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Filosofia Filosofia © Copyright 2013 da Laureate. É permitida a reprodução total ou parcial, desde que sejam respeitados os direitos do Autor, conforme determinam a Lei n.º 9.610/98 (Lei do Direito Autoral) e a Constituição Federal, art. 5º, inc. XXVII e XXVIII, "a" e "b". Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Sistema de Bibliotecas da UNIFACS Universidade Salvador - Laureate International Universities) M528f Melo, Naurelice Maia de Filosofia. / Naurelice Maia de Melo, Ueliton Lemos dos Santos. – Salvador: UNIFACS, 2013. 215 p. ISBN 978-85-87325-69-3 1. Filosofia. I. Santos, Ueliton Lemos dos. II. Título. CDD: 107 Sumário ( 1 ) Perspectivas sobre filosofia, conhecimento, ciên- cia e relações que tecem com a vida, 21 ( 2 ) Passeando sobre a origem e organização do universo: olhares cosmogônicos e cosmológicos, 47 ( 3 ) Reflexões sobre o conhecimento e olhares sobre o pesamento clássico, 67 ( 4 ) Dialogando com os temas: ética e moral, 91 ( 5 ) Correntes do pensamento filosófico e concepções éticas: uma interface necessária I, 115 ( 6 ) Correntes do pensamento filosófico e concepções éticas: uma interface necessária II, 137 ( 7 ) Reflexões acerca das temáticas: relação com o sa- ber, multiculturalismo e interculturalismo, 157 ( 8 ) Ideologia, alienação e trabalho: uma reflexão tripar- tite em prol da reconquista do humano que há em nós, 183 Prezada e prezado estudante, A equipe da disciplina Filosofia convida você a rea- lizar caminhos. Caminhos de descobertas e redescobertas, visto que, desde a leitura da primeira página desse material, inquietações serão suscitadas e não serão esgotadas na última página, ao contrário, convidarão a novas perspectivas, por exemplo, sobre filosofia, conhecimento, ciência e relações que tecem a vida, mediante fundamentos conquistados pelos pas- seios sobre a origem e organização do universo com olhares cosmogônicos e cosmológicos, tecendo as reflexões sobre o conhecimento, com atenção ao pensamento clássico, à ética e moral, inclusive, interfaceadas com correntes do pensamento filosófico. Vamos, em parceria e com posturas colaborativas tecer reflexões acerca das temáticas: relação com o saber, multicul- turalismo e interculturalismo. Buscaremos compreensões a respeito da ideologia, da alienação e do trabalho na qualidade de reflexão tripartite em prol da reconquista do cultivo do humano que há em nós. Nesse processo perene de autocompreensão, diversas sensações podem ser experimentadas, favorecendo os modos de entendimento da realidade e de construção de quem somos. Desejamos que a cada instante seja possível superar as dificuldades que por ventura surjam, sabendo que pode- mos contar um com outro na qualidade de equipe maior que reúne docente, discentes e todos que, imbuídos do desejo de aprender, encontrem as forças e alegrias imanentes às con- quistas que temos a realizar em prol tanto de posturas eman- cipatórias quanto de dias melhores. Abração para você! Autores e Equipe de Filosofia! ( 1 ) Perspectivas sobre filosofia, conhecimento, ciência e relações que tecem com vida “Não se ensina Filosofia, mas a filosofar” Kant Naurelice Maia de Melo e Ueliton Lemos dos Santos Ao iniciarmos nossa caminhada junto aos saberes da Filosofia, muitas vezes surgem questionamentos a respeito do motivo pelo qual é preciso dedicar atenção aos conhecimentos, temas e pensamentos filosóficos. Esse posicionamento questionador é justo, uma vez que a formação básica nem sempre contempla os conteúdos filosóficos de modo adequado ou coerente com a própria proposta da Filosofia, falamos aqui de propostas como aquelas pautadas na máxima do pensador Kant, conforme citado por Borges e Souza (2012), “não se ensina filosofia, ensina-se a filosofar”. Fi lo so fia 18 Nesta perspectiva, constam os riscos que fazem com que o “ensino de filosofia” seja tomado por posturas afasta- das do atual contexto social, causando uma impressão equi- vocada a respeito da Filosofia e tornando-a, de certo modo e infelizmente, uma fonte de informações que requerem aten- ção a elementos históricos (e requerem de fato) sem que estes possam significar (significam, de fato) uma trajetória que está presente hoje nas relações que tecem nosso ambiente tanto pessoal quanto social e as demais esferas da vida. Felizmente, esta não consiste na única perspectiva. Contamos também com modos socialmente engajados, dinâmicos e altamente competentes de proceder junto à Filosofia. Contamos ainda, com pessoas que concluíram o ensino médio em uma ocasião na qual não tiveram acesso a esse campo do saber e, portanto, ao chegar a cursos de graduação mantiveram, pela primeira vez, a relação com a disciplina que tem por título “Filosofia”. Afirmamos, pela primeira vez com a disciplina, pois ousa- mos dizer que: com a postura filosófica, o contato não é pri- meiro. Ao contrário, por muitos momentos somos convidados e convidadas a pensar sobre questões que remetem a temas filosóficos, mesmo que não tenhamos no momento a consciência de que somos já pessoas filosofantes. Esperamos que a sua experiência com a Filosofia tenha ocorrido conforme a segunda situação que descrevemos no parágrafo anterior. Caso não tenha sido dessa forma ou não tenha ocorrido o acesso a esta disciplina, não há motivo para preocupação, pois assumimos aqui o compromisso com você e com a aprendizagem. Adotamos a linguagem neces- sária, assumindo posturas criteriosas e acessíveis, trazendo nas primeiras unidades os saberes introdutórios importantes para que, cada um de vocês (independente das relações que antes teceram ou não com este campo do saber) possa estu- dar, pesquisar, conhecer os pressupostos básicos da Filosofia Pe rs pe ct iv as s ob re fi lo so fia , co nh ec im en to , c iê nc ia e r el aç õe s qu e t ec em a v id a 19 e, a partir deles e com eles conquistar seus próprios modos de pensar a respeito das temáticas propostas, encontrando ainda caminhos possíveis para aliar às posturas que você já vem dedicando à vida. Quais posturas são estas? Àquelas de pes- soas que compreendem as circunstâncias concretas da vida, que bem identificam as relações de ideologia imbricadas nas relações de poder e dominação social, pessoas atentas aos fundamentos éticos de uma vida, de uma formação e profis- são; pessoas que, diante dessas e outras percepções, buscam o exercício constante de maneiras reflexivas, críticas e criativas de lançar olhares sobre a vida em suas instâncias diversas, fazendo valer, assim, a máxima kantiana. O que é, então, Filosofia? Onde seria possível (embora inadequado, devido ao teor próprio da Filosofia) apresentar uma definição única para Filosofia, preferimos caminhar, assim como Luckesi e Passos (2004) aplicam com relação ao conhecimento, junto a aproximações conceituais. Começando pela origem etimológica, a palavra Filosofia corresponde a philo (amor, amizade) + sophia (sabedoria). Desse modo, a filosofia é também correspondente à busca pelo conheci- mento1, à busca pelo saber, sem que estes sejam instituídos na qualidade de verdades absolutas a serem impostas, ao contrá- rio, a filosofia é também correspondente ao movimento ques- tionador, à perplexidade. É importante também considerar que algumas apro- ximações conceituaisapresentam a Filosofia como ciência. Essas perspectivas, geralmente, têm por fundamento o pen- samento aristotélico, conforme você pode acompanhar na lei- tura a seguir. 1. A respeito do conhecimento, por gentileza, visite nossa Unidade 03, na qual tecemos com você diálogos sobre, dentre outros temas, o ato de conhecer, seus elementos, processo etc. Fi lo so fia 20 Trecho selecionado de “O que é Filosofia e para que serve?” (autoria de: Maura Iglesias) Se perguntarmos a dez físicos “o que é a física”, eles responderão, pro- vavelmente, de maneira parecida. O mesmo se passará, provavelmente, se perguntássemos a dez químicos “o que é química”. Mas, se pergun- tarmos a dez filósofos “o que é a fi- losofia”, ouso dizer que três ficarão em silêncio, três darão respostas pela tangente, e as respostas dos outros quatro vão ser tão desencontrada que só mesmo outro filósofo para entender que o silêncio de uns e as respostas dos outros são todas abor- dagens possíveis à questão proposta. Para quem ainda está fora da filoso- fia, a coisa pode estar parecendo confusa. Mas a razão da dificuldade é fácil de explicar: talvez seja possí- vel dizer e entender o que é a física, de fora da física; e dizer e entender o que é a química, de fora da química. Mas, para dizer e entender o que é a filosofia, é preciso já estar dentro dela. “O que é a física” não é uma questão física, “o que é a química” não é uma questão química, mas “o que é a filosofia” já é uma questão filosófica - e talvez uma das carac- terísticas da questão filosóficas que seja o fato de suas respostas, ou tentativas de resposta, jamais es- Pe rs pe ct iv as s ob re fi lo so fia , co nh ec im en to , c iê nc ia e r el aç õe s qu e t ec em a v id a 21 gotarem a questão, que permanece assim com sua força de questão, a convidar outras respostas e ou- tras abordagens possíveis. E já que os filósofos não vão mesmo entrar num acordo, deixemos de lado o problema da definição. Entremos de uma vez na filosofia, mais propria- mente na metafísica de Aristóteles, onde este está justamente em busca de uma “sophia” (sabedoria) que seja a maior, a mais importante, a primeira sabedoria2. [...] [A partir da perspectiva aristoté- lica, Maura Iglesias elucida:] o saber filosófico: 1) é um saber “de todas as coisas”, um saber universal; em um certo sentido, nada está fora do campo da filosofia; 2) é um saber pelo saber; um saber livre, e não um saber que se constitui para resolver uma dificuldade de ordem prática; 3) é um saber pelas causas; o que Aristóteles entende por causa não é exatamente o que nós chamamos por esse nome; de qualquer forma, saber pelas cau- sas envolve o exercício da razão, e esta envolve a crítica: o saber filosó- fico é, pois, um saber crítico. Fonte: REZENDE, A. (org.). Curso de Filosofia. 10. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. 2. Querido e querida estudante, aqui a autora apresenta uma citação de Aristóteles que evidencia a sabedoria/sophia, na qualidade de ciência (de considerações correlatas a estas advém os modos de significar o saber filosófico com a ciência) e apresenta suas características principais, suprimimos a citação por motivos didáticos e mantivemos as considerações de Maura Iglesias a respeito da cita- ção de Aristóteles que suprimimos, pois, além de favorecer a proposta dos nossos estudos, foi ela- borada de modo elucidativo e acessível. Fi lo so fia 22 Outras perspectivas que têm por referencial de ciência a sua concepção moderna, entretanto, não aceitam a filoso- fia na condição de ciência, pois o saber filosófico, mesmo que correlato à ciência, não é um saber científico, não consta de um método único e absoluto, nem busca defender uma ver- dade como sendo aquela também única e absoluta. Veja a seguir as elucidações sobre encontros entre ciên- cia, conhecimento e filosofia e, ainda, entre estes e as rela- ções que tecem a realidade, uma vez que tanto a Filosofia, quanto à Ciência estão muito próximas de nossas vidas, nas mais diversas instâncias relacionais, em ambientes acadêmi- cos, ou mesmo no simples caminhar de uma calçada em dire- ção a um destino, qualquer que seja. A Filosofia e a Ciência constituem expressões do modo de ser e agir da pessoa. Vamos juntos nessa unidade realizar exercícios essenciais de desconstrução de paradigmas (mode- los/padrões) para assim estarmos aptos à construção de per- cepções mais flexíveis e reflexíveis da existência, um eterno retorno modificado e transformado do ser sendo na realidade. Nesta unidade, você estudante, está convidado a “caminhar” pelas diversas compreensões que o termo ciên- cia adquiriu ao longo do processo de “desenvolvimento” da história do pensamento da humanidade. Para tanto, alguns dos principais expoentes estão postos à luz da reflexão e, sobretudo, da problematização científico-filosófica. Nesse caminhar, a filosofia é o “farol” a guiar os pensamentos na incessante busca da verdade. Mas, o que é a verdade? É possível conquistá-la? De que forma/maneira? Essas são questões/problemas que impulsio- naram e continuam a impulsionar o caminhar da Ciência e da Filosofia. A concepção mitológica de representação da realidade consiste na tentativa de acalmar e tranquilizar as pessoas Pe rs pe ct iv as s ob re fi lo so fia , co nh ec im en to , c iê nc ia e r el aç õe s qu e t ec em a v id a 23 frente aos fenômenos sociais/naturais daquela época (perí- odo antigo), eis que em seguida, surge o “Thauma” (espanto/ admiração) imbricado à dúvida essencial. Essas personifica- ções divinas, extraordinárias, podem ser tão próximas dos seres terrenos pessoas comuns, “iguais” umas às outras, com desejos e sentimentos semelhantes aos residentes do Olimpo. A admiração, o espanto, seguido da dúvida, fez nas- cer a Filosofia, cuja etimologia é conhecida por todos como o amante do saber, não seu senhor, dono ou possuidor, apenas o amante que busca incessantemente conquistá-lo paulatina- mente todos os dias de sua existência. Muitos pensadores antigos da Grécia poderiam ser convocados aqui para declarar seus pensamentos a respeito da Filosofia e também de uma ciência incipiente. Entretanto, acreditamos ser nesse momento Empédocles (490 - 430 a. C.) o que mais contribuições nos trazem. Esse declarava a existên- cia de quatro elementos constituintes da realidade (diferente dos Jônios, Tales, Anaximandro, Anaxímenes e outros, cada um desses pensadores elegeram um elemento essencial origi- nário do kosmo). Os primeiros pensadores que dão expressão filosófica ao problema da existência de uma causa supre- ma de todas as coisas são os filó- sofos Jônios: Tales, Anaximandro, Anaxímenes, todos eles de Mileto, na Ásia Menor, às margens do mar Egeu. Todos eles viveram en- tre os séculos VII e V a. C. (MONDIN, 2003, p. 17) Fi lo so fia 24 O ar, o fogo a terra e a água para Empédocles consti- tuem toda a existência, são movidos e misturados segundo dois princípios universais: Amor (philia, em grego) - respon- sável pela força de atração e união e pelo movimento de crescente harmonização das coisas; Ódio (neikos, em grego) - respon- sável pela força de repulsão e de- sagregação e pelo movimento de decadência, dissolução e separa- ção das coisas. (COTRIM, 2010, p. 77) Empédocles compreendia que a realidade composta de todas as coisas existentes, está submetida às forças cíclicas desses princípios. Amor e Ódio motores invisíveis, mas, per- feitamente sentido por todos até hoje. Para conhecera origem Outro expoente desse período foi Demócrito (460 - 370 a. C.), responsável pelo atomismo. Ele acreditava que a realidade era constituída de partículas invisíveis e indivisíveis, denomina- das “átomo” (não divisível: a = negação; tomo = divisível). Curiosidade! “As doutrinas dos Milésios constituem um primeiro e rudimentar exemplo de monismo, termo atribuído a todas as filosofias que imaginam que a realidade multiforme deriva de um único princípio. Em metafísica, o monismo contrapõe-se ao dualismo - defendido de maneira dife- rente por Platão e por Descartes - e ao pluralismo de Aristóteles”. (NICOLA, 2010, p. 15) Pe rs pe ct iv as s ob re fi lo so fia , co nh ec im en to , c iê nc ia e r el aç õe s qu e t ec em a v id a 25 Imagine que eles chegaram a essas conclusões sem fazer uso de nenhum instrumento tecnológico de última geração, como poderosos microscópios, reatores etc. Apenas com o uso e desenvolvimento do pensamento racional, foram capazes de contribuir significativamente para o aprimora- mento das percepções do homem frente à realidade consti- tuinte, a tal ponto que ainda hoje, com mais de dois mil anos passados, estudamos e atualizamos seus pensamentos. A concepção de ciência no período da Grécia Antiga referia-se a uma forma de especulação racional, e se afas- tava da técnica e das preocupações práticas. A ciência grega antiga almejava o desenvolvimento do conhecimento racio- nal de ideias imutáveis, objetivas e universais. Por outro lado, dando um pequeno salto no tempo e no espaço na história do desenvolvimento do pensamento humano, chegamos ao período medieval. Neste momento, cabe dar destaque, sobretudo à supressão da razão em favore- cimento à fé, os elementos originários do pensamento filosó- fico são postos de lado para dar lugar a Fé (verdade) revelada por Deus aos homens e intermediada pela Igreja Católica. Isso significava que toda investiga- ção filosófica ou científica não pode- ria, de modo algum, contra riar as verdades estabelecidas pela fé católi- ca. Em outras palavras, os filósofos não precisavam mais se dedicar à busca da verdade, pois ela já teria Para pensar um pouco Querido e querida estudante! Em sua opinião, como o pensamento de Empédocles e Demócrito podem ser atualizados para os nossos dias? Fi lo so fia 26 sido revelada por Deus aos homens. Restava-lhes, apenas, demonst racionalmente as verdades da fé. (COTRIM, 2006, p. 108) No decurso do período medieval, destacam-se quatro momentos: • Primeiro momento: Padres apostólicos, (século I a II) fazem parte desse período padres e apóstolos. • Segundo momento: Padres Apologistas, (século III a IV) destacavam-se por fervorosas apologias ao cristianismo e atitudes veementes contra a filosofia pagã, seus principais representantes foram Justino, Origenes e Tertuliano. • Terceiro Momento: Padres da Patrística, (século IV a VIII) tentativa de reaproximação com o pensamento racional na figura de Platão, seu principal represen- tante foi Santo Agostinho. • Quarto Momento: Padres da Escolástica: (século IX a XI) reaproximação com os escritos do filósofo grego Aristóteles, destaca-se nesse momento, Santo Tomás de Aquino. Fonte: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Lusitano_st-agostinho-1.jpg http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Anonymous_Cusco_School_-_Saint_Tho- mas_Aquinas,_Protector_of_the_University_of_Cusco_-_Google_Art_Project.jpg Pe rs pe ct iv as s ob re fi lo so fia , co nh ec im en to , c iê nc ia e r el aç õe s qu e t ec em a v id a 27 A imagem nos evidencia: à esquerda, Santo Agostinho e à direita, Santo Tomás de Aquino, os dois principais expo- entes do período medieval. Eles que buscaram na filoso- fia de Platão e Aristóteles, respectivamente, os argumentos necessários para a fundamentação de sua Fé. A Filosofia a serviço da Fé cristã, nesse momento da história da huma- nidade, pouco se pôde desenvolver no continente europeu. Tanto nos aspectos filosóficos, quanto científicos e tecnoló- gicos, visto o caráter dominante do Teocentrismo. Com a Renascença, surgem novas concepções de vida e realidade, muda-se o foco do olhar. Antes, sobre Deus (Idade Média) a vida terrena é uma preparação para vida sobrenatural. Agora, sobre o novo ser humano (Idade Moderna) autonomia do mundo da cultura em relação a todo fim transcendente. Nos séculos XV e XVI a ciência faz progressos não só nos estudos da natureza, mas também no do homem e no das suas produções, especialmente na Filologia. Graças aos avanços desta disciplina na Re- nascença, os autores antigos. Espe- cialmente os filósofos, não são mais estudados, como na Idade Média, para serem colocados a serviço da teologia, mas por si mesmos, com a finalidade de se conhecer seu ver- dadeiro pensamento. (MONDIN, 2003, p. 11) Enfim conseguimos alcançar a Idade Moderna e nova- mente nos deparamos com mais uma realidade paradoxal. Não mais, Fé versus Razão, mas sim, Filosofia e Ciência, Fi lo so fia 28 instâncias essenciais ao sujeito que é autor e ator de sua pró- pria condição humana. Embora existam fervorosas discussões sobre a consi- deração de cientificidade da filosofia, torna-se evidente e ao mesmo tempo contraproducente aceitar tal perspectiva, haja vista que uma das fundamentais necessidades de ser ciên- cia é a especificação não só metodológica, mas, sobretudo de objeto. A Filosofia enquanto pensamento sistemático está presente em todas as ciências, visto o escopo investigativo no desvelamento da realidade. Assim, presente em todas as ciên- cias, mas, não sendo uma ciência, a filosofia busca a universa- lidade, enquanto a ciência busca as particularidades próprias de seus objetos. Filosofia e Ciência não são adversárias. Ambas se relacionam e se complementam, de tal forma se constituiu a Filosofia da Ciência, uma perspectiva de problematização dos postulados e paradigmas científicos, essa atividade tam- bém é conhecida como epistemologia, crítica metodológica da ciência. A epistemologia propõe-se a re- sponder às seguintes questões: ‘O que é o conhecimento cientí- fico? Em outras palavras, em que consiste propriamente o trabalho do cientista? Que faz ele quando faz ciência? Interpreta, descreve, explica, prevê? Faz ele apenas conjecturas ou verdadeiras as- serções (gerais e singulares) que espelham fielmente os aspectos (gerais e singulares) dos fatos? E quando o cientista explica o que é que ele explica dos ‘fatos’: sua função, origem, gênese, essência, Pe rs pe ct iv as s ob re fi lo so fia , co nh ec im en to , c iê nc ia e r el aç õe s qu e t ec em a v id a 29 fim? Qual o status lógico das leis na ciência? São elas resultados de procedimentos indutivos (e o que quer dizer indução para a ciên- cia?), ou antes, conjecturas da imaginação científica que deverão sujeitar-se a uma terrível luta (provas empíricas) pela existên- cia? Ademais, em que sentido se fala em causalidade (e de causas) nas ciências empíricas? Quando, então, podemos dizer que uma teoria é melhor do que outra? Que queremos dizer quando afir- mamos que as ciências empíricas são objetivas? Qual é o papel da experiência na pesquisa cientí- fica? Essas interrogações britam da pergunta inicial sobre o que seja o conhecimento científico. (MONDIN, 2003, p. 29) Outros autores participam da mesma ideia de complemen- taridade entre Filosofia e Ciência, a exemplo disso podemoscitar Fritjof Capra, PhD. em Física e especialista em teoria sistêmica. O objetivo da ciência é, creio eu, adquirir conhecimento sobre a realidade sobre o mundo. A ciên- cia é uma maneira particular de adquirir conhecimento, parecida com muitas outras maneiras. E um aspecto do novo pensamento na ciência é que esta não é a única maneira, e não é necessariamente Fi lo so fia 30 a melhor, mas apenas uma dentre muitas maneiras. O termo ciência, para mim, con- hecimento sistemático do universo físico, é recente, como sabem. No passado, era chamada de filosofia natural. Portanto, a ciência e filoso- fia não estavam separadas. De fato, a primeira formulação matemática, por Newton, de ciência no mod- erno sentido da palavras é ainda chamada de Princípios Matemáti- cos da Filosofia Natural. (CAPRA, 1991, p. 25) As reflexões desenvolvidas a partir das contribuições de Capra e Mondin nos levam a indagar sobre os caminhos e descaminhos que por muitas vezes tomamos ao longo de nos- sas existências. Por diversos momentos somos conduzidos no nosso modo de ser e agir, e nem sequer nos damos conta, falta- -nos a perspectiva epistemológica do pensar sobre si, e, sobre- tudo a nossa condição humana, nos submetemos da mesma maneira que o indivíduo do período medieval, na expectativa e promessa de uma vida de glórias no paraíso e batemos no peito ingenuamente, proclamando somos livres, sou livre. É preciso considerar e desenvolver um olhar sistêmico e holístico sobre a realidade, não é cabível a separatividade, mas sim, a interconexidade das realidades, as dificuldades não precisam ser compartimentalizadas para serem supe- radas, visto que todas essas situações interagem sobre si e sobre a realidade constituinte como uma enorme teia de ara- nha, o que é feito a um fio, é sentido por toda a teia. Nessa Pe rs pe ct iv as s ob re fi lo so fia , co nh ec im en to , c iê nc ia e r el aç õe s qu e t ec em a v id a 31 perspectiva, as relações estão sendo tecidas e a qualidade dos fios depende também de cada um que tece. Chegamos a importantes reflexões as quais, sem dúvida alguma, provocam grandes inquietações, pois, con- sistem na desconstrução de ‘verdades’ adquiridas ao longo de uma vida de estudos, de leituras, de aulas etc. O que fazer agora? Abandonar tudo isso? Ou fechar os olhos para o novo? Não, essas não serão as melhores soluções, o ideal é que con- sigamos somar saberes, os mais variados e diversificados possíveis, para que possamos entender o devir dialógico e dialético na construção do ser integral. Abaixo está disposto um quadro demonstrativo sobre as principais perspectivas das concepções da Física dos sécu- los XVII até a contemporaneidade. Para conhecer um pouco mais Falamos de novas perspectivas sistêmicas e holísticas, sabemos verdadeiramente o que tudo isso significa? Segundo Edgar Morin (2007), sistema consiste em uma relação entre partes que podem ser muito diferentes uma das outras e que constituem um todo que é, simultane- amente, organizado, organizando e organizador. Sobre isso, tem-se o ditado antigo: o todo é mais do que a soma de suas partes, porque a adição das qualidades ou pro- priedades das partes não chega para conhecer as do todo, surgem qualidades ou propriedades novas, devido à orga- nização dessas partes em um todo, são as emergências. A realidade é a manifestação desse todo holístico e sistê- mico, é preciso desenvolver as habilidades e competências necessárias à tomada de consciência do ser integral. Fi lo so fia 32 Física dos séculos XVII, XVIII e XIX Física Contemporânea Grande avanço da física com René Descartes, autor de O Discurso do Método (“Penso, logo existo”). Física quântica, conjunto de teorias que incluem a física ondulatória, a qual não se obedece às leis previsíveis da física clássica. Visão mecanicista do mundo, que concebe a natu- reza como uma máquina, que obedece a relações de causa previsíveis. Os objetos passam a ser encarados também sob o aspecto fluido e em eterna mudança. Física Newtoniana é cha- mada de física clássica, cujo aspecto mais desenvolvido é a mecânica. Visão influenciada pela filo- sofia oriental (o cosmo é visto como um elemento vivo, orgâ- nico, espiritual e material). Os experimentos eram leva- dos a cabo para testar ideias especulativas e verificáveis. As forças geradoras de movimento não são exterio- res aos objetos, mas proprie- dade intrínseca da matéria. Fonte: ANDREETA. J. P. ; ANDREETA. M. L, Quem se atreve a ter certeza. Mer- curyo. São Paulo. 2004. Adaptado pelos autores (Naurelice Maia e Ueliton Lemos). O quadro evidencia as constantes mudanças que a ciên- cia da Física sofreu e ainda sofre pelo seu processo de desen- volvimento. Atualmente, duas são as mais relevantes teorias: a chamada Física Quântica e a Teoria da Relatividade Geral. O intuito dessas duas teorias reside na tentativa de compreensão sobre o comportamento da realidade, haja vista que ela não se apresenta de forma tão estática e previ- sível como se imaginava. Compreender a realidade pressu- põe que a relação unilateral sujeito - objeto deixe de existir, é preciso conceber uma nova perspectiva investigativa na qual sujeito - objeto relacionam-se mutuamente, relação dialógica e dialética, sistêmica e holística. Nesta perspectiva, filosofia e Pe rs pe ct iv as s ob re fi lo so fia , co nh ec im en to , c iê nc ia e r el aç õe s qu e t ec em a v id a 33 ciência tornam-se um importante caminho no desvelamento do saber sobre de si e o conhecimento da realidade. Estamos chegando ao final de nossa unidade com novas ideias, novos olhares frente à realidade, consciente da inexistência da verdade absoluta seja ela a verdade científica ou mesmo verdade filosófica. Mas sim, verdades provisórias que se transformam e se adaptam no devir tempo-espacial. Nesse sentido, aceitar as mudanças significa não estagnar, é estar sempre disposto à perplexidade, o thauma grego. A evolução do conhecimento científico não é unicamente de crescimento e de extensão do sa- ber, mas também de transformações, de rupturas, de passagem de uma teoria para outra. As teorias cientí- ficas são mortais e são mortais por serem científicas. A visão de Popper registra com relação à evolução da ciência vem a ser a de uma seleção natural em que as teorias resistem durante algum tempo não por serem verdadeiras, mas por serem as mais adaptadas ao estado contemporâneo dos conhecimentos. Kuhn traz outra ideia, não me- nos importante: é que se pro- duzem transformações revolu- Para pensar um pouco Como você percebe as mudanças da realidade, estamos verdadeiramente conscientes dessas transformações, ou simplesmente ignoramos por não saber/querer participar? Fi lo so fia 34 cionárias na evolução científica, em que um paradigma, princípio maior que controla as visões do mundo, desaba para dar lugar a um novo paradigma. Julgava-se que o princípio da organização das teorias científicas era pura e simplesmente lógico. Deve ver- se, com Kuhn, que existem, no interior e acima das teorias, in- conscientes e invisíveis, alguns princípios fundamentais que controlam e comandam, de forma oculta, a organização do conheci- mento científico e a própria uti- lização da lógica. A partir daí, podemos com- preender que a ciência seja “ver- dadeira” nos seus dados (verifica- dos, verificáveis), sem que por isso suas teorias sejam “verdadeiras”. Então, o que faz que uma teo- riaseja científica, se não for sua “verdade”? Popper trouxe a ideia capital que permite distinguir a teoria científica da doutrina (não científica): uma teoria é científica quando aceita que sua falsidade possa ser eventualmente demon- strada. Uma doutrina, um dogma encontram neles mesmo a au- toverificação incessante (referên- cia ao pensamento sacralizado dos fundadores, certeza de que a tese está definitivamente provada). O Pe rs pe ct iv as s ob re fi lo so fia , co nh ec im en to , c iê nc ia e r el aç õe s qu e t ec em a v id a 35 dogma é inatacável pela experiên- cia. A teoria científica é biode- gradável. [...] A partir daí, o conhecimento progride, no plano empírico, por acrescentamento das “verdades” e, no plano teórico, por elimina- ção dos erros. O jogo da ciência não é o da posse e do alargamento da verdade, mas aquele em que o combate pela verdade se con- funde com a luta contra o erro. (MORIN, 2001, p. 22-23) O conhecimento científico e ou filosófico contribuem sistematicamente para uma revolução na forma de ser e agir do indivíduo, é preciso que tenhamos a sensibilidade de renun- ciar os pseudos saberes, saberes que temos como verdadeiros e imutáveis, pois de outra forma continuaremos a reproduzir comportamentos e atitudes determinadas por forças exteriores. Fazendo uma alusão a Karl Jaspers, que afirma, em dado contexto, a filosofia na qualidade de perturbadora da paz, propomos aqui também a filosofia como perturbadora da ciência. Ela tem como escopo o fomento das inquietações na busca contínua de posturas mais assertivas e coerentes à dignidade do ser pessoa. Portanto, urge que façamos o exer- cício de reflexão individual, utilizando das perspectivas da filosofia e da ciência, para a conquista da vida autêntica. Fi lo so fia 36 Sín t eSe Durante a realização dessa unidade, tivemos a opor- tunidade de tomar conhecimento sobre os caminhos da Fi- losofia e da Ciência desde o período antigo (grego), passando pela Idade Média, período de grande entrave ao desenvolvi- mento racional, visto o predomínio das forças religiosas cris- tãs. Em seguida, com a Renascença, muda-se a perspectiva, volta-se novamente o olhar para o ser humano e sua produção cultu ral, filosófica e científica, surge o modernismo com as contribuições da Física até alcançarmos a contemporaneidade com a postura da reflexividade, a qual é exigida ao sujeito, ator e autor de sua existência condutas inquisidoras frente aos desafios que são postos pela própria condição de existir. qu eStão pa r a r eflex ão 1) Considere a citação abaixo e desenvolva um argumento evidenciando seu posicionamento a respeito da mensagem proposta pela citação. “Todo conhecimento comporta o risco do erro e da ilusão. A educação do futuro deve enfrentar o problema de dupla face do erro e da ilusão, O maior erro seria subestimar o problema do erro; a maior ilusão seria subestimar o problema da ilusão. O reconhecimento do erro e da ilusão é ainda mais difícil, porque o erro e a ilusão não se reconhecem, em absoluto, como tais. Erro e ilusão parasitam a mente humana desde o aparecimento do Homo sapiens. Quando consideramos o passado, inclusive o recente, sentimos que foi dominado por inúmeros erros e ilusões. Marx e Engels enunciaram justamente em A ideologia alemã que os homens sempre elaboraram falsas concepções de si próprios, do que fazem, do que devem fazer, do mundo onde vivem. Mas nem Marx nem Engels escaparam destes erros.” Pe rs pe ct iv as s ob re fi lo so fia , co nh ec im en to , c iê nc ia e r el aç õe s qu e t ec em a v id a 37 (MORIN, E. Os sete saberes necessários à educação do fu- turo. São Paulo, SP: Cortez; Brasília, DF: UNESCO, 2000) 2) Após os estudos realizados nessa unidade, como você compreende as perspectivas filosóficas e científicas? E de que forma elas influenciam nossa conduta social? lei t u r aS i n dica daS ALVES, R. Filosofia da Ciência. São Paulo: Edições Loyola, 2000. ______. O que é científico? São Paulo: Edições Loyola, 2007. ALVES, R. Entre a ciência e a sapiência. São Paulo: Edições Loyola, 2010. CAPRA, F. O Ponto de Mutação. São Paulo: Cultrix, 1982. HEISENBERG, W. A parte e o todo. Rio de Janeiro: Contra- ponto, 2000. PRIGOGINE, I. O Fim das Certezas. São Paulo: Editora Unesp, 1996. MORIN, E. ; MOIGNE, J-L. L. Inteligência da Complexidade Epistemológica e Pragmática. Lisboa: Instituto Piaget, 2007. Si t eS i n dica doS www.edgarmorin.org.br/ www.rubemalves.com.br/ http://www.brasilescola.com/ http://ghiraldelli.wordpress.com/2007/11/21/ciencia-e-filosofia/ Fi lo so fia 38 r ef er ênci aS ANDREETA, J. P.; ANDREETA, M. L. Quem se atreve a ter certeza? São Paulo: Mercuryo, 2008. BORGES, D. A.; SOUZA, M. A. “Não se ensina filosofia, mas a filosofar”. Disponível em: <http://meuartigo.brasilescola. com/filosofia/nao-se-ensina-filosofia-mas-filosofar.htm>. Acesso em: 13 out. 2012. CAPRA, F. Pertencendo ao Universo. São Paulo: Cultrix, 1991. COTRIM, G. Fundamentos da Filosofia. São Paulo: Saraiva, 2006. LUCKESI, C. C.; PASSOS, E. S. Introdução à Filosofia: apren- dendo a pensar. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2004. MONDIN, B. Curso de Filosofia. 12. ed. São Paulo: Paulus, 2003, v. 1. ______. Curso de Filosofia. 9. ed. São Paulo: Paulus, 2003, v. 2. MONDIN, B. Introdução à Filosofia. São Paulo: Paulus, 2003, v. 14. ed. MORIN, E. Ciência com Consciência. Rio de Janeiro: Ber- trand Brasil, 2001. REZENDE, A. (org.). Curso de Filosofia. 10. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. Pe rs pe ct iv as s ob re fi lo so fia , co nh ec im en to , c iê nc ia e r el aç õe s qu e t ec em a v id a 39 ( 2 ) Passeando sobre a origem e organização do universo: olhares cosmogônicos e cosmológicos “Dizem que o que todos procura- mos é um sentido para a vida. Não penso que seja assim. Penso que o que estamos procurando é uma experiência de estar vivos, de modo que nossas experiências de vida, no plano puramente físi- co, tenham ressonância no inte- rior de nosso ser e de nossa reali- dade mais íntimos, de modo que realmente sintamos o enlevo de estar vivos. É disso que se trata, afinal, e é o que essas pistas nos ajudam a procurar, dentro de nós mesmos”. (CAMPBELL, 1991, p.17) Naurelice Maia de Melo e Ueliton Lemos dos Santos Na unidade anterior você acompanhou saberes e reflexões tanto sobre a Filosofia quanto a respeito da Ciência. Nessa perspectiva, algumas inquietações podem ser apresentadas. Por exemplo: o que havia antes da iniciativa racional de compreensão da realidade e dos fenômenos físi- cos, naturais? Quais circunstâncias favoreceram a conquista da racionalidade? Ou, os modos de relação com a realidade sempre estiveram fundamentados na razão? Conquistar os caminhos para as respostas às inquie- tações mencionadas corresponde a disponibilidade para um passeio que nos leve à Antiguidade. Convidamos você para esse passeio. Na bagagem, vamos precisar da dedica- ção aos modos diferenciados de entendimento da realidade, diferenciados das formas que hoje encontramos até mesmo cristalizadas, por assim dizer. Por exemplo: durante a forma- ção básica, crianças estudam o ciclo hidrológico e, portanto, 44 Fi lo so fia compreendem porque chove, podem lançar o olhar sobre a chuva vendo-a na qualidade de fenômeno climático, meteo- rológico, natural. Durantenosso passeio, entretanto, vamos visitar a época na qual essas informações não eram assim tão claras. Ao contrário, a chuva poderia ser percebida não na qualidade de fenômeno natural, mas de expressão das vonta- des, por exemplo, vindas do Olimpo. As narrativas míticas apresentavam, dentre suas carac- terísticas, a presença de seres fantasiosos, eventos guiados por deuses, manifestações de poderes além daqueles natu- rais. O que move a iniciativa mítica ou o que a impulsiona é a vontade que os seres humanos têm de compreender a rea- lidade da qual participam. A chuva que mencionamos. Por exemplo, hoje conhecemos o ciclo hidrológico, mas neste nosso passeio, estamos visitando condições do Século XII a. C. e essas explicações ainda não existiam. De todo modo, havia o desejo pela compreensão do entorno, do dia, da noite; da vida, da morte; era preciso ter acesso a informações que narrassem a origem de tudo o que havia. Um mito é uma narrativa sobre a origem de alguma coisa (origem dos astros, da Terra, dos homens, das plantas, dos animais, do fogo, da água, dos ventos, do bem e do mal, da saúde e da doença, da morte, dos instrumentos de trabal- ho, das raças, das guerras, do poder etc.). [...] Para os gregos, mito é um discurso pronunciado ou proferido para ouvintes que recebem como verdadeira a narrativa, porque confiam naquele que narra; é uma narrativa feita em público, baseada, Pa ss ea nd o so br e a o rig em e or ga ni za çã o do u ni ve rs o: o lh ar es co sm og ôn ic os e co sm ol óg ic os 45 portanto, na autoridade e confi- abilidade da pessoa do narrador. E essa autoridade vem do fato de que ele ou testemunhou diretamente o que está narrando ou recebeu a narrativa de quem testemunhou os acontecimentos narrados. Quem narra o mito? O poeta-rapsodo. Quem é ele? Por que tem auto- ridade? Acredita-se que o poeta é um escolhido dos deuses, que lhe mostram os acontecimentos passa- dos e permitem que ele veja a ori- gem de todos os seres e de todas as coisas para que possa transmiti-la aos ouvintes. Sua palavra - o mito - é sagrada, porque vem de uma revelação divina. O mito é, pois, incontestável e inquestionável. (CHAUÍ, 2003, p. 34-35) Neste nosso passeio, fica claro que o ser humano sem- pre sentiu a necessidade de conhecer, de buscar a compreen- são da sua realidade, de entender os fenômenos. O convite neste momento é para pensarmos a respeito dos “riscos” desse sentimento de necessidade ou desejo de conhecer. Em estruturas sociais e políticas das mais variadas, a autonomia do pensar e o desejo pelo conhecimento se constituem como riscos, pois podem ameaçar a “ordem” estabelecida, podem afrontar situações de desigualdades, explorações etc. Por outro lado, condições que contêm ou narrem a respeito de como se dá a realidade, podem promover a aceitação geral dos “ouvintes” e, aceitando a narrativa, o desejo de conhecer é saciado (ilusoriamente saciado). 46 Fi lo so fia Os mitos, conforme Aranha e Martins (2000), apresenta- vam as funções de acomodar, justificar e tranquilizar as pessoas frente à realidade, assim como tinham a função de fixar mode- los exemplares para os comportamentos. Reveja a citação de Chauí apresentada, desta vez, com atenção aos termos finais da citação: “O mito é, pois, incontestável e inquestionável”. Outra característica da narrativa mítica: ela é dogmática. O mito, se questionado, perde seu motivo de ser, perde sua força. Sendo questionado, evidencia que não promoveu a acomodação, nem a tranquilidade, menos ainda pode justifi- car ou estabelecer modelos de conduta (as relações de obedi- ência estão presentes em diversas narrativas míticas, assim como as consequentes punições da desobediência aos deu- ses). Como é possível notar em narrativas míticas como nos mitos de Pandora, Prometeu, Édipo, dentre outros. Seguindo por nosso passeio, foi a partir do movimento, por assim dizer, questionador frente às narrativas míticas que tivemos as iniciativas pautadas na razão e que, junto a outros elementos, realizamos o processo de transição da cosmogo- nia à cosmologia. Vamos continuar nosso passeio, agora com atenção à cosmogonia; logo mais, durante nossa caminhada nesta Unidade 02 iremos dialogar a respeito da cosmologia. Você já sabe que os mitos correspondem às narra- tivas sobre a origem de algo. Portanto, é uma genealogia. Utilizando as palavras de Chauí (2003, p. 35), “a narração da origem é [...] uma genealogia, isto é, narrativa da geração dos seres, das coisas, das qualidades, por outros seres, que são seus pais ou antepassados”. A esse respeito, a autora exem- plifica com a narrativa mítica da origem do amor, ou o nas- cimento de Eros (orientamos pesquisa sobre Eros no nosso quadro “Ampliando o Conhecimento”). Além de correspon- der a uma genealogia, os mitos são também teogonia e cos- mogonia, conforme segue: Pa ss ea nd o so br e a o rig em e or ga ni za çã o do u ni ve rs o: o lh ar es co sm og ôn ic os e co sm ol óg ic os 47 A palavra gonia vem de duas palavras gregas: do verbo gennao (engendrar, gerar, fazer nascer e crescer) e do substan- tivo genos (nascimento, gênese, descendência, gênero, espé- cie). Gonia, portanto, quer dizer: geração, nascimento a partir da concepção sexual e do parto. Cosmos, como já vimos, quer dizer mundo ordenado e organizado. Assim, a cosmogonia é a narrativa sobre o nascimento e a organização do mundo, a partir de forças geradoras (pai e mãe) divinas. Teogonia é uma palavra composta de gonia e theós, que, em grego, signi- fica: as coisas divinas, os seres divinos, os deuses. A teogonia é, portanto, a narrativa da origem dos deuses, a partir de seus pais e antepassados. (CHAUÍ, 2003, p. 36). Retomando nosso passeio para a contemporaneidade. Como a expressão mito é hoje aplicada? Além de significar os modos de representação da realidade com as características e funções que já elucidamos, constam outros usos do termo mito. Conforme Buzzi (2007, p. 85) “a palavra mito é usada habitualmente para significar alguma crença dotada de vali- dade mínima e de pouca verossimilhança. Por exemplo: ‘a Atlântida não passa de um mito’”. Importa considerar que esse é um uso habitual do termo e não corresponde aos sig- nificados que encontram fundamentos nos estudos sobre o pensamento primitivo (primitivo aqui pelo olhar antropoló- gico, portanto, não significa inferior). De todo modo, correspondendo ou não aos sentidos e significados originários do mito, é fato que atualmente a expressão é utilizada para designar coisas que não são reais, diante das quais, alguém pode dizer “- É mito!”. Outro uso da expressão mito na atualidade está associado tanto a pes- soas quanto a personagens que marcaram seu tempo e fica- ram ou tendem a ficar, por assim dizer, eternizados por atos heroicos, no sentido do poder simbólico e não concreto, esta- belecendo relações com o imaginário coletivo. São possíveis 48 Fi lo so fia também outras formas de poder, ainda no campo simbólico, que reforçam condições severas, destrutivas capazes de dire- cionar para os caminhos da desumanização. Portanto, importa que cada um de nós experimente o exercício da razão e da criticidade, assim como da sensibili- dade e percepções afetivas frente ao tecido social e ao nosso modo próprio de tecer quem somos. Estávamos, neste nosso passeio, no período da Antiguidade quando nosso “relógio” não se conteve em ficar apenas “lá”e tecemos as associações com o contemporâneo. Agora, vamos retornar aos caminhos míticos e seu contexto para que possamos descobrir como ocorreu a transição deste modo (mítico) de representação da realidade para os modos racionais de compreendê-la. Embora para alguns autores o advento da razão ganhe o título de “milagre grego”, não compartilhamos desse modo de pensar, dentre outros motivos, devido ao processo histórico que fez culminar no afastamento de perspectivas cosmogôni- cas (que narram a origem/organização do mundo conforme as formas que engendraram-no) e aproximação de perspectivas cosmológicas, correspondentes à busca sobre origens e funda- mentos conforme o empenho do logos, da razão. Os elementos principais, e suas circunstâncias, que favoreceram a passagem da perspectiva mítica para a racional foram: a moeda, a escrita alfabética, a lei escrita, o calendário, o advento da polis (cidade-estado grega), o cidadão da polis e a própria política, as viagens marítimas e a vida urbana. Os modos de entendimento da realidade foram pas- sando por modificações, assim como as formas de perceber a si mesmo e ao entorno; pois, novas condições e circunstâncias começaram a participar do ambiente grego. Com as viagens marítimas, foi possível visitar luga- res nos quais as narrativas míticas indicavam como morada Pa ss ea nd o so br e a o rig em e or ga ni za çã o do u ni ve rs o: o lh ar es co sm og ôn ic os e co sm ol óg ic os 49 dos heróis, deuses, seres fantásticos repletos de poderes, titãs. Esses lugares eram habitados por outras pessoas, tão humanas quanto qualquer mortal. Portanto, conforme Chauí (2003, p. 37), “As viagens produziram o desencantamento ou a desmistificação do mundo, que passou, assim, a exigir uma explicação sobre sua origem, explicação que o mito já não podia oferecer”. A moeda, assim como a invenção da escrita alfabé- tica e do calendário, correspondeu ao poder de abstração. No caso da moeda, era preciso compreender o valor em seu teor mais abstrato, era preciso calcular o valor correspondente às mercadorias. Emitida e garantida pela polis, a moeda faz reverter seus benefí- cios para a própria comunidade. Além desse efeito político de democratização de um valor, a moeda sobrepõe aos símbolos sa- grados e afetivos o caráter racio- nal de sua concepção: muito mais do que um metal precioso que se troca por qualquer mercadoria, a moeda é o artifício racional, con- venção humana, noção abstrata de valor que estabelece a medida comum entre valores diferentes. (ARANHA, MARTINS, 2003, p.81-82) No caso da escrita alfabética, favoreceu tanto a gene- ralização quanto à abstração, pois era preciso representar a ideia correspondente ao significado de cada coisa. A respeito do calendário, favoreceu a passagem da perspectiva mítica 50 Fi lo so fia para a racional devido à necessária capacidade de abstra- ção para calcular o tempo de acordo com elementos naturais (estações, horas, dias), conforme elucida Chauí (2003, p. 37) “revelando, [...] uma capacidade de abstração nova, ou uma percepção do tempo como algo natural e não como um poder divino incompreensível”. A vida urbana também exerceu forte influência sobre o “advento” do pensamento racional, conforme segue: [A respeito da vida urbana] Com predomínio do comércio e do arte- sanato, dando desenvolvimento a técnicas de fabricação e de troca, e diminuindo o prestígio das famí- lias da aristocracia proprietária de terras, por quem e para quem os mitos foram criados; além disso, o surgimento de uma classe de comerciantes ricos, que precisava encontrar pontos de poder e de prestígio para suplantar o velho poderio da aristocracia de terras e de sangue (as linhagens consti- tuídas pelas famílias), fez com que se procurasse o prestígio pelo patrocínio e estímulo às artes, às técnicas e aos conhecimentos, fa- vorecendo um ambiente onde a Filosofia poderia surgir. (CHAUÍ, 2003, p. 37) A lei escrita também figura dentre os elementos do processo histórico de passagem do mito à perspectiva racio- nal, pois com a lei escrita as noções em torno da justiça reque- rem diálogos, a justiça não é mais associada aos desígnios dos Pa ss ea nd o so br e a o rig em e or ga ni za çã o do u ni ve rs o: o lh ar es co sm og ôn ic os e co sm ol óg ic os 51 deuses, mas está posta aos debates, às discussões, portanto, é uma justiça que compreende a dimensão propriamente humana (não mais divina). O mesmo ocorre com o advento da polis, cidade-estado grega, o advento do cidadão e da pró- pria política, pois havia o espaço destinado aos debates sobre temas comuns, como ocorria na ágora (praça pública). Sendo necessário decidir sobre os rumos da cidade, da justiça, da cidadania, da política e da lei, não mais caberia a justifica- tiva pautada na cosmogonia, nem com fundamentos na teo- gonia para as ações; era preciso investigar para compreender, conquistando, assim, gradativamente, o espaço para a busca racional sobre o princípio de todas as coisas. Vamos juntos neste passeio, dedicando agora atenção à cosmologia. O termo cosmologia é decorrente da soma de duas outras palavras: cosmo (universo) + logia (corresponde a logos, razão), que significa, doutrina ou narrativa a res- peito da origem, da natureza e dos princípios que ordenam o mundo ou o universo, em todos os seus aspectos. A cosmo- logia, portando, difere da cosmogonia, embora as duas este- jam relacionadas às narrativas frente à origem e organização do universo. O conceito de cosmologia nos direciona ao entendi- mento de que os primeiros filósofos gregos ansiavam res- postas sobre a origem ou causa primeira da formação do universo, da vida e sua finalidade. Nesse momento, a Grécia, representada pelas suas cidades-estados, ou Polis, vivia um intenso movimento sociocultural e econômico, essas revolu- ções interferiram substancialmente na forma de ser e agir dos gregos, sobretudo, na concepção de realidade. O filósofo Batista Mondin, em sua obra Curso de Filosofia Vol. 1 (2003), nos traz uma significativa ideia sobre a importância de Tales ao desenvolvimento do pensamento filosófico ocidental. 52 Fi lo so fia A filosofia nasceu não na Grécia propriamente dita, mas nas colô- nias do Oriente e do Ocidente, a saber, na Jônia e na Magna Gré- cia. Cerca de 624 a. C. em Mile- to, nasceu Tales, o pai da filosofia grega e de toda a filosofia ocidental. Matemático e astrônomo, atri- bui-se a ele muitas descobertas. Foi considerado um dos sete sá- bios da Antiguidade. Diógenes Laércio narra que ele morreu ao cair em uma cisterna enquanto observava os astros, aproximada- mente 526 a. C. Pelo que se sabe, Tales foi o pri- meiro pensador que se pôs ex- pressa e sistematicamente a per- gunta: “Qual é a causa última, o princípio supremo de todas as coisas?” A pergunta se justifica- va pelo fato de que, apesar da apa- rente diversidade, há em todas as coisas algo de comum: em todas as coisas observáveis encontra-se água, terra, ar e fogo. (MONDIN, 2003, p. 17) Tales representa o início de uma era de novos olhares sobre a realidade, a busca da origem do universo não mais está relacio- nada aos seres divinos, ou olímpicos, muito ao contrário, o uso da razão impôs aos filósofos uma nova perspectiva material, a subs- tância primordial que para os gregos era chamada de “arché”. Pa ss ea nd o so br e a o rig em e or ga ni zaçã o do u ni ve rs o: o lh ar es co sm og ôn ic os e co sm ol óg ic os 53 A seguir, quadro demonstrativo e painel ilustrativo dos principais pré-socráticos e suas mais relevantes contribuições. Quadro 1: Demonstrativo dos filósofos pré-socráticos NOME ANO ELEMENTO PRINCIPAL CONTRIBUIÇÃO Tales de Mileto 623-546 a. C. Água Origem da vida é a água Anaximandro de Mileto 610-547 a. C. Ápeiron Ápeiron, o indeterminado, massa geradora de todos os seres Pitágoras de Samos 570- 490 a. C. Números Representam a ordem e a harmonia do universo Heráclito de Éfeso Séc. V a. C. 2* Fogo A vida é um fluxo constante impulsionado por forças contrárias Parmênides de Eléia 510-470 a. C. Ser Princípio lógico de identidade e princípio de não contradição Zenão de Eléia 488-430 a. C. Movimento Reflexões sobre o conceito de: movimento, espaço, infinito e tempo Empédocles de Agrigento 490-430 a. C. Quatro elementos naturais Os elementos são movidos pelos princípios universais opostos, o amor e o ódio Demócrito de Abdera 460-370 a. C. Atomismo Partícula não divisível * Não se sabe exatamente o ano de seu nascimento, atribui-se, portanto o período Séc. V. Fonte: Adaptado de Cotrim (2006) 54 Fi lo so fia Painel ilustrativo dos pré-socráticos: Tales de Mileto Parmênides de Eléia Pitágoras de Samos Demócrito Heráclito de Éfeso Zenão de Eléia Anaximandro Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Wikip%C3%A9dia:P%C3%A1gina_principal Pa ss ea nd o so br e a o rig em e or ga ni za çã o do u ni ve rs o: o lh ar es co sm og ôn ic os e co sm ol óg ic os 55 Na tentativa de encontrar a substância primordial ou princípio substancial, esses pensadores, mediante suas refle- xões, legaram a toda humanidade relevantes contribuições ao desenvolvimento da forma racional de compreensão da reali- dade, que posteriormente fora traduzido tanto pela Filosofia quanto pela Ciência. Aprofundando nossas reflexões. Quais são as implicações dos Jônios em nossa atual con- juntura social? Por que e para quê o estudo desses pensado- res gregos se fazem necessários a minha formação/atuação nas esferas pessoal, acadêmica e profissional? Como poderíamos lançar o olhar sobre a realidade na qual vivemos e que tece- mos, deixando de compreender seus fundamentos originários e a trajetória própria da iniciativa racional de compreensão da realidade e, ainda, do desejo que, na qualidade de humani- dade, sempre tivemos de aprender e buscar saberes, mesmo quando não tínhamos o referencial da razão, conforme você pode acompanhar com os estudos sobre cosmogonia? Essas indagações são perfeitamente naturais e necessá- rias. Portanto, acreditamos que é justamente nesse momento que começamos a pensar, pois, o simples ato de questionar nos possibilita uma infinidade de possibilidades de não mais aceitarmos os “pacotes” prontos e acabados. É preciso que se descubra a finalidade do estudo para se fomentar a necessidade do aprendizado, ou seria o contrá- rio? É preciso reconhecer a necessidade para melhor atender as finalidades? Para esses questionamentos, acreditamos não ter uma resposta pronta e definitiva, apenas dispomos de simples compreensões que em dado momento de nossa condição humana nos é dada a possibilidade de expressar. Heráclito e Parmênides, dois dos principais pré-socráticos, nos auxiliam 56 Fi lo so fia significativamente ao esclarecimento desses dilemas existen- ciais. Vejamos o que eles nos falam! Heráclito considera que a realidade é dinâmica e, por- tanto, um estado de permanente mudança (realidade mobilista) vir-a-ser. Parmênides, ao contrário, defende a permanência das essencialidades, a mudança é uma ilusão, é contingente e não substancial. Com referência a esses posicionamentos, percebe- mos que durante nossa vida, em nossas condições existenciais, precisamos adotar posturas que compreendam essas duas perspectivas, ora a mudança é uma realidade, ora a permanên- cia é a essencialidade e única garantia de autenticidade. O fato é que não se trata mais de adotar uma única e exclusiva pos- tura, pensar-repensar, construir-descontruir, significar-ressig- nificar são mais que pares de palavras, são verdadeiramente modos de ser e existir frente à multiplicidade dos fenômenos existentes na realidade conjuntural. Sín t eSe O estudo das perspectivas cosmogônicas e cos- mológicas nos possibilitou a compreensão de um dos prin- cipais períodos filosóficos da humanidade. Além das consid- erações histórico-sociais inerentes ao aprendizado, constam, nesta unidade, elementos que possuem o escopo no fomento da realização de relevantes reflexões, a fim de atualizar e con- textualizar o legado deixado pelos pensadores originários, exercício de aproximação teórico conceitual a práxis cotidi- ana que torna-se indispensável ao estudante na contempora- neidade. qu eStão pa r a r eflex ão 1. Elabore um comentário explicativo sobre as características e funções das narrativas míticas e estabeleça relações com a Pa ss ea nd o so br e a o rig em e or ga ni za çã o do u ni ve rs o: o lh ar es co sm og ôn ic os e co sm ol óg ic os 57 contemporaneidade. 2. Considere as citações abaixo e desenvolva seu posiciona- mento frente às adversidades sociais contemporâneas. • De fato, ou uma coisa é ou não é. Se é, não pode vir- -a-ser, porque já é. Se não é, não pode vir-a-ser, porque do nada não se tira nada. (MONDIN, 2003, p. 31). • Tudo é vir-a-ser, tudo muda, tudo se transforma. O mundo, o homem, as coisas estão em incessante trans- formação. (MONDIN, 2003, p. 26). lei t u r aS i n dica daS BULFINCH, T. O Livro de Ouro de Mitologia história de Deuses e Hérois. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006. CAMPBELL, J. O Poder do Mito. 2 reimpressão. São Paulo: Palas Athena, 1991. REALE, G.; ANTISERI, D. História da Filosofia. São Paulo: Paulus, 2003, v. 1. Si t eS i n dica doS http://www.filosofia.com.br/ http://www.mundoeducacao.com.br/ r ef er ênci aS ARANHA, M. L. A.; MARTINS, M. H. P. Filosofando: in- trodução à Filosofia. 3. ed. São Paulo: Moderna, 2003. ______. Temas de Filosofia. 2. ed. São Paulo: Moderna, 2000. 58 Fi lo so fia BUZZI, A. R. Introdução ao Pensar: o Ser, o Conhecimento, a Linguagem. 33. ed. Petrópolis: Vozes, 2007. CAMPBELL, J. O Poder do Mito. 2 reimpressão. São Paulo: Palas Athena, 1991. CHAUÍ, M. Convite à Filosofia. 13. ed. São Paulo: Ática, 2003. COTRIN, G. Fundamentos da Filosofia história e grandes temas. São Paulo: Saraiva, 2006. MONDIN, B. Curso de Filosofia. São Paulo: Paulus, 2003, v. 1. Pa ss ea nd o so br e a o rig em e or ga ni za çã o do u ni ve rs o: o lh ar es co sm og ôn ic os e co sm ol óg ic os 59 ( 3 ) Reflexões sobre o conhecimento e olhares sobre o pensamento clássico Naurelice Maia de Melo e Ueliton Lemos dos Santos “Tudo que se vê não é Igual ao que a gente Viu há um segundo Tudo muda o tempo todo No mundo” Trecho de Como uma Onda. Lulu Santos. Disponível em: <http:// letras.mus.br/lulu-santos/47132/>. Acesso em: 21 out.2012. O trecho de música citado permite lembrar os diálogos tecidos na unidade anterior, especialmente quando lançamos o olhar sobre a cosmologia, com atenção a Heráclito. O devir,a mudança constante, a condição perene de que tudo é mutá- vel. “Como uma onda no mar”. Na contemporaneidade, não precisamos viver essa contenta entre o referido pensador e 64 Fi lo so fia Parmênides que, como você já sabe, propôs que tudo é uno, fixo, imutável. Hoje, podemos tecer reflexões sobre as duas condições (do mutável e do imutável) em prol da busca pelo conhecimento. Hoje, falamos em complexidade. Falamos nas integrações necessárias entre os sentimentos, os pensamen- tos e as ações nas diversas instâncias da vida, seja pessoal, acadêmica, profissional etc. Nesta unidade, vamos dialogar, dentre outros saberes, a respeito da trajetória clássica grega do pensamento, ou seja, sobre o que houve depois da transição da perspectiva cosmo- gônica para a cosmológica. Ou, ainda, o que dizer da inicia- tiva que sempre tivemos, na qualidade de humanidade, de conhecer, de desvelar ou perceber os dados da realidade. Seja como uma onda no mar, seja como uma gota no oceano, esta- mos todos em relação com as iniciativas capazes de promo- ver e conquistar conhecimentos. É por este termo e com ele que vamos continuar nossos diálogos. “Há muita vida lá fora, aqui dentro, sempre”. A origem etimológica latina do termo conhecimento, cognoscere, aponta para as possibilidades de saber. No âmbito da filosofia são várias as formas de compreensão a respeito do que é conhecimento e de como é possível conquistá-lo, de acordo com os pressupostos teóricos e/ou metodológicos de cada expressão da teoria do conhecimento, conforme você estudou durante nossa Unidade 01. A respeito do conhecimento, elegemos, para sociali- zar com você, a aproximação conceitual feita por Luckesi e Passos (2000), correlacionando-o à elucidação da realidade. Escolhemos este olhar, pois está próximo do movimento que reúne o ato de conhecer com as possibilidades de engajamento social, pois, conforme os respectivos autores (2000, p. 32, grifo nosso): “o conhecimento que se transforma em consciência social é um instrumento básico na luta pela transformação”. R efl ex õe s so br e o co nh ec im en to e ol ha re s so br e o pe ns am en to c lá ss ic o 65 A palavra elucidar tem sua ori- gem no latim. Ela é composta pelo prefixo reforçativo “e” e pelo verbo “lucere”, que quer dizer “trazer à luz”. Então, elucidar, do ponto de vista de sua origem vocabular, significa “trazer a luz muito fortemente”, “iluminar com intensidade”. Desse modo, conhecer, entendido como eluci- dar a realidade, quer dizer uma forma de “ilumina” de “trazer à luz” a realidade. [...] A luz do elucidar tem a ver com a in- cidência da “luz da inteligência” sobre a realidade, tem a ver com inteligibilidade. O conhecimento, como elucidação da realidade, é a forma de tornar a realidade in- teligível, [...] cristalina. É o meio pelo qual se descobre a essência das coisas que se manifesta por meio de suas aparências. Assim sendo, enquanto a realidade, por meio de suas manifestações apa- rentes, manifestar-se ia como misteriosa, impenetrável, opaca, oferecendo resistências ao seu desvendamento (desvendar/des- vendar=tirar a venda) por parte do ser humano, a elucidação se- ria a sua iluminação, a sua com- preensão, o seu desvelamento (desvelar/des-velar=tirar o véu). (LUCKESI; PASSOS, 2000, p. 15) 66 Fi lo so fia Todos nós estamos diante da realidade na qualidade de pessoas dotadas da capacidade de elucidar. Cada um, con- forme seus desejos, suas escolhas, criatividades, afinidades etc., lançamos o olhar sobre o mundo e construímos quem somos também no âmbito das relações. Desse modo, pode- mos dizer que somos seres cognoscentes e participamos de processos nos quais tecemos relações, de modos variados, com a realidade cognoscível. Aqui, já mencionamos elemen- tos do processo do conhecimento. Vejamos. Os elementos do processo do conhecimento são: sujeito (cognoscente), objeto (cognoscível), ato de conhecer e seu resul- tado. Aplicamos o termo cognoscente para significar a dispo- sição ao conhecimento, ou aquele que conhece. A expressão cognoscível corresponde à realidade que pode ser conhecida. Elementos do processo de conhecimento Fonte: Elaboração própria Na qualidade de elemento do processo do conheci- mento, sujeito cognoscente é a pessoa que estabelece relação com a realidade a ser conhecida (objeto), buscando criterio- samente as percepções e os entendimentos necessários a respeito dela, portanto, organiza os saberes, conquista e exer- cita a habilidade de percepção, abstração, inteligibilidade. O Sujeito Objeto Resultado Ato de conhecer+ = Eleme ntos d o proc esso do con hecim ento R efl ex õe s so br e o co nh ec im en to e ol ha re s so br e o pe ns am en to c lá ss ic o 67 objeto cognoscível pode ser também o próprio ser humano, as relações humanas em dada comunidade, um fenômeno físico/natural, um fenômeno social etc. Portanto, o objeto não corresponde a uma coisa material no sentido que comumente é atribuído ao termo objeto, mas a toda e qualquer realidade a ser conhecida. A respeito do ato de conhecer e do resul- tado (também conhecido por produto), são, respectivamente, o processo da relação entre sujeito e objeto e o conceito, con- forme segue: [...] O ato de conhecer é o proces- so de interação que o sujeito efet- ua com o objeto, de tal forma que, por recursos variados, vai tentan- do captar do objeto a sua lógica, a possibilidade de expressá-lo conceitualmente. Então, o sujeito interage com o objeto para desco- brir-lhe, teoricamente, a forma de ser. [...] o resultado do ato de conhecer é o conceito produzido, o conhecimento propriamente dito, a explicação ou a compreen- são estabelecidas, que podem ser expostas ou comunicadas. (LUCKESI; PASSOS, 2002, p. 17) Conforme os modos distintos de estabelecer relações com a realidade, contamos com formas também distintas de conhecimento. De acordo com Araújo et al. (2000), são três as maneiras básicas pelas quais o sujeito conhece o objeto. Essas maneiras se distinguem com relação as vias de acesso às pro- priedades do objeto, podendo ser pelos sentidos, pelo raciocí- nio ou pela crença. 68 Fi lo so fia Quando o sujeito cognoscente entra em contato com o objeto cognoscível mediante os sentidos, dizemos que esse é um tipo de conhecimento sensorial ou empírico: “o universo dos objetos físicos é, pois, conhecido pela sensação de suas características. O sujeito cognoscente estabelece com eles uma relação física, apoderando-se de suas propriedades sen- síveis” (ARAÚJO et al. 2000, p. 32). Além de entrar em contato com a realidade mediante às sensações, o ser humano pode ir além da percepção sen- sorial, o ser humano é dotado do poder de abstração, bem como de associação/relação entre os dados percebidos, cons- tituindo, assim, o tipo de conhecimento lógico ou intelectual. A combinação dos dados pos- sibilita analisar, comparar, ar- ticular e unir, gerando conceitos, definições e leis indispensáveis ao entendimento (e consequente utilização) da realidade. É pelo raciocínio que percebemos o con- junto dos objetos formais, tais como as figuras geométricas, os números, a relação causa-efeito, a gravitação dos corpos etc. (ARAÚJO et al., 2000, p. 32) Dentre os modos de relação com a realidade, consta também aquela que não pode ser mediada nem pela percep- ção sensorial, nem pelas associações racionais, pois remetem a instâncias da realidade fundamentadas na fé, outrotipo de conhecimento, a saber: o conhecimento de fé. Conforme Araújo et al. (2000, p. 34), “o conhecimento de fé baseia-se, pois, na autoridade de terceiros. Constitui um voto de confiança no que outros afirmam”. Corresponde não a observações, R efl ex õe s so br e o co nh ec im en to e ol ha re s so br e o pe ns am en to c lá ss ic o 69 percepções ou associações entre dados da realidade, mas está próximo às perspectivas de revelação mediada pela fé. Constam também outros olhares, igualmente válidos, a respeito dos tipos de conhecimento, apontando, por exemplo, para o conhecimento do senso comum ou popular, o conheci- mento religioso, o conhecimento científico e o conhecimento filosófico. Por motivos de elucidação didática, preferimos socializar com você a perspectiva de conhecimento sensorial ou empírico, lógico ou intelectual e de fé. Deixamos o convite para que pesquise outros olhares a respeito dos tipos de conhe- cimento, ampliando seus estudos e saberes, considerando, ainda, que, ao longo das nossas unidades, você poderá com- preender a respeito do conhecimento conforme o pensamento filosófico, por exemplo, do empirismo e do racionalismo. E a Filosofia? O que dizer do modo filosófico de lan- çar o olhar sobre a realidade? Ou, como seria o processo do conhecimento para a pessoa que se porta na qualidade de, por assim dizer, “sujeito” filosofante? Você recorda que, durante nossa Unidade 1, propomos que somos já pessoas filosofan- tes? Convidamos você, mais uma vez, para que encontre suas próprias respostas. Nesse sentido, oferecemos informações que subsidiarão essa iniciativa. Vamos, portanto, dialogar a respeito da atitude e da reflexão ou sobre quais característi- cas fazem com que a atitude seja filosófica. E a reflexão? Para atendermos esses subsídios necessários, utilizamos: perspec- tivas didáticas apresentadas por Chauí e fundamentos pro- postos por Saviani (1998). A atitude filosófica apresenta duas características fun- damentais: negativa e positiva. É negativa porque nega ao que está posto sem que antes seja compreendido, nega as afir- mações gerais que são impostas para que sejam cegamente seguidas. Portanto, querido(a) estudante, muitas vezes, já desempenhamos essa primeira característica da atitude 70 Fi lo so fia filosófica em nosso cotidiano, pois somos pessoas dedicadas ao conhecimento, pessoas que buscam ver para além do que está posto, para além dos recursos de dominação social, pes- soas que desejam e buscam realizar a autonomia, a liberdade de pensar. Entretanto, não é apenas exercitando esse tipo de negação que podemos dizer que nossa atitude é filosófica. É preciso, também, propor. Além de negativa, no sentido já elucidado, a atitude filosófica é também positiva ou propositiva. Uma vez que não aceitamos determinados modos de significação da realidade, precisamos propor nossos próprios modos de entendimento, criando nossos conceitos e o fazemos quando assumimos posturas questionadoras. Mediante a citação a seguir, você pode saber mais sobre as características negativa e positiva da atitude filosófica e como, relacionadas, elas constituem a atitude crítica! A primeira característica da ati- tude filosófica é negativa, isto é, um dizer não aos “pré-conceitos”, aos “pré-juízos”, aos fatos e às ideias da experiência cotidiana, ao que “todo mundo diz e pensa”, ao estabelecido [...]. A segunda característica da atitude filosó- fica é positiva, isto é, uma inter- rogação sobre o que são as coisas, as ideias, os fatos, as situações, os comportamentos, os valores, nós mesmos. É também uma in- terrogação sobre o porquê disso tudo e de nós, e uma interroga- ção sobre como tudo isso é assim e não de outra maneira. “O que é?”, “Por que é?”, “Como é?”. Es- R efl ex õe s so br e o co nh ec im en to e ol ha re s so br e o pe ns am en to c lá ss ic o 71 sas são as indagações fundamen- tais da atitude filosófica. A face negativa e a face positiva da ati- tude filosófica constituem o que chamamos de atitude crítica. [...] Em geral, julgamos que a palavra “crítica” significa ser do contra, dizer que tudo vai mal, que tudo está errado, que tudo é feio ou desagradável. Crítica é mau hu- mor, coisa de gente chata ou pre- tensiosa que acha que sabe mais que os outros. Mas não é isso que essa palavra quer dizer. A palavra “crítica” vem do grego e possui três sentidos principais: 1) capacidade para julgar, discernir e decidir corretamente; 2) exame racional de todas as coisas sem preconceito, sem prejulgamento; 3) atividade de examinar e aval- iar detalhadamente uma ideia, um valor, um costume, um com- portamento, uma obra artística ou científica. (CHAUÍ, 2003, p. 18) Quanto à reflexão filosófica, temos também carac- terísticas específicas. Na obra “Educação: do senso comum à consciência filosófica”, o pesquisador Dermeval Saviani aponta e contextualiza alguns aspectos da reflexão filosófica. Compreende que nem todo refletir é filosófico; para sê-lo, é preciso atender às características: radical, rigorosa e de con- junto. Querido (a) estudante, importa compreender que esses 72 Fi lo so fia termos não se apresentam conforme comumente significa- dos. Ser radical, neste caso, não significa ter um posiciona- mento fixo, inflexível; ao contrário, remete à busca das raízes e está em relação com os demais aspectos (rigor e conjunto). Muitos são os autores e autoras que buscam dessa fonte ao discorrer sobre a reflexão filosófica. É um modo sério e subs- tancial, com linguagem clara, acessível e conteúdo pertinente às variadas faces do viver. Para saber mais sobre a reflexão filosófica (radical, rigo- rosa e de conjunto), por gentileza, acompanhe a leitura do quadro que segue. Trecho selecionado de “A reflexão filosófica” Radical: a palavra latina radiz, radicis significa “raiz”, e no sentido figurado, “fundamento, base”. Portanto, a filo- sofia é radical não no sentido corriqueiro de ser inflexí- vel (nesse caso seria a antifilosofia), mas na medida em que busca explicitar os conceitos fundamentais usa- dos em todos os campos do pensar e do agir. Por exem- plo, a filosofia das ciências examina os pressupostos do saber científico, do mesmo modo que, diante da decisão de um vereador em aprovar determinado projeto, a filo- sofia política investiga as “raízes” (os princípios políticos) que orientam a ação. Rigorosa: enquanto a “filosofia de vida” não leva as con- clusões até as últimas consequências, nem sempre exa- minando os fundamentos delas, o filósofo deve dispor de um método claramente explicitado a fim de proceder com rigor. É assim que os filósofos inovam nos seus caminhos de reflexão, tal como o fizeram Platão, Descartes, Espinosa, Kant, Hegel, Husserl, Wittgenstein. [...] São inúmeros os métodos filosóficos em que se apoiam os filósofos para desenvolver um pensamento rigoroso, fundamentado a partir de argumentação, coerente em suas diversas partes e, portanto, sistemático. Além disso, o filósofo usa de lin- guagem rigorosa para evitar as ambiguidades das expres- sões cotidianas, o que lhe permite discutir com outros filósofos a partir de conceitos claramente definidos. R efl ex õe s so br e o co nh ec im en to e ol ha re s so br e o pe ns am en to c lá ss ic o 73 Fonte: ARANHA, M. L. A.; MARTINS, M. H. P. Filosofando: intro- dução à Filosofia. 3. ed. São Paulo: Moderna, 2003, p. 89-90. Foi com atenção racional à
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