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A Invenção do Sujeito de Direito * Yves Charles Zarka ** Tradução: José Emílio Medauar Ommati [com algumas pequenas modificações: Theresa Calvet de Magalhães] in Filosofia Politica Nova Série, Vol 1 (Porto Alegre: L&PM, 1997), pp. 9-29. O estudo filosófico-histórico da invenção do sujeito de direito, de Grotius a Leibniz, traça de forma emblemática o percurso do problema da subjetividade e do sujeito no campo do direito natural moderno. É nesse estudo que a idéia de um outro caminho para a subjetividade deve ser estabelecido. Para conseguir alcançar esse objetivo, eu procederei em três etapas. Inicialmente, partirei da noção de direito como qualidade moral tal como encontramos, primeiramente, em Suarez e, logo depois, em Grotius. A seguir, examinarei as noções de sujeito moral e de pessoa elaboradas por Pufendorf e Locke. Finalmente, analisarei a maneira pela qual Leibniz desenvolve esse percurso, formando a expressão e o conceito do sujeito de direito. Se, como acredito, uma história não cartesiana (apesar dos pontos de encontro e de oposição que sublinho) é, dessa forma, atestada, é a significação da subjetividade no mundo moderno que deveria ser revisada. Tentarei, ao concluir esse estudo, expor os termos dessa revisão. Pois bem. A questão da invenção do sujeito de direito (subjectum juris) é realmente primordial. É uma das questões mais importantes da modernidade. Alguns tentaram dar a essa questão algumas respostas, mas essas com freqüência ficaram comprometidas, porque a própria pergunta é mal formulada. Assim, começarei por esses dois pontos: a importância da questão e os termos nos quais ela deve ser colocada. A questão da invenção do sujeito de direito é importante porque ela traz um aspecto fundamental para a compreensão da modernidade. Um dos traços essenciais dessa modernidade não reside exatamente na definição do homem como sujeito de direito? Sujeito ao qual se ligam, simplesmente porque é um ser humano, ou seja, naturalmente, direitos. Ora, essa definição do homem como um ser portador de direitos não é atemporal, já que foi inventada pela filosofia moral e política moderna, constituindo uma de suas principais inovações. Poderíamos dar várias formulações sobre a importância dessa inovação. Mas, eu ficarei com apenas uma: a transformação da noção renascentista de dignidade do homem na noção do homem como ser portador de direitos no século XVII. Transformação significa conservação e mudança. O que se conserva é a idéia de uma especificidade que caracteriza o homem enquanto tal e o distingue de todos os outros seres * Título original: “L’invention du sujet de droit”. Esse artigo do Professor Yves Charles Zarka apareceu inicialmente na Revista Archives de Philosophie, Cahier 60-4, outubro-dezembro de 1997 [p. 531-550], e, posteriormente, em um livro do autor, intitulado L’autre voie de la subjectivité, Paris, Beauchesne, 2000 [p. 3-30]. A tradução foi feita a partir do texto desse livro. O tradutor agradece a gentileza do autor em autorizar a tradução para a língua portuguesa. ** Yves Charles Zarka é diretor de pesquisa no CNRS. É um dos principais autores da renovação da filosofia política contemporânea. Ele é, além disso, fundador e diretor da revista Cités (PUF). naturais. O que muda profundamente é que a dignitas hominis se refere menos ao lugar do homem na hierarquia dos seres, já que o homem tem sua própria liberdade de se constituir naquilo que ele é, e muito mais a noção do homem como ser portador de direitos que define muito mais um dado do que uma responsabilidade sobre aquilo que ele será. A diferença do discurso da dignidade do homem para o discurso sobre o homem como ser portador de direitos pode ser bem visualizada nessa passagem célebre da Oratio de hominis dignitate, de Jean Pic de La Mirandole: “Não te fizemos celeste nem terrestre, imortal ou mortal, para que, como um escultor que recebe a função e a honra de esculpir tua própria pessoa, tu te dês a forma que tu preferirás. Tu poderás degenerar em um desses seres inferiores que são as bestas, poderás, segundo os desejos do teu coração, ser regenerado em um desses seres superiores que qualificamos de divinos.”1 Em relação a esse apelo endereçado ao homem para ser ele mesmo o princípio de sua própria valorização, o discurso sobre o homem como ser naturalmente portador de direitos define mais claramente um estado de fato inalienável. Que não se enganem sobre o que estou falando! Eu não tenho a intenção de embaralhar o passo daqueles – e eles são numerosos – que vêem na definição do homem como sujeito de direito uma herança primitiva que traz todos os perigos da modernidade: perda da significação da natureza e do mundo, primado de uma subjetividade incômoda para os outros e injusta em si mesma, reino da dominação técnica e política. Exatamente ao contrário, opondo-se ao pensamento pessimista do declínio ou do jargão do esquecimento do ser e da destruição, eu gostaria de mostrar que a invenção do conceito de homem como sujeito de direito não traz de nenhuma maneira em si o germe desses perigos. Dizendo de outra forma, eu gostaria de mostrar que a promoção moderna do homem como sujeito de direito pode ser feita não apenas sem se questionar as normas universais e os valores morais, mas que ela apenas pode ser feita pela demonstração do caráter irredutivelmente moral do sujeito de direito, como também pela necessária reciprocidade que esse sujeito deve ter em relação aos demais. Em outras palavras, a invenção do sujeito de direito está ligada a uma primeira formulação da intersubjetividade jurídica. No entanto, para chegar até esse ponto, através de caminhos pouco claros, convém precisar os termos nos quais a questão da invenção do sujeito de direito deve ser colocada. Essa precisão é importante por duas razões. Por um lado, porque se supõe muitas vezes a questão resolvida antes mesmo dela ter sido colocada e, por outro, porque com freqüência não se determina suficientemente bem o que se busca com a denominação de “sujeito de direito”. Em relação ao primeiro ponto, aqueles que supõem que a questão já está resolvida antes mesmo de ser feita são aqueles que consideram mais ou menos de modo explícito que a determinação cartesiana do homem como ego e a concepção da subjetividade que ela veicula teriam conseqüências não apenas sobre o domínio moral que Descartes abordou, 1 Jean Pic de la Mirandole, Oratio de hominis dignitate, tradução francesa de Louis Valcke e Roland Galibois, Presses de l’Université Laval, 1994, p. 188. Cf. da mesma forma o volume coletivo editado sob a direção de Pierre Magnard, La dignité de l’homme, Paris, Champion, 1995. mas também sobre o domínio do direito natural em que ele não disse uma palavra. Sem querer minimizar a influência da metafísica cartesiana do ego, mesmo nos domínios em que Descartes não se pronunciou, é preciso sublinhar que a questão do homem como ser portador de direitos foi formulada no campo teórico do jusnaturalismo moderno bem antes que Descartes elaborasse sua metafísica. A definição do direito natural no sentido daquilo que mais tarde será denominado “direito subjetivo” está plenamente elaborado na obra de Grotius desde 1625 no De jure belli ac pacis, e se encontra claramente em sua formulação técnica, antes de Grotius, no De Legibus, de Suarez. Assim, não se pode imputar a menor influência que seja à metafísica cartesiana para a invenção, fora de seu campo direto de exercício, do sujeito de direito. É verdade que a reflexão sobre a obra de Descartes afetará mais tarde atradição jusnaturalista e, em particular, mas não somente, a obra de Pufendorf, mas não se pode dizer que foi com Descartes que aparecerá o princípio de uma definição do homem como sujeito de direito. Essa definição se dá em um outro contexto: o do jusnaturalismo moderno, de Grotius a Leibniz. Sobre o segundo ponto, relativo à indeterminação em que se mantém muitas vezes a questão do sujeito de direito, eu diria que importa aqui distinguir três noções: indivíduo, pessoa, sujeito. Se não fizermos essa distinção, se não determinarmos a todo momento qual desses três conceitos está sendo utilizado, ficamos na impossibilidade de colocar corretamente a questão. Para tentar compreender o processo teórico que conduz à invenção do sujeito de direito, convém definir os três momentos teóricos que lhe são constitutivos: 1. A definição propriamente moderna do direito como qualidade moral (o que chamaremos mais tarde de direito subjetivo). 2. A reflexão sobre o estatuto do sujeito no qual é conveniente uma tal definição do direito natural: a reemergência moderna da noção de sujeito moral ou de pessoa. 3. A relação do campo gnoseológico com o campo jurídico: a transformação de uma questão que se relacionava com a objetividade do conhecimento em uma outra que dizia respeito sobre o fundamento intersubjetivo do direito natural. Devemos mostrar a passagem do problema do sujeito do campo gnoseológico para o campo jurídico. Esses são os três momentos que pretendo examinar, enquanto momentos constitutivos do campo teórico em que nasce a noção de sujeito de direito. Minha proposta terá, portanto, um duplo objetivo: filosófico e histórico. Filosófico, porque se trata de descobrir os momentos constitutivos de uma invenção conceitual. Histórico, porque essa invenção foi feita na história de uma corrente doutrinária específica. 1. O DIREITO COMO QUALIDADE MORAL Há certamente muitas maneiras de se ser moderno, mesmo no domínio da teoria jurídica. Mas, há apenas uma e uma única forma de ser moderno quando se trata de definir o direito como algo que se relaciona com o homem. Essa definição do direito enquanto algo relacionado com o homem é encontrada na formulação canônica de Grotius em seu De jure belli ac pacis. Eis a definição daquilo que mais tarde denominaremos direito subjetivo: “Uma qualidade moral ligada à pessoa em virtude da qual pode-se legitimamente ter ou fazer algumas coisas – qualitas moralis personae competens ad aliquid juste habendum vel agendum.”2 Dessa forma, o direito é uma qualitas moralis ligada a uma pessoa. A partir daí, Grotius reorganiza toda a concepção do direito. O conceito de direito é dividido em direito perfeito e direito imperfeito. Do lado do direito perfeito, a qualitas moralis é entendida como faculdade, facultas, que define o direito propriamente ou estritamente dito, jus proprie aut stricte dictum. A própria facultas se divide em poder (potestas), propriedade (dominium) e faculdade de exigir o que é devido. Cada uma dessas componentes do jus strictum é objeto de novas subdivisões das quais não falarei aqui. Lembrarei simplesmente, porque isso terá conseqüências sobre o que falarei depois, que a categoria da potestas se divide em duas subcategorias: poder sobre si mesmo (libertas) ou sobre outrem (patria potestas e dominica potestas). Face ao direito perfeito, existe um direito imperfeito que é simplesmente atitude, aptitudo, o que envia àquilo que Aristóteles chamava de mérito ou dignidade. A distinção entre facultas e aptitudo permitia a Grotius reformular a distinção aristotélica entre justiça comutativa e justiça distributiva, pois a primeira decorria da facultas e a segunda da aptitudo. Essa reformulação de Grotius de uma distinção aristotélica, em função de uma definição não aristotélica do direito como qualidade moral, teve por conseqüência modificar consideravelmente o sentido da justiça distributiva que, sob o nome de justiça atributiva, decorre, a partir de agora, do direito imperfeito e não tem mais como correlata uma obrigação jurídica estrita. O que importa entender de tudo isso é a definição do direito como qualitas moralis. Não é evidentemente a única definição do direito dada por Grotius 3 , mas é a mais importante. Podemos mostrar isso de dois modos. 1. Inicialmente, é preciso notar que essa definição do direito como qualidade moral de uma pessoa não foi inventada por Grotius, já que ela se encontra formulada explicitamente por Suarez no De legibus (I, II, 5). Nessa obra, já se apresentava essa definição como a mais estrita do termo jus. Mas, essa definição do direito subjetivo levava Suarez a considerações que retomavam as determinações tomistas do termo jus, bastante diferentes das de Grotius. Particularmente, Suarez retoma explicitamente uma passagem da Suma Teológica (IIa IIae, q. 57, art. 1) em que Tomás de Aquino afirma que a idéia de justiça engloba a de igualdade: o que se iguala, se ajusta. Ele retoma, do mesmo modo, a passagem em que Tomás de Aquino sustenta que “a lei não é propriamente a voz do direito, mas principalmente a regra de direito”. Esse ponto testemunha a presença no texto de Suarez de posições não apenas diferentes, mas até mesmo incompatíveis, donde resulta ao mesmo tempo sua proximidade e sua distância em relação a São Tomás. Podemos dizer que Suarez está no encontro de várias tradições das quais Grotius vai ser influeciado. 2 Grotius, De jure belli ac pacis, I, I, 4, edição crítica de B. J. A. De Kanter-Van Hettinga Tromp, Aalen, Scientia Verlag, 1993, p. 31; tradução de Jean Barbeyrac, Le droit de la guerre et de la paix, Caen, Bibliothèque de philosophie politique et juridique, 1984, I, I, 4, p. 41. 3 Ele dá duas outras definições: o direito como aquilo que é justo, por um lado, e o direito como lei, por outro. 2. A especificidade da concepção de Grotius do direito subjetivo se relaciona menos com a definição que ele dá para esse termo do que do fato de que ele a situa no princípio de uma sistematização nova da teoria jusnaturalista. Em outras palavras, Grotius completa o que ficava indeciso na síntese de Suarez produzindo uma sistematização da teoria jurídica que funda primeiro o direito natural sobre a definição do direito como qualidade moral, para deduzir disso logo a seguir os princípios de uma teoria dos direitos civil e político. Direi apenas uma palavra sobre a fundação de Grotius do direito natural sobre a definição do direito como qualidade moral. O direito natural é definido por Grotius em função da natureza sociável e racional do homem. Eis os quatro princípios do direito natural, tais como decorrem dessa natureza sociável e racional do homem: 1. que é preciso se abster dos bens dos outros ou restitui-los; 2. que é-se obrigado a manter sua palavra; 3. que se deve reparar os danos causados; 4. que qualquer violação das regras precedentes merece uma punição mesmo da parte dos homens. À primeira vista, esses princípios parecem depender menos de uma definição do direito subjetivo do que de uma teoria do direito objetivo que se enraíza na estrutura de uma sociedade em que a natureza leva os homens a constituir. Na verdade, quando examinamos mais de perto esses princípios, percebemos que eles apenas pressupõem algumas das determinações do direito como qualidade moral, quais sejam, o poder(sobre si mesmo ou sobre outrem), a propriedade (plena ou imperfeita) e a faculdade de exigir o que é devido. O direito natural é, dessa forma, fundado sobre o direito subjetivo. 4 Contudo, se Grotius teve o grande mérito de sistematizar o direito naturala partir da definição do direito como qualidade moral, há um ponto que continua em sua obra em suspenso: ele não se refere ao estatuto da pessoa (persona) a qual ele relaciona o direito como qualidade moral, como vimos em sua definição de direito. A essa tematização que falta, se substitui em sua obra a simples retomada da concepção de Cícero das tendências fundamentais da humanidade. Ora, é precisamente essa indeterminação relativa no que se refere ao estatuto da persona a qual se liga o direito natural, a partir de então entendido em termos de direito subjetivo, que vai se tornar uma das questões centrais do debate das doutrinas jusnaturalistas que sucedem a de Grotius. Assim, a questão ético-política relativa à determinação do ser do homem o qual se liga o direito natural vai assumir grande importância a partir da obra de Hobbes. No ponto em que estamos, a questão central se torna essa: é Hobbes que, para além daquilo que ele deve a Grotius, inventa a noção de sujeito de direito construindo uma ética adaptada à nova teoria do direito? A resposta para essa questão deve ser negativa, porque, como veremos, Hobbes substitui a indeterminação de Grotius da persona a qual se liga o direito como qualidade moral por uma nova incerteza. De início, notemos que sobre o plano da definição do direito, Hobbes radicaliza a posição de Grotius, já que ele apenas mantém um único conteúdo da noção de direito: a liberdade. Já vimos que a libertas, na obra de Grotius, definia uma espécie particular de poder: o poder sobre si. Também vimos que o poder (potestas) constituía com a 4 Cf. Alexandre Matheron, Spinoza et la problématique juridique de Grotius, in Philosophie, n. 4, 1984. propriedade (dominium) e a faculdade de exigir o que é devido as grandes divisões do direito como qualitas moralis. Na obra de Hobbes, essa arquitetura complexa de Grotius é, de alguma maneira, descartada em benefício de uma conversibilidade simples entre jus e libertas. Essa radicalização de Hobbes fica clara na distinção feita pelo autor entre as noções de jus e de lex: “For though they that speak of this subject, use to confound Jus, and Lex, Right and Law; yet they ought to be distinguished; because RIGHT, consisteth in liberty to do, or to forbeare; Whereas LAW, determineth, and bindeth to one of them: so that Law, and Right, differ as much, as Obligation, and Liberty; which in one and the same matter are inconsistent.”5 “Com efeito, ainda que aqueles que falam desse tema tenham o costume de confundir jus e lex, direito e lei, deve-se distinguir, no entanto, essas duas coisas, porque o DIREITO consiste na liberdade de fazer alguma coisa ou de se abster de fazê-lo, enquanto que a LEI vos determina, e vos liga a uma ou outra coisa; de sorte que a lei e o direito diferem exatamente como a obrigação e a liberdade, que não coexistiriam em um só e único ponto.” Resulta dessa concepção do direito o desaparecimento de qualquer reciprocidade entre direito e obrigação: um indivíduo pode ter direitos sem que isso induza a obrigação de outrem. A obrigação e a exigência de reciprocidade são a partir de agora relacionadas com a noção de lei natural. Eis a definição que Hobbes dá do direito da natureza: “THE RIGHT OF NATURE, which Writers commonly call Jus Naturale, is the Liberty each man hath, to use his own power, as he will himself, for the preservation of his own Nature; that is to say, of his own Life; and consequently, of doing any thing, which in his own Judgement, and Reason, he shall conceive to be the aptest means thereunto.”6 “O DIREITO DA NATUREZA, que os autores chamam normalmente jus naturale, é a liberdade que cada um tem de usar como bem quiser seu poder próprio, para a preservação de sua própria natureza, ou seja, de sua própria vida, e por conseqüência de fazer tudo o que considere, segundo seu julgamento e razão próprios, como o meio mais adaptado para esse fim.” Erraríamos se concluíssemos a partir dessa definição que o direito natural se liga na obra de Hobbes ao poder do indivíduo. Com efeito, de acordo com Hobbes, a liberdade de usar nosso poder apenas define o direito natural na medida em que esse uso é racional, ou seja, se restringe à classe de ações que contribuem direta ou indiretamente para a preservação de nosso ser. O direito natural se liga, assim, a um uso racional da liberdade. Essa referência à razão no Leviathan, que faz eco à referência à reta razão no De Cive, explica, entre outras coisas, que não haveria para Hobbes direito natural para os seres inanimados, nem mesmo para os animais. 5 Hobbes, Leviathan, XIV, edição MacPherson, Harmondsworth, Penguin Classics, 1968, p. 189, tradução francesa de François Tricaud, Paris, Sirey, 1970, p. 128. A partir de agora, nas referências, a página da tradução seguirá, após uma barra oblíqua, aquela da edição indicada do texto original. 6 Ibid. Mas, em um mesmo golpe, chegamos na incerteza fundamental que afeta o pensamento de Hobbes. Porque se a racionalidade implicada no direito natural e a distinção entre ele e o simples poder tende a fazer do homem, como ser portador de direitos naturais, um simples indivíduo físico, digamos uma pessoa natural, obstáculos internos à sua filosofia impedem Hobbes de chegar a esse ponto. É verdade que a noção de pessoa natural é empregada por Hobbes, mas, opondo-se à noção de pessoa artificial, não sendo jamais verdadeiramente teorizada para pensar o estatuto do homem como ser ao qual se liga o direito natural. A falta de uma verdadeira conceitualização da noção de pessoa natural explica que essa noção, quando é utilizada por Hobbes, fique sem um sentido claro. Na indecisão, ela pode significar tanto o indivíduo físico, o ser humano ou o ser capaz de realizar atos jurídicos. Enquanto Hobbes tem necessidade, em virtude de sua doutrina da promessa e das convenções, de pensar o homem como ser moral e responsável, ele não pode nem quer dar o passo que lhe permitiria formular essa doutrina. Essa indecisão e esse caráter esquivo decorrem fundamentalmente, como mostraremos, dos obstáculos doutrinários internos que impedem Hobbes de fornecer um conceito da pessoa moral que, no entanto, é tão importante e necessário para sua teoria do direito. Entre o indivíduo físico e o conceito jurídico de pessoa, há um lugar de indecisão na obra de Hobbes. Mostrarei mais a frente como a teoria de Hobbes da identidade não leva em nenhum de seus níveis a uma reflexão sobre a ipseidade, a identidade do si [identité du soi] ou a identidade para si [identité à soi]. 7 Aqui é suficiente para mim notar que a noção de subjectum fica sempre referida na obra de Hobbes àquela da matéria ou do corpo, mesmo quando nas Troisièmes Objections aux Méditations de Descartes, trata-se de definir a res cogitans: o subjectum é, então, uma matéria ou um corpo que tem a propriedade de pensar, e que, como tal, não tem nenhum privilégio em relação aos outros corpos ou matérias – por exemplo, a cera que continua eadem res ou eadem materia sujeita às mudanças de suas propriedades. 8 A concepção de Hobbes do sujeito, longe de permitir a promoção da idéia de um sujeito de direito, implica, ao contrário, o rebaixamento da individualidade humana sobre uma fisiologia do movimento (vital e animal). Enquanto que a teoria do direito e das convenções pressupõe a identidade de um ser ou de uma pessoa que promete ou dá sua palavra, a doutrina do sujeito como corpo impede sua formulação. A única realidade do homem reside em Hobbes no indivíduo físico, que é insuficiente para definir o sujeitode direito. Para pensar o homem como ser portador de direitos, convém ultrapassar o conceito de indivíduo físico para pensar a pessoa moral. Ora, é precisamente o que Pufendorf, por um lado, e Locke, por outro, farão, contra a redução de Hobbes do homem enquanto indivíduo físico. 2. A DEFINIÇÃO MODERNA DA NOÇÃO DE SUJEITO MORAL OU DE PESSOA 7 Cf. mais adiante “Identité et ipséité: Hobbes et Locke”, p. 51 a 68. 8 Troisièmes Objections, AT VII, p. 173, tradução AT IX-1, 135. Duas orientações teóricas permitem pensar, mesmo que em sentidos diferentes, o homem como sujeito moral ou como pessoa: trata-se da doutrina dos sujeitos morais desenvolvida no início do De jure naturae et gentium, de Pufendorf, e da doutrina da identidade pessoal contida no capítulo XXVII do livro II do Essay concerning Human Understanding, de Locke. Sublinhemos que relacionar os textos de Grotius, Hobbes, Pufendorf, Locke e, mais a frente, Leibniz, não tem absolutamente nada de artificial. Não se trata de forma alguma de um efeito do comentário que privilegiaria alguns aspectos de um todo em detrimento de outros. São os próprios textos que se relacionam entre si, ou seja, eles se referem explicita ou implicitamente uns aos outros. Eu insisto nesse ponto, nesse ponto da minha exposição, para chamar a atenção sobre o fato de que a problemática que fez nascer o sujeito de direito se desenvolveu nos textos de pensadores que estavam plenamente conscientes da grande repercussão ligada à definição do homem como sujeito de direito, como também das dificuldades encontradas nessa seara por seus predecessores ou seus contemporâneos. Comecemos pela doutrina dos sujeitos morais na obra de Pufendorf. Contra Hobbes, Pufendorf mostra que não se poderia falar de direito sem ao mesmo tempo se falar de uma obrigação: “Qualquer poder natural de fazer uma coisa não é um direito propriamente dito, mas apenas o é aquele que traz algum efeito moral em relação aos nossos semelhantes. [...] Na medida em que os outros homens aceitam a obrigação de não impedir que alguém faça uso de seu poder, e de não se utilizar de suas coisas ou de seus animais sem seu consentimento; então esse poder adquire força de direito.”9 É precisamente porque o direito é uma qualidade moral que se distingue de uma qualidade simplesmente física, que não é possível relacioná-lo a uma faculdade física de agir, consistindo em uma relação moral estabelecida entre uma faculdade de fazer e uma obrigação correlata. Pufendorf realiza um gesto diferente daquele de Hobbes que vai exigir a tematização do que ficava incerto na obra de seus predecessores. À distinção de Hobbes entre direito natural e lei natural, Pufendorf opõe uma dependência do primeiro em relação ao segundo. O primeiro princípio é agora a obrigação envolvida na lei natural: “Assim, é preciso necessariamente colocar como princípio que a obrigação da lei natural vem do próprio Deus, que, na qualidade de criador e de condutor soberano do gênero humano, prescreve aos homens com autoridade a observação dessa lei. E isso é o que se pode conhecer com certeza pelas luzes da razão.”10 9 Pufendorf, De Jure naturae et gentium, libri octo, fac-símile da edição de Amsterdã de 1688, Oxford, The Classics of International Law, 1934, III, V, 3, p. 265; tradução de J. Barbeyrac, edição de Bâle, 1732, reeditada pela Bibliothèque de philosophie politique et juridique, Caen, 1987, vol. I, p. 359. A partir de agora, nas referências, a página da tradução seguirá, após uma barra oblíqua, a do texto original. 10 Ibid., II, III, 20, p. 149-150 / p. 204. Sem que seja necessário aqui adentrar no exame do conteúdo da lei natural, entendemos que o ser ao qual se imporá essa obrigação não será apenas um indivíduo físico. Abordarei a necessidade da passagem de uma consideração do indivíduo físico para a pessoa moral na obra de Pufendorf, considerando a relação deste autor com a teoria do direito natural de Spinoza, por um lado, e com a moral de Descartes, por outro. De início, notemos que se Pufendorf critica, algumas vezes no mesmo parágrafo, Hobbes e Spinoza, ele concede, no entanto, uma importância bastante diferente para cada um deles. De acordo com Pufendorf, com efeito, a concepção de Hobbes do direito natural é certamente falsa, mas é também, desde que seja emendada em um ponto fundamental, recuperável. Por outro lado, a concepção de Spinoza não pode ser emendada. Assim, poderíamos dizer que se Hobbes se situa na outra extremidade do problema jusnaturalista, Spinoza se situa no exterior dessa questão. Tudo isso dito forneceria menos uma imagem do jusnaturalismo do que uma rediscussão radical do problema que perpassa suas diferentes imagens. Essa apreciação implícita de Pufendorf é interessante e até mesmo verdadeira. Portanto, importa saber por que a concepção de Spinoza do direito natural se situa fora do problema jusnaturalista. No capítulo II do livro II do De Jure naturae et gentium, Pufendorf examina a concepção do direito natural tal como formulada por Spinoza no início do capítulo XVI do Traité théologico-politique. Ele retoma primeiro a definição: “Por direito e instituição da natureza, Spinoza entende apenas as regras da natureza de cada indivíduo, em virtude das quais concebemos cada um desses indivíduos como naturalmente determinados a existir e a produzir suas operações de uma certa maneira [...].”11 Essa definição do direito natural traz em si, segundo Pufendorf, o princípio de uma destruição do direito natural. Primeiro, porque o termo “direito” não significa aqui uma lei sobre a qual se deve seguir, mas uma faculdade natural de agir. Em segundo lugar, porque há uma redução radical do direito ao poder físico. Em terceiro lugar, porque ao fazer do direito uma qualidade física através da qual cada coisa produz suas operações de maneira fixa e determinada, o conceito de direito se encontra estendido ao conjunto dos seres, compreendendo-se até mesmo aqueles destituídos de razão. Em outras palavras, definir o direito como uma qualidade física de indivíduos físicos, é, para Pufendorf, destruir a própria noção de direito que, para ter uma consistência própria, deve designar uma qualidade moral que somente pode ser conveniente para seres morais. A análise feita por Pufendorf das conseqüências da definição de Spinoza pode nos permitir definir as condições que estão subjacentes à problemática jusnaturalista para além do próprio Pufendorf: 1. A distinção entre o fato e o direito; 2. o direito apenas pode ser conveniente ao homem; 3. e não para qualquer homem, mas para o homem enquanto ser dotado de razão. 11 Ibid., II, II, 3, p. 109 / p. 155. Spinoza, Tractatus theologico-politicus, XVI, ed. J. Van Vloten e J. P. N. Land, 1914, t. II, p. 258. Pufendorf confere, em sua antropologia jurídica, uma importância completamente diferente para a moral de Descartes. Ele leu Les Passions de l’âme, obra que ele cita, e certamente outros textos de Descartes. Além disso, a teoria do entendimento e da vontade humana em sua relação com as ações morais 12 comporta mais do que traços de uma leitura de Descartes. Ficaremos com três pontos que aproximam Pufendorf de Descartes: 1. a distinção entre o entendimento e a vontade; 2. a concepção da liberdade, em tensão entre uma liberdade de indiferença, que faz com que a vontade seja uma capacidade de autodeterminação, e uma determinação inevitável da vontade para o bem; 3. a relação entre a vontadee as paixões. Sobre esse último ponto, Pufendorf, para mostrar que as paixões, por mais violentas que sejam, jamais destroem inteiramente o poder da vontade, cita uma passagem do fim do artigo 50 das Passions de l’âme13. Mais importante ainda para a relação com Descartes é a retomada que Pufendorf faz do conceito de generosidade em um dos capítulos que trata dos deveres naturais dos homens entre si 14 . Pode-se dizer pura e simplesmente que a moral cartesiana fornece o conceito de pessoa que subjaz a concepção de sujeito moral ao qual Pufendorf relaciona o direito natural? Em outras palavras, a moral cartesiana fornece o conceito do sujeito que o De Jure naturae et gentium transportaria para fora de seu domínio para fazer dele um sujeito de direito? A essa questão, é preciso responder negativamente e isso, pelo menos, por duas razões. 1. Pufendorf fornece indiretamente o sentido de sua retomada da generosidade cartesiana. Essa retomada, com efeito, faz parte dos deveres de humanidade e não daqueles da “justiça propriamente dita, ou do direito rigoroso”15. Isso quer dizer que se a moral cartesiana pode fundar os deveres da humanidade, ela não poderia sozinha fundar uma teoria do direito. Poderíamos dizer que seria preciso somente completar essa moral mostrando suas implicações em um domínio que não era inicialmente o seu? Na verdade, se Pufendorf retoma um certo número de concepções cartesianas, é para colocá-las em um contexto bastante diferente que modifica bastante sua importância. 2. Podemos mostrar tudo isso examinando o conceito que Pufendorf fornece da consciência: “Chamamos comumente pelo nome de consciência, conscientia, o julgamento do intelecto que cada um possui das ações morais, enquanto é instruído pela lei e que age em concerto com o legislador na determinação do que é preciso fazer ou não fazer.”16 A consciência, longe de ser descoberta em uma presença pura de si, longe de se promover 12 Pufendorf, op.cit., I, III e IV. 13 Ibid., I, IV, 7, p. 42 / p. 61-62. É importante, da mesma forma, assinalar que se as análises de Pufendorf sobre a liberdade e a vontade retomam concepções cartesianas, elas se ligam também, e de maneira fundamental, à polêmica entre Hobbes e Bramhall sobre a liberdade e a necessidade. 14 Pufendorf retoma os artigos 152 e seguintes das Passions de l’âme, cf. ibid., III, II, 6, p. 230-231 / p. 315. 15 Ibid., III, IV, 1, p. 257 / p. 349. 16 Ibid., I, III, 4, p. 28 / p. 41. como um ego, mesmo se esse ego sai de sua solidão através da generosidade para se pensar em relação a um alter ego, se define inteiramente em relação à lei 17 . Pufendorf dedica um capítulo inteiro para mostrar que o homem precisa de uma lei, e que a liberdade absoluta é conveniente apenas para Deus enquanto que a liberdade humana exige uma norma que a regule e a restrinja. Dessa forma, não podemos dizer que a definição de pessoa moral na obra de Pufendorf possa se fundar na retomada, na verdade no deslocamento, da metafísica ou da moral cartesianas. Essa definição, dada na abertura do De Jure naturae et gentium dos seres morais, é, em si mesma, bastante complexa, e nos fixaremos apenas em três pontos: 1. A pessoa moral particular é uma forma específica no gênero das pessoas morais; 2. A pessoa moral é apenas um ser institucional, podendo ser modificada ou destruída sem que haja mudança física no homem; 3. Em decorrência disso, não se poderia identificar o homem e a pessoa. Assim, pode-se dizer que o conceito de pessoa, desenvolvido por Pufendorf, é diferente daquilo que esperaríamos, ou seja, uma definição de sujeito moral ao qual se liga o direito natural. É na obra de Pufendorf que ressurgirá o problema da definição do ser moral sob a forma de uma reflexão central sobre a relação entre pessoa moral e identidade pessoal. Com efeito, encontramos esse problema abordado no capítulo XXVII do livro II do Essay concerning Human Understanding, de Locke, intitulado “Of Identity and Diversity”. Esse capítulo foi redigido após a primeira edição da obra em 1690 e foi inserido na segunda edição em 1694. Pode-se dizer que, de uma certa forma, essas implicações se ligam em um ponto mais importante da totalidade do Essay. A intenção principal de Locke nesse capítulo é determinar o conceito de identidade de uma pessoa a qual os pensamentos e ações estão relacionados como suas, e que se pode colocar como responsável. A finalidade do texto é, assim, moral e, por alguns lados, jurídica e, até mesmo, teológica. Para entendermos bem tudo isso, seria preciso analisar o conteúdo desse capítulo em relação a dois autores que Locke tem em mente quando escreve seu capítulo e sob que aspectos ele se diferencia deles: Descartes e Hobbes. O interlocutor principal de Locke é Descartes. Todo o esforço do capítulo XXVII visa realizar uma desontologização da questão do eu questionando a relação estabelecida por Descartes entre pensamento e substância. Em outras palavras, Locke tenta estabelecer o que se pode esperar, com o conceito de identidade pessoal, uma certeza sobre o plano moral que seja independente da solução impossível dos problemas metafísicos ligados à natureza da substância. Mas, Locke pensa também em Hobbes quando escreve seu capítulo sobre a identidade, em particular no capítulo XII do De Corpore intitulado “De eodem et diverso”18. Eu apresentarei apenas duas das implicações do texto de Locke: 1. Locke retoma a análise feita por Hobbes tentando distinguir os diferentes tipos de identidade. Mas, ele insere essa análise em uma lógica completamente diferente que procura separar a identidade de si da consciência. Há na obra de Locke a reemergência de 17 Ibid. 18 A relação de Locke com Hobbes é examinada mais a frente, p. 55-76. um si [un soi] 19 , de um self, que se opera igualmente contra a ligação necessária, estabelecida por Descartes, entre a existência do ego e a natureza espiritual da substância pensante. Essa emergência da ipseidade se faz através de uma distinção entre identidade do homem, identidade da substância e identidade pessoal. A identidade do homem não é diferente daquela do animal, consistindo em um corpo bem organizado e que se torna tal apesar da sucessão das diversas partículas de matéria que estão temporariamente unidas nele. Atribuir algo a mais ao homem, seria não compreender como um embrião, um homem mais velho, um louco ou um sábio pode ser, sucessivamente, o mesmo homem. Essa identidade do homem se distingue da identidade da substância. Em outras palavras, ela requer apenas que suponhamos a identidade de uma alma. Aqui Locke utiliza como argumento o tema da transmigração das almas nos diferentes homens em diferentes tempos. A identidade da alma não alcançará jamais a identidade do homem. A identidade pessoal supõe, primeiro, a definição do termo “pessoa”. Esse termo é “a thinking intelligent Being, that has reason and reflection, and can consider it self as it self, the same thinking thing in different times and places; which it does only by that consciousness, which is inseparable from thinking, and as it seems to me essential to it: It being impossible for any one to perceive, without perceiving, that he does perceive”20 “um ser pensante e inteligente, capaz de razão e de reflexão, e pode consultar a si mesmo, como uma mesma coisa que pensa em diferentes tempos e em diferentes locais; tudo o que ele faz o faz unicamente por essa consciência que é inseparável do pensamento, e para mim, me parece essencial. É impossível a qualquer ser perceber semperceber que ele percebe”. A identidade pessoal é definida pela relação de si a si [de soi à soi] que acompanha sempre o pensamento e a memória: “as far as this consciousness can be extended backwards to any past Action or Thought, so far reaches the Identity of that Person”21 “tão longe essa consciência possa se estender sobre as ações ou os pensamentos já passados, tão longe se estende a identidade dessa pessoa”. Ora, essa definição de identidade pessoal visa dar um fundamento certo para a moral: a) pelo fato de que o si [le soi] se relaciona consigo mesmo com as ações e pensamentos, b) pelo fato que se pode fundar a responsabilidade dos atos. 19 A emergência do si [du soi] se faz primitivamente na obra de Cudworth. Esse ponto é estudado mais a frente p. 34-54 no estudo sobre “A ação, o sujeito e a norma: Cudworth contra Hobbes”. 20 Locke, Essay concerning Human Understanding, II, XXVII, 9, ed. P. H. Nidditch, Oxford, Clarendon Press, 1979, p. 335, tradução francesa feita por Coste, Paris, Vrin, 1972, p. 264. Como em outras passagens, a tradução Coste foi aqui por mim modificada. 21 Ibid. 2. Assim, compreende-se em que sentido o problema da identidade pessoal está no centro da questão do estatuto do sujeito moral. Quanto ao resto, o próprio Locke no §26 do mesmo capítulo XXVII associa dois sentidos de pessoa: a) a pessoa como si [comme soi], b) a pessoa no sentido jurídico, enquanto se apropria das ações, como também do mérito e demérito dessas ações. Essas duas noções estão até mesmo relacionadas para formar o conceito de personalidade. Eis o texto: “Person, as I take it, is the name for this self. Where-ever a Man finds, what he calls himself, there I think another may say is the same Person. It is a Forensick Term appropriating Actions and their Merit; and so belongs only to intelligent Agents capable of a Law, and Happiness and Misery. This personality extends it self beyond present Existence to what is past, only by consciousness, whereby it becomes concerned and accountable, owns and imputes to it self past actions, just upon the same ground, and for the same reason, that it does the present.”22 “Eu considero a palavra pessoa como o nome desse si [soi]. Em qualquer lugar em que um homem encontra aquilo que ele chama ele mesmo, eu acredito que um outro pode dizer que lá reside a mesma pessoa. A palavra pessoa é um termo da prática jurídica que se apropria das ações, e o mérito ou o demérito dessas ações; e que, conseqüentemente, somente pertence a agentes inteligentes capazes de direito, da felicidade e miséria. Essa personalidade somente se estende para além da existência presente, alcançando o passado, através da consciência que faz com que a pessoa se interesse pelas ações passadas, se tornando responsável, ao reconhecê-las como suas, e se as imputa sobre o mesmo fundamento e pela mesma razão que ela se atribui as ações presentes.” Vemos que esse texto, além de sua evidente intenção moral e teológica, tem igualmente uma importância jurídica. Contudo, o self lockiano e a definição de pessoa que ele dá não constituem, apesar de sua importância moral e jurídica fundamental, a última caracterização do sujeito de direito. Para chegar a ela, é preciso atingir uma etapa suplementar: aquela que relaciona o campo gnosiológico com o campo jurídico fazendo passar a questão do sujeito da relação cognitiva sujeito/objeto para a relação jurídica intersubjetiva sujeito/sujeito. Essa passagem da questão do sujeito é realizada por Leibniz que fornece, contrariamente a qualquer expectativa, se acreditássemos em alguns comentadores, a primeira definição do sujeito de direito. 3. DA OBJETIVIDADE DO CONHECIMENTO PARA A INTERSUBJETIVIDADE JURÍDICA Inicialmente, notemos que encontramos a reconstrução do direito em torno da noção de qualitas moralis em Leibniz de maneira sensivelmente permanente em toda a sua obra. 22 Ibid., p. 26, p. 346; tradução francesa, p. 275. Assim, é em relação à idéia de qualitas moralis que as noções de direito e obrigação são definidas na Nova methodus 23 : É nisso que Leibniz segue Grotius, no nível do primeiro grau do direito natural, menos na definição do direito como poder moral e de obrigação como necessidade moral que sobre a definição do direito como qualitas moralis ligada à pessoa que age. Contudo, entre as modificações que Leibniz realiza no texto de Grotius, há uma cujas conseqüências são importantíssimas para a questão da invenção do sujeito de direito. Com efeito, vimos que Grotius colocava a noção de persona em sua definição do direito como qualidade moral. A pessoa era entendida como o ser ao qual se relaciona o direito como qualidade moral. Mas, seguia-se disso igualmente que Grotius chamava a persona sem a determinar como sujeito, subjectum. Ora, Leibniz o faz de maneira decisiva no §15 da segunda parte da Nova methodus: “Subjectum qualitatis moralis est persona et res. Persona est substantia rationalis, eaque vel naturalis vel civilis.”24 “O sujeito da qualidade moral é uma pessoa ou uma coisa. Uma pessoa é uma substância racional, e esta é natural ou civil.” Nesse contexto, Deus é definido como o sujeito do direito supremo sobre todas as coisas: “Deus est subjectum juris summi in omnia.”25 “Deus é o sujeito do direito supremo sobre todas as coisas.” Essa determinação da pessoa como subjectum é encontrada com freqüência. Aqui, é suficiente para nós fazer referência a um texto publicado por G. Grua, Ad elementa juris civilis (1668-1671 ?). Ainda aqui, após a definição da qualidade moral como poder ou impotência moral, Leibniz define a pessoa como sujeito da qualidade moral: “Subjectum qualitatis moralis et persona, seu substantia rationalis.”26 “O sujeito da qualidade moral é uma pessoa, ou seja, uma substância racional.” Desse uso do termo subjectum, pode-se legitimamente concluir que a caracterização de “direito subjetivo” é mais justificada quando é aplicada à concepção de Leibniz do 23 Cf. Leibniz, Sämtliche Schriften und Briefe, Berlim, Akademie Verlag (abreviação=A), VI, 1, §14 [a], p. 301. “Moralitas autem, seu Justitia, vel Injustitia actionis oritur, ex qualitate personae agentis in ordine ad actionem, ex actionibus praecedentibus orta, quae dicitur: Qualitas moralis. Ut autem Qualitas realis in ordine ad actionem duplex est: Potentia agendi, et necessitas agendi; ita potentia moralis dicitur Jus, necessitas moralis dicitur Obligatio.” 24 A, VI, 1, §15, p. 301. 25 Ibid. 26 Leibniz, Textes inédits, vol. 2, publicados por G. Grua, Paris, PUF, 1948, p. 706. direito do que a de Grotius. Em todo caso, Leibniz vai além de Grotius na formação do conceito de direito como atributo de um sujeito. Como veremos, o termo sujeito de direito, subjectum juris, se encontra explicitamente nos trabalhos de Leibniz. Indo mais longe, Leibniz é provavelmente o inventor desse termo 27 . Mas, se Leibniz inventou a expressão, teria ele também inventado o conceito? Sabemos bem que uma invenção terminológica raramente é fruto do acaso, que ela é freqüentemente ligada a uma nova compreensão. Mas, sobre a questão que nos ocupa, o problema é fundamental ao mesmo tempo para a interpretação de Leibniz e, principalmente, para nós mesmos. Leibniz é o inventor do sujeito de direito? Para poder afirmar isso, é preciso que a invenção terminológica tenha sido sustentada por um questionamento que ultrapassa o problema do sujeito do plano gnosiológico parao plano jurídico. Essa superação ocorreu na obra de Leibniz? Parece que a resposta para essa questão deva ser pela afirmativa. Se esse for o caso, estamos nos aproximando do final de nossa investigação. Inicialmente, nos Nouveaux Essais sur l’entendement humain, Leibniz pretende corrigir o capítulo XXVII do livro II do Essay concerning Human Understanding, de Locke, em um ponto fundamental: o da continuidade da identidade pessoal no tempo, mesmo quando a consciência está suspensa. Esse restabelecimento da continuidade da identidade de si mesmo é realizado pela evidência do surgimento da alteridade na ipseidade. Leibniz mostra, com efeito, que a coerência ou a continuidade da experiência pode ser restabelecida se não por mim mesmo, já que se supõe uma suspensão momentânea da consciência, pelo menos pelos outros. Outrem pode dar um paliativo para a falta momentânea de consciência de si [conscience de soi] “Assim, se uma doença interrompeu a continuidade da ligação da capacidade de consciência, de sorte que eu já não possa mais saber como estarei no estado presente, mesmo que me lembre de coisas mais importantes, o testemunho de outras pessoas poderia preencher o vazio de minha reminiscência.”28 Há implicações jurídicas imediatas pela restituição da identidade pessoal e moral através da emergência de outrem na relação a si mesmo [rapport à soi]: “Eu poderia até mesmo ser punido por esse testemunho, se eu fizesse qualquer mal deliberadamente em um espaço de tempo, tendo eu esquecido logo depois por força dessa doença.”29 Esse surgimento do outro na relação a si mesmo permite a Leibniz concluir: “A consciência não é o único meio de constituir a identidade pessoal, e a relação de outro ou mesmo de outras marcas podem suplementar essa identidade.”30 Essa afirmação é 27 Essa ainda é uma hipótese a ser confirmada. Mas, pelo que sei, nenhum autor antes de Leibniz empregou a expressão subjectum juris, no sentido que estamos examinando. Antes de Leibniz, a noção de subjectum juris significava a matéria, o tema ou a questão sobre a qual o direito se relacionava. 28 Nouveaux Essais sur l’entendement humain, II, XXVII, 9. 29 Ibid. 30 Ibid., sublinhado por mim. admirável, mas convém não interpretá-la mal. O termo “constituir” é evidentemente muito forte: outra pessoa poderia ser entendida como entrando na constituição da identidade de si mesmo [identité de soi]. Mas, a expressão final “ou mesmo de outras marcas podem suplementar essa identidade” indica de forma clara que não se pode ir até esse ponto. Já que outras marcas que não aquelas de outra pessoa podem preencher a mesma função, seria forçar demais o texto ou interpretá-lo muito ao pé da letra o termo constituição, que Leibniz, no entanto, emprega bem. Contudo, a relação com o outro que seria por assim dizer empírica nos Nouveaux Essais vai se tornar propriamente constitutiva no domínio da teoria do direito, porque a teoria do direito na obra de Leibniz repousa completamente em uma teoria do amor. Eis a definição que Leibniz dá de amor – eu não conheço nenhuma outra que a supere – “Amar ou estimar, é se comprazer na felicidade de uma outra pessoa ou, o que é o mesmo, é fazer da felicidade de uma outra pessoa a nossa própria felicidade”31. Leibniz faz do amor a fonte dos três graus do direito natural 32 . O amor intervém, primeiramente, na definição dos dois primeiros graus do direito natural, ou seja, na definição da justiça humana: “Efetivamente, o direito puro ou estrito nasce do princípio de que é preciso conservar a paz; a eqüidade ou a caridade tende a algo de maior, ou seja, a que procurando a utilidade dos outros, tanto que for possível, encontremos o aumento da nossa felicidade na felicidade dos outros, e para dizermos em uma palavra, o direito estrito evita a miséria, e o direito que está abaixo tende à felicidade, mas somente a felicidade que pode se dar nessa vida mortal.”33 A passagem para a felicidade eterna, que supõe a coincidência entre a virtude e a alegria, como também entre o direito e o fato, somente é possível sob uma dupla condição: 1. que nossa alma seja imortal, 2. que um Deus governe o universo: “Não se pode conhecer Deus, como é necessário, sem amá-lo para além de todas as coisas, e não se pode amar assim, sem querer o que ele quer. Suas perfeições são infinitas e não cessam. É por isso que o prazer, que consiste no sentimento de suas perfeições, é o maior e o mais durável que se possa, ou seja, é a maior felicidade, e o que faz que o amemos, faz com que [alguém] seja ao mesmo tempo feliz e virtuoso. De acordo com isso, pode-se dizer de maneira absoluta que a justiça é a bondade conforme a sabedoria, mesmo para aqueles que não conseguem atingir essa sabedoria.”34 A Méditation sur la notion commune de la justice varia entre o argumento do lugar do outro e o princípio do amor para definir progressivamente os diferentes graus do direito natural. Assim, para passar do jus strictum para a eqüidade, é preciso passar do princípio: “Coloque-se no lugar do outro, e você estará no ponto certo para julgar o que é justo ou 31 Codex juris gentium diplomaticus, ed. Dutens, IV, p. 295. 32 Para um exame mais completo dessa questão, cf. mais adiante “A alteridade na ipseidade: Leibniz e o direito natural (I)”, p. 79-94. 33 Codex juris gentium diplomaticus, op.cit., p. 296. 34 Méditation sur la notion commune de la justice, ed. Mollat, II, p. 62-63. não”35 para o princípio: “Coloque-se no lugar de todos e suponha que eles estejam bem informados e esclarecidos.”36 Por isso mesmo: “Levado de grau em grau, será conveniente não apenas que os homens se abstenham de fazer o mal, mas ainda que eles devem impedir que o mal aconteça, e mesmo repará-lo, quando ele ocorre, pelo menos tanto quanto for possível, sem se incomodar. E não examino agora, até que ponto esse incômodo pode chegar.”37 Em outras palavras, não somente Leibniz descobre e nomeia o sujeito de direito, mas, ao transpor a questão do sujeito do plano gnosiológico para o plano jurídico, ele define também os primeiros lineamentos de um fundamento intersubjetivo da teoria do direito. CONCLUSÃO Se tudo isso estiver correto, se tudo o que mostramos tem algum fundamento, então vemos que a invenção do sujeito de direito nos três momentos constitutivos que examinamos leva a cinco conseqüências. As duas primeiras são historiográficas, e as três últimas são propriamente filosóficas. 1. A invenção do sujeito de direito não precede a definição moderna do direito natural, mas a segue. É nas obras filosóficas e jurídicas mais importantes do século XVII que se opera, por etapas sucessivas, essa invenção. O jusnaturalismo moderno não pressupõe um sujeito de direito, mas o produz durante uma longa elaboração histórica em que tradições, no início, estrangeiras se cruzam entre si. 2. Que Leibniz possa ser considerado o inventor do sujeito de direito e como um pensador da intersubjetividade deve legitimamente levar a uma revisão fundamental de tudo o que foi com freqüência escrito sobre o fechamento sobre si mesmo da mônada. 3. A idéia do sujeito de direito envolve a idéia de um ser moral irredutível a qualquer perspectiva fisicalista ou naturalista. A universalidade do sujeito de direito repousa sobre essa irredutibilidade. 4. A descoberta do sujeito de direito, longe de implicar um fechamento sobre si mesmo, implica, ao contrário, uma abertura desse sujeito a uma perspectiva intersubjetiva. 5. A idéia do sujeito de direito não envolve de forma algumaos obscuros horizontes da decadência, do esquecimento e da dominação em que alguns quiseram aprisioná-lo. Abre-se, assim, a possibilidade de uma nova interpretação da teoria moderna da subjetividade, o que eu chamo “a outra via da subjetividade”. 35 Ibid., p. 57. 36 Ibid., p. 58. 37 Ibid., p. 56.
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