1.1.2. A INTERACÇÃO DOS ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DOS PLURALISMOS JURÍDICOS AFRICANOS: A MULTIPLICIDADE DAS FORMAS NORMATIVAS 16
1.1.3. A IMBRICAÇÃO-DISSEMINAÇÃO DE FUNÇÕES: AS VÁRIAS DIMENSÕES DA NORMATIVIDADE NAS SOCIEDADES AFRICANAS CONTEMPORÂNEAS 21
 1.2. A COMPLEXIDADE ESTRUTURAL DESTES DIREITOS 22
2. POR UMA REPERSPECTIVAÇÃO (PELA) POSITIVA DOS DIREITOS AFRICANOS 24
 2.1. AS INSUFICIÊNCIAS EMPÍRICAS E A FALTA DE SISTEMATICIDADE DOS ESTUDOS EMPREENDIDOS 24
 2.2. POR UMA REPERSPECTIVAÇÃO DOS DIREITOS AFRICANOS ENQUANTO FIGURAS CONTRA FUNDO 28
 2.3. O PAPEL SOCIAL E AS FUNÇÕES DO DIREITO EM ÁFRICA 34
 2.4. AS VERTENTES SOCIOCULTURAIS DOS DIREITOS AFRICANOS: UM QUADRO POSITIVADO E RELATIVIZADO 40
3. O RECONHECIMENTO PROGRESSIVO DA PLURALIDADE DE FONTES DO DIREITO EM ÁFRICA E OS AVANÇOS E RECUOS NO ESTATUTO DESTA 44
 3.1. O EXEMPLO PARADIGMÁTICO DA PROGRESSÃO PARALELA DO ESTATUTO “SOBERANO” ATRIBUÍDO PELOS ESTADOS AFRICANOS A ENTIDADES LOCAIS TRADICIONAIS, E DO ESTUDO SOBRE ESTAS QUESTÕES 50
 3.2. UM PONTO DE MÉTODO 51
 3.3. UMA PERIODIZAÇÃO GENÉRICA 52
 3.4. A FASE PÓS-COLONIAL 55
 3.5. AS ALTERAÇÕES NOS PONTOS DE APLICAÇÃO E DOS FOCOS DE ANÁLISE 61
 3.6. OS NOVOS ENQUADRAMENTOS SOCIAIS 64
 3.7. OS NOVOS VENTOS METODOLÓGICOS 67
4. OS ESTADOS, AS SOCIEDADES, O SISTEMA INTERNACIONAL E A ÁFRICA: PRIORIDADES, RELAÇÕES CAUSAIS, TRANSFORMAÇÕES E CONSTRUÇÕES RECÍPROCAS
 4.1. AS TEORIZAÇÕES “CENTRADAS NO ESTADO”
 4.2. AS TEORIZAÇÕES “CENTRADAS NA SOCIEDADE”
 4.3. AS PERSPECTIVAÇÕES DO TIPO GENÉRICO “ESTADO NA SOCIEDADE”
 4.4. ESTADO SOCIEDADE, DIREITO E A ANÁLISE DOS PROCESSOS POLÍTICOS E JURÍDICOS PÓS-COLONIAIS NA ÁFRICA CONTEMPORÂNEA
 4.5. AS TÓNICAS NAS MODELIZAÇÕES RELACIONAIS MAIS RECENTES QUANTO ÀS DINÂMICAS POLÍTICAS PÓS-COLONIAIS EM ÁFRICA
 4.6. OS ESTADOS E OS DIREITOS AFRICANOS ENTRE O INTERIOR E O EXTERIOR
5. IMPLICAÇÕES CONJUNTAS DESTE ESTADO DE COISAS PARA O DELINEAR DE UMA DISCIPLINA DE DIREITOS AFRICANOS 69
Parte II
TRÊS EXEMPLOS RELATIVOS A DIREITOS AFRICANOS LUSÓFONOS
6. UM ENQUADRAMENTO GERAL 72
 6.1. A ORGANIZAÇÃO JUDICIÁRIA E ALGUNS DOS MEIOS “CONSUETUDINÁRIOS” ALTERNATIVOS EM CABO VERDE 73
6.1.1. O PLURALISMO JUDICIÁRIO EM CABO VERDE: VARIANTES E ENQUADRAMENTO 74
6.1.2. LITÍGIOS E PLURALISMO: UMA FORMA “TRADICIONAL” VISITADA 77
6.1.3. UM PLURALISMO MAIS OSTENSIVO: AS COMUNIDADES DE “REBELADOS” DA ILHA DE SANTIAGO
 6.2. A ADMINISTRAÇÃO PERIFÉRICA DO ESTADO, A ADMINISTRAÇÃO LOCAL E AS AUTORIDADES TRADICIONAIS EM ANGOLA 80
6.2.1. DESCONCENTRAÇÃO E DESCENTRALIZAÇÃO ADMINISTRATIVA EM ANGOLA: UMA PROGRESSÃO EM DUAS FRENTES 81
6.2.2. A ADMINISTRAÇÃO PERIFÉRICA, A ADMINISTRAÇÃO LOCAL E AS “AUTORIDADES TRADICIONAIS” EM ANGOLA: UM DESDOBRAMENTO PARALELO? 88
6.2.3. REPRESENTAÇÕES DUALISTAS: ENTRE A CULTURA E O PODER 86
5.2.4. OS LIMITES DA CONGRUÊNCIA 88
 6.3. LITÍGIOS CONSTITUCIONAIS EM S. TOMÉ E PRÍNCIPE 91
6.3.1. OS CONFLITOS CONSTITUCIONAIS NO ARQUIPÉLAGO: LINHAS DE FORÇA 92
6.3.2. A BICEFALIA SEMIPRESIDENCIALISTA: UMA CATADUPA DE CRISES 95
6.3.3. DA AUSÊNCIA DE INSTÂNCIAS JURISDICIONAIS LOCALMENTE TIDAS COMO CREDÍVEIS AO PERFIL DO PROCESSAMENTO-RESOLUÇÃO DOS LITÍGIOS CONSTITUCIONAIS SANTOMENSES 101
6.3.4. AS DIMENSÕES SOCIOLÓGICAS DA LITIGAÇÃO CONSTITUCIONAL EM S. TOMÉ E PRÍNCIPE: TRAÇOS DISTINTIVOS 108
Parte III
PEDAGOGIA E PROGRAMA
7. O DESIGN DO PROGRAMA DA DISCIPLINA DE DIREITOS AFRICANOS: PEDAGOGIA, OBJECTIVOS E FINALIDADES 113
 7.1. OBJECTIVOS E FINALIDADES 114
 7.2. PEDAGOGIA E SISTEMÁTICA 118
8. PROGRAMA 124
ANEXOS 140
Anexo 1: Quadro relativo a palavras e expressões relacionadas com feitiços e bruxaria em Cabo Verde 140
Anexo 2: : Quadro relativo a palavras e expressões relacionadas com feitiços e bruxaria em S. Tomé e Príncipe 143
BIBLIOGRAFIA GERAL DESTE ESTUDO 146
PREFÁCIO
1.
Desde o ano lectivo de 2001-2002 que me foi atribuída, pelo Conselho Científico da Faculdadede Direito da Universidade Nova de Lisboa (FDUNL), a regência de uma disciplina intitulada “Direitos Africanos”. A existência de uma cadeira como essa numa Universidade pública portuguesa é uma verdadeira lança em África. Mas o seu significado e alcance não são necessariamente claros.
De um certo ponto de vista poder-se-á seguramente considerar que se reata assim com uma velha tradição de estudar e ensinar, nas instituições nacionais de Ensino Superior, ordenamentos jurídicos com os quais temos ligações históricas e umbilicais profundas. De outra perspectiva, parece pacífica a ideia de que não faria grande sentido hoje em dia ensinar e investigar, numa institução universitária portuguesa, questões que se prendam com o Direito positivo de novos Estados africanos que, na segunda metade do século passado, ascenderam à independência política. Como iremos ver, neste estudo esclareço, ainda que o faça de maneira implícita, a minha posição relativamente a este tipo de dúvidas e quanto à sua solução.
Uma versão anterior deste trabalho foi apresentada à Reitoria da Universidade Nova de Lisboa como Relatório integrado num concurso académico para provimento de um lugar de Professor Associado na Faculdade de Direito da Universisdade Nova de Lisboa. O júri, que aprovou por unanimidade esse passo na minha progressão na carreira académica na FDUNL, foi presidido pelo Professor Doutor Mário Vieira de Carvalho, Vice-Reitor da UNL, e pelos Professores Diogo Freitas do Amaral, António M. Hespanha,Manuel Pinto Barbosa, Jill Reaney Dias, Brian Juan O’Neil, José Carlos Vieira de Andrade e João Caupers. Não quero deixar de agradecer aos membros do júri as achegas que me deram em resultado do que foram manifestamente leituras atentas e cuidadas.
O texto que se segue reproduz, com pequeníssimas alterações, aquilo que constou do Relatório apresentado. Acrescentei-lhe, porém, uma subsecção (a correspondente ao ponto 4.) sobre a teorização dos relacionamentos entre Estado e sociedade em África, dada a pertinência que esses enquadramentos teóricos têm tido para a conceptualizações levadas a cabo quanto aos papéis do Direito no Continente. E mudei aqui e ali alguns pormenores, em resultado da releitura muito cuidadosa em que me empenhei.
2.
Ao percorrer a literatura jurídica e as publicações afins dos últimos decénios, torna-se evidente que asserções sobre “os Direitos Africanos” têm sido nelas moeda corrente. Tal tipo de enunciados é comum. E o subtexto dessas elaborações é óbvio. Ao que parece independentemente da sua origem ou pontos de aplicação, o grosso das formulações teóricas mais correntes presume de maneira implícita a existência empírica de uma unidade de análise no que toca os ordenamentos jurídicos do Continente.
Uma unidade essa cuja fundamentação e contornos não são fáceis de vislumbrar. Será ela continental? Racial? Histórico-evolucionária? Diferentes autores, como iremos ver, têm assumido uma ou outra dessas várias posições. Para uns, a “africanidade” enquanto critério unificador deve ser encontrada num dos domínios. Para outros, noutro. Segundo alguns mais ainda, uma combinação deles será a chave. Todos todavia concordam na presunção de uma qualquer unidade que nos permitiria agregá-los e isolá-los enquanto “família” jurídica.
Generalizações deste tipo, em particular porventura aquelas mais racial-evolucionistas que muitas vezes se têm revelado como tão acriticamente aceites, são decerto bastante reveladoras de impensados partilhados: muitas vezes uma ou outra das convicções que as subtendem é nítida nos trabalhos produzidos, sejam eles do âmbito dos estudos jurídicos propriamente ditos, ou trate-se antes de esforços sociológicos, jurídico-antropológicos, históricos, ou juscomparatistas. Noutros casos não, e a sua eficácia torna-se por conseguinte mais oblíqua.
A verdade, no entanto, é que, por pouca que possa ser a nitidez das suas fontes, os pressupostos de um unitarismo como esse contaminam as análises de maneira tão marcada quão enganadora. Mais do que hipotéticas chaves para melhores interpretações, tornam-se em veículos para representações auto-sustentadas e por isso difíceis tanto de detectar quanto de remover. O resultado são estudos a um tempo parciais e reducionistas, que tendem por via de regra a conseguir chegar pouco além de fabricações sistemáticas levadas a cabo nos termos eles mesmos dos pressupostos sobre os quais são construídas.
Uma vez enunciadas estas hesitações poderá parecer paradoxal a retenção, no título deste trabalho, de uma expressão tão carregada por esses implícitos como a de “sistemas jurídicos africanos”. A minha razão para o manter é táctica: permite-me desconstruir a noção de maneira didáctica. Não é difícil perceber a mecânica dessa desconstrução pretendida. Dada a diversidade histórico-cultural, “evolucionária”, e até “racial” dos Estados existentes no Continente africano, uma expressão como essa torna possível gerar uma base comparativa de enorme utilidade analítica. Tal como iremos verificar, a variedade de sistemas jurídicos presentes no Continente permite-o.
É possível, assim, incluir na unidade taxonómica difusa intitulada “Sistemas Jurídicos Africanos” (ou mesmo a de “Direitos Africanos”) ordenamentos jurídicos provenientes de fontes muito distintas umas das outras, cujas semelhanças, por isso mesmo, emergem claramente como oriundas de factores conjunturais (ou estruturais) de menos longa duração, para utilizar um conceito “histórico”. Torno clara no texto a forma que encontrei para evitar incorrer nas possíveis ambiguidades que poderiam ser um dos preços desse subterfúgio: não capitalizando a última palavra na frase “Direitos africanos”, torno explícito que faço assim referência, nas generalizações que levo a cabo, não a uma qualquer “família” de Direitos, mas antes a um agrupamento adventício e relativamente arbitrário dos ordenamentos que vigoram no Continente.
Por isso e porque não tento, naquilo que se segue, esboçar quaisquer comparações, seja a que nível for, não pretendo neste curto trabalho de introdução esquissar um estudo de Direito Comparado. Não quer isso porém dizer que análises do tipo das que aqui empreendo, elaboradas nos termos dos enquadramentos metodológicos que proponho, não possa revelar-se útil para juscomparatistas eventualmente interessado em ir além das limitações das estratégias gizadas em Paris no ano já longínquo de 1900, e em tentar comparar mais do que o obviamente comparável. Bem pelo contrário. Mas tal facto indicia, isso sim, que será decerto em termos de enquadramentos mais amplos, sejam eles, sociológicos, políticos, históricos, ou todos estes, que podemos ter a esperança de saber vir a plantear extrapolações generalizantes mais bem fundamentadas.
3.
Neste como em qualquer outro estudo é inevitável a escolha de um ponto focal. E porque este trabalho não pretende, de maneira nenhuma, formar um qualquer esboço de uma eventual “Introdução” aos Sistemas Jurídicos Africanos, em nome de alguma unidade ensaística foram deixados de fora temas que nele poderiam ter sido tratados. Em muitos casos fi-lo no quadro da disciplina de Direitos Africanos que tenho vindo a ministrar na Faculdade de Direito da UNL. Noutros não.
Assim, por exemplo, abordo aí por via de regra os impactos que esforços de codificação têm tido sobre os “Direitos consuetudinários” em vigor em África, problematizando, ao longo de toda uma sessão, por intermédio de diversos exemplos africanos, a ideia, infelizmente arreigada em muitos círculos, de que tais formalizações sejam de algum modo neutras e que por isso não tenham pesadas consequências substantivas quanto à normatividade assim cristalizada.
Toco também em pormenor, no contexto do programa da disciplina, uma outra questão a que aqui não faço senão, en passant, uma breve alusão: a dos vários sentidos de que é passível a interpretação de noções tão difusas e tal instrumentalizáveis como as de “tradição” e de “costume”. No decurso do semestre em que decorremas aulas, dedico a este tema duas sessões: numa delas, reperspectivo histórica e “genealogicamente” a noção de “Direito tradicional”; enquanto que na outra, esmiuço em detalhe as discussões que tem havido,sobretudo no mundo académico anglo-saxónico, sobre a “invenção de tradições” em África.
Da mesma maneira, não faço no presente estudo senão muito sucintas referências a dois tópicos outras tantas sessões do programa que tenho vindo a ministrar. Uma relaciona-se com a aplicabilidade e a aplicação, aos casos africanos contemporâneos, de conceitos como o de “sociedade civil”. Nesse âmbito,discuto em pormenor não só a evuloção a que tal conceito tem estado sujeito, como as transformações que deve sofrer de modo a ser útil para a análise da criação progressiva de um “espaço público”, de uma “opinião pública”, e de “movimentos” de “participação política” no Continente.
Um outro debruça-se sobre os problemas suscitados pela exigência imperativa de uma real legitimação dos Estados africanos pós-coloniais. Nos dois casos, o papel do”jurídico” é central. Parece-me, no entanto, que seria todavia prematura e algo deslocada a discussão destes temas complexos num trabalho que não pretende mais do que delimitar âmbitos teórico-metodológicos para o estudo dos sistemas jurídicos em formação na África pós-colonial.
Parte I
INTRODUÇÃO
The African experience cannot be fully understood through its subordination, as it were, to the experiencesof others. While an awareness of the experiences of others can be very useful from both a scholarly and a policy point of view, those experiences should not themselves become the implicit or explicit narratives from which the African reality is deduced. Africa needs to be understood primarily in terms of its own dynamics, which are the products of the interplay of internal and external factors. This project is one of the most important intellectual challenges confronting students of Africa at this stage of the continent’s history.
Adebayo Olukoshi (1999), “State, conflict and Democracy in Africa: the complex process of renewal”, in (ed.) R. Joseph, State, conflict and Democracy in Africa: 453, Lynne Rienner, Publications.
Instead of adding to Africa’s marginalization by asserting its cultural uniqueness, we see value in situating our studies within the ambit of mainstream analysis. [This will allow us] to highlight [its] singularity - as well as [its] similarity - [in relation to other parts of the world].
Michael Bratton e Nicolas van de Walle (1997), Democratic Experiments in Africa. Regime transitions in comparative perspective: 10.
1. ÂMBITOS E MÉTODOS GERAIS
É minha finalidade, neste trabalho introdutório�, esboçar uma visão de conjunto geral sobre o estudo dos Direitos Africanos contemporâneos tal como tento expô-la na disciplina a que se reporta. O que ensaio naquilo que se segue salda-se, por isso, em pouco mais do que numa primeira proposta para uma abordagem destes Direitos. Por razões óbvias, o ponto focal de muito do que aqui e aí trato está posto nos Direitos em vigor nos PALOP. Mas o âmbito de aplicação do esforço de análise que proponho é mais amplo.
Vale a pena começar por explicitá-lo. A expressão “Direitos Africanos”, no sentido em que a uso, não pretende fazer alusão a uma qualquer hipotética “família” de Direitos, nos termos em que, por exemplo, os juscomparatistas tendem a utilizar o conceito�. Este não é um estudo de Direito Comparado. Vi-me, tão-somente, na contingência de dever dar corpo a uma delimitação geográfico-continental implícita no título de uma disciplina que sempre existiu no currículo da licenciatura em Direito ministrada na Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. O que se segue engloba tanto os Direitos lusófonos existentes no Continente, como os anglófonos e os francófonos. Inclui, ainda, os Direitos da família muçulmana lá implantados.
Convirá também não deixar de fornecer algumas explicações gerais no que diz respeito aos métodos que aplico. O ponto de vista que privilegio não se atém à assunção de uma postura analítica com preocupações e tonalidades estritamente jurídicas. Acrescenta-lhe uma dimensão sócio-antropológica, adicionando a esse olhar jurídico uma perspectiva panorâmica que veja essa normatividade como estando imbricada na concreção mais generosa que a aglutina a outras formas normativas que em África por via de regra a ela se agregam, e encarando-a ainda como estando embutida em contextos socioculturais muito específicos; tal como também a tenta redimensionar, entrevendo-a em termos histórico-políticos.
Uma curta última nota. Para além de no que se segue me restringir a uma abordagem meramente introdutória e tão-somente indicativa, a perspectivação que ora proponho quanto ao estudo dos Direitos africanos é apenas uma das várias possíveis. Se bem que não me limite a tal, encaro esses Direitos essencialmente do ângulo que melhor realça e que com maior nitidez põe em evidência o pluralismo a que dão corpo. Em alternativa, poder-se-ia, por exemplo, retratá-los de um mais amplo ponto de vista político, ou ainda de um ângulo cultural, para só enumerar duas outras possibilidades. Foi porém o do pluralismo o viés que preferi, se bem que muitos outros também fossem razoáveis.
A minha preferência não é inocente: ao escolher vislumbrar os Direitos que me proponho abordar no enquadramento disponibilizado pelo pluralismo que ostentam, privilegiei as tonalidades jurídicas na minha abordagem. A essa escolha adicionei outras, que cabe enunciar. O enfoque empírico em que entrevejo e configuro os pluralismos africanos é o dos relacionamentos entre os Estados pós-coloniais e as respectivas sociedades. Nos termos dessa moldura e com este enfoque, encaro os Direitos dos PALOP como sendo, no essencial, operadores complexos da comunicação política (uma comunicação muitíssimo negociada e contestada) existente entre as elites que controlam esses Estados e as sociedades que neles vivem�.
O que não deixa de ter implicações, já que tanto estas escolhas quanto essa restrição naturalmente têm um preço. Assim, por exemplo, em resultado desta minha opção ficaram relegadas para uma relativa penumbra investigações tão cruciais como as que digam respeito ao apuramento do lugar estrutural destes Direitos no sistema internacional�, aquelas outras que se prendem com dimensões económicas das ordens normativas na África contemporânea, ou ainda as relativas à oratória e retórica jurídicas, com formas sui generis no Continente.
Fazer uma escolha (quaisquer que fossem os seus termos e apesar do seu preço) era porém inevitável. Espero vir a abordar em trabalhos futuros esses e outros temas por ora secundarizados.
1.1. POR UMA ABORDAGEM MULTIDISCIPLINAR
Tendo em conta a perspectivação que decidi privilegiar, parece-me imprescindível que comece pela formulação de uma série de considerações prévias, já que por vezes atribuo a alguns termos campos semânticos que diferem dos convencionados no seu uso comum entre juristas.
Faço-o desde logo no que diz respeito ao âmbito de alguns dos conceitos a que recorro. “Direito” é termo aqui utilizado em sentido lato: abarca, por isso, os “usos e costumes” locais, para além da produção normativa dos Estados. Não exclui, também, os Direitos, que tão florescentes se têm mostrado na África contemporânea e a que decerto podemos chamar híbridos, já que são ordens normativas compostas por doseamentos variáveis (e ordenamentos muitas vezes sem uma lógica própria)� de múltiplos elementos oriundos de vários fontes e integrando outros tantos ingredientes institucionais também muitíssimo diversificados.
O meu posicionamento de fundo é simples de enunciar: só pela adopção de uma franca pluridisciplinaridade será possível tornar inteligíveis os Direitos africanos contemporâneos�. Sem descurar métodos jurídicos, um ponto de vista como este adiciona-lhes por conseguinte quadros e procedimentos analítico-interpretativos por vezes originários de domínios disciplinares tão diversos como a Antropologia Jurídica e Política, a Sociologia, a Ciência Política, as Relações Internacionais e a História�.
Como é obvio, insisto, nenhum destes sucessivos redimensionamentos que levo a cabo é metodologicamente inconsequente�. Este é um tema que, de uma ou de outra maneira, irei retomar ao longo de todo este trabalho.
1.1.1. A ENORME PROFUSÃO DE UNIDADES JURÍDICO-NORMATIVAS PRESENTES EM ÁFRICA: A DIVERSIDADE DAS FONTES
Mas há mais. Aduzir fundamentos empíricos e explicitar motivos teórico-metodológicos tornará decerto mais inteligíveis algumas das razões de pormenor para a minha preferência multidisciplinar.
Sublinharei três ordens de fundamentações para a escolha que a esse nível fiz. Uma delas, a primeira que me parece imprescindível referir, prende-se com a (muitas vezes enorme) profusão de unidades jurídico-normativas existentes na maior parte das sociedades instaladas no Continente africano.
Essa profusão é notória. Um pouco de recuo permite-nos pô-la em perspectiva. Comecemos pelo que nela há de mais óbvio. Não faria qualquer sentido ignorar a marca, em África, dos Direitos modernos� de várias origens europeias: directa como indirectamente, a impressão deixada, mais do que profunda, é muitas vezes dominante; como tem sido abundantemente sublinhado, esse imprimatur parece ter-se intensificado com as independências.
Todavia estes Direitos transferidos, cujas fontes e técnicas raramente coincidemcom as locais, não são os únicos a reger a vida e as interacções sociais dos africanos. E não o são a vários níveis: a começar pela evidência de os Direitos estaduais em vigor nos novos Estados africanos não funcionarem verdadeiramente de modos idênticos aos Direitos dos Estados europeus em que tiveram origem. Mesmo quando e naquilo em que as suas arquitecturas normativas se assemelham às dos seus ordenamentos-fonte, seria um erro presumir que se trataria por isso de sistemas entre si directa e linearmente aparentados; bem pelo contrário, são “arranjos” que se vêem progressivamente alterados pelo simples facto de que nos novos contextos de recepção em que são inseridos convivem com outros ordenamentos, que brotam de matrizes socioculturais muito diferentes e que os não deixam incólumes�.
A situação hoje em dia vivida na maior parte do Continente (nalguns casos assumida, noutros não) é com efeito uma situação que não pode senão ser marcada por um efectivo pluralismo jurídico. E é-o num sentido pleno. O resultado das enormes confluências de ordenamentos que caracterizam a África contemporânea tende a ser a cristalização de configurações intrincadas que incluem tanto uma pluralidade de fontes como uma multiplicidade de planos normativos, que se interpenetram e interagem profusamente entre si�.
Se isso não inviabiliza a hipótese de estudar estes verdadeiros complexos normativos segundo metodologias jurídicas clássicas, não deixa porém de ter implicações, desta feita a um nível epistemológico de fundo�. Implicações essas que me parece essencial saber tomar em linha de conta, assumindo-as com frontalidade, se os quisermos compreender sem drasticamente os simplificar.
Exemplos disso abundam, e é fácil ilustrar o que acabei de afirmar com alguns. Um denso pluralismo jurídico e sociológico, com efeito, emerge um pouco por toda a África. Em muitos casos, a densidade manifesta é surpreendente. Exemplificando de maneira impressionística e sem querer entrar em detalhes que aqui não teriam cabimento: a Nigéria é um dos países africanos mais complexos a este nível, com leis de origem britânica a coexistir com sistemas indígenas de Direito costumeiro (um sistema para cada um dos trezentos e cinquenta agrupamentos etnolinguísticos oficialmente reconhecidos) e tendo adoptado (sobretudo no Norte do país) legislação islâmica, num complexo sistema tripartido. Como que para ainda intrincar mais as coisas, nalgumas jurisdições nigerianas, a shari’a islâmica é aplicada como uma variante do Direito costumeiro, noutras enquanto sistema separado e distinto�.
Um ilustração não-bantu leste-africana exibe o mesmo tipo de intrincação e complexidade. No Quénia estão instalados cinco níveis de Tribunais, entre os quais seis tribunais cádi. Vigoram entre os quenianos, para além de uma variante da common law britânica, o Direito muçulmano, bem como numerosos (contando-se por largas dezenas) Direitos consuetudinários; e, para casos ligados a casamentos, divórcios e sucessões, há no país tribunais com competência jurisdicional para receber questões e decidi-las em termos da lei hindu.
Estes não são casos isolados. Mesmo se sairmos das regiões do Continente de maior penetração islâmica, esta complexidade e este enredar de diferentes ordens normativas não se esbatem muito�. Nos Camarões, na África Central, estão instalados três sistemas judiciários: um de common law, outro ligado ao Direito civil de origem francesa, e outros vinculados a Direitos costumeiros representando mais de duzentos grupos etnolinguísticos (no Sul deste Estado centro-africano influenciados pelo Cristianismo, no Norte pelo Islão). O Congo e Angola, ainda que sem influências muçulmanas fortes, não divergem muito deste padrão, apesar de, nestes casos, a situação de fluxo causada pela passado político-militar recente não o deixar tornar-se tão evidente para um observador externo.
Se virarmos a atenção para os Estados magrebinos do Norte, em que o Islão é hegemónico, a situação de pluralismo jurídico e jurisdicional mantém-se, numa convivência muitas vezes truculenta entre, por um lado, os ordenamentos ligados a essa religião revelada, por outro lado o Direito dos Estados (de matriz europeia) e, por outro lado ainda, as múltiplas normatividades tradicionais (e bastante mais localizadas) que por norma em muitas regiões continuam a marcar uma presença indiscutível. Muitos dos problemas políticos vividos nesses Estados são reconduzíveis, mais ou menos directamente, às dificuldades na assunção dessa identidade plural.
São com efeito fáceis de imaginar as tensões e conflitos que estes tipos de pluralismos densos desencadeiam, tanto na vida político-judicial destes Estados como no plano das investigações científicas levadas a cabo sobre estes “sistemas”. Sobretudo em áreas nevrálgicas da vida social, cultural e “política” como a família, o casamento, as heranças, a propriedade fundiária e as transacções materiais em geral, ou os mecanismos e dispositivos “judiciais” e “penais”, os problemas com que esbarraram tentativas de unificação ou, até, harmonização, cedo se fizeram sentir.
Como seria de esperar, este e outros tipos de conflitos e tensões (aliadas a flutuações político-programáticas de fundo que têm marcado a vida pós-colonial em África) têm levado a enormes fluxos e refluxos na composição e hierarquias evidenciadas nessa amálgama plural de ordenamentos, que se saldam por grandes avanços e recuos nos pluralismos jurídicos, jurisdicionais e sociológicos existentes no Continente�. Em resultado disso, a progressão diacrónica verificada é por via de regra tudo menos linear e não deve ser subestimada por quem verdadeiramente pretenda compreender as suas configurações: a complexidade existente é um verdadeiro alvo em movimento, o que não pode senão colocar entraves a quaisquer generalizações ou simplificações fáceis que possamos querer aventar.
A África “lusófona” não escapa a esta padronização geral. E isto apesar das especificidades que decerto patenteia. É verdade que, com a excepção da Guiné-Bissau� (e, em muito menor escala, Moçambique), os PALOP exibem variantes relativamente soft dos níveis de diversidade típicos da África subsaariana nos seus pluralismos jurídicos. Mas, de uma ou de outra maneira, não deixam de os exibir e de viver muitos dos problemas que isso acarreta�.
Depois de uma longa introdução, abordarei alguns exemplos lusófonos, com bastante pormenor, na Parte II do presente estudo.
1.1.2. A INTERACÇÃO DOS ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DOS PLURALISMOS JURÍDICOS AFRICANOS: A MULTIPLICIDADE DAS FORMAS NORMATIVAS
Uma segunda ordem de razões para preferir a interdisciplinaridade no que ao estudo dos Direitos africanos diz respeito, prende-se com um dos traços dos pluralismos jurídicos e jurisdicionais que acabei de pôr em evidência: a interacção dos seus elementos constitutivos. Uma questão fundamental, em vários dos sentidos deste termo.
O que mais interessante se afirma no estudo dos sistemas jurídicos africanos actuais é decerto aquilo que, ao mesmo tempo, os torna mais refractários em relação a quaisquer explicações simples e unitárias: a saber, o enovelar densíssimo das múltiplas ordens normativas que neles se conjugam, um entretecer que emerge sobre a base de uma difícil dissociabilidade entre os ordenamentos normativos estaduais “europeus” de que desses conjuntos fazem parte integrante e as matrizes culturais locais que muitas vezes tão profundamente os redimensionam.
Trata-se, infelizmente, de uma indissociabilidade que muitas vezes tendemos a subvalorizar. Tal como, aliás, tendemos também a subestimar a importância dessa trama, desse entretecimento ou enovelamento. Uma primeira aproximação dos fenómenos jurídicos na África contemporânea, por muito cursória que possa ser, revela-o porém com clareza. Com esse intuito, vale a pena determo-nos um pouco sobre estas características da estrutura desses Direitos.
Para melhor aflorar e entrever essas características estruturais, talvez seja útil começar a circunscrevê-lase identificá-las “de cima para baixo”, por assim dizer, do mais para o menos geral. Em muitos casos, porventura na larga maioria, a nível jurídico como em muitos outros planos, tradicionalismo e modernismo estão, nas sociedades africanas pós-coloniais de hoje, de tal forma entremeados� que se torna dúbia a utilidade analítica deste venerável par de conceitos�.
Mais uma vez, os exemplos empíricos abundam. Em largos sectores das vidas locais e nacionais vigoram, em muitos casos, variantes compósitas de Direitos “tradicionais”, porventura próximas dos modelos idealizados de formas normativas “originariamente africanas”�, mas que todavia exibem tons indeléveis deixados pelos Direitos “modernos” e estaduais “do Ocidente” com que convivem. Na maioria, senão na totalidade dos casos, essa interpenetração mútua dos ordenamentos em vigor é um dado empírico impossível de contornar.
É porém a um nível mais baixo de inclusividade que esse entrosamento e essa permeabilidade mútuas se tornam mais visíveis: em que as interacções melhor se manifestam. São com efeito muitas e variadas as “hibridizações” (ou “mestiçagens” se se preferir) a que as variantes compósitas a que fiz alusão dão corpo.
Destrincemo-las. Comecemos por notar que as interpenetrações exibidas não são unidireccionais. Por um lado, é intuitivamente evidente que as formas socioculturais africanas remodelam (em muitos casos profunda e radicalmente) as importações estaduais europeias. Por outro lado, e ainda que tal nem sempre seja tão óbvio, a presença de estruturas estaduais também age sobre, e reformata (de maneiras igualmente radicais e profundas), as formas socioculturais existentes nos meios em que se implantam.
Um momento de atenção torna-o claro. Não é raro, por exemplo, que conceitos transferidos para África como o de “justiça”, o de “sistema de governo semi-presidencialista”, o de “Boa Governação”, ou até o de “Democracia”, se vejam sujeitos a reconfigurações locais que muito mais do que os descaracterizar�, os re-caracterizam. Também não é raro o recíproco e inverso: é fácil a verificação, por dar um outro exemplo, de que as representações locais relativas ao domínio genérico daquilo que o Estado apelida de “conflitos” e da sua “resolução” (para só dar um de muitos exemplos possíveis), se lançam numa fascinante colagem verbal e categorial relativamente a figuras estaduais típicas, num mimetismo notável.
Sem pretensões de mais do que aflorar de forma muito breve e ligeira este último tema, esta segunda e menos óbvia parcela de uma interacção mútua, ponhamo-la em evidência com apenas um caso paradigmático, o do recurso a feiticeiros no decurso de conflitos em S. Tomé e Príncipe (uma prática comum num país onde o envolvimento dos tribunais é raro�). Uma questão a muitos títulos fascinante.
A “colonização ideológica” do “popular” e do local pelo estadual, em S. Tomé e Príncipe, é neste domínio claríssima, não sendo precisa muita argúcia para a fazer sobressair. O tópico genérico dos discursos localmente entretidos no arquipélago sobre tensões sociais parece ser, no essencial, económico-político-moral; ou relevando, mesmo, de um vocabulário “jurídico” (e das representações nele embebidas) que parecem ter colonizado aquilo que talvez não seja abusivo descrever como “o imaginário e o vocabulário sociais e políticos” utilizados naquelas ilhas.
A incorporação sistemática deste vocabulário e desta imagética é, com efeito, de uma evidência notória�. São os próprios termos crioulos (ou portugueses) utilizados pelos santomenses no contexto de disputas interpessoais e inter-grupais em que são mobilizados feiticeiros e feitiçaria que o traem: pagá devê, dever, pagamento, contrato, sentença, castigo, disprezo, xicote, vingança, preso, justiça, mestre, paço do mestre, etc., (são estas as expressões “canónicas” e “tradicionais”, de algum modo vernáculas, utilizadas no arquipélago) são vocábulos que obviamente nos remetem para metáforas alusivas a subordinações económicas e à dominação política�.
O fundamentos desta miscigenação são assim tornados nítidos. Os vocábulos utilizados realizam isomorfismos que nos remetem para situações e vivências sociais, expressam correspondências extraídas decerto da experiência histórica dos santomenses, depois entrevistas em quadros conceptuais por sua vez marcados por uma “juridicidade contratualista” de ecos também curiosa e claramente estatizantes, ou “estadualistas”�. Um ponto a que faço questão de regressar, ainda que exceda o âmbito introdutório daquilo que tento equacionar no presente estudo introdutório.
1.1.3. A IMBRICAÇÃO-DISSEMINAÇÃO DE FUNÇÕES: AS VÁRIAS DIMENSÕES DA NORMATIVIDADE NAS SOCIEDADES AFRICANAS CONTEMPORÂNEAS
Fascinante como essa hibridização recíproca possa ser, isso não é porém tudo. Como muitos juscomparatistas têm vindo a sublinhar�, a interpenetração estrutural (porque é disso que de facto se trata) entre ordenações jurídicas locais e importadas, entre ordenamentos modernos e tradicionais, estatais ou “consuetudinários”, formais e informais, exprime-se num conjunto verdadeiramente pluridimensional. Um agregado cujos limites e fronteiras não são, ademais, claramente definidos: facto de que uma das consequências é uma grande imbricação-disseminação de funções. O que forma uma terceira ordem de razões para a minha preferência pluridisciplinar: já que a interdependência e a pulverização consequentes redundam num posicionamento estrutural do jurídico na vida social concreta que não deixa de ter sérias implicações que importa saber tomar em linha de conta.
As manifestações dessa dispersão e desse entrosamento funcional são bem conhecidas. Virtualmente sem qualquer excepção, nos Direitos Africanos “reais” contemporâneos é difícil separar de maneira enxuta o jurídico do ético e moral, o normativismo religioso de todas essas outras formas, ou até o jurídico do político, embrenhado como aquele está em relações de poder, dominação e subordinação�.
Por outras palavras: não é nítida a separação-distinção entre, por um lado, os “elementos jurídicos” e, por outro lado, os “elementos externos ou metajurídicos”. Mais do que falar em ordenamentos normativos discretos de natureza seja jurídica, religiosa, política, seja ética ou moral, em África parece pois preferível fazer alusão a aspectos jurídicos (ou éticos e morais e religiosos ou políticos) de todos os ordenamentos compósitos existentes.
1.2. A COMPLEXIDADE ESTRUTURAL DESTES DIREITOS
As três ordens de factores que destrincei potenciam-se uma às outras e são cumulativas. À diversidade de fontes e à multiplicidade de formas exibidas, acresce assim o vai e vem permanente de “mestiçagens”, e junta-se deste modo um nível ulterior de complexidade estrutural: a adveniente de uma enorme fluidez, tanto no recorte que exibem quanto no seu lugar social de inserção, ou até nas articulações socioculturais que exprimem e a que dão corpo.
As consequências de tudo isto parecem-me inelutáveis. São precisamente a densidade da intrincação, a multiplicidade de pontos de aplicação, e a indefinição formal dos conjuntos normativos presentes (tudo isto características com origem nas três ordens de factores que enumerei) aquilo que clama por métodos mais abrangentes em relação aos âmbitos e contextos socioculturais em causa. Aquilo que pede uma maior atenção aos enquadramentos dessas normatividades e uma inclusão destes nas nossas análises. Este é um passo que me parece imprescindível saber dar, já que as barreiras, de outro modo, serão muitas e difíceis (senão impossíveis) de transpor.
Diligências pluridisciplinares parecem-me constituir para isso um boa receita. Mais do que uma reperspectivação, os complexos normativos africanos, como lhes chamei, exigem, enquanto realidades socioculturais densas que são, que façamos um esforço de redefinição dos objectos de estudo para assim levar a bom porto uma sua análise séria, rigorosa e com um fundamento empírico suficiente� para que a morfologia plural e a dinâmica que os caracterizam sejam plenamenteassumidas e ponderadas�. Ainda que de forma tentativa, é o que tento fazer.
2. POR UMA REPERSPECTIVAÇÃO (PELA) POSITIVA DOS DIREITOS AFRICANOS
Seria contudo um erro presumir que as escolhas metodológicas impostas pelo reconhecimento desta notável, densa e fascinante complexidade estrutural, como a apelidei, constituem os únicos obstáculos que se erguem no caminho dos estudiosos dos Direitos africanos pós-coloniais. Uma outra dificuldade (esta mais comezinha) com que deparamos prende-se com uma enorme ignorância existente a seu respeito.
É um desconhecimento que impede uma melhor ponderação científica destes tão multidimensionados ordenamentos. Porque se trata de uma omissão que, mais que no-los ocultar, dá azo a que preconcepções, muitas vezes marcadas por uma enorme carga ideológica subreptícia, se substituam aos resultados de esforços sérios de investigação.
Gostaria agora de me voltar para este ponto.
2.1. AS INSUFICIÊNCIAS EMPÍRICAS E A FALTA DE SISTEMATICIDADE DOS ESTUDOS EMPREENDIDOS
Com o intuito de melhor esmiuçar esta questão, talvez valha a pena começar por sublinhar que, em África como no resto do Mundo, os Direitos africanos contemporâneos são com efeito realidades infelizmente pouco conhecidas e por norma muito mal sistematizadas�. Realidades essas, para além do mais, imaginadas como sendo pouco coesas e muito incompletas, no sentido em que é reputado faltar-lhes o que talvez possamos chamar integridade sistémica.
Mais: é precisamente esse desconhecimento genérico aquilo que viabiliza construções conceptuais tão mal fundamentadas como a ideia de que existiria um Direito Africano, enquanto entidade geral e abstracta de algum modo unitária que subjazeria às suas várias expressões locais concretas. A escassez de informações é gravosa. Isto não é verdade apenas no que diz respeito aos estudos de natureza jurídica: mesmo os trabalhos históricos, ou sócio-antropológicos, sobre temas jurídicos africanos, sendo tantas vezes fascinantes, para além de bastante informativos e reveladores, são parcos e por via de regra muitíssimo localizados (espacial e temporalmente). O panorama é, a muitos títulos, incipiente. E dados os preconceitos com que tendemos a vislumbrar esses Direitos, os esboços aventados são a muitos títulos enganadores.
Não é tudo. Mais grave e limitativo no plano das omissões, os estudos levados a cabo são, por essas razões, bastante exíguos (não obstante o número enganadoramente grande de publicações existentes); e tendem a restringir a atenção à arquitectura normativa de algumas parcelas dos Direitos estatais formais vigentes� em África, em geral daquelas de maior maleabilidade instrumental. Em alternativa e ao invés, manifestando algum voluntarismo, as poucas investigações publicadas não vêem na normatividade estadual senão uma instrumentalização de conveniência para benefício, mais ou menos directo, das elites detentoras do poder�; e muitas vezes tendem a reificar a importância (e a exagerar o peso e a centralidade) que quereriam ver atribuídos às ordens normativas costumeiras�. Em qualquer dos casos, trata-se de limitações que geram enviesamentos de peso.
À escassez quantitativa e temática há assim a acrescentar um idealismo e um formalismo enganadores, atributos que permeiam muitos dos trabalhos de investigação empreendidos. Ou, pelo contrário, há a adicionar-lhe uma “politização” dissolutora da relativa autonomia do jurídico, uma redução sensível em muitas das publicações existentes. A resultante exprime, em ambos os casos, um empobrecimento analítico vincado. O que, por sua vez (e num círculo vicioso) é agravado pelo marcado parcialismo de que padecem quanto à circunscrição de um objecto de estudo inevitavelmente induzido por qualquer uma dessas duas tendências antinómicas.
As consequências desse tipo de polarização não são de minimizar: só raramente estão tais estudos focados, em simultâneo (e num quadro analítico unitário), tanto na textura estrutural complexa que caracteriza estes sistemas jurídicos quanto no seu desfasamento em relação à vida social concreta vivida pelas numerosas, e muitas vezes tão diversificadas, populações que, em África, lhes estão (com um maior ou menor grau de intensidade) de algum modo sujeitas�.
Uma omissão que é particularmente grave em contextos, como a maioria dos africanos, em que são patentes fossos tão marcados entre uma law in action e uma law in the books como aqueles que aí se vivem.
2.2. POR UMA REPERSPECTIVAÇÃO DOS DIREITOS AFRICANOS ENQUANTO FIGURAS CONTRA FUNDOS
Todavia, mesmo na conjuntura de relativa rarificação que descrevi alguma coisa pode, com utilidade, ser asseverada. A maior parte daquilo que lemos e ouvimos sobre Direitos africanos pós-coloniais tende, curiosamente, a ser formulado de uma perspectiva “externa”, de maneira amorfa e em termos generalistas; e, pior, tende a ser equacionado pela negativa.
São assim comuns as asserções, por exemplo e para retomar aquilo que antes disse, segundo as quais estaríamos “em África” (sendo tacitamente assentido que apenas está em causa a África subsaariana, numa delimitação, ao que parece, puramente geográfico-racial ou, numa variante eufemística desta perspectiva, em termos de uma circunscrição “civilizacional”�) perante sistemas pouco amadurecidos, que resultariam muitas vezes de simples transplantes directos, integrais e acríticos, das formas vigentes nas “ex-Metrópoles coloniais”. Tratar-se-ia de importações que exibiriam, como outros aspectos deficitários seus (à guisa de alterações e acrescentos) laivos de produções locais pouco sofisticadas. Isto para além de serem sempre, por essas e por outras razões, dispositivos localmente mal implantados�.
Se bem que muitas destas delineações críticas tenham óbvio fundamento factual (e enquanto esquematizações aproximativas retratem, com alguma fidelidade descritiva, vários dos traços distintivos dos sistemas jurídicos africanos modernos), a adopção de uma postura analítica deste tipo esconde mais do que revela, entorpece mais do que esclarece. Justifica-se decerto tentar rapidamente apurar algumas das razões para isso. Deparamos, por um lado (e para revisitar de um outro ângulo questão que atrás aflorei), com a hipótese segundo a qual seria possível basear a caracterização nocional de uma “família jurídica” de acordo com critérios raciais e/ou geográficos, hipótese essa que exprime, como é evidente e tal como insisti, um reducionismo pouco convincente�.
Um módico de sobriedade traz à tona uma razão suplementar para um saudável cepticismo. Para retomar de maneira mais detalhada o que antes disse, e alterando-lhe o ponto de aplicação, é de sublinhar que no Continente africano se encontram sistemas jurídicos de origem bantu (da Nigéria a Angola e de Moçambique ou do Zimbabwe à Namíbia), de par com outros, leste-africanos (do Sudão à Tanzânia, passando pelo Quénia, a Etiópia e a Somália), de raiz diversa�. No Norte dominam ordenamentos islâmicos. No Sul, as influências romano-germânicas são marcadas (e muitas vezes fortissimamente hibridizadas, tal como nalguns Estados equatoriais “francófonos” desde o Gabão ao Congo ou ao Burkina Faso ou ao Ruanda e Burundi, ou no extremo austral do Continente, na África do Sul) por ligações a sistemas afectos a um common law (no Gana e nos Camarões, designadamente).
O pluralismo jurídico e sociológico exibido em África, tal como sublinhei, também é de geometria variável. E são múltiplos, no Continente, os seus ingredientes de base. Sem me querer repetir, vale a pena reiterar a traço grosso algumas das coordenadas da sua formatação externa.
Nalguns casos (por exemplo em muitos dos Estados muçulmanos), não é clara a separabilidade entre normas e ordens jurídicas e normas e ordens ético-religiosas�. Noutros, o jurídico não é fácil nem porventura efectivamente dissociável da área mais difusa do parentesco e do conjunto denso de prescrições e proscrições que o subtendem; e esta, por sua vez, dificilmente (se de todo) se consegue destrinçar do político.Como insisti, a situação, longe de ser simples e homogénea, não pode senão ser caracterizada pela sua complexidade estrutural e variabilidade.
 Mas por outro lado, de um ponto de vista metodológico não será também difícil compreender o porquê da ofuscação causada por tal tipo de posturas de análise. A questão é lógico-formal: perspectivações negativas dão origem a definições de objectos conceptuais em termos de características que aqueles não têm, em lugar de as fundamentar nos traços que efectivamente estão presentes. Tal só pode ser justificado em termos de um comparativismo tácito e apriorístico que, ao subordinar as descrições que faz destes sistemas àquelas que presume noutros, acaba insidiosamente por os subalternizar nessa justaposição.
Démarches analíticas deste género, infelizmente comuns, parecem-me descaracterizar gravosamente os Direitos africanos. Redundam numa postura intelectual lesiva para o seu estudo e eventual compreensão. Pois que, substituindo a descrição deles por uma subsunção, estes Direitos acabam por ser definidos, de forma que não pode ser senão grosseiramente abusiva, por aquilo de que carecem, e nisso tão-só por o que não são senão características específicas de outros sistemas. Em resultado, a procedência metodológica de pré-compreensões (chame-se-lhes assim) reducionistas deste tipo ou, talvez melhor, a sua solvência teórica, parece-me dúbia.
Decerto muito mais útil será tratar estes ordenamentos jurídicos, em termos seguramente mais construtivos, segundo aquilo de que efectivamente estão dotados, de acordo com as suas partes realmente constitutivas e em termos das propriedades que disso decorrem. E delineando-os tal como eles se apresentam. Ou seja, encarando a complexidade exibida, nas suas várias dimensões e em toda a sua plenitude; vendo-a como um facto estrutural que carece de um enquadramento metodológico capaz de sobre ele produzir análises que lhe façam justiça; e tentando gerar, para essa sua caracterização, explicações que tenham um mínimo de utilidade científica.
Reconfigurar pela positiva o estudo dos Direitos africanos contemporâneos� (sobretudo se uma das finalidades almejadas for a de tentar levá-lo a cabo num quadro analítico unitário que não pressuponha um tratamento separado do Direito estadual, das normatividades híbridas e dos Direitos ditos consuetudinários), implica de algum modo “sociologizar” e “historicizar” a nossa análise dos domínios em que se move e é decantado o jurídico (ainda que não exija necessariamente que o devamos fazer a um nível ontológico mais profundo), desenhando para tal conceitos que logrem abarcar e resolver a densíssima complexidade estrutural que em África com tanta visibilidade e nitidez por via de regra o caracteriza�. Redunda, em última instância, não apenas numa redefinição, em termos mais abrangentes e inclusivos, daquilo a que chamamos “Direito”; mas ainda numa espécie de “teoria unificada” da normatividade, em todas as suas expressões no âmbito dos relacionamentos sociais.
Felizmente, apesar de pouco desenvolvidos, estes processos de gestação conceptual e de alargamento de inclusividade de noções e modelos não são esforços inteiramente novos. Bem pelo contrário. Muita da Antropologia Jurídica recente se tem vido a debater com este tipo de questões�; tal como, aliás, também o têm feito muitos historiadores e sociólogos do Direito.
Em todas estas áreas numerosos conceitos têm vindo a ser propostos� por forma a abranger, em simultâneo, as produções normativas estaduais, as religiosas, as éticas e morais, as políticas, e as consuetudinárias, num mesmo enquadramento analítico integrado que as permita explorar a todas em conjunto. O esforço a empreender para essa reconfiguração fica por isso facilitado. Importa conseguir fazê-lo fruir em análises histórico-sócio-antropológicas concretas de âmbitos “jurídicos” africanos�.
No que se segue do presente trabalho tento esboçá-lo, tal como de resto o tento delinear na disciplina de Direitos Africanos que gizei. Faço-o, naturalmente, tentando dar passos de maneira tão sistemática quanto possível.
Começo por disponibilizar algum enquadramento histórico-genealógico ponderado quanto a duas questões interligadas: primeiro, quanto à progressão da articulação-entrosamento entre Direitos de origem europeia e os Direitos africanos “locais”; em segundo lugar, quanto à evolução dos estudos (pelo menos daqueles cuja natureza é não-dogmática) empreendidos sobre os Direitos plurais complexos que em África se têm vindo a cristalizar. Viro-me depois para estudos concretos de caso, focalizados em exemplos africanos “lusófonos”.
Nas duas subsecções que se seguem da presente introdução, abordarei as duas primeiras dessas questões na ordem em que as enunciei. Quanto ao terceiro dos passos que enumerei, reservo-o para a Parte II deste trabalho, que lhes sucede.
Em primeiro lugar, no entanto, urge dizer alguma coisa quanto à natureza genérica e ao papel social preenchido pelo Direito em África.
2.3. O PAPEL SOCIAL E AS FUNÇÕES DO DIREITO EM ÁFRICA
De uma maneira muito geral e tão-só em termos de um esboço, cabe aqui delinear um possível enquadramento unitário para um estudo, pela positiva, dos tão complexos e multidimensionados ordenamentos plurais em vigor na África pós-colonial contemporânea.
Trata-se de sugerir um quadro de análise (apenas tentativo e indicativo, e sem quaisquer pretensões teóricas de fundo) que nos permita abarcar, no seu conjunto, tanto quanto nos seja possível dos complexos normativos com que deparamos. Aquilo que está em causa é lograr a delineação de um quadro que torne analiticamente exequível esmiuçar, em simultâneo, os Direitos estaduais “de fonte europeia”, os Direitos islâmicos (e/ou hindus), e as normatividades consuetudinárias, mais ou menos hibridizadas, com que convivem.
Vários enquadramentos podem ser utilizados, que preencheriam bem essa função, desde uma perspectivação que dê realce à natureza funcional e maximizante dos princípios normativos em jogo a outras que, ao invés, frisem antes os aspectos dos Direitos mais atidos ao exercício do poder por parte de Estados que são quer fracos, quer autoritários, ou que estão controlados (o que, naturalmente, não é incompatível com as duas perspectivas anteriores) por elites neo-patrimonialistas apostadas numa apropriação “privada” e predatória dos bens sob sua jurisdição. Ou, ainda, aquelas outras que preferem pôr o seu foco empírico na dimensão essencialmente cultural desses Direitos, condenados por via das exigências crescentes de uma maior ressonância simbólica e de uma inteligibilidade local, a adquirir a par e passo uma integridade normativa própria que lhes confira um suplemento de uma legitimidade que por vezes tão urgente é na África de hoje. Todas estas perspectivas têm a sua razão de ser e encontram, na África contemporânea, algum fundamento.
Não será excessivo simplificar asseverando que tem havido três grandes “famílias”, por assim dizer, de interpretações dos Direitos africanos contemporâneos�. Uma delas insiste em encarar estes Direitos como nuns casos gizados e noutros modificados pela “tradição” e pela cultura (cultura aqui na acepção de uma colectânea de costumes, valores, hábitos e práticas, mantidos ao longo do tempo). Trata-se de uma “leitura” de claros ecos durkheimianos e weberianos, que hoje em dia tem sido retomada em investigações sócio-jurídicas africanistas tão diversas como as de Clifford Geertz�, Paul Bohannan, Norbert Rouland ou Lawrence Rosen, por exemplo.
Outra destas famílias de interpretações prefere encarar as funções essenciais e o papel do Direito como expressão de interesses de elites e dos poderosos, vendo-o antes como uma forma de dominação. Esta é uma leitura de ecos mais marxizantes e, no que diz respeito a estudos sobre África, tem sido esgrimida por autores tão díspares como Pierre Bourdieu, Francis Snyder, ou a própria Sally Falk-Moore. É deste tipo, para além disso, a perspectivação mais comummente assumida pelos defensores (hojeem dia porventura a maioria dos politólogos que estudam os novos Estados do Continente) da utilização de modelos “neo-patrimonialistas” para explicar as versões mais recentes dos Estados africanos pós-coloniais.
A terceira e última destas três perspectivas, é a partilhada por numerosos juristas dogmáticos e é mais funcional e abstracta. Encara os Direitos africanos como sendo no essencial (tal como, aliás, todos os outros Direitos) um mecanismo racional desenvolvido para minimizar conflitos e resolver problemas interpessoais e intergrupais. A aplicabilidade desta perspectiva, também de ecos weberianos, a África foi, famosamente, defendida por Max Gluckman e pelos seus seguidores.
Como é evidente, estas três perspectivações aparecem, na maior parte dos casos, profusamente interligadas umas com as outras; apenas o doseamento de um ou outro dos ingredientes varia, no que tendem a ser análises compósitas que tomam os três factores (cultura, poder, e coerência racional) em linha de conta�.
Para as discutir neste estudo, abordá-las-ei a partir daquela que mais impacto tem tido nos estudos (não-dogmáticos) levados a cabo sobre Direitos africanos: a culturalista. Quais são as implicações que decorrem de uma perspectivação que entreveja os Direitos de África como parcelas das culturas presentes no Continente?
Muito sucintamente, sustentá-la traz três vantagens que são óbvias. Em primeiro lugar, encarar a funcionamento empírico de cada um destes Direitos como fazendo parte integrante da operação de uma cultura minimamente coesa (no sentido específico de dotada de um módico de coerência), considerando-os por conseguinte pela positiva, torna possível que tomemos consciência do facto de que “sistemas jurídicos” são, em simultâneo, sistemas de acção social e sistemas de significação. Tal resulta facilmente da observação, que nesse quadro se torna evidente, de que “Direitos” (africanos ou quaisquer outros, aliás) dão sempre corpo a maneiras de tentar juntar (e não se atêm a meras formas de escolher entre) interesses sociais concretos e significados culturais abstractos. Para além de empiricamente mais unitária e abrangente, uma observação dessas não é, de maneira nenhuma, um acquis neutro: bem pelo contrário, previne-nos de que, embora a sua operação enquanto conglomerados normativos não seja decerto nunca totalmente indeterminada�, sistemas jurídicos são sempre entidades com algum carácter intrínseco de imprevisibilidade, por se tratar de entidades dotadas de uma forte dose de abertura.
Em segundo lugar, entrever os Direitos vigentes em África enquanto dando corpo a formas culturais torna-nos possível começar a compreender (de um ponto de vista que é de algum modo uma variante do dos africanos comuns) factos socioculturais puros e duros, que muitas vezes nos parecem ser “distantes” e estar “separados” da vida quotidiana local por se encontrarem como que embebidos em todo o tipo de formalidades e racionalizações. Embora uma perspectiva menos imediata e “horizontal” seja de indubitável utilidade analítica (já que viabiliza algum recuo em relação aos dados empíricos a explicar), um ponto de vista como este constitui, como é evidente, uma das suas dimensões incontornáveis, delimitando um plano (ou, talvez melhor, uma camada) factual que devemos tomar em linha de conta na nossa reconstrução racional dos objectos jurídico-normativos em estudo.
Em terceiro lugar, o enquadramento dos Direitos de África nas culturas locais (e este ponto resulta dos dois anteriores) torna possível deslindar alguma da lógica interna de práticas e teorias sociais particulares: as dos actores sociais africanos concretos que estão sob escrutínio. Conquanto seja seguramente possível tratar estes dois planos (o normativo abstracto e o experiencial concreto) sem os articular um no outro, interligá-los acrescenta alguma inteligibilidade a ambos.
Estes três níveis são, é claro, apenas separáveis em termos analíticos; devemos por conseguinte tê-los todos sempre em mente no decurso de um qualquer estudo que estejamos a empreender. Põem em evidência pressupostos de fundo que importa explicitar. E operam uma repartição funcional (precisamente nos termos da tripartição fundacional proposta por Falk-Moore) dos papéis destes tão complexos Direitos e dos lugares sociais que eles ocupam.
Se olharmos as coisas de um ângulo mais pragmático, estou a insistir em dois pontos fundamentais, de resto muitíssimo bem enunciados por dois africanistas norte-americanos, Sally Falk-Moore e Lawrence Rosen. Por um lado, estou de algum modo a fazer eco à posição de Lawrence Rosen quando este asseverou (fê-lo no contexto do seu esplêndido trabalho sobre o funcionamento de pormenor de tribunais cádi marroquinos) que “the analysis of legal systems, like the analysis of social systems, requires at its base an understanding of the categories of meaning by which participants themselves comprehend their experience and orient themselves toward one another in their everyday lives”�. Trata-se de uma formulação culturalista “interna”, por assim dizer; uma formulação que delineia um quadro analítico que aponta para uma predilecção nítida com noções subjacentes com as de adequação, afinidade, ou ajustamento.
Por outro lado, no entanto, estou também a tentar escapar a um ângulo de visão tão profunda e puramente fenomenológico como esse; faço-o vestindo a perspectivação culturalista com uma indumentária (por assim dizer) mais pragmática. Qualquer coisa de não muito diferente das famosas “fabrications” � de Sally Falk-Moore: decisões normativas, seja qual for a sua natureza, saldam-se sempre, no fundo, por inovações levadas a cabo enquanto “exploitations of conventions”, mais ou menos utilitárias ou teleológicas, suscitadas em contextos de “engagements” específicos, conjunturais e concretos, entre actores sociais. Uma outra formulação, a que agora subjazem ideias como a utilidade, a de instrumentalidade, ou até a de manipulação�.
Fá-lo porém, por outro lado ainda, sem descurar os óbvios elementos de coerência interna e sistémica que (mesmo se de maneira fragmentária e pejada de incompletudes várias) esses Direitos não podem deixar de exibir. Muito nos Direitos africanos também tem essa dimensão, weberiana se se quiser, uma vertente de mecanismo racionalizador que, pelo menos em termos funcionais e operativos, está vocacionado para a minimização do impacto de conflitos pessoais e sociais, actuando como instrumento eficaz na resolução de tensões e disputas.
2.4. AS VERTENTES SOCIOCULTURAIS DOS DIREITOS AFRICANOS: UM QUADRO POSITIVADO E RELATIVIZADO
Torna-se agora mais fácil enunciar em pormenor de que forma podemos dar conta da interdependência patente entre as três perspectivas empíricas que, a meu ver, dada a multidimensionalidade densa e plural de que são dotados os complexos normativos em vigor no Continente. Ou seja, é agora mais simples apurar como essas três perspectivações se devem entrosar num estudo sobre um Direito africano contemporâneo. Um estudo que, como insisti, faça questão de os configurar pela positiva. O formato metodológico que sugiro é compósito e assenta na complementaridade existente entre elas.
Os Direitos africanos são mais inteligíveis se encarados, em simultâneo, como sendo expressões culturais, como dando corpo a formas de dominação e poder, e também enquanto entidades vocacionadas para expressar mecanismos racionais virados para a resolução de problemas concretos. Temos aqui uma perspectivação unitária e construtivista que, como sugeri, nos permitirá uma melhor análise destes tão intrincados e pluridimensionais complexos normativos.
É evidente que assumir esta postura metodológica não se salda num unitarismo analítico muito forte, visto que tanto a mecânica postulada como a dinâmica dela resultante presumem a presença actuante não de um factor mas antes de um conjunto deles. Um conjunto de factores, ademais, cujas características são mais descritivas do que analíticas. Trata-se porém de um patamar que nos oferece a possibilidadede facilmente articular os Direitos vigentes no Continente com os processos de entre-definição mútua dos Estados pós-coloniais nele instalados e das sociedades civis que se vão cristalizando nos territórios sob as suas tutelas. Os vários Direitos do Continente distinguem-se uns dos outros pelo doseamento relativo dos três ingredientes que identifiquei e pela dinâmica, sempre variável, da sua interacção recíproca.
A unidade analítica que sugiro para o seu estudo é assim relacional e passa por um enquadramento unitário que me parece ser fortíssimo: aquilo que está em causa é a necessidade de proceder a análises dos Direitos africanos contemporâneos que os reponham, com toda a firmeza analítica, nos seus âmbitos próprios, que são (pelo menos são-no a nível interno�) os dos laboriosos e complexos relacionamentos que se vão estabelecendo entre as respectivas sociedades civis e os Estados presentes�.
Para regressar brevemente à minha questão-quadro nesta subsecção: se esse for o caso, será então um qualquer Direito (insisto, africano ou outro) verdadeiramente redutível a uma mera forma de expressão cultural?� Parece-me que a resposta a esta pergunta deve ser negativa.
Não é particularmente difícil conseguir melhor equacionar esta dúvida epistemológica. Basta, para isso, esmiuçar um pouco os pressupostos intrínsecos (e muitas vezes tácitos) que subtendem tais correspondências redutoras. Julgo fundamental frisar que há um número de conexões diferentes (articulações que é essencial saber distinguir) que se escondem por detrás do postulado aparentemente unívoco e pouco problemático segundo o qual Direitos seriam parcelas de culturas. Um mínimo de atenção revela-nos que afirmá-lo pode querer significar coisas bastante diferentes umas das outras. E alerta-nos para o facto de que não deve haver confusão entre estes vários sentidos (tão independentes uns dos outros) que se escondem por trás das relações que possamos querer afirmar existir entre um Direito e uma cultura�.
Cabe aqui cartografá-las. Quando equacionamos um Direito e uma cultura africana, podemos estar a afirmar, alternativamente�,
(i)	uma definição dos Direitos africanos segundo a qual um instituto, ou instituição jurídica, se torna legítimo se e só se for apontado na direcção de uma finalidade ou de um interesse cultural;
(ii)	uma definição dos Direitos africanos segundo a qual um instituto, ou instituição jurídica, se torna legítimo se e só se for motivado por preocupações ou quaisquer outros sentimentos culturais;
uma definição dos Direitos africanos segundo a qual um instituto, ou instituição jurídica, se torna legítimo se e só se for culturalmente prescrito e/ou congruente com as ideias e os valores do grupo social em tem assento e vigora;
a alegação de que uma cultura, ou talvez melhor, um contexto social, é uma precondição para a existência (seja ela um prerequisito conceptual, uma exigência prática, ou ambas as coisas) de um dado instituto ou instituição jurídicos; ou, finalmente, numa versão mais abrangente e ambiciosa,
a hipótese empírica segundo a qual a adesão a um sistema jurídico (que incluiria a atribuição de legitimidade a valores e bens jurídicos específicos, e envolveria deferência e acatamento em relação a decisões de uma autoridade soberana particular) é algo socialmente determinado; como corolário disto, o preceito metodológico de que o sistema jurídico em causa pode ser explicado nesses termos.
Todos os pontos enumerados são defensáveis e em vários momentos têm sido advogados por diversos autores que sobre a questão se têm vindo a debruçar. Todos podem ter uma enorme utilidade analítica. Para todos eles se pode invocar alguma fundamentação. Mas diferem imenso nas implicações que geram.
Repito: visto que as resultantes da interacção entre significações e interesses são sempre tão imprevisíveis, quaisquer interpretações estreitas de um Direito ancoradas num seu eventual ajustamento substantivo em relação a uma cultura são, seguramente, ao mesmo tempo insuficientes e excessivas. Argumentar que um Direito (insisto mais uma vez, um Direito africano ou um qualquer outro) equivale apenas� a mera expressão de uma cultura, implica que assumimos que os cinco tipos de relações que postulei tenham pesos idênticos, no sentido de todas elas se ajustarem, simultaneamente, aos factos empíricos observáveis. O que nem sempre será o caso, como é fácil (mesmo se apenas intuitivamente) de verificar.
O que não parece compatível (ou sequer congruente) nem com a complexidade estrutural nem com o multidimensionamento, nem ainda com a fluidez de fronteiras que, como vimos, caracterizam os Direitos pós-coloniais em África. A equação entre cultura e Direito nunca é senão parte da verdade. Mas constitui seguramente uma parcela destes ordenamentos normativos complexos que, como iremos confirmar mais adiante, sobre eles tende a exercer enormes pressões conformadoras, à medida que as sociedades africanas contemporâneas se vão autonomizando e democratizando.
Um pouco de contextualização histórico-sociológica torna tais pressões evidentes.
3. O RECONHECIMENTO PROGRESSIVO DA PLURALIDADE DE FONTES DO DIREITO EM ÁFRICA E OS AVANÇOS E RECUOS NO ESTATUTO DESTAS
 Depois de um longo período de dois ou três séculos em que as influências europeias exercidas foram ténues, localizadas, avulsas e altamente variáveis, toda a África passou, em meados do século XIX, a estar sob tutela colonial� de europeus. A nível dos mecanismos de controlo social em operação no Continente, o facto adensou mais ainda uma situação que era já complexa. Sob o que se convencionou chamar colonialismo, em quase todas as unidades territoriais e populacionais reconhecidas no Continente africano (e que correspondiam, grosso modo, aos futuros Estados pós-coloniais, tanto no Magrebe como na África subsaariana) funcionavam, em simultâneo, diversos sistemas jurídicos.
 A atitude formal das administrações coloniais perante este facto não foi de maneira nenhuma unitária�. Sem querer operar distinções finas que não caberiam na economia desta trabalho introdutório, não é abusivo concordar com R. David�, considerando que a atitude jurídico-colonial dos Britânicos, por um lado, e , por outro lado, a dos “latinos” (sobretudo portugueses, espanhóis, franceses, e, segundo ele, belgas), mostraram-se ser, ao nível até dos seus princípios, bastante diferentes entre si. Os últimos (embora haja a formular, nessa generalização, algumas nuances de detalhe), preferindo por norma levar a cabo a sua administração pública sob a égide de figura de “colónias”, adoptaram uma política de assimilação, baseada no duplo pressuposto de um igual valor dos homens associado a uma tão presumida quão clara superioridade da “civilização” europeia sobre os “costumes” africanos.
Os britânicos, pelo contrário, favorecendo figuras como a de “protectorados”, privilegiaram uma política de administração indirecta (indirect rule), aceitando por conseguinte, pelo menos como princípio geral, a ideia de que os “africanos nativos” pudessem continuar a auto-governar-se e a auto-administrar-se (ainda que sob supervisão e controlo dos britânicos) de acordo com os seus costumes e segundo as formas tradicionais que preferissem. Sem grande surpresa, uns como outros, muito naturalmente transpuseram de maneira quase directa, para o plano dos seus respectivos relacionamentos coloniais, as concepções centralistas e descentralistas que aplicavam no seu próprio território no que dizia respeito às suas próprias colectividades locais�.
 Seja como for, poder-se-ia argumentar que, durante a época colonial, a diversidade patente de sistemas jurídicos, apesar dos elementos de ingovernabilidade e de iniquidade que (aos olhos europeus) permitia, de certo modo convinha em parte às potências administrantes, já que mantinha divididas as populações tuteladas. Com a descolonização, a situação inverteu-se: para os nacionalistas africanos que lideravam os novos Estados independentes, o pluralismo existenteameaçava a integridade interna que ambicionavam erigir (e portanto a sua existência ela mesma, enquanto entidades soberanas) com divisões, conflitos e o espectro de uma eventual dissolução�.
O que, por si só, é fascinante. Por via de regra, tudo se passou como se as elites independentistas que, a partir dos anos 50 e 60 do século passado, esboçaram a criação de novos Estados, estivessem convencidas de que o Direito poderia com facilidade criar sociedades mais homogéneas pela simples instituição de um sistema jurídico unificado. Mais: evidenciando a convicção, que essas elites (embaladas num Zeitgeist ingenuamente voluntarista) partilhavam, de que uma tal homogeneização seria aceitável para populações tão plurais como aquelas que se viram integradas em muitos dos Estados africanos que então se tornaram independentes.
 A universalidade destas curiosas convicções foi extraordinária, e partilharam-na tanto os Estados criados a partir de entidades coloniais portuguesas, francesas, belgas, espanholas, italianas e alemãs, como aqueles construídos sobre “protectorados” ou colónias britânicas. Fizeram-no, independentemente das opções político-ideológicas que assumiram, tanto os Estados que optaram por modelos políticos e vias socialistas de desenvolvimento, como aqueles outros que preferiram adoptar economias de mercado e sistemas políticos “democráticos”.
Alguns dos novos países tentaram-no, integrando as leis de origem europeia que tinham herdado dos Estados coloniais que os precederam, com um ou vários dos seus Direitos costumeiros, por vezes esquissando harmonizações que visavam reconciliar regras e princípios oriundos de um e de outro desses domínios-fonte. Outros (e neste grupo se podiam encontrar, ainda que com variações de monta�, os cinco Estados africanos de língua oficial portuguesa), pura e simplesmente decretaram sistemas unificados e unos, inspirados em modelos jurídicos ocidentais (ou, nalguns casos, muçulmanos), em que o ascendente hierárquico da lei estadual tendia a tornar-se, programaticamente, muito pouco discutível.
Poder-se-á aventar que a ratio que presidiu a estas preferências terá sido pragmática�: para alguns dos líderes africanos pós-coloniais uma integração aparecia como prematura, tendo em conta a resistência muitas vezes tenaz oferecida pelas estruturas sociais tradicionais existentes, e as preferências terão então recaído na manutenção da diversidade; enquanto para outros se mostrava inviável, porventura em razão da heterogeneidade étnica e/ou religiosa das suas respectivas populações. A maioria, em todo o caso, decerto raciocinando sob a alçada tenaz de ideologias desenvolvimentistas�, parece ter-se inclinado para a opinião de que constrangimentos económicos e políticos exigiam uma rápida fusão da diversidade jurídica plural anteriormente existente (fosse qual fosse a textura de pormenor desse pluralismo “colonial”) que culminasse na imposição de um sistema jurídico unificado e homogéneo.
Nestes últimos casos, as autoridades públicas pós-coloniais depressa se viraram para tentativas mais ou menos veementes de erradicação pura e simples de comportamentos encarados como obstáculos ao tipo de desenvolvimento ansiado. A lei, para além do mais, depressa se transformou num instrumento precioso para tentativas de legitimação do exercício do poder nos regimes autoritários que se foram implantando.
Em muitos dos cenários (e todos os PALOP, em maior ou menor grau, mais uma vez são disso exemplos paradigmáticos) uma sustentação político-ideológica foi sentida como necessária para ancorar a legislação produzida. Noutros, a proliferação de normas estaduais no período pós-independência tornou-se claramente contraproducente no que dizia respeito aos projectos de modernização idealizados. Em todos os casos, e segundo um ou outro formato, enquadramentos como o de uma “autenticité”, de um “socialismo africano”, ou de um marxismo-leninismo alinhado na ordem bipolar então existente, tornaram-se vestes legitimadoras imprescindíveis.
A situação, no entanto, não iria durar. O fim da Guerra Fria, ao desacreditar o papel dos sistemas monopartidários e ao suscitar questões relativamente aos reais papéis preenchidos pelos Estados no que diz respeito por um lado às economias e, por outro, às sociedades civis, levou os africanos a uma travagem brusca e a uma muito rápida inversão da marcha que até então tinha parecido dogma inabalável. Assistiu-se em numerosos casos (por tal motivo e em resultado de dinâmicas internas,e o processo ainda está muitas vezes em curso) a uma renovação dos pluralismos constitucionalistas, a uma revalorização dos debates parlamentares, a um reavivar do controlo judicial das políticas públicas; e tudo isso os encaminhou na sentido de uma adopção generalizada do Direito Constitucional e da lógica da separação de poderes�.
Com os processos em curso de globalização (e depois de um intervalo pós-independências em que o peso do exterior era altamente variável) factores externos e factores internos tornaram-se dificilmente separáveis; na nova ordenação emergente trata-se de dimensões dificilmente separáveis uma da outra, não só nas causas últimas mas também no desenrolar e no desembocar das coisas�. Sem querer generalizar indevidamente: com as transformações ocorridas na ordem internacional, cada vez mais (e os PALOP não são nisso excepções) os juristas e os tribunais preenchem, em África, funções primordiais no que toca à modernização das leis e nas tentativas, cada vez mais intensas, de uma reconciliação entre tradição e modernidade que possa, efectivamente, conduzir as sociedades e os Estados do Continente para a via de uma “modernização africana”.
Ainda é decerto cedo para aventar hipóteses bem fundamentadas quanto ao grau de sucesso que lograrão alcançar. Mas os dados foram lançados.
3.1. O EXEMPLO PARADIGMÁTICO DA PROGRESSÃO PARALELA DO ESTATUTO “SOBERANO” ATRIBUÍDO PELOS ESTADOS AFRICANOS A ENTIDADES LOCAIS TRADICIONAIS, E DO ESTUDO SOBRE ESTAS QUESTÕES
Não é difícil exemplificar, com exemplos detalhados, estes avanços e recuos das pressões sistémicas que muito têm influenciado o reconhecimento de fontes locais do Direito em África. De entre os muitos casos possíveis, o das alterações nos âmbitos de jurisdição subsidiária permitidos às chamadas “autoridades tradicionais” parece-me seguramente um dos mais significativos, tanto pela diversidade das suas implicações a nível jurídico (e político), como pela pertinência que tem vindo a assumir no crescimento efectivo do pluralismo jurídico nalguns dos PALOP. 
Na subsecção que se segue deste estudo, debruçar-me-ei, por isso, sobre essa progressão sincronizada; ainda que a abordagem que levo a cabo possa parecer transportar-nos para regiões marginais relativamente aos Direitos africanos propriamente ditos, os paralelismos suscitados redirigem-nos de maneira inexorável na sua direcção.
Começo por um enquadramento genérico da questão. Sem pretender compilar um rasteio exaustivo de alterações substantivas de âmbitos que em todo o caso foram bastante heterogéneas, limitar-me-ei em consequência por ora a uma visão de conjunto quanto à África, sem um qualquer ponto de aplicação geográfico preciso; num segmento posterior da segunda parte deste trabalho regressarei ao tema de maneira um pouco mais particularizada�, abordando algumas das questões mais concretas que, a este nível, tem emergido no caso angolano.
3.2. UM PONTO DE MÉTODO
Um ponto de método, em primeiro lugar. Tendo em conta o seu embutimento (ainda que parcial) em contextos “políticos” e conceptuais, que é tornado manifesto pela progressão paralela entre, por um lado, o relacionamento político-administrativo dos Estado com as autoridades locais tradicionais e, por outro, das análises científicas sobre elas levado a cabo, é exactamente nesse contexto que deve ser enquadrada e “decifrada” a produção legislativa que é coetânea com estes processos emparelhados. Esse embutimento exige uma recontextualização a que irei regressar

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