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Movimento Cultura Digital A economia criativa e a economia social da cultura As drásticas mudanças de orientação no Ministério da Cultura têm tido um sentido definido: elas buscam fortalecer uma visão convencional das indústrias da cultura, também chamadas de indústrias criativas. A adoção em todo mundo de políticas voltadas ao fortalecimento das indústrias criativas é um processo recente, dos últimos quinze anos, que adveio da percepção dos gestores públicos de que a cultura é parte importante da nova economia (da informação ou do conhecimento) e de que, nesta condição, ela se qualificava a receber maior atenção do poder público. Assim, a política cultural passou a ser vista como uma parte componente da política industrial o que, por um lado, aumentou o seu status entre as políticas públicas, mas, por outro, a colocou sob o risco de comprometer as especificidades da cultura ao submetê-la aos ditames do desenvolvimento econômico. Sociedade da informação, economia do conhecimento O primeiro pressuposto para entender o sentido destas políticas é o surgimento, nos anos 1970, de teorias que propunham que o capitalismo estava superando a fase industrial e caminhando para uma fase pós-industrial. Algumas evidências, naqueles anos 1970, apontavam neste sentido: o aumento do setor de serviços em relação ao setor industrial, o aumento do número de profissões gerenciais (como administradores e engenheiros) na estrutura de ocupações e o aumento do papel da tecnologia para explicar os ganhos de produtividade. Mais adiante, outras evidências foram apresentadas: o crescimento de atividades ligadas ao processamento de informações em oposição àquelas que tratavam produtos e o crescimento mais acelerado do setor que produzia informação e cultura em relação aos demais setores econômicos. Essas e outras evidências foram reunidas para defender a tese de que a dinâmica econômica do capitalismo contemporâneo estava migrando do setor que produzia bens industriais para o setor que tratava e produzia informações – isto é, não apenas o setor que produzia diretamente produtos informacionais, como software ou música, mas também as atividades informacionais dentro do setor industrial ou primário – por exemplo, atividades jurídicas na produção industrial ou administrativas na agrícola. Se a nova dinâmica econômica estava nestes setores, então faria sentido promover essas atividades por meio de políticas públicas acelerando a passagem da sociedade industrial para a sociedade da informação. Indústrias do direito autoral, indústrias culturais, indústrias criativas É no contexto maior das políticas orientadas para a sociedade da informação que surgiram as políticas de fomento às indústrias criativas. Na verdade, podemos falar de três vertentes de promoção da cultura no contexto da sociedade da informação: o modelo americano de indústrias do direito autoral, o modelo francês das indústrias culturais e o modelo inglês das indústrias criativas. Todas elas buscavam fomentar o setor cultural como um dos componentes Luiza Realce Luiza Realce Luiza Realce Luiza Realce Luiza Realce Luiza Realce centrais da sociedade da informação (ou da economia do conhecimento – não há consenso na adoção dos conceitos). O modelo americano das indústrias do direito autoral enfatiza como unidade o fato destes setores produzirem bens protegidos por direito autoral, mesmo quando não sejam “caracteristicamente” culturais. O conceito abrange assim, desde setores mais indiscutivelmente culturais como a indústria fonográfica, audiovisual e editorial, até setores cujo componente cultural é menos predominante como a indústria de software e de games. As políticas americanas são as mais antigas, datando dos anos 1980, quando esses setores se auto-organizaram industrialmente, fundando uma associação e defendendo políticas comuns. O modelo francês é um pouco posterior e tem como unidade os setores que produzem bens culturais seriados, ou seja, que podem ser industrialmente reproduzidos. Esse conceito abarca tipicamente os setores editoral, fonográfico e audiovisual, numa abordagem um pouco mais restrita que a americana. Por fim, o mais tardio e, atualmente o mais influente, é o modelo inglês das indústrias criativas. O modelo inglês, proposto numa política iniciada em 2001, define as indústrias criativas como “aquelas indústrias que têm origem na criatividade, habilidade e talento individual e que tem potencial para a criação de riqueza e emprego por meio da geração e exploração da propriedade intelectual”. É, assim, o modelo mais abrangente, incluindo no foco das políticas, tanto as indústrias culturais (editorial, fonográfica e audiovisual), como todo setor de comunicação (rádio, TV e Internet), chegando até os setores nos quais a dimensão cultural está subordinada a finalidades funcionais como o design, a moda, a publicidade e a arquitetura. Instrumentos de política para as indústrias criativas Todas essas políticas são políticas industriais e buscam criar condições para o surgimento, a consolidação e a expansão de um setor econômico visto como o mais dinâmico da economia capitalista atual. Os instrumentos de políticas públicas para o fomento das indústrias criativas são, então, basicamente instrumentos de política industrial que buscam analisar o estado atual do setor, identificar as fragilidades e acionar mecanismos para corrigir as deficiências, estruturando e fortalecendo a cadeia produtiva. Alguns dos instrumentos tradicionais deste tipo de política são os seguintes: * Proteção da propriedade intelectual – Como neste tipo de abordagem normalmente toma-se como ponto de partida as indústrias criativas na sua forma convencional (isto é, não adaptada às novas tecnologias), um dos instrumentos de política pública mais importantes é o fortalecimento da cultura de proteção da propriedade intelectual. Isso implica, em geral, em reforma da lei de direitos autorais, reduzindo exceções e limitações (casos em que há uso livre das obras protegidas), regras claras de responsabilização civil (clara definição jurídica de quem é responsável por violações de direito autoral) e o fortalecimento de políticas de combate à pirataria. * Política de financiamentos e incentivos – Identificados os problemas dos setores econômicos que produzem a cultura, são mobilizados então instrumentos de financiamento e incentivos fiscais Luiza Realce Luiza Realce Luiza Realce Luiza Realce Luiza Sublinhado Luiza Sublinhado Luiza Sublinhado Luiza Realce Luiza Realce Luiza Realce Luiza Realce Luiza Realce Luiza Realce para que esses gargalos sejam superados. Setores ineficientes são contemplados assim com financiamentos especiais ou isenção fiscal. * Política de adensamento geográfico – Por fim, uma característica bem particular dessas políticas é que elas buscam o adensamento dos arranjos produtivos locais (chamados na literatura internacional de “clusters”). A economia dos setores culturais (e não apenas dos culturais) frequentemente é concentrada geograficamente. A concentração geográfica é um fenômeno “espontâneo” por meio do qual os agentes econômicos se reúnem numa mesma área para reduzir os custos de transporte e mobilidade e buscar ganhos de especialização e escala. Assim, por exemplo, a indústria do cinema e da TV está concentrada no Rio de Janeiro, reunindo numa mesma região geográfica atores, roteiristas, produtores e técnicos, além de empresas de apoio (por exemplo, de equipamentos) e de formação destes profissionais. Por esse motivo, muitas políticas industriais estão voltadas para a criação destes conglomerados geograficamentecentralizados. Isso pode se dar novamente por meio de financiamentos e incentivos, mas, recentemente, pode incluir também políticas urbanas de atração de profissionais. Como se vê, estamos falando exclusivamente da dimensão econômica da cultura que busca ser desenvolvida por meio de uma política industrial. Esse tipo de abordagem, embora possa ser combinada com uma política orientada para a dimensão simbólica da cultura, basicamente independe dela. Assim, frequentemente ela termina promovendo a cultura comercial e de massa, reduzindo o espaço para a inovação estética e a diversidade. Além disso, ela despreza as implicações sociais, uma vez que o endurecimento da propriedade intelectual cria altas barreiras de preço para o acesso aos bens culturais e a política de fomento dos clusters acentua disparidades econômicas regionais, gerando concentração. Uma economia social da cultura Embora não conheça um documento onde essa política tenha sido articulada de uma maneira clara, parece-me que um pouco intuitivamente o Ministério da Cultura na gestão Gilberto Gil/ Juca Ferreira apontou os traços gerais de um novo tipo de abordagem da economia da cultura que poderíamos chamar de uma economia social da cultura. Essa nova abordagem chamou a atenção em todo mundo por ser uma visão que aceitava e incorporava os impactos das novas tecnologias e os combinava com o apoio das práticas culturais tradicionais para os quais o Estado tradicionalmente não dava atenção. * Mudanças estruturais trazidas pelas novas tecnologias – Em primeiro lugar, houve um reconhecimento de que as novas tecnologias, sobretudo as tecnologias da informação e comunicação, traziam profundas e positivas mudanças na organização econômica da produção da cultura. Essas tecnologias barateavam e democratizavam os meios de produção e distribuição da cultura fazendo com que a cadeia produtiva pudesse ser reequilibrada. Tradicionalmente pensa-se a cadeia produtiva da cultura como composta por três tipos de atores: os criadores (escritores, compositores e intérpretes, roteiristas, diretores, etc.); os intermediários (produtores, editores, Luiza Realce Luiza Realce Luiza Realce Luiza Realce Luiza Realce Luiza Realce Luiza Realce Luiza Realce Luiza Realce gravadoras, sociedades de gestão coletiva etc.) e os consumidores. Os intermediários são os atores que estruturam a cadeia, porque detém o capital necessário para iniciar os empreendimentos e controlam a propriedade intelectual que regula o acesso e a remuneração das obras. As novas tecnologias baratearam o processo de produção das obras que agora requerem menos capital e proporcionaram um meio direto de distribuição (a Internet). Assim, os criadores começaram a ter meios de evitar os intermediários, o que gerou uma nova safra de artistas independentes, sobretudo na música, mas logo também no mundo do livro. A velha indústria baseada em controle de capital e direito autoral se esforça em barrar esse processo, inclusive por meio das medidas associadas às concepções tradicionais de economia criativa. O que vimos no governo Lula, no entanto, foi uma política de reconhecimento e apoio da cultura digital que gerava uma positiva reestruturação da cadeia produtiva, na qual os criadores e os consumidores se fortaleciam na sua relação com os intermediários. Os instrumentos dessa política não estavam restritos apenas ao MinC, mas abarcavam outros ministérios, no que parece uma visão coordenada de governo: reforma da lei de direito autoral, estímulo ao licenciamento público (com o uso de licenças como as Creative Commons), Marco Civil da Internet e Plano Nacional de Banda Larga. * Política cultural para todos os atores da cadeia produtiva – Outra mudança relevante foi pensar a política cultural como uma política ampla e de orientação social e não apenas como uma política voltada à promoção indireta dos artistas por meio dos seus intermediários. Assim, ao invés dos instrumentos associados às políticas convencionais de fomento às indústrias criativas, o Brasil havia se destacado por apoiar medidas que favoreciam diretamente os criadores (por meio de editais que apoiavam a produção independente), assim como os consumidores (por meio de políticas que incentivavam o licenciamento público que permitia livre acesso às obras). Isso não trazia apenas a independência econômica dos criadores, mas permitia também, a médio prazo, uma maior autonomia estética. A literatura sobre omodus operandi das indústrias culturais tem apoiado a tese geral da escola de Frankfurt de que os intermediários exigem dos criadores a repetição de padrões e esquemas nos produtos culturais para reduzir os riscos do investimento, destruindo assim a criatividade e a diversidade da cultura. Com a autonomia econômica dos criadores proporcionada pelas novas tecnologias e pelas novas políticas de incentivo, eles se viam na condição de julgarem eles mesmos em que medida queriam sacrificar os seus objetivos estéticos para assegurar ganhos econômicos. Esperava-se que os criadores, estando mais diretamente no controle da atividade econômica, seriam mais ciosos dos valores estéticos do que os antigos intermediários que apenas exploravam economicamente as obras. * Direito autoral visto também como direito de acesso – Talvez a principal mudança de atitude em relação às políticas de tipo industrial é a abordagem do direito autoral que não o vê apenas como proteção ao patrimônio, mas também como instrumento de acesso à cultura. O direito autoral é um instrumento jurídico que, na sua dimensão econômica, cria um monopólio temporário que permite explorar com exclusividade uma obra dando assim ganhos extraordinários para o criador e o investidor. No que toca ao consumidor, esse monopólio implica maiores preços e portanto maiores barreiras para acessar as obras. O contorno dessas barreiras de preço por meio da pirataria ou do licenciamento público consiste assim, inversamente, na Luiza Realce Luiza Realce Luiza Realce Luiza Realce Luiza Realce Luiza Realce Luiza Realce Luiza Realce Luiza Realce Luiza Realce Luiza Realce ampliação do acesso. É neste sentido que a economia social da cultura mais claramente se afirma como geradora de riqueza. Quando as novas tecnologias permitiram a reprodução fiel de obras culturais a um custo próximo de zero, a cópia não autorizada se estabeleceu como um padrão social de fato. O que a indústria entendia como roubo (pirataria) foi, na verdade, um vigoroso enriquecimento dos consumidores. O acesso massivo a custo próximo de zero a vastas quantidades de produtos culturais consistiu efetivamente em apropriação social de riqueza. Como o direito autoral é um instrumento jurídico que cria escassez artificial para gerar rendimentos para os detentores de direitos, a superação prática deste instrumento gera abundância. Quando famílias de baixa renda adquirem por 30 reais uma dezena de filmes que no regime industrial lhes custariam 400, nós temos de fato apropriação social de riqueza. Juridicamente, no entanto, o Brasil está amarrado pelo direito internacional (pela Convenção de Berna e pelo TRIPs) e essa atividade é e permanecerá por muito tempo ilegal. O que o Ministério da Cultura da era Lula fez então, acertadamente, foi propor a ampliação dos casos em que a lei de direitos autorais autoriza o uso livre e estimular o licenciamento público das obras, ampliando essa apropriação social da riqueza nos limites da legalidade. Paralelamente, estimulava que o setor cultural mais rapidamente se adaptasse à situação de fato do compartilhamento e da “pirataria” generalizada. * Novos modelos de negócio – As formaspelas quais os atores econômicos se adaptam a esse novo mundo onde a cópia não autorizada é predominante são chamadas de “novos modelos de negócio”. Em música, por exemplo, os novos modelos de negócio geralmente consistem no deslocamento da fonte de rendimento da venda da obra (CDs e DVDs musicais) para a execução de música ao vivo. Assim, os artistas e as empresas que os exploram deixam de se apoiar na venda de CDs e passam a contar mais com a receita das apresentações. Essa mudança, da parte dos agentes econômicos, é uma adaptação a uma nova situação onde a venda de CDs rende menos (embora não esteja claro o motivo – não há evidências sólidas que a queda nas vendas de CDs deve-se exclusivamente ou principalmente à pirataria). Embora a gestão anterior do MinC tenha falado de novos modelos de negócio e indiretamente os tenha apoiado, não chegou a desenvolver uma política mais sofisticada que talvez fosse o caso de colocar em marcha, quando e se o Ministério sair do controle da grande indústria. Neste momento de emergência de novos modelos de negócio, há duas possibilidades latentes: de um lado, a grande indústria está se reposicionando para dominar os novos modelos de negócio e manter sua posição dominante; de outro lado, criadores estão buscando se tornar independentes dos intermediários. O resultado deste processo pode ser tanto uma nova situação onde as grandes gravadoras são substituídas por grandes produtoras de shows e grandes editoras substituídas por grandes empresas e plataformas digitais de ebooks, como uma situação bastante diferente onde os agentes econômicos são menores e em maior número, com grande quantidade de produtores independentes articulados em projetos coletivos. Obviamente, do ponto de vista social e simbólico a segunda alternativa deve ser perseguida, mas, para tanto, teremos que ter políticas mais assertivas que apoiem os pequenos e independentes e que identifiquem as dificuldades das novas cadeias produtivas, como a promoção das obras e a crítica. Luiza Realce Luiza Realce Luiza Realce Luiza Realce Luiza Realce Luiza Realce Luiza Realce Luiza Realce Infelizmente, parece que perdemos a possibilidade imediata de dar sequência e aprofundar essas políticas pelas quais o Brasil havia se destacado, aparecendo como um paradigma concorrente às dominantes políticas culturais pró-indústria que assolam o mundo. No entanto, essa também é uma oportunidade para fazermos balanços e construir alianças que permitam a formação de uma plataforma multisetorial no campo da cultura e que apontem, na política cultural, para uma nova forma de se pensar a relação entre cultura e economia. Via Pablo Ortellado – Gpopai. http://culturadigital.br/movimento/2011/04/24/a-economia-criativa-e-a-economia-social-da-cultura Luiza Realce
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