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OS TRÊS “V's” DO SANGUE: VIDA, VOZ E VEZ EM CULTOS AFRO- RELIGIOSOS RIO-GRANDINOS The three " v's " blood: life,voice and time in cults afro religious rio-grandinos Renata Ávila Troca1 Ana Lúcia Liberato Tettamanzy2 (UFRGS) RESUMO: O uso de animais em rituais afro-religiosos mais uma vez veio à tona no Rio Grande do Sul, em 2015, com o projeto de lei, vetado, de autoria da deputada estadual Regina Becker, do PDT. Este trabalho traz a opinião de religiosos africanistas da cidade de Rio Grande (RS), expondo história, cultura, importância e respeito aos cultos e animais usados em suas práticas. A partir de suas narrativas, aborda-se conceitos e vivências de intolerância religiosa, discursos de ódio, preconceitos socioculturais, e valorização da vida de animais acolhidos e sacralizados em ritos. PALAVRAS-CHAVE: Sacrifícios religiosos – Religiões de matriz africanas – Respeito - Oralidade ABSTRACT: The use of animals in african - religious rituals once again came to the fore in Rio Grande do Sul, in 2015 , with the bill vetoed , the state representative authored Regina Becker, PDT. This paper presents the view Africanists religious city of Rio Grande (rs), exposing history, culture, importance and respect for cults and animals used in their practices. From their stories, we discuss concepts and experiences of religious intolerance, hate speech, socio-cultural prejudices, and appreciation of the life of animals and welcomed sacralized in rites. KEYWORDS: Religious sacrifices - Religions of African matrix - Respect - Orality 1 Doutoranda em Literatura Luso-africana – renataa.t@hotmail.com 2 Professora doutora no departamento de letras – atettamanzy@terra.com.br A festa ia alta quando me mandaram escolher o boi. Ninguém pareceu dar conta da tristeza que me vestia por cima do corpo de tacula e do penteado de festa. Ao longe, fora do cercado, o rapaz dos bois azuis orientava os passos para o altar da família. Estavam postos por ordem os paus do meu futuro: um boi para comer; um boi para ser trocada, centenas de ovos para explodirem de sangue a cada lua, de vinte e oito em vinte e oito dias. (…) 'Declaro-te núbil3. O rapaz do boi entrou no cercado.' Por entre as minhas pernas um rio de sangue desceu e ensopou o chão e as tartarugas. Ana Paula Tavares Ana Paula Tavares bem abre este estudo. Na crônica A menina dos ovos de ouro, traz o sangue de animal não humano para simbolizar o rito de passagem de uma menina, que encontrando a menstruação, está pronta ao matrimônio. Pois bem, este estudo é um apanhado de relatos de alguns moradores da cidade de Rio Grande (RS) que fazem parte, de uma forma ou de outra, de rituais que envolvem animais e seus sacrifícios, notadamente as religiões de matriz africana, Candomblé4 e Umbanda5. Antes, porém, é necessário posicionar-me a respeito de como guiarei a leitura e escrita dos três v's por mim aqui trazidos. A Voz é a responsável pelas experiências e memórias que candomblezeiros e umbandistas para essas linhas trarão, a fim de enfatizar e valorizar a Vez do Candomblé como uma religião, bastante difundida e respeitada no Brasil, e que merece respeito também pela ancestralidade que carrega e cultua. Em relação à Vida, defendo o uso do animal em rituais, legítimos e respeitosos, do Candomblé, lembrando que assim como em qualquer outro meio social – seja ele 3 Diz-se da pessoa que se encontra capacitada para contrair matrimônio; do mesmo significado de casadouro.(Etm. do latim: nubĭle) 4 Todos filhos de santo do Pai Nilo de Xangô, fundador da URUMI, Associação Rio-grandina de Cultos Umbandistas e Afro-brasileiros 5 Frequentadores de terreiros diferentes, sendo alguns entrevistados atuantes na cidade de Pelotas e outros em Rio Grande. religioso ou não – há pessoas que distorcem e prejudicam a seriedade com que tais ideologias são alicerçadas. Pois “Sacrifício não é sinônimo de assassinato, relacionado que está a rituais sagrados, visando, no Candomblé, ampliar, acumular e distribuir a força vital e sagrada que é o axé.”(REIS, 2000, p. 275) Defendo o uso dos animais, pelo estado legítimo de culto africanista que a religião tenta preservar. Uma das grandes diferenças entre o Candomblé e a Umbanda branca (sem cruzamento com outras religiões), por exemplo, dá-se justamente nessa impregnação e assimilação da cultura branca às práticas africanistas que aqui chegaram, amarradas e forçadas, com seus fiéis. Mesmo que concordando com Ramos, que já em 1954, apontava “Os mitos africanos no Brasil adaptaram-se ao tipo de sociedade aqui encontrado” (RAMOS, 1954, p. 28) é necessário lembrar o que Estermann nos diz “O acto de culto mais consoante com a tendência da mentalidade do nosso primitivo, e quiçá do ser humano em geral, é ofertar sacrifícios aos entes supranaturais” (ESTERMANN, 1961, p. 202) portanto não é de estranhar que ainda hoje aconteçam ritos com sacrifícios de animais não-humanos. O que se estranha é porque há a ênfase do sacrifício nas religiões de matriz africanas, uma vez que: O sacrifício de animais está presente em quase todas as religiões e, inclusive naquelas consideradas reveladas ou não baseadas em mistérios. O Hinduísmo, o Islamismo, que também é uma religião relevada de origem abraâmica semelhantemente ao judaísmo e ao cristianismo, e as religiões de matriz africana, como o Candomblé e a Umbanda praticam sacrifícios de animais. No caso do Islamismo, o sacrifício é parte integrante de celebração para lembrar o sacrifício realizado por Abraão no monte Moriá, na oportunidade, milhares de animais são sacrificados. Também os judeus por ocasião da sua páscoa, anualmente, promovem o sacrifício de animais, hoje não mais no Templo, visto que foi destruído pelos romanos no ano 70 da era cristã, mas nos seus lares. Os cristãos, embora não sacrifiquem animais nem humanos, tem na morte de Jesus, o Cristo, ocorrida após condenação por crime político- religioso, condenação conduzida por sacerdotes do judaísmo em articulação com autoridades estatais do Império Romano, é tido como um sacrifício definitivo em substituição àquele sacrifício anual de cordeiros realizados pelos Hebreus no seu Templo, por ocasião da Páscoa. (...) A missa diária dos católicos e a santa ceia dos protestantes e demais segmentos evangélicos, fundados ou não no dogma da transubstanciação, nada mais são do que a reiteração desse sacrifício de substituição. (CERQUEIRA, 2013) A perseguição que a cultura negra, no Brasil, sofre desde os tempos mais remotos é responsável para que o descendente daquele que aqui chegou com sua cultura sinta-se culpado por praticar ainda tais atos, conforme a tradição de um povo que a Igreja Católica tentou apagar da memória, seus ritos e deuses. Ocorre que Jesus morreu pelos cristãos, e não pelo Candomblé, e isso significa, na realidade, que os ritos processados em outra doutrina religiosa não fazem nenhum sentido para os orixás; da mesma forma que os rituais do Candomblé fogem à compreensão da Igreja Católica. Em outras palavras, o Candomblé só se aplica ao Candomblé, não adiantando recorrer à Bíblia para explicar e muito menos condenar as praticas da religião dos orixás. (REIS, 2000, p. 276) Entendendo, portanto, que “Boa parte das religiões utilizava sacrifícios em seus rituais, mas na maioria das vezes com um sentido expiatório, não se aplicando essa noção ao Candomblé por um motivo aparentemente simples: no Candomblé não existe pecado, portanto não há o que expiar.” (REIS, 2000, p.275) Assim sendo, é urgente pensar em atos políticos que determinam – ou tentam – a manutenção e permanência de ritos no que diz respeito à cultura africanista. Um tema a ser tratadoaqui é o Projeto de Lei 21/2015, implementado pela deputada Estadual Regina Decker6, da bancada neopentecostal, que tentou – felizmente, sem sucesso - 6 PL 21.2015. Disponível em http://www.al.rs.gov.br/legislativo/ExibeProposicao/tabid/325/SiglaTipo/PL/NroProposicao/21/AnoP proibir o rito com animais nas religiões africanistas. Sobre isto, o babalorixá Marcelo Studinski manifesta-se da seguinte forma: Então, se nós não nos organizarmos como o povo do Rio Grande do Sul se organizou ano passado contra a Deputada Estadual Regina Becker que tentou mais uma vez proibir o sacrifício de animais no Rio Grande do Sul, o povo do batuque aqui do Rio Grande do Sul tá de parabéns, porque se uniram e pressionaram a Assembleia Legislativa do estado. Mais uma vez, conseguiram freiar as leis. Porém a deputada Regina Becker, que está ligada à bancada aos grupos neopentecostais, aos evangélicos, embora ela foi pedir votos nos terreiros, a Deputada Regina Becker se juntou com os defensores dos animais, com os grupos de defensores dos animais que são tão oprimidos quanto nós. Porque você fala sociedade à fora, sobre os grupos de proteção aos animais, ainda há um preconceito contra essas pessoas. Você fala que aquela pessoa é vegana, aquela pessoa ela também é oprimida, ela também é motivo de deboche, quando você fala que uma pessoa é vegetariana. A nossa sociedade é consumista. Como que alguém não vai comer carne? Como que alguém vai substituir a proteína animal, como se o vegano não soubesse como substituir isso. Então tudo gira em torno do capitalismo, e da política, por isso que o sacrifício no rodeio, a violência que os animais sofrem dentro do rodeio está protegida por lei, mas nós estamos protegidos constitucionalmente, nós não temos uma lei específica que te diga: bom, a partir de hoje ninguém pode mais proibir o sacrifício de animais no Candomblé, mas a gente tem artigos embasados na constituição federal, a gente tem o Estatuto de Igualdade Racial baseado na Lei 12. 2887, que também protege as manifestações religiosas e litúrgicas, e quando se fala em litúrgicas, se fala em rituais e quando se fala em rituais também se fala em sacrifícios. Então, ainda temos esses aparatos judiciais para mantermos firme os nossos cultos. (Marcelo Studinski, gravação pessoal, fevereiro de 2016) E assim como outros elementos da cultura negra foram distorcidos, também há a associação de elementos afro-religiosos nas mesmas religiões que hoje condenam os ritos africanistas: O ascetismo cristão presente nas religiões protestantes e neopentecostais é responsável pela demonização dos cultos afro-brasileiros estigmatizados pela crítica às práticas sacrificiais, pela presença do transe e pela presença dos roposicao/2015/Origem/Px/Default.aspx. Acesso em 27 de fevereiro de 2016. 7 Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Lei/L12288.htm. Acesso em 27 de fevereiro de 2016. Orixás que, como os santos católicos, se constituem em intermediários do divino numa relação que, segundo a ótica protestante, deve dar-se diretamente entre Deus e o devoto através do Espírito Santo. Contudo, hodiernamente, tanto na Igreja Católica quanto nas igrejas protestantes e neo-pentecostais emergem, cada vez mais, práticas de cura, transe e expulsão de demônios de forma muito próxima ao que as mesmas condenam.(AVANCINI, 2008, p.141) Também “No ritual aconteceu a mesma coisa. O que era uma prática natural da religião, passou a ser considerado ritual privado, esotérico, perseguido pelos adeptos da nova religião imposta.” (RAMOS, 1954, p.29) Ao mesmo tempo, hoje é comum encontrarmos terreiros de candomblé que tenham a influência da umbanda em seus ritos. Ou seja, o sincretismo dos santos católicos (defendido pela umbanda – seja branca ou cruzada) tem sido, mesmo que de forma ainda lateral, incorporado às correntes de Santos de Candomblé. A umbanda em si não faz uso do sangue em seus ritos, no entanto, o entrecruzamento com a quibanda, outra religião africanista, faz com que alguns adeptos começassem a usar em seus terreiros8. Para melhor entender as religiões afro-brasileiras no estado do Rio Grande do Sul, é importante entender que: Existem três formas rituais afro-gaúchas: o Batuque, a Umbanda e a Linha Cruzada. O Batuque representa a expressão mais africana desse complexo religioso, pois a linguagem litúrgica é yorubana, os símbolos utilizados são aqueles da tradição africana, as entidades veneradas são os orixás e há uma identificação às “nações” africanas. A Umbanda representa o lado mais “brasileiro” do complexo religioso, pois se trata de uma religião nascida deste país, fruto de um importante sincretismo entre catolicismo popular, espiritismo kardecista, concepções religiosas indígenas e africanas. (…) Por fim, a Linha Cruzada (…) cultua todo o universo de entidades das outras duas modalidades, a eles acrescentando as figuras do exu e da pombagira. Outro elemento importante na diferenciação das três expressões religiosas radica na imolação do sacrifício de animais. Ele está ausente na 8 Alguns chamam a Umbanda cruzada de Linha cruzada. Ver Oro, 2008 Umbanda, mas figura no Batuque e na Linha Cruzada. (ORO, 2008, p. 124, 125) Dona Enilda, hoje tem mais de setenta anos, e sendo umbandista9 desde a nascença, diz que: Os animais foram feitos mesmo é pra matar. Por causa de matar um animal é pra alimentação das pessoas. Eu acho certo, o que é que se vai se fazer. (…) Cada um tem a sua religião. Uns não pode ir o sangue na cabeça, mas outros botam mesmo. É usado pra botar ali por cima, mas não pra cabeça. Mas tem pessoas – não sei se em toda a religião – que matam pra Oxum é na cabeça, e tem outras religiões que não fazem isso aí. Olha, eu acho que até pode, depende da religião, mas acho que é mais respeitado que não pode ir na cabeça. (Dona Enilda, gravação pessoal, fevereiro de 2016) Dona Enilda, aqui, refere-se ao rito do Candomblé quando se faz obrigação pro Santo de cabeça. Ou seja, o sangue do animal é distribuído pelo corpo do fiel, a fim de alimentar o seu Santo, enfatizando a cabeça, ou Ori, onde o Santo mora. “Da fusão da palavra bó, que em iorubá significa oferenda, com ori, que quer dizer cabeça, surge o termo bori, que literalmente traduzido significa 'oferenda à cabeça'.”(REIS, 2000, p. 279 – grifos do autor) No continente africano, ori ainda é considerado um deus, “alias, o primeiro que deve ser cultuado, mas é também, junto com o sopro de vida (emi) e o organismo (esse), um conceito fundamental para compreender os ritos relacionados à vida, como o bori, e à morte, como o axexê (asesé).” (REIS, 2000, p.280) A seguir, um dos pontos – rezas cantadas no Candomblé – que cultuam e mostram a importância do ori para os candomblezeiros. (…) Sim, eu te saúdo A ti que te lembras sempre de teu povo A ti que abençoas um homem antes de todo orixá Nenhum orixá abençoa um homem 9 Na concepção de Oro (2008) Dona Enilda seria identificada como integrante da Linha Cruzada, no entanto, mantenho-a como umbandista porque assim ela se apresenta. Sem o consentimento de seu ori. Ori, eu te saúdo. (…) Recorrerei ao meu ori O ori de um homem é o seu confidente Meu ori me salvou Tu és o meu confidente, meu amigo. (REIS, 2000, p.280/281) Ainda, no que se refere às oferendas e ritos, é interessante observar quando Oro classifica e caracteriza algumas das entidades de falanges africanas: Ogum (Beira-Mar, Das Matas, Da Rua, Tira-Teima, Rompe-Mato, Tibiri), a quem se oferece churrasco/cerveja (…); Oxossi (mata), come costela de porco (...)” (ORO, 2008, p, 128,129).Ou seja, não há o sacrifício do animal como rito, mas há o uso de carne como oferenda às suas entidades. De uma forma ou outra, algum animal foi morto para que este ritual pudesse acontecer. Já na Umbanda Cruzada (com quibanda) o corte é feito para Exu e não para o Santo. Nas religiões de povos antigos, podemos bem acompanhar o trabalho realizado pelo encontro de duas ou mais religiões invasoras. (...) a fusão das religiões da tribo, com a vitória dos novos deuses se dava de três modos: a) pelo trabalho do sincretismo, com a assimilação das divindades de uma às da outra religião; b) pelo rebaixamento dos antigos deuses às categorias de heróis, espíritos auxiliares ou servos dos novos deuses; c) pela degradação definitiva dos antigos deuses à classe dos anjos maus ou demônios. (RAMOS, 1954, p. 29) É dessa forma que a entidade Exu tem sido evidenciada, no Brasil, como o diabo cristão. Sôbre os espíritos, deuses ou entidades maléficas hoje cultuadas como tais no Brasil, um curioso fenômeno deve ser observado. Estas entidades, na África, eram primitivamente deuses como outros, com o seu misto de respeito e temor. Sabemos, alias, que nas velhas mitologias, deuses e demônios são desdobramentos posteriores de uma mesma e única divindade. (…) São as tendências inconscientes do indivíduo que, recalcadas, geram os demônios que não são mais do que projeções dessas mesmas tendências. Exu, Leba, por exemplo, divindades gegê-iorubanas, identificam-se no diabo, no Brasil. Êsse trabalho de identificação, já fôra facilitado pela obra do folclores cristão europeu, mediterrâneo, com a sua série de entidades malfazejas, espíritos maus e demônios, herança da demonologia medieval. (…) O negro africano encontrou essa demonolatria preparada no Brasil. E os seus orixás fálicos mais temidos identificaram-se com o diabo dos católicos. Exu dos iorubanos. Leba (Elegbara) dos gêges. Zumbi e Cariapemba dos angola-congueses. (…) A influência de Exu-Leba foi e é enorme no Brasil. Não só pelo poder primitivo que, nos protocultos africanos se lhe atribuía, como pela sua identificação com o diabo católico. (RAMOS, 1954, p. 21/22) O Babalorixá Marcelo Studinski, também por mim entrevistado, a respeito da entidade Exu, diz que: Qualquer ritual que esteja atrelado à cultura afro-brasileira, ele é distorcido, porque no Brasil houve uma folclorização daquilo que é de matriz africana. Quando se falou em sincretismo como uma forma de resistência negra, o negro vai lá e sincretiza Ogum no São Jorge para ser aceito, Iansã na Santa Bárbara para ser aceita, e assim ele vai fazendo com todo o panteão que eles conseguem manter a cultura aqui. E ai quem sincretiza Exu? Quem é Exu? Como é que o homem branco sincretiza esse Exu? Como é que o homem branco vai conceber ou personificar Exu? Ele vai associá-lo ao Diabo. Porque dentro dos rituais, tu visualiza um determinado assentamento de Exu; você vê lá um objeto fálico com uma forma muito próxima a de um pênis. Então, sexo está ligado ao pecado, e se Exu é uma entidade que está ligada ao pecado, então Exu é o demônio. Então, isso são informações que devem estar esclarecidas e cabe a nós, povo dos santos, esclarecer. Então, se a população não conhece é porque historicamente a educação brasileira nos proibiu, e esta educação está atrelada ao cristianismo. (…) As primeiras formas de educação no Brasil, elas estão atreladas à Igreja Católica, então o ensino por si só que chega ao Brasil, ele veio naquele modelo europeu também, ligado ao modelo cristão, aos colégios internos, aos próprios jesuítas que catequizam não apenas indígenas, mas também com o passar do tempo, passam a impor a cultura do homem branco. Então, tudo isso vem constituir uma gama de preconceito e uma gama de racismo que vai atrelar em cima da matriz africana, porque o terreiro é a pequena África. O terreiro ele está, ele foi pensado e idealizado no Brasil, pelas primeiras fundadoras, pelos primeiros fundadores, as babalorixás, o candomblé da Barroquinha no Brasil ele foi pensado como uma pequena África, e ai os estudiosos lá do final do século XIX, início do século XX, adentram esses terreiros e começam a ter essas leituras, errôneas muitas vezes, que acabam reforçando esses esteriótipos, ao associar a cultura africana ao tentar compará-la a cultura do homem branco. Então, eu acho que é fato que o rito é caracterizado pela falta de informação e cabe a nós, afroreligiosos, trazer essa informação. (Marcelo Studinski, gravação pessoal, fevereiro de 2016) Vendo desta forma, não fica difícil entender a afirmação que Reis faz quando trata sobre a discriminação religiosa em sua obra. “Jesus Cristo (…) teria morrido para salvar a humanidade no mais importante sacrifício a que o mundo assistiu.”(REIS, 2000, p.276) Ou seja, a junção de atos religiosos faz com que fiquemos cegos a culturas diferentes daquela imposta na nossa criação, já que nem toda a religião segue o preceito da morte de Jesus para a nossa libertação. Assim ocorreu e ocorre com a figura do Exu que frequentemente é distorcida, inclusive por próprios praticantes de ritos do Candomblé. Um exemplo desta distorção, pode ser seguido a partir de um crime ocorrido em 2011, na cidade de Rio Grande. Através de um jornal local, ocorreram trocas de acusações e apoio às religiões de matriz africana, quando a seguinte reportagem foi divulgada: Galo vivo é retirado de despacho Na manhã de sábado, 22, quem passou pelo cruzamento das ruas Casemiro de Abreu e Augusto Duprat deparou-se com uma cena horrível: Um galo vivo foi utilizado para um despacho e colocado certamente após a meia noite no local, tendo passado a noite inteira e boa parte da manhã sofrendo. Ele estava com as patas e as asas quebradas. Pessoas que passaram pelo local avisaram as professoras do Colégio Getúlio Vargas, Alessandra e Jane, que o retiraram do cruzamento levando-o ao veterinário. Logo após, registraram ocorrência na delegacia por maus tratos a animais. O galo se encontra hoje sob os cuidados de uma senhora que se sensibilizou com a situação.10 As entregas que ocorrem na encruzilhada referem-se, se não totalmente, quase que, as entidades Exu e/ou Pombagira. E a pessoa (ou as pessoas) que cometeu (cometeram) este crime com toda a certeza está o vinculando ao diabo cristão, e por isso praticando a maldade a um ser vivo. Pois, “(...) existem milhões de trabalhos [oferendas], mas, em nenhum deles, se faz "o que fizeram com este animal". "Isto vem de alguém que quer desmoralizar a nossa religião ou de alguém que se diz pai ou mãe 10 Disponível em http://www.jornalagora.com.br/site/content/noticias/detalhe.php?e=3&n=19152. Acesso em 24 de fevereiro de 2016. de santo".” Estas são palavras publicadas no mesmo jornal,11 do maior e mais respeitado pai de santo da cidade de Rio Grande. Pai Nilo de Xangô, presidente da Associação Rio- grandina de Cultos Umbandistas e Afro-brasileiros – URUMI. Com toda a razão, este ato de crueldade trouxe abalo e indignação à população rio-grandina. Uma leitora, a qual assina como “Almira Lima - cidadã indignada”, expõe-se dizendo que: (…) E tudo isto, pasmem, em nome de uma religião fanática, que costuma sacrificar animais e desperdiçar doces e guloseimas em nome do “SENHOR” e de benefícios (ou malefícios?) a determinadas pessoas. (…) Fico a pensar na questão da insanidade humana, que permite, inclusive legalmente, atos como este acontecido no sábado. Sei que já houve tentativas para proibir tais assassinatos de animais em nome de cultos, sem até agora se obter êxito. Mas a luta precisa continuar:insanidades como esta e outras tantas contra indefesos animais, matanças também legalizadas, confinamentos de aves, cavalos em carroça judiados... Sem esquecer as rinhas de galo (proibidas?), que continuam, provavelmente na calada das noites, para o deleite de outras tantas mentes insanas... (...) E estes cultuadores de sacrifícios e desperdícios em nome de religiões estão por aí, na calada das noites, pelas encruzilhadas, a cometer seus atos. Religião, se não me engano, significa “religar corpo e alma”... E nos mandamentos da Lei de Deus, há dois que sempre me chamaram a atenção, como um alerta para prevenir a insanidade: “Amarás a teu próximo como a ti mesmo...” e “Não matarás...”. Que a luta para coibir tais assassinatos e desmandos continue e que os legisladores todos repensem seus “receios” de ferir a tal liberdade de cultos. Liberdade, ao meu ver, precisa respeitar incondicionalmente a vida.12 Uma das respostas, veio de uma umbandista, professora pedagoga, chefe do grupo espiritualista Estrela do Oriente que diz: Num batuque sério, o animal sofre menos que num matadouro - o que me leva a refletir sobre a hipocrisia, afinal, na hora de lamber os bicos com um bom bife ou uma bela galinha assada, ninguém lembra que ela foi sacrificada antes de vir para a mesa. Nos batuques sérios, todos os animais são servidos para refeição, portanto, não há nada de horrível no sacrifício, se ele seguir um fundamento real.13 11 Disponível em http://www.jornalagora.com.br/site/content/noticias/detalhe.php?e=5&n=19205 Acesso em 24 de fevereiro de 2016. 12 Disponível em http://www.jornalagora.com.br/site/content/noticias/detalhe.php?e=5&n=19240. Acesso em 24 de fevereiro de 2016. 13 Disponível em http://www.jornalagora.com.br/site/content/noticias/detalhe.php?e=5&n=19260. Acesso em 24 de fevereiro de 2016. Também Luís Alfredo Porto da Silveira - Ministro religioso/Afrobras (Federação das Religiões Afro-Brasileiras e Ameríndias), conselheiro do Conub (Conselho Nacional de Umbanda do Brasil) Região Sul se pronunciou dizendo que: (…) temos o dever de não pré-julgar um “todo” pelas atrocidades cometidas em nome da fé por pessoas de qualquer confissão religiosa, que despreparadas e longe dos preceitos a serem seguidos, deturpam ensinamentos milenares que nos ensinam a viver respeitando as diferenças com o fortalecimento das igualdades. Por isso, conclamamos a todos os seres de bem que continuem a delatar atos de vandalismo e maus-tratos aos animais racionais e irracionais praticados em nome de qualquer religião. O que foi exposto no Jornal Agora na edição do dia 25 de outubro do corrente ano não é ato religioso e, sim, ato criminoso.14 Ainda outros líderes religiosos afro-abrasileiros se manifestaram em um reportagem organizada pelo mesmo jornal:15 A matéria publicada na edição do dia 25 suscitou inúmeros comentários e gerou polêmica. (…) Pai Nilo de Xangô diz não acreditar que pessoas responsáveis irão doutrinar e ensinar a fazer este tipo de coisa. "Este ato desumano não existe em nossa religião." Salienta, inclusive, que a entidade que representa sempre orientou que os centros espíritas, ao fazerem sua oferenda, o fizessem em lugares adequados, como um mato, embaixo de uma árvore, em um local na praia onde não há banhistas. "Sempre recomendamos que não façam na cidade. E nossa intenção não é chocar ou expor alguém ao perigo". (…) Para ele, trabalhos como este, que fez um animal sofrer, é obra de pessoas despreparadas, mal-orientadas. "Hoje, infelizmente, uma pessoa bota água na cabeça e acha que já é pai de santo. E fazem isto por dinheiro. (...) E quem cometeu esse ato é leigo, é alguém que está entrando na religião e está com pressa de ganhar dinheiro, porque acha que a umbanda é isto. E denigrem, assim, nossa religião. Esquecem que ser pai ou mãe de santo requer muita responsabilidade e compromisso", salienta Pai Nilo. Explica que há, sim, o sacrifício de animais, mas nunca sem um propósito e nunca de forma a fazer o animal sofrer. "Nós não queremos sofrimento em nossas vidas, então, por que fazer um animal sofrer? Não tem lógica. Nós sacrificamos animais em nossas festas, mas sempre para nos servir de alimento". Pai Nilo frisa que respeita todas as 14 Disponível em http://www.jornalagora.com.br/site/content/noticias/detalhe.php?e=5&n=19205 Acesso em 24 de fevereiro de 2016. 15 Disponível em http://www.jornalagora.com.br/site/content/noticias/detalhe.php?e=3&n=19402. Acesso em 24 de fevereiro de 2016. religiões e quer que sua seja respeitada. "É bem sabido que, em todas as religiões, existem aqueles que não prestam". O babalorixa Jorginho do Xangô, presidente da Comissão Regional da Metade Sul em Defesa da Religião Afro Brasileira (Coremsdrab) (…) enfatiza que dizer que não usam aves nos rituais é negar o passado, a tradição da religião."Mas o sacrifício é feito em nossos pejis, onde se dá o apanajé (matar para comer), e não em via pública , onde agride a mãe natureza, o público em geral e demonstra maus-tratos com os animais". (…) "Rogamos a Olorum (pai da criação) para que ilumine a cabeça do autor deste ato para que reflita e não cometa mais atos de tamanha crueldade. E reafirmo que atos como estes no nosso meio religioso não são permitidos e nem tolerados. Isto não é sacralização e, sim, um ato criminoso". A reportagem esclarece, portanto, que muito do que é criticado e agredido em relação às religiões de matriz africanas são frutos de ações de pessoas mal preparadas ou instruídas que distorcem e enfraquecem a intenção e valorização que a verdadeira prática religiosa intenciona. Ainda há para se pensar que não é apenas o movimento de defesa dos animais que critica (com respeito e sem agressão) o uso de animais em ritos religiosos. Já que, conforme nos diz o pai de santo, Marcelo Studinski: Se você comparar o animal que eu oferto aqui na minha casa ou no terreiro ao qual eu fui iniciado, no qual eu participo, há uma grande diferença. O animal passa por um longo processo de sacralização antes do ritual de corte. Portanto, há uma divinização deste animal. A questão desta divinização, é o que faz com que imagine-se que essa crueldade ela é sublimada. Ela tá subtendida, mas em contrapartida, se eu comparar essas mortes com outros tipos de mortes dos mesmos animais em outros ambientes, como frigoríficos, abatedouros e outras coisas. Se comparar a maneira que eles morrem, independente do julgamento que se tem, ela é muito diferente do que ocorre dentro do terreiro. (Marcelo Studinski, gravação pessoal, fevereiro de 2016.) Ou seja, a crítica mais severa e preconceituosa emerge de pessoas carnívoras e pertencentes ao ciclo comercial de carnes industrializadas. Portanto, é necessária uma comparação, por mais que superficial, das mortes que são ocorridas nos terreiros de Candomblé com as ocorridas nos frigoríficos e matadouros industriais. Podemos trazer a opinião de camdomblezeiro José Francisco, que nos diz: Os abatedouros, pelo que sei, que também não sei muito, é que os caras vão lá, sangram os bichos até morrer, uns são abatidos a bala, outros são abatidos com facas, como é feito nos rituais religiosos. Mas sem a menor preocupação com que a morte seja rápida e indolor, porque nos ritos, a princípio, as mortes são rápidas e indolores. Tu faz uma sangria no animal. Tu tira o sangue, conforme tu tiras o sangue deste animal ele morre. Os abatedouros, pelo menos no que eu ouço falar, eles são abatidos de qualquer jeito. Eles não têm a preocupação de ser uma morte indolor, eles matam a esmo. Eles querem o produto final, a carne para comercializar. (José Francisco, gravaçãopessoal, fevereiro de 2016.) E também a Norma Técnica ABNT NBR 16389:2015 – que especifica os requisitos para produção primária do frango caipira criado no sistema semiextensivo e seus sistemas de Produção, abate, processamento e identificação do frango caipira, colonial ou capoeira16: As aves são retiradas das caixas e penduradas pelos pés na nória que circula no túnel de sangria e nas áreas de escaldagem depena. A pendura deve ser realizada de modo a não estressar as aves e a evitar fraturas e hemorragias. Após a pendura, as aves passam pelo processo de insensibilização, denominada de atordoamento, normalmente realizada em tanques de imersão com o uso de choque elétrico (70V) na região da cabeça. Deficiências no atordoamento aumenta a incidência de condenações totais ou parciais da carcaça.17 Em relação ao sofrimento do animal, não há dúvidas de que o uso de uma ave num ritual africanista é mais respeitoso e indolor do que do sistema industrial. Assim como contribui Marcelo Studinski: A gente vive em uma sociedade para consumo. Então, frigoríficos e abatedouros, criam esses animais em massa. São animais criados em viveiros e cativeiros com uma gama fortíssima de hormônios para crescerem rápido, para serem abatidos. Ano passado, teve a greve dos caminhoneiros no Brasil em protesto ao governo Dilma, e entre vários jornais que li, e aqui no RS foi interessante ler, porque os caminhoneiros pararam o Brasil, e de fato pararam, dentre os jornais que li, se não me engano, o Zero Hora. Um dia de paralisação dos caminhoneiros trouxe um prejuízo imenso, agora não lembro os valores financeiros, para um frigorífico. Ou seja, o valor financeiro eu não lembro, mas eu lembro 16 Disponível em http://abnt.org.br/paginampe/noticias/216-avicultura-produ%C3%A7%C3%A3o,- abate,-processamento-e-identifica%C3%A7%C3%A3o-do-frango-caipira,-colonial-ou-capoeira Acesso em 27 de fevereiro de 2016. 17 Disponível em https://sistemasdeproducao.cnptia.embrapa.br/FontesHTML/Ave/ Sistema Producao FrangosCorteColoniais/preparo.htm Acesso em 27 de fevereiro de 2016. muito bem da quantidade de aves que deixaram de ser abatidas porque não iria ter transporte para carregar essas aves18. Mais de 1.000, mil e tantas, duas mil e tantas num dia. Nos meus 16 anos de Candomblé, se eu matei, se eu matei 100 aves, é muito. Eu sozinho, Marcelo. Então, este consumo desenfreado do Capitalismo, que é o que me refiro, é o que faz esse sacrifício desenfreado de animais, alimentos. Estes animais não são extintos porque eles são criados em cativeiros para essa finalidade. (Marcelo Studinski, gravação pessoal, fevereiro de 2016.) Isso sem considerarmos a prática de abatimento de animais de quatro patas dos frigoríficos, pois como disse Dona Enilda: Tu mata e o animal é o que custa mais a morrer porque, às vez, tá com terneirinho na barriga. Então, é difícil, porque o animal berra. Mata e se tá pra ganhar o terneirinho. Olha, não é na religião. Eu te digo que tem por que eu já trabalhei em matador e tem isso tudo. E deixar o animal morrer de tanto que berra, porque custa a morrer, e já tão tirando o couro, e a carne já tá tremendo. Mata uma galinha pra alimentação, todo o animal que a gente mata é porque Deus determinou que ele serviria para alimentação. E isso que eu acho. Ah, que banditismo matarem... Mas é do princípio do mundo que Deus já criou para alimentação. É o que eu acho. (Dona Enilda, gravação pessoal, fevereiro de 2016) O mesmo entendimento de que o espírito do animal veio à terra num corpo que deveria servir para alimentação foi encontrado também na narrativa de outra umbandista, G. Afonso, moradora da zona rural e atuante em grupo de defesa dos animais nos diz que: Cada um vem no mundo pra cumprir o seu momento, e o cavalo veio como cavalo praquilo, o gato veio pra ser doméstico, pra tá perto do humano, entendeu? (…) E acredito que é isso eles vêm pra cumprir o que tem que cumprir. Coitada da vaca lá, servir de alimento e não adianta tu querer criar uma ovelha como cachorro porque ovelha não é cachorro. E morre presa num pátio de uma casa porque eu criei uma. Então é diferente. Tem essas leis, essas coisas a seguir. (…) Se eu ver (a matança – referindo-se à carneação que é feita em zona rural 18 Disponível em http://noticias.r7.com/brasil/bloqueios-de-estradas-ja-causam-prejuizo- bilionario-27022015. Acesso em 26 de fevereiro de 2016. aqui no RS) eu não consigo comer, mas se eu não ver eu sou muito do olhos não veem, coração não sente, eu como depois de tudo isso. Mas assim, tu sacrificar lá fora, onde ele foi criado: '- Ah, vai ser com uma faca, um tiro, qualquer coisa', dai no frigorífico... não sei qual seria a diferença, porque do que tu vai carregar o coitado do bicho, vai passar todo pelo estresse do bicho de carregar apertado, vai sair do lugar dele, coitado, quando ele morre, ele morre de surpresa, lá fora, coitado, nem sabe: Ah, tão me levando pra outro lado. Sei que talvez eles nem raciocinem isso. É complicado falar a respeito. Não sei. (G. Afonso, gravação pessoal, fevereiro de 2016.) Enfim, a partir dessas últimas citações, podemos observar que o afeto, atenção, e mesmo humanização do animal a ser sacrificado inexistem em ambiente comercial e é bastante valorizado quando se trata de ritos religiosos. Tanto dona Enilda quanto G. Afonso trazem um novo elemento que neste estudo não havia sido trabalhado. A questão do destino. Em relação ao que é pensado no Candomblé, voltamos ao conceito de Ori, um pouco mais detalhado: ORÍ INNÚ A cabeça interna, é a nossa personalidade divina, ou nosso “eu verdadeiro”, ou nosso “eu supremo ou superior”. Em resumo, nossa alma. Abaixo de Orí Innú reside Elénìnìí (o opositor de Orí), no cerebelo (ipakó), responsável pelo esquecimento de Orí de sua missão, aquele que o vem atrapalhar a realizar, cumprir sua missão para com Olórúm e a Criação, conforme descrito no Itan do Odú Irosún Méjì. Êste, constitui o último nó para a transcendência de Orí Innú, e o cumprimento de sua missão original. Ainda existe Ipín Jeun (o estômago), e Obo Ati Oko (os órgãos sexuais), que são os outros nós que Orí Innú deve superar: medo, desejo, ambição, vaidade, ciúme, ira, egoísmo, etc… ORÍN INNÚ AINDA SE DIVIDE EM: 1- Orí Aperé - o caminho predestinado, fenômeno narrado acima. O destino do indivíduo vem escrito em sua cabeça. “sua cabeça, sua sentença!” 2- Aparí Innú - o caráter (Iwà), a personalidade divina. Que é a essência de Orí Innú, a alma, e sua missão original. É através do desenvolvimento de Ìwà Pèlé (caráter reto, honesto, puro, bom) que Orí chegará à sua transcendência última! Enfim, como descreve o Odú Ogbè-Ègùndá: “Ìwà nikàn l´ó sòro o” “Caráter é tudo o que se precisa”. Ìwà Pèlé (caráter reto) é o que conduzirá Orí Innú até o Òrun Rere (plano espiritual dos Orixás), em caráter definitivo. Assim sabemos que nossa divindade pessoal é Orí Innú (cabeça interna-alma), responsável pelo nosso destino e felicidade. Que o nosso Orixá (orí-o primeiro) é o tutor espiritual de nosso Orí Innú, mas que só poderá ajudar-nos se Orí o permitir. Que em nosso Orí Innú reside o nosso Odú (destino) e somente através de Orí e Odú podemos transmutar o nosso destino, e assegurar o cumprimento da missão confiada por Olodumaré. Que devemos nos resguardar de Elénìnìí, o inimigo de nossa missão e alma, aquele que pode nos trazer sofrimentos. E que nossa verdadeira essência, que devemos buscar, reside em Orí Innú (cabeça interna-alma) e não em nosso Orí Òde (cabeça externa-personalidade) que é tão somente o veículo de Orí Innú aqui no Aiyé. E, o mais importante: a missãomaior de Orí Innú, à qual cabe ao nosso Orixá ajudar-nos, é o desenvolvimento de Ìwà Pèlé (caráter reto, bom), nosso passaporte para o encontro definitivo com Olórun!!19 Enfim, também no Candomblé acredita-se que há uma escolha de destino, e que chegamos na Terra com a finalidade cumpri-lo. Sejamos seres racionais ou não. Considerações finais Fica evidente, por fim, que os ritos africanistas no Rio Grande do Sul, assim como em todo o Brasil, sofrem perseguição não pela religião em si, mas por fazerem parte de uma cultura que foi e é perseguida, violentada, e massacrada diariamente, por conta de racismo, discurso de ódio, intolerância e discriminação. Não podemos esquecer que “Na cultura dos povos africanas à chegada dos europeus no continente, o sagrado não se distinguia da vida profana como nas práticas religiosas da cultura ocidental. Tudo é sagrado. A vida é sagrada. A palavra é sagrada.”(AVANCINI, 2008, p.138) Sendo, portanto, a vida e palavra sagradas, não há como haver mau trato à vida de um animal, como ocorre nos frigoríficos e matadouros, de origem europeia20, comerciais e que veem a morte deste animal como fonte de lucro, sem se preocupar com o sofrimento, mas sim, quantidade de produção em quilogramas de capitalismo e ganância aos seus bolsos. 19 Disponível em http://www.mundodasmagias.com/orixas/ori/. Acesso em 27 de fevereiro de 2016. 20 Para quem quiser maiores informações sobre a influência europeia na cultura gaúcha, indico este pequeno artigo introdutório: http://www.pampalivre.info/o_gaucho_e_a_sua_nossa_origem.htm. Acesso em 27 de fevereiro de 2016 REFERENCIAL AVANCINI, Elsa Gonçalves. O sagrado na tradição africana e os cultos afro-brasileiros in SILVA, Gilberto Ferreira da; SANTOS, José Antônio dos; CARNEIRO, Luiz Carlos da Cunha. RS Negro: cartografias sobre a produção do conhecimento. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2008. ORO, Ari Pedro. As religiões afro-gaúchas in SILVA, Gilberto Ferreira da; SANTOS, José Antônio dos; CARNEIRO, Luiz Carlos da Cunha. RS Negro: cartografias sobre a produção do conhecimento. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2008. CERQUEIRA, Miguel dos Santos. A efetividade de um Direito fundamental. Publicado em 09 de abril de 2013. Disponível em http://www.defensoria.se.gov.br/?p=2891 Acesso em 11 de fevereiro de 2016. ESTERMANN, Padre Carlos. Etnografia do Sudoeste de Angola. Volume 3. O Grupo Étnico Herero. Lisboa, 1961 KDICTIONARIES . Significado de Núbil. Disponível em http://www.lexico.pt/nubil/. Acesso em 11 de fevereiro de 2016. RAMOS, Arthur. O folclore negro do Brasil. São Paulo: Livraria-editora da Casa do Estudante do Brasil, 1954 REIS, Alcides Manoel dos. Candomblé: a panela do segredo. Org. Rodnei William Eugênio. São Paulo, Arx, 2000 SILVA, Gilberto Ferreira da; SANTOS, José Antônio dos; CARNEIRO, Luiz Carlos da Cunha. RS Negro: cartografias sobre a produção do conhecimento. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2008. TAVARES, Ana Paula. A cabeça de Salomé. Caminho: Lisboa, 2004
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