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Desenvolvimento dos Estudos Sociais sobre o Futebol e o papel desse esporte na formação da identidade brasileira

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE 
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA 
DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA 
GAP 00202 - ANTROPOLOGIA DO ESPORTE
Prof.ª Simoni Lahud Guedes
Aluna: Tainá Cristina Pereira
Desenvolvimento dos Estudos Sociais sobre o Futebol e o papel desse esporte na formação da identidade brasileira
O presente texto pretende esboçar uma resenha sobre os estudos desenvolvidos pelos intelectuais Roberto Augusto Da Matta e Simoni Lahud Guedes dentro da Antropologia dos Esportes, pioneiros na discussão sobre o tema no Brasil conjuntamente com outros intelectuais. Além disso, reservando um espaço para as pesquisas sobre o futebol e a identidade nacional brasileira, isto porque este recorte foi feito pelos dois autores para tratar da importância e relevância deste campo de estudos para as Ciências Sociais. 
Roberto Augusto DaMatta é um antropólogo brasileiro conhecido por obras como Carnavais, malandros e heróis e o Universo do Carnaval. Graduou-se em HIstória pela Universidade Federal Fluminense e doutorou-se em antropologia social na Universidade Harvard em 1971. DaMatta organizou, em 1982, o livro Universo do Futebol: Esporte e Sociedade Brasileira, produzindo uma introdução e o primeiro capítulo intitulado "Esporte na Sociedade: Um Ensaio sobre o Futebol Brasileiro". Além dele, Luiz Felipe Baêta Neves Flores, Simoni Lahud Guedes e Arno Vogel compoem os estudiosos do tema que participaram do livro.
Simoni Lahud Guedes cursou Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense, doutorou-se em Antropologia Social pelo Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente é Professora de Antropologia da Universidade Federal Fluminense. Sua pesquisa tem ênfase em Cultura de Trabalhadores e dentre os temas principais está o futebol brasileiro. Com artigo no livro anteriormente citado, participou do movimento inicial de legitimação do tema no Brasil sobre o futebol nas Ciências Sociais. Aqui utilizaremos também seu livro “O Brasil no campo de futebol: Estudos Antropológicos sobre os significados do futebol brasileiro” publicado em 1998. Neste livro predomina a discussão sobre o futebol e sua relação com a construção da identidade nacional brasileira, produto das discussões que começaremos a tratar aqui primeiramente com o intelectual Roberto Da Matta.
O livro Universo do Futebol: Esporte e Sociedade Brasileira, propõe um estudo sociológico do futebol que se posiciona contra a análise sociológica que dominava aquele período; e que seria demasiadamente economicista na qual esporte e sociedade só de dão de maneira paralela ou em relacao de oposicao que dariam um aspecto de sempre confronto entre as partes. Universo do Futebol dá ênfase aos estudos dos aspectos simbólicos, ideológicos e ritualísticos especificamente do futebol praticado no Brasil. Ou seja, o esporte age sobre, para, com ou contra a sociedade e vice versa. Roberto acredita que o futebol permite ver a alma da coletividade brasileira e não como algo a parte do que acontecia e acontece na história do país; em contraste com a vertente nas Ciências Sociais chamada utilitarista-funcionalista que via o futebol como o ópio do povo brasileiro uma vez que desviava a atenção de problemas relevantes. 
No decorrer da introdução do livro, o antropólogo utiliza-se de uma metáfora comparando o jogo de futebol e a vida como um jogo; sendo possível ver um no outro. Assim sendo, discutindo futebol, estaria também lidando com o capitalismo que envolve o jogo, os "cartolas", o dinheiro e o mercado em geral. Em suma, Roberto analisa o futebol junto com a sociedade, sem fazer dissociação dos fatos que acontecem simultaneamente. DaMatta define o que seria uma sociologia do esporte produtiva de fato: "Enquanto uma atividade da sociedade, o esporte é a própria sociedade exprimindo-se por meio de uma certa perspectiva, regras, relacoes, assim, abrir um espaco social determinado: o espaco do esporte e do <<jogo>>. É assim, suponho, que uma produtiva sociologia do esporte pode ser praticada, sem os riscos das reificacoes e projecoes rotineiras, quando o esporte é tratado como um epifenômeno ou atividade dispensável e secundária e a sociedade como uma realidade individualizada e monolítica." (DA MATTA, 1982)
Roberto aproxima política no Brasil com características do jogo de futebol. O futebol é organizado por leis universais que demandam a aceitação da ideia de justiça e o submissão de todos a elas, sem distinção de classes. No entanto, DaMatta declara que os políticos brasileiros não conseguem lidar com as regras na política de maneira como se trata o jogo de futebol.
O jogo de futebol é um sistema que detém suas próprias regras, espaços, objetos, tempo, e personagens que se relacionam de maneira específica de um esporte. É algo de fundamental importância para compreender a sociedade brasileira, juntamente com a religião e o carnaval, as artes -temas estudados pelo autor em outros trabalhos- que seriam assuntos menosprezados dentro das sociologia oficiais, critica DaMatta, por serem considerados apenas ópio do povo, idiotice popular aguda, alienação social etc. Universo do Futebol vem contra o movimento vigente na década de 1980 rompendo com essas linhas de pesquisa. Da Matta afirma: "Pois a sociedade se revela tanto pelo trabalho quanto pelo esporte, religião, rituais e política. Cada uma dessas esferas é uma espécie de <<filtro>> ou de operador, através do qual a ordem social se faz e refaz, inverte-se e reafirma-se, num jogo básico para a sua própria percepção enquanto uma totalidade significativa." (DA MATTA, 1982)
Roberto dedica um ponto do seu texto para tratar o futebol em diferentes sociedades, comprovando que o futebol é apropriado socialmente de varias formas em diferentes sociedades, sendo portanto um objeto social complexo. Por considerar ser este um viés váçido de análise das sociedades, DaMatta destinou um bom espaço de seu texto para tratar das diferenças entre o Brasil, Inglaterra e Estados Unidos. Isso seria fundamental para uma autêntica sociologia do esporte, ressalta o autor, sendo feito através de estudos comparativos.
Dessa forma, Roberto começa exemplificando a diferença entre Brasil e americanos e ingleses na forma como se define futebol. Para os americanos e ingleses, football, assim como tennis, soccer, baseball são denominados sports; enquanto no Brasil, o termo futebol sempre está acompanhado da palavra jogo. No Brasil, discute-se o jogo de futebol, ou comenta-se sobre. O autor deseja chamar a atenção para esse detalhe pois, segundo ele, é essa posição específica do futebol -ou do esporte de maneira geral-, que varia de sociedade para sociedade. Aqui no Brasil, existir uma associação entre futebol e jogo significa muito quando se compara com os Estados Unidos. Jogo de azar, por exemplo, na sociedade brasileira está como jogo, nos Estados Unidos ou Inglaterra é indicado como gamble que não faz conexão com as atividades esportivas.
Outro ponto em que Brasil e EUA/Inglaterra se divergem é a definição de atividade esportiva, uma vez que para os anglo-saxões esportivo parece não estar próximo a sorte/azar nos resultados, mas sim em competição, força e técnica. Tudo isso permitindo para a formação e o domínio do físico e controle dos indivíduos para formar uma coletividade. Em contrapartida, Da Matta argumenta:
“Ao passo que, no Brasil, o esporte é vivido e concebido como um jogo. É uma atividade que requer táticas, força, determinação psicológica e física, habilidade técnica, mas também depende das forças incontroláveis da sorte e do destino” (DA MATTA, 1982)
Quando se considera tais conjunturas, percebe-se no Brasil uma aproximação entre o futebol e ao sistema nacional de loterias, em que sorte azar estão no centro das especulações; e o desejo de angariar os milhões em dinheiro movimenta os apostadores que recorrem à fé- no caso nacional às religiões umbandista e católica- para conseguir sua vitória. Isto é, a partida de futebol é jogada em diversos planos distintos. Vale citaras palavras do autor: 
“Há, é claro, um jogo que se passa no campo, jogado pelos jogadores como atividade profissional e esportiva. Há um outro jogo que se passa na vida real, jogado pela população brasileira, na sua constante busca de mudança para seu destino. E um terceiro jogo jogado no <<outro mundo>>, onde entidades são chamadas para influenciar no evento e, assim fazendo, promover transformações nas diferentes posições sociais envolvidas e implicadas no evento esportivo. ” (DA MATTA, 1982)
Neste caso, ao perceber as especificidades tratadas aqui sobre a sociedade brasileira e o futebol, Roberto afirma ser possível explicar as razões de termos os espectadores como torcedores, ou seja, alguém que torce, revira-se, volve-se, e se revira ao assistir a um jogo. Destarte, detecta-se que a instituição football association – criada pelos anglo-saxões- pode ser apropriada de maneira diferentemente em cada sociedade e em termos específicos; portanto, para Roberto Da Matta, o futebol no Brasil pode ser entendido para além de um esporte (algo desconexo do total de uma sociedade) e sim como um jogo que está em conjunto com valores e relações sociais. A especificidade brasileira em que o jogo de futebol – football association- transita em pelo menos três planos distintos da sociedade, faz com que o autor o considere um <<fato social total>> de acordo com a noção de Mauss. Isso significa que o futebol inglês é algo muito mais complexo no Brasil.
Mais uma vez vale citar as palavras do autor, demonstrando as distinções entre as duas sociedades:
“Em outras palavras, na Inglaterra, o futebol é vivido como um sport e não como um jogo, como ocorre no Brasil, onde se distingue o jogar (to gamble) do brincar (to play). Brinca-se no Carnaval, como procurei mostrar em outros lugares (Cf.Da Matta, 1979 e 1981), mas joga-se futebol, e joga-se num time de futebol, isto é, pode-se praticar o futebol dentro de um time e também apostar na vitória de um dado time. Mas o verbo, como se nota, é mesmo verbo jogar, embora esteja sendo empregado em duas acepções bem diferentes. ” (DA MATTA, 1982)
Ao passo que na Inglaterra e os Estados Unidos tem o futebol como um espaço de coletivização em meio a uma sociedade individualizada; tem-se no Brasil o inverso, e é no futebol que o povo brasileiro se encontra enquanto indivíduo e tem sua personalidade a parte, isso no futebol praticado nas grandes cidades, em clubes que não tem relação com as ideologias sociais. É no futebol que o brasileiro vê a oportunidade de destacar-se da massa anônima e desconhecida para se tornar um ídolo, uma estrela, passando a ser o centro das atenções. Aí se tem a dialética de individualização e coletivização, do conflito entre o destino impessoal e vontade individual, segundo o autor. Por isso, os jogos de futebol permitiriam variadas leituras dos paradigmas das forças coletivas e impessoais – que seriam o destino- e as vontades individuais que desejam sair do ciclo de pobreza e derrota. 
Roberto deixa em paralelo o futebol e a política no Brasil. Para ele, ambos demandam o “jogo de cintura” ou a malandragem para que o indivíduo se saia bem; enquanto os europeus se caracterizam por uma postura técnica e coletiva de jogar. É um dos objetivos do autor colocar uma lupa nessas dramatizações acerca da sociedade brasileira dentro do jogo de futebol. 
“O futebol brasileiro, deste modo, pode ser estudado como sendo capaz de provocar uma série de dramatizações do mundo social. Um dos traços essenciais do drama é a sua capacidade de chamar atenção, revelar, representar e descobrir relações, valores e ideologias que podem estar em estado de latência ou de virtualidade num dado sistema social. [...]. Se o futebol traz à tona da consciência social valores como a lealdade absoluta a uma só equipe, a segmentação da sociedade em coletividades individualizadas e compactas; e uma ideia de tempo cíclico; ele positivamente esconde os fatos compostos de pessoas socialmente distintas, não podendo jamais formar uma entidade permanente. Pois que a vida quotidiana divide ricos e pobres, doentes e sadios, dominantes e dominados. ” (DA MATTA, 1982)
Diante de uma sociedade cheia de diferenças entre os indivíduos, o futebol tem a característica de homogeneizar o heterogêneo dentro de uma realidade momentânea. E é esse ponto que Roberto busca estudar: como se dá a unidade nos jogos de futebol? Podemos acrescentar aí especificamente as Copas do Mundo, por exemplo, em que o Brasil vive particularidades não vistas em outros momentos.
O futebol tem seu próprio tempo e espaço, no qual ocorrem as dramatizações, veiculação de problemas fundamentais, mas, justamente por suas características particulares ele ainda permanece apenas como um esporte, um jogo que está separado da vida real. Essa seria a significação central do sport na sociedade moderna.
Após esclarecimentos feitos, Roberto Da Matta finalmente dedica-se ás dramatizações; separando-as em dois tópicos: “A questão do destino em oposição à biografia” e “O problema das regras universais em oposição ao desejo de grupos e indivíduos”.
Para o primeiro, o autor utiliza o exemplo da Copa do Mundo de 1950. O Brasil era o time favorito em questões técnicas, uma equipe treinada, jogadores de qualidade além de ser um time de campanha futebolística perfeita, nas palavras de Roberto. A seleção brasileira jogou a final contra a uruguaia, que não tinha feito uma campanha tão boa. Ainda assim, o Brasil perdeu o título para o Uruguai no Rio de Janeiro. Este episódio teve um enorme peso social, em que Da Matta classifica como potencial maior tragédia da história contemporânea do Brasil. Principalmente porque aconteceu na década em que o país buscava marcar seu lugar como nação, com um grande destino a cumprir. Após o acontecido, tem-se a busca por responsabilidades por tamanha vergonha. Falou-se muito em destino e má-sorte. Destino que a sociedade pretendia mudar, saindo de um histórico de derrotas para uma nação vitoriosa. Segundo o autor, a derrota trouxe grande descontentamento e falta de confiança para com os planos futuros. O interessante é que na época, concluíram que a culpa da derrota estaria na questão racial, na forte presença de negros e índios no nosso povo e consequentemente no time de futebol brasileiro. Aí está um ponto importante para mostrar o que pretende o autor: questões sociais históricas da ideologia brasileira-como o preconceito racial- externas ao jogo foram alocadas como justificativa do fracasso na Copa de 50. 
Um pouco dessa concepção pessimista do povo brasileiro que fracassa também no futebol, foi relatada por Simoni em seu livro O Brasil no Campo de futebol. A autora faz uma explanação sobre a tese de João Lyra Filho. Tendo ocupado diversos cargos importantes, envolvido no esporte e na academia, Lyra Filho escreve já na década de 1970 os possíveis motivos raciais presentes no povo brasileiro para a derrota durante a Copa do Mundo de 1954 para os húngaros. A inferioridade psicológica e a imaturidade emocional, a falta de controle dos impulsos diante da superioridade do europeu que teria a capacidade de usar-se das técnicas e da razão durante a partida. Seria a disparidade razão x instinto; em que o autocontrole europeu se sobressaiu. Isso tem muito a ver com o que foi dito anteriormente de as questões ideológicas presentes na sociedade serem refletidas inclusive no esporte, no futebol. O que serve para reforçar o que Da Matta buscou demonstrar. O curioso é que ainda que o Brasil tenha superado os fracassos na Copa de 70, Lyra Filho permanece com sua teoria depreciativa sobre o povo brasileiro por meio da observação do esporte. 
Na Copa de 70 ocorre o oposto da década de 1950, com a vitória brasileira contra a equipe italiana e o coroamento de Pelé como o “Rei do Futebol”. Aqui, o negro discriminado outrora passa a ser o herói que eleva o país à condição de vencedor- ressaltando também neste caso a individualidade do jogador com a malandragem e arte própria que propiciaram a vitória.Com base nesses acontecimentos, Roberto Da Matta fala sobre a horizontalização do poder através do futebol. Num país em que a massa não tem voz, e que só é representada pelos líderes, o futebol permite por meio desse fenômeno, que o povo fale diretamente com o Brasil. Isso seria a reificação que o jogo permite nesta dramatização em que o país se vê materializado no campo, na partida. Em suma, permite que o povo tenha seu relacionamento direto com os símbolos nacionais sem os elementos clássicos intermediários. É o futebol que permite que a massa vivencie o sentimento de totalidade nacional, valorizado por meio dos seus ídolos.
“Se o futebol é bom para ser visto, ele também serve para dramatizar e para colocar em foco os dilemas de uma sociedade. ” (DA MATTA, 1982)
Simoni também destaca a relação do povo brasileiro com os símbolos nacionais por meio do futebol, quando trata da importância das copas do mundo no Brasil. Teria sido esse esporte o caminho que permitiu a saída dos símbolos dos gabinetes e dos quartéis para um relacionamento horizontal e dinâmico entre o povo e sua identidade como nação. No entanto, a plenitude da experiência de unidade oferecida no futebol só ocorre no Brasil com a vitória deste campeonato. Pois, ainda que permaneçam na história e causem sentimentos, a derrota causa o início de um processo de acusações e culpabilizações – aí se tem, segundo a antropóloga, um material rico sobre o que divide a sociedade brasileira.
“E, como bem o afirma o professor Roberto Da Matta, foi principalmente o futebol que os tirou dos gabinetes e quartéis, tornando-os símbolos também da vivência desta solidariedade moral entre os brasileiros, mesmo que transitória: 
No caso brasileiro, foi indiscutivelmente através do futebol, como já afirmei, que o povo pôde finalmente juntar os símbolos do Estado Nacional (a bandeira, o hino e as cores nacionais), esses elementos que sempre foram propriedade de uma elite restrita e dos militares, aos seus valores mais profundos. Ainda é o futebol que nos faz ser patriotas, permitindo que amemos o Brasil sem medo da zombaria elitista que, conforme sabemos, diz que se deve gostar somente da França, da Inglaterra ou dos Estados Unidos e jamais do nosso país. (...)
(...). Foi, portanto, só com o futebol que conseguimos, no Brasil, somar Estado nacional e sociedade. E, assim fazendo, sentir, pela avassaladora e formidável experiência de vitória em três Copas do Mundo, a confiança em nossa capacidade como povo criativo e generoso. Povo que podia vencer como país moderno, que podia, também, finalmente, cantar com orgulho o seu hino, e perder-se emocionado dentro do campo verde da bandeira nacional. (DA MATTA, 1994, p. 17) “ (GUEDES,1998)
O segundo ponto de dramatização, em Da Matta, disserta sobre a experiência de igualdade proporcionada pelo futebol. Visto que diferente da política que é tomada por disputas de poder, em que um grupo predomina sobre os demais, alterando as leis sempre que considerar pertinente; o futebol mantém suas regras fixas e valem para todos os participantes sem que se favoreça mais um ou outro, tendo o juiz e os bandeirinhas como representações dessas leis. Assim sendo, os participantes estão todos em pé de igualdade e dependem do seu desempenho individual para obter sucesso nos jogos. Este é o destaque que o autor dá – desempenho e mérito. Algo como a defesa do futebol como esporte democrático e que permitiu ao povo brasileiro vivenciar essa democracia que talvez não pudesse por meio do governo.
 
Além do mais, Roberto Da Matta reconhece que a identidade nacional brasileira está presente na religiosidade, futebol e no carnaval; todas não estão incluídas nas instituições centrais como na Europa e nos Estados Unidos. Desta forma, o Brasil vivencia o futebol de maneira inversa à sociedade americana, por exemplo, o que comprova a sua ideia principal que é a de que esse esporte pode ser um meio de entender as sociedades.
“Essas considerações nos levam a um outro ponto muito importante. Se de fato, carnaval, religiosidade e futebol são tão básicos no Brasil, tudo indica que diferentemente de certos países da Europa e América do Norte, nossas fontes de identidade social não são instituições centrais da ordem social, como as leis, a Constituição, o sistema universitário, a ordem financeira, etc., mas certas atividades que nos países-centrais e dominantes são tomadas como fontes secundárias e liminares de criação de solidariedade e identidade social. “(DA MATTA, 1982)
Simoni Lahud fala sobre a dinâmica das Copas do Mundo com relação à unidade construção de identidade do povo brasileiro. Essa competição é sem dúvida o auge do fenômeno. É quando se vê claramente a promoção de dualidades; dois times; dois países representados se enfrentam a cada partida. Vê-se o outro como o oposto da sua identidade, da sua característica nacional. Esse contexto permite que não sejam dois times – como em outros campeonatos- que disputam a vitória, mas dois países que selecionaram os melhores jogadores e melhor equipe para concorrer à taça mundial- seria uma espécie de confronto entre nações. Não existe significado em uma disputa entre um clube e uma seleção, neste caso. “O tempo das Copas do Mundo é, assim, o tempo da nação, tal como ela se apresenta através do futebol. E a imprensa esportiva opera com este pressuposto, possibilitando a emergência de um nível mais englobante de identidade social em que todas as diferenças (de classe, de oposição, de etnia, regionais etc.) são tornadas secundárias. A convergência em direção a este nível de identidade e o obscurecimento das enormes diferenças internas é, certamente, um processo altamente complexo. Mas algo de seu modo de operação pode ser anotado. ” (GUEDES, 1998)
Esses episódios podem ser vistos como “transes”, ainda que não funcionem à parte da sociedade que a produz, ressalta Simoni.
Simoni enfoca a sociedade brasileira, assim como Da Matta. A autora fala sobre o “abrasileiramento” do jogo futebol; que seria dada num contraste entre futebol-arte do Brasil e futebol-força do estrangeiro, dos gringos. O desenvolvimento de um futebol caracteristicamente nacional, de um “estilo brasileiro de jogar futebol” é a valorização de uma determinada técnica corporal- segundo definição de Mauss- que permite refletir as qualidades e defeitos da sociedade. Como vimos em Da Matta anteriormente, o futebol parece refletir ou personificar o temperamento, o comportamento, a moral e a visão do brasileiro no mundo por meio do seu desempenho e sua técnica em campo. Isto é, os dribles, fintas, gingas, firulas, lençóis, bicicletas, voleios, folhas secas entre outros citados por Simoni Lahud refletem a malandragem e a arte que o brasileiro usa para viver o dia a dia e que estão incrustados no jogo de futebol. Obviamente, torna-se mais claro o porquê de ser nos eventos mundiais da Copa do Mundo que se pode testemunhar tais fenômenos em ação, uma vez que é aí que se tem o contraste e as características afloram.
Simoni sublinha a relação do povo brasileiro com o jogo de futebol como uma relação de paixão nacional. Nenhum outro esporte tem tamanho espaço no que se pode chamar de vida real, do cotidiano, como o futebol tem. Durante a Copa do Mundo a rotina se altera nacionalmente ainda que todos os brasileiros não sejam torcedores. Acrescenta-se aí também o fato de essas alterações existirem com ou sem a vitória, pois, diferente de outros esportes em que a derrota causa um esquecimento, uma indiferença; no futebol, a derrota permanece como parte da história nacional, provoca discussões, está na mídia etc.
“ A história do futebol brasileiro tem sido a de uma paixão nacional que fabrica continuamente heróis e vilões, reis e párias, dramas e glórias. Quando faz aderir as fronteiras simbólicas do Brasil às fronteiras dos campos de futebol nos quais os selecionados brasileiros se apresentam, colocando em jogo a honra nacional (VOGUEL,1982), esta paixão transforma o futebol num importante veículo para a construção da ideia denação. Do seu lugar de significante, em princípio vazio- um valor simbólico zero (LÉVI-STRAUSS,1967, p.188) -, trasmuda-se num fenômeno polissêmico, apropriado de formas muito diversas por classes, segmentos sociais e indivíduos situados diferentemente na sociedade (GUEDES,1977; NEVES, 1979,1982) ” (Guedes,1998) 
O que se pode depreender do esboço que se pretendeu fazer sobre as análises desses dois autores é, sem dúvida, apurar o olhar sobre a nossa sociedade sob perspectivas enriquecedoras que só o jogo de futebol permite. É de grande valor o caráter inovador destes autores em conjunto com ainda outros diante de uma temática que, no período em que foi defendida por eles – nas décadas de 1970 e 1980-, ocupava espaço marginal nas Ciências Sociais. No entanto, quando levamos em conta estes estudos, é curioso pensar como é possível entender o povo brasileiro sem o futebol. Ainda que seja para negar seu papel influenciador sobre a questões sociais, ele não pode deixar de ser mencionado quando se trata do Brasil. Todavia, é preciso registrar que o texto produzido aqui jamais seria capaz de abranger as teses de Da Matta e Guedes, uma vez levando em consideração as décadas de produção e refinamento sofridos pelo tema dentro das Ciências Sociais. Contudo, pretendeu-se sublinhar o processo de construção da identidade nacional do povo brasileiro por meio do jogo de futebol.
DaMatta, Roberto e outros. Universo do Futebol: Esporte e Sociedade Brasileira. Rio de Janeiro, Pinakotheke, 1982.
Guedes, Simoni Lahud. O Brasil no campo de futebol: estudos antropológicos sober os significados do futebol brasileiro. Niterói: EDUFF, 1998.

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