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Nietzsche Amauri Ferreira Introdução à Filosofia De Nietzsche

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INTRODUÇÃO À FILOSOFIA DEINTRODUÇÃO À FILOSOFIA DEINTRODUÇÃO À FILOSOFIA DEINTRODUÇÃO À FILOSOFIA DE NIETZSCHENIETZSCHENIETZSCHENIETZSCHE 
 
_________________ 
 
Por Amauri Ferreira 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 2 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
http://escolanomade.org 
 
 
 
 
Dezembro de 2006 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 3 
 
 
SUMÁRIOSUMÁRIOSUMÁRIOSUMÁRIO 
 
 
 
 
Preâmbulo 4 
 Vontade de Potência. Ativo e Reativo 8 
 Ressentimento e Má Consciência 19 
 O Sentido da Cultura 29 
 Niilismo e Eterno Retorno 35 
 Epílogo 53 
 Notas 58 
 Agradecimentos 66 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 4 
“Minha filosofia traz o pensamento vitorioso com o qual toda outra maneira de 
pensar acabará por sucumbir. É o grande pensamento aprimorador: as raças que não o 
suportam estão condenadas; as que o sentem como o maior dos benefícios estão 
votadas à dominação.” 1 
 
 
 
 
Preâmbulo 
 
Viver em um mundo humano sob o império do niilismo não é, de modo algum, 
uma objeção ao pensamento – o que tem o pensamento a ver com objeções! Percebemos 
que é exatamente aí, nesse ambiente lúgubre, que a necessidade de exercermos a plena 
potência do pensamento torna-se indispensável para criarmos novos modos de construir 
o mundo. Dessa forma, o pensamento poderá impor-se diante da mediocridade, 
afastando para longe muitas noções corrompidas como, por exemplo, o “bem-estar” tão 
cultuado pela civilização moderna. Criar modos de “bem-viver” é muito mais 
interessante: viver e não apenas sobreviver... Trazer para si a tarefa de tornar-se o que 
se é: esta é a provocação da filosofia de Nietzsche. Ler Nietzsche e, principalmente, 
viver nietzscheanamente em um mundo niilista, exige boas doses de prudência e 
desintoxicação. No lugar do ar impuro daquilo que degenera ao nosso redor, sentimos a 
pureza da atmosfera do devir; no lugar do corpo rígido, surge o corpo flexível: nasce em 
nós uma nova sensibilidade. 2 Produzir um novo corpo e um novo pensamento: isso não 
se trata mais de um “humano”, mas de um além-do-humano. 
Enquanto não acessamos esse outro corpo e esse outro pensamento através das 
nossas próprias experiências, reproduzimos apenas os produtos carimbados pela 
negação da vida. Corremos o risco de nos resignarmos por vivermos apenas como uma 
função social e não como uma alegre produção de nós mesmos. Teremos uma existência 
insossa, que torna a vida um grande fardo. Contra isso, Nietzsche fez da sua filosofia 
um verdadeiro combate em si mesmo contra os valores morais: 
 
“Tanto quanto Wagner, eu sou um filho desse tempo; quer dizer, um décadent: mas eu 
compreendi isso, e me defendi. O filósofo em mim se defendeu.”3 
 
 5 
Ao contrário do plebeu, que necessita desesperadamente de uma identidade para 
se defender, Nietzsche defendeu-se da seriedade mórbida do europeu da sua época ao 
experimentar intensidades onde a identidade é aniquilada. Grande riqueza de alguém 
que aprendeu a não levar o “eu” a sério... Saber dançar, jogar e rir, são provas de uma 
vida que singularizou-se por não fixar-se nas identificações sociais. A respeito disso, 
Pierre Klossowski diz: “[...] querer ser outro diferente do que se é para se tornar o que 
se é.”4 É evidente que a emoção psicológica experimentada nesses estados de dissolução 
da identidade não é – ao contrário do que o plebeu pensa – uma enfermidade, mas 
expressa uma natureza saudável que conquistou o direito de não se identificar com 
formas a priori. A capacidade de mutação é uma grande saúde. Por isso que essa 
natureza mutante é incapturável pelos sistemas de poder vigentes; é impossível detê-la 
numa classificação “racional” qualquer. O que se costuma dizer como “verdadeiro”, 
“eu”, “imóvel”, “ideal”, ou então, “esquizofrênico”, “normal”, “bem”, “mal”, são 
mentiras que o homem, já capturado, utiliza como escudos contra a vida... Eis a 
denúncia de Nietzsche contra uma moral que está a serviço da covardia. 
 
“A mentira do ideal foi até agora a maldição sobre a realidade, através dela a 
humanidade mesma tornou-se mendaz e falsa até seus instintos mais básicos.”5 
 
Com algumas exceções (entre elas, especialmente, Espinosa), a história da 
filosofia nos mostra o que prevaleceu na produção filosófica, de Sócrates até hoje: a 
depreciação da vida, a necessidade de julgá-la, de adquirir uma sabedoria como abrigo. 
É o filósofo como agente do Estado, como reprodutor de falácias institucionalizadas há 
tempos, como sintoma de um cansaço da vida. Atento a esses sintomas, Nietzsche 
colocou a nu o que move a produção de um sistema filosófico metafísico, dialético por 
excelência: a negação do devir como fundadora dos valores morais. 
 
“Em todos os tempos os grandes sábios sempre fizeram o mesmo juízo sobre a vida: ela 
não vale nada... Sempre e por toda parte se escutou o mesmo tom saindo de suas bocas. 
Um tom cheio de dúvidas, cheio de melancolia, cheio de cansaço da vida, um tom 
plenamente contrafeito frente a ela. O próprio Sócrates disse ao morrer: ‘viver significa 
estar há muito doente’ [...] O próprio Sócrates estava enfastiado da vida. O que isso 
demonstra? Para onde isso aponta?”6 
 
 6 
O plebeu, para Nietzsche, é quem não transmuta e, por isso, degenera.7 O nobre, 
ao contrário, tem a capacidade de metamorfosear-se. É importante nos atentarmos a isto: 
Nietzsche não quer dizer que a nobreza e a plebe são classes sociais; a distinção que ele 
faz é muito mais refinada: é de postura de vida, é do elemento que dá valor aos valores, 
que pode ser de afirmação ou de negação da vida.8 Ao negar a vida, somente o plebeu 
dá um aspecto fúnebre a ela. 
Ao lermos Nietzsche é necessário interpretarmos o sentido que ele utilizou para 
as palavras: há, de fato, deslocamentos de sentido para as mesmas palavras em um 
mesmo texto ou aforismo. Podemos interpretar de várias maneiras, por exemplo, os 
sentidos das críticas de Nietzsche com relação aos judeus: como um ataque ao sacerdote 
judaico – o caluniador da existência ao criar a forma do ressentimento – que foi 
desejado, em determinadas circunstâncias, pelo seu povo; ou, então, como o povo mais 
forte existente numa Europa decadente do século XIX.9 Portanto, as críticas de 
Nietzsche se dirigem a tudo o que é elevado e baixo, nobre e plebeu, ativo e reativo na 
vida humana, sem dirigir-se diretamente aidentidades raciais, religiosas, sociais ou 
políticas, mas ao modo de vida dominante que está em devir... E o devir da humanidade 
é o do ressentimento e da má consciência, percorrendo até aos nossos dias. Podemos, 
então, compreender que a civilização moderna foi erigida por instintos vingativos. 
“Plebeu”, “escravo”, “Judéia”, podem significar “baixo”, “impotente”, “ressentido”. 
“Aristocrata”, “senhor”, “grego”, podem significar “elevado”, “potente”, “trágico”. 
 
“A Judéia conquistou com a Revolução Francesa mais uma vitória sobre o ideal clássico 
[...] nunca se ouviu na terra júbilo maior, nem entusiasmo mais estridente!”10 
 
“Não deixemos de notar as quase benévolas nuances que a aristocracia grega, por 
exemplo, põe em todas as palavras com que distingue de si mesma o povo baixo [...] ao 
ponto de quase todas as palavras que aludem ao homem comum terem enfim 
permanecido como expressões para ‘infeliz’, ‘lamentável...’”11 
 
Há trechos em que Nietzsche usou palavras como “vingança”, “violência”, 
“ofensa”, “exploração”, referindo-se ao homem reativo; em outros trechos essas 
mesmas palavras foram utilizadas para referir-se ao homem ativo ou ao modo de 
produção da vida: 
 
 7 
“[...] a vida mesma é essencialmente apropriação, ofensa, sujeição do que é estranho e 
mais fraco, opressão, dureza, imposição de formas próprias, incorporação e, no mínimo 
e mais comedido, exploração – mas por que empregar sempre essas palavras, que há 
muito estão marcadas de um intenção difamadora? [...] A exploração não é própria de 
uma sociedade corrompida, ou imperfeita e primitiva: faz parte da essência do que vive, 
como função orgânica básica, é uma conseqüência da própria vontade de potência, que 
é precisamente vontade de vida.”12 
 
Para encontrarmos o máximo que podemos da potência dos escritos de 
Nietzsche, implica apreendermos a região onde a força dá o sentido e a vontade dá o 
valor à coisa. Interpretar e avaliar é a tarefa do filósofo do futuro, diz Nietzsche. Esse 
filósofo é um genealogista porque avalia o valor dos valores e interpreta o sentido das 
forças que estão em relação... Dos diversos comentadores de Nietzsche, podemos 
avaliar o uso que cada um fez da obra dele e interpretá-los pelos caminhos que foram 
traçados, para distinguirmos onde o pensamento nietzscheano caiu numa rede 
representativa, e onde foram criadas aberturas que potencializaram o seu pensamento. 
Gilles Deleuze produziu uma obra indispensável sobre Nietzsche, chamada “Nietzsche e 
a Filosofia”, de 1962; repetindo a dose, com uma obra menor, “Nietzsche”, de 1965. 
Não há dúvida de que houve um bom encontro entre eles, um diálogo espiritual. Diz 
Deleuze, na conclusão do livro de 1962: “Tentamos neste livro romper alianças 
perigosas. Imaginamos Nietzsche retirando a sua jogada de um jogo que não é o seu.”13 
E qual é a aliança que Deleuze tentou romper? A aliança que a filosofia moderna tentou 
– e ainda tenta – fazer com Nietzsche: com a dialética. As adaptações que a filosofia 
niilista tenta fazer com a filosofia nietzscheana são bizarras: Hegel com Nietzsche. Mas 
o pensamento extemporâneo de Nietzsche sempre escapa de alianças com aquilo que a 
sua filosofia sempre combateu. Por isso torna-se necessário a importância do “quem”: 
quem faz o uso do pensamento nietzscheano? Quem deseja utilizá-lo para o poder; 
quem deseja utilizá-lo para a potência? O plebeu ou o nobre? É para adaptá-lo àquilo 
que Nietzsche combateu ou para levá-lo ainda mais longe na sua crítica radical dos 
valores?... A avaliação e a interpretação do que em nós é dominante pode nos permitir 
que também tenhamos um bom encontro com a obra de Nietzsche. E já que ele nos diz 
sobre a desconstrução do sujeito em nós, isso quer dizer que podemos afastar o déspota 
em nós, o poder em nós, para encontrarmos a criança em nós que sabe jogar... 
 
 
 8 
“Aquilo que eternamente tem de retornar, como um vir-a-ser que não conhece nenhuma 
saciedade, nenhum fastio, nenhum cansaço –: esse meu mundo dionisíaco do 
eternamente-criar-a-si-próprio, esse mundo secreto da dupla volúpia, esse meu ‘para 
além de bem e mal’, sem alvo, se na felicidade do círculo não está um alvo, sem 
vontade, se um anel não tem boa vontade consigo mesmo –, quereis um nome para esse 
mundo?... – Esse mundo é a vontade de potência – e nada além disso! E também vós 
próprios sois essa vontade de potência – e nada além disso!” 14 
 
 
 
 
Vontade de Potência. Ativo e Reativo 
 
Há em Nietzsche, antes de tudo, uma filosofia que implica o modo como 
sentimos o nosso próprio corpo, ou seja, como agimos e reagimos no contato com os 
outros corpos. Tocar, cheirar, saborear, ouvir: experimentações que vivemos num 
mundo onde não há origem nem conclusão, mas misturas, passagens, relações entre 
forças, metamorfoses. É neste mundo que podemos experimentar aquilo que nos diz 
Deleuze: “a vida ativa o pensamento e o pensamento, por seu lado, afirma a vida.”15 Ao 
contrário da metafísica ocidental, Nietzsche afirma que o único mundo que existe é 
somente este – o mundo da imanência, das sensações e das mudanças ininterruptas. O 
corpo como “porta de entrada” dos novos fluxos, como capacidade para o 
conhecimento. Na filosofia nietzscheana não há espaço para um outro mundo, fechado 
em si mesmo, imutável, contemplativo, transcendente e, por isso, “verdadeiro”. Como 
somos produtos da nossa relação com a realidade (aspecto reativo, consciente), há 
também em nós uma capacidade de produção desconhecida (aspecto ativo, 
inconsciente), que não obedece a nenhuma forma a priori. Tudo que é produzido no 
mundo não é o resultado de uma adaptação a um determinado modelo de perfeição: o 
que é afirmado é a capacidade relacional das forças. As relações entre as forças 
produzem a realidade. Mas em toda relação de forças há uma vontade – necessariamente 
relacional –, o que leva Nietzsche a dizer que o mundo é vontade de potência. E o que a 
potência quer? Acumular forças, aumentar a potência. Quando a potência aumenta, há a 
sensação de prazer; quando diminui, sente-se desprazer. 
 9 
 
“A vida [...] aspira a um sentimento máximo de potência: ela é, essencialmente, uma 
aspiração a maior quantidade de potência: aspirar não é outra coisa senão aspirar à 
potência: o que existe de mais subjacente e de mais interior é essa vontade.”16 
 
A imanência é eternamente produzida pelas relações; ela é eternamente “volúpia, 
ambição de domínio, egoísmo”17: assim falou Zaratustra sobre o aumento de potência, 
onde não há limites pré-estabelecidos, pois a potência aumentada expande os limites. 
Então, já que uma força está sempre em relação com outra força, nunca há igualdade 
entre elas, porque necessariamente existe uma que é dominante e outra que é dominada. 
E como uma relação nunca se repete do mesmo modo, o filósofo genealogista sempre 
reinterpreta o sentido das forças, sem querer encontrar um objetivo para elas. 
 
“[...] de que algo existente, que de algum modo chegou a se realizar, é sempre 
reinterpretado para novos fins, requisitado de maneira nova [...] de que todo 
acontecimento do mundo orgânico é um subjugar e assenhorear-se, e todo subjugar e 
assenhorear-se é uma nova interpretação, um ajuste, no qual o ‘sentido’ e a ‘finalidade’ 
anteriores são necessariamente obscurecidos ou obliterados [...] Logo, o 
‘desenvolvimento’ de uma coisa, um uso, um órgão, é tudo menos o seu progressus emdireção a uma meta [...] Se a forma é ‘fluida’, o sentido é mais ainda...”18 
 
Como toda força existe em relação, até o mais covarde dos homens é, 
simultaneamente, produto (ele é afetado) e produtor (afeta outros corpos) de realidade. 
Não há como existirmos fora da imanência. O que nunca deixará de existir é sempre o 
mais imediato, que está sempre aberto a novas interpretações e avaliações. Por isso a 
realidade pode gerar angústias e aflições, mas também pode ser fonte de diferenciação 
alegre e prazerosa. 
 É necessário distinguirmos as duas qualidades da vontade de potência: negação 
e afirmação. Dominada pelo aspecto negativo, a vontade de potência nega a imanência. 
Dessa negação primeira, a vontade de potência passa a afirmar os valores que já estão 
estabelecidos. Mas o que está estabelecido são os valores produzidos por uma postura 
de vida negativa, que julga a vida ao necessitar de um artigo de fé – a crença no ideal 
ascético. Portanto, somente essa vontade de negar precisa de uma referência moral. A 
afirmação, nesse caso, é secundária, tendo apenas a função de afirmar um subterfúgio 
que já foi criado pela negação, servindo como um sentido para a vida, mesmo que esse 
 10 
sentido seja direcionado a uma ficção. Antes de cair em um nada de sentido, surge 
algum sentido para a vida. Justifica-se a existência através de um modelo separado da 
imanência: temos o “bem”, o “belo”, o “justo”, a “verdade”, como “idéias puras”, 
transcendentes. A moral define o mundo em que vivemos como inferior, por ser o 
mundo das aparências, da falsidade, já que tudo muda, nada é concluído... “É preciso 
acreditar em um mundo onde nada mude e, por isso, seja verdadeiro”, assim diz essa 
vontade de negação – assim dirigiu-se Platão com sua vontade de idéias puras. Portanto, 
esse outro mundo é afirmado. Nesse ponto, é necessário, mais uma vez, que o 
genealogista avalie os valores que estão em curso: 
 
“[...] faz parte disso avaliar os lados unicamente afirmados da existência; 
compreender de onde provém essa valoração e quão pouco ela é obrigatória para uma 
medição de valor dionisíaca das coisas: eu extraí e compreendi o que propriamente 
diz sim aqui (o instinto dos que sofrem, em primeiro lugar, o instinto do rebanho por 
outro lado, e aquele terceiro, o instinto da maioria contra as exceções –)”19 
 
Mas a vontade de negação pode ter um outro uso que proporciona a sua própria 
transmutação em uma vontade de afirmação plena. Nesse caso, a negação serve apenas 
como função da afirmação, precede a afirmação destinada a dominar: não mais os meios 
quereres (um querer moral, de utilidade pública 20), mas um querer inteiro... Os 
produtos da negação são negados (os subterfúgios que a humanidade afirma para 
suportar a existência); o inédito, o que não obedece a nenhuma forma prévia, em suma, 
o devir, é afirmado. Eis a diferença fundamental: enquanto o plebeu nega a vida para 
afirmar uma ficção, o nobre afirma a vida ao afirmar o devir. O lado “proibido” da vida 
(constatação niilista) é considerado inocente ao ser, enfim, desejado. 
 
“Disso faz parte compreender os lados até agora negados da existência, não somente 
como necessários, mas como desejáveis: e não somente como desejáveis em vista dos 
lados até agora afirmados (eventualmente, como seus complementos ou condições 
prévias), mas em função de si próprios, como os mais poderosos, mais fecundos, mais 
verdadeiros, lados da existência, nos quais sua vontade se enuncia com maior 
clareza.”21 
 
Podemos também fazer a distinção das duas características que constituem uma 
relação entre as forças: obedecer e comandar. Entendemos por “obedecer” uma 
 11 
capacidade receptiva da força; por “comandar” uma capacidade de agir (veremos que o 
sentido de “obedecer” e de “comandar” difere-se totalmente conforme a qualidade da 
vontade dominante). A força reativa é receptiva, reguladora, distributiva, conservadora. 
A força ativa é expansiva, agressiva e criativa 22. Para Nietzsche, há uma hierarquia 
entre as qualidades das forças: a força ativa é primária. Mas uma força ativa somente 
triunfa quando há uma vontade de potência afirmativa dominante. Surge um devir ativo 
das forças, caracterizado pelo domínio da força ativa sobre a força reativa. É a noção de 
criação como qualidade primária à noção de adaptação: 
 
“[...] a primazia fundamental das forças espontâneas, agressivas, expansivas, criadoras 
de novas formas, interpretações e direções, forças cuja ação necessariamente precede a 
‘adaptação’.”23 
 
Essa relação entre as forças é invertida quando a adaptação torna-se primária. 
Isso se dá com o triunfo da vontade de negação e das forças reativas; surge, então, um 
devir reativo das forças. Constitui-se um casamento bizarro entre a negação e a reação: 
os filhos desse casamento são produzidos por aqueles que apenas conhecem o aspecto 
utilitário da vida. 
 
“[...] colocou-se em primeiro plano a ‘adaptação’, ou seja, uma atividade de segunda 
ordem, uma reatividade; chegou-se mesmo a definir a vida como uma adaptação 
interna, cada vez mais apropriada, a circunstâncias externas.”24 
 
Através dessa inversão, a vida humana submete-se apenas à sua conservação e, 
para isso, tem a constante necessidade de controlar as forças ativas. Os valores que são 
gerados e mantidos passam a servir apenas para manter a sobrevivência de um modo de 
vida que precisa investir em “idéias puras”, separadas da realidade. Princípio do 
julgamento da vida: a realidade é dura, violenta, cruel e, portanto, deve ser julgada... É o 
nascimento do lugar do juízo. 
O aumento de potência na obediência e no comando, pela vontade de negação, 
apresenta um cenário totalmente doentio: o prazer é sempre algo que falta e, por isso, 
experimenta-se a incômoda sensação de que a vontade nunca é saciada totalmente. 
Trata-se da vontade psicológica: relacionada a uma ficção, essa vontade teria a sua 
plena satisfação e felicidade no inalcançável “outro mundo” ou, então, neste mundo, 
através de uma vontade que teria a “origem” no sujeito e seria “concluída” em um 
 12 
objetivo alcançado – o “projeto” atingiria o seu happy end... Há em Nietzsche um 
ataque explícito ao livre-arbítrio: 
 
“[...] a moral do povo discrimina entre a força e as expressões da força, como se por trás 
do forte houvesse um substrato indiferente que fosse livre para expressar ou não a força. 
Mas não existe um tal substrato: não existe ‘ser’ por trás do fazer, do atuar, do devir; o 
‘agente’ é uma ficção acrescentada à ação – a ação é tudo.”25 
 
Ora, se tudo que existe na imanência está em relação, o “sujeito” que antecederia 
a ação seria algo separado da realidade, sem relacionar-se com nada, ensimesmado, o 
que é um absurdo total! Como poderia algo existir – e ter uma vontade – sem estar na 
experimentação, sem afetar e ser afetado? É o mesmo que dizer que o ser está separado 
do devir! É o que leva Nietzsche a dizer simplesmente que não existe tal substrato (o 
que é, evidentemente, um ataque à filosofia kantiana); portanto, o substrato é uma 
ficção. Por isso Nietzsche diz que a ação é tudo. 
Mas mesmo naquele que precisa acreditar no “sujeito”, essa falsa cria, continua 
a ter uma vontade de potência (de volúpia, ambição de domínio e egoísmo), mas sob o 
signo da carência. Através da obediência, o homem reativo busca algum prazer – ou 
aumento de potência – na sua conservação e, igualmente, espera queatravés disso 
consiga impedir os sentimentos de dor e de tristeza – ou diminuição de potência: daí a 
necessidade de buscar uma proteção através da moral. “Você será bom se, no mínimo, 
não me causar tristeza; mas será mau se isso acontecer”, é o seu julgamento. 
Inevitavelmente, obedecer, ou receber, possui apenas um sentido para ele: carregar. 
Carregar valores estabelecidos, tornar-se cada vez mais útil ao modo gregário de viver, 
tornar-se cada vez mais competente... O homem reativo conhece apenas a obediência às 
leis instituídas – sejam divinas ou humanas –, limitando-se numa “livre” escolha entre o 
“bem” e o “mal”, “útil” e “inútil”, “justo” e “injusto”, “falso” e “verdadeiro”. 
Já é possível compreendermos o que é o sintoma de degeneração do homem para 
Nietzsche. A avaliação dos valores passa a priorizar tudo que é útil à conservação; o 
sentido é o da adaptação às forças exteriores. Experimenta-se a vida apenas sob o seu 
aspecto utilitário. E somente a partir desse ponto o homem reativo pode esperar duas 
coisas para a sua vida: proteção do acaso e doses de prazer. 
O homem reativo tem uma grande resistência para receber o novo, o estranho. 
Extremamente diligente, ele não sabe mais o que é experimentar. Ele se mantém nessa 
 13 
via sedentária porque encontra vantagens, pequenas felicidades, acreditando ser essa 
postura muito mais cômoda do que criar para si as condições de gozo. 
 
“A cega diligência, essa típica virtude de um instrumento, é apresentada como [...] a 
mais saudável droga para o tédio e as paixões: mas silencia-se a respeito de seu perigo, 
de sua suprema periculosidade.”26 
 
“Muito freqüentemente observo que sim, a cega diligência traz riquezas e honras, mas 
também priva os órgãos daquela finura que tornaria possível a fruição de riquezas e 
honras, e noto, igualmente, que esse grande antídoto para o tédio e as paixões torna 
embotados os sentidos e faz o espírito refratário a estímulos novos.”27 
 
Ser ativo, para o homem reativo, é agir em vista de uma finalidade, em busca de 
uma premiação, de um reconhecimento. A ação, nesse caso, precisa ser autorizada pelo 
poder; justamente por isso, é uma falsa atividade. Trabalha-se demais, não se tem tempo 
para nada e, quando há um tempo livre, não sabe o que fazer com ele. Ele sempre tem 
necessidade de sentir-se “ativo”: 
 
“Eles são ativos como funcionários, comerciantes, eruditos, isto é, como representantes 
de uma espécie, mas não como seres individuais e únicos; neste aspecto são indolentes. 
– A infelicidade dos homens ativos é que sua atividade é quase sempre um pouco 
irracional. Não se pode perguntar ao banqueiro acumulador de dinheiro, por exemplo, 
pelo objetivo de sua atividade incessante: ela é irracional. Os homens ativos rolam tal 
como pedra, conforme a estupidez da mecânica.”28 
 
Para o homem reativo, as ações passam a ter equivalência com o “dinheiro”, o 
“prestígio” e o “bem-estar” que ele sonha obter. O que estiver excluído disso, ele não 
dará a menor importância, não irá perder tempo com coisas “inúteis”. Cursos, 
profissões, livros, filmes, sexo, suas relações precisam ser mediadas pelo poder para que 
ele sinta-se garantido por pertencer a uma realidade previsível. A depressão, que 
sempre o ameaça, é constantemente varrida para debaixo do tapete nas horas dedicadas 
ao entretenimento em frente à televisão, nos passeios com a família, nas relações 
extraconjugais. 
Resumindo: “receber”, para o homem reativo, significa obedecer às ordens de 
um poder. Mas todo aquele que diz "sim" aos produtos da negação, vive endividado 
 14 
com quem lhe “protege”. O engodo de qualquer poder é exatamente a oferta de proteção 
e de prazer: isso o poder promete, na medida em que os homens se submetem às suas 
leis. 
 
“Certamente, existem as veredas e as pontes e os semideuses inumeráveis que se 
oferecerão para te levar para o outro lado do rio, mas somente na medida em que te vendesses 
inteiramente: tu te colocarias como penhor e te perderias.”29 
 
De fato, o devir reativo dá as cartas, triunfa. O Estado, Deus, igreja, família, 
escola... Não há como não ter uma sensação de desperdício ao vermos muitos jovens 
desejando receber um aprendizado absolutamente asqueroso nas universidades: já 
preparados desde o berço, eles chegam às universidades com a única intenção de 
conseguir o tão desejado diploma. O ensino transformou-se numa reprodução em massa 
de escravos, que não podem pensar por si próprios: seu sistema de avaliação serve 
apenas para fornecer credenciais utilitárias à sociedade reativa. Forma(ta)dos, 
reproduzem, nas suas atividades profissionais, tudo o que sustenta os valores vigentes. 
 
“Aprender a pensar: não se tem mais em nossas escolas nenhuma noção do que isso 
significa [...] não há agora a mais remota lembrança de que é necessário ao pensamento 
uma técnica, um plano de estudo, uma vontade de domínio – de que o pensar deve ser 
aprendido, como o dançar é aprendido, como um tipo de dança...”30 
 
Num excelente filme-documentário, Estamira diz que as pessoas vão à escola 
para copiar. 31 É essa a função da escola nas sociedades capitalistas: reproduzir 
trabalhadores e cidadãos obedientes, injetando esperanças de um futuro promissor. Mas 
já deveriam saber o que é esse “futuro promissor”: ser obediente na empresa, no lar, na 
sociedade, para realizar os “sonhos de uma vida melhor” – acumular quinquilharias 
dentro de casa; aos domingos, levar o filho ao parque e fazer compras com a família; 
receber a visita dos pais e sentir um carinhoso tapa nas costas, acompanhado de um 
sorriso de aprovação de um pai que diz: “Parabéns meu filho! Estou orgulhoso de 
você!”... Sim, é pelos pequenos prazeres que o homem reativo suporta a sua 
existência... 
E como a sua vontade está sempre carente, esse “representante de uma espécie” 
– a mais baixa espécie – vai desejar cada vez mais o poder. “Ter o poder para ter maior 
 15 
prazer e, finalmente, conquistar a felicidade!”, assim imagina esse animal doente. 
Comandar, para ele, vira um objetivo a ser conquistado a qualquer preço. “Chega de ser 
servo, agora chegou o grande momento de ser senhor!” Ele sente que viver de pequenos 
prazeres à custa de sofrimento e obediência não é mais o suficiente para lhe dar a 
“grande felicidade”. Dinheiro, prestígio, glória: há em todo servo uma forte tendência 
para tornar-se senhor. O poder como algo que lhe falta... E como é fácil dar-lhe um 
sinal de que a vida pode ser muito mais interessante! Basta fornecer-lhe o chicote para 
que ele sinta-se bem melhor... Momentaneamente, o homem reativo imagina que fez as 
pazes com a vida... O seu aumento de potência segue refém da representação: o 
deslocamento de servo para senhor não passa de uma grande ilusão! Uma simulação de 
comando – é disso que se trata. Pela incapacidade de receber, o homem reativo imagina 
que comanda, que pode "dar" (“Você deve ser grato a mim porque eu pago o seu 
salário”). Ele está sempre à espera das vantagens, de que o outro se submeta aos seus 
interesses mesquinhos. Eis a moral dos escravos, que se merecem: os que procuram 
proteção e prazer sob as asas de um poder e os que procuram alcançar o poder para 
fruir, o máximo possível, as riquezas e as honras... É importante que isto seja dito: é 
impossível que o homem reativo seja dadivoso, pois o seu modo de vida é, 
inevitavelmente, parasitário. Por trás de máscaras sociais como“pessoa de bem”, 
“trabalhadora”, “justa”, “grande profissional”, “bom marido”, “boa esposa”, existe um 
ódio contra todos aqueles que ousam desobedecer as suas regras... Sintoma de 
degeneração do homem, perda do sentido da cultura... Nietzsche dizia que o seu saber 
vinha das narinas: ele farejava a decomposição. Isto quer dizer: quem não cria, 
degenera. 
A inversão desse cenário pavoroso acontece quando a força ativa adestra a força 
reativa, triunfando na obediência e no comando. A adaptação surge apenas como efeito 
desse processo. No trecho seguinte, Nietzsche nos diz sobre a primazia da vontade de 
potência afirmativa e das forças ativas: 
 
“Os fisiólogos deveriam refletir, antes de estabelecer o impulso de autoconservação 
como o impulso cardinal de um ser orgânico. Toda criatura viva quer antes de tudo dar 
vazão a sua força – a própria vida é vontade de potência – : a autoconservação é apenas 
uma das indiretas, mais freqüentes conseqüências disso.”32 
 
 16 
Um homem é ativo porque experimenta a arte de obedecer (ou de receber) e de 
comandar (ou de agir), fora da representação. Portanto, a força reativa passa a cumprir, 
de fato, a sua função secundária, que é receber e processar fluxos. A função primária é 
cumprida pela força ativa e dominadora. Ao contrário da obediência do homem reativo, 
o homem ativo, nas relações com as forças do acaso, experimenta as variações da sua 
potência – as intensidades – para ter ciência daquilo que ele pode no encontro. 
Receptivo ao inédito, pela experiência ele aprende a selecionar os encontros que o 
tornam mais forte e a evitar os que o enfraquecem. Note-se bem: “evitar”, aqui, não 
quer dizer “negar”, porque não se trata de julgamento moral, mas, sobretudo, de 
experimentar os encontros que, na maioria das vezes, não dependem de nós para 
acontecer. O ressentimento não o domina... Há excelentes passagens no “Ecce Homo” 
sobre o cuidado que Nietzsche tinha com a escolha da alimentação, do clima, dos livros. 
Trata-se de um cuidado de si mesmo, que podemos reaprender: 
 
“Aquele ‘fatalismo russo’ de que falei mostrou-se em mim no fato de que durante anos 
apeguei-me tenazmente a situações, paragens, moradas, companhias quase 
insuportáveis, uma vez que me haviam sido dispostas pelo acaso – era melhor do que 
mudá-las, do que senti-las como mutáveis – do que revoltar-se contra elas...”33 
 
“[...] essas pequenas coisas – alimentação, lugar, clima, distração, toda a casuística do 
egoísmo – são inconcebivelmente mais importantes do que tudo o que até agora tomou-
se como importante. Nisto exatamente é preciso começar a reaprender.”34 
 
Somos produzidos pelas relações que experimentamos a todo instante – relações 
que não obedecem à ordem de um poder divino ou de um sujeito que organiza a 
realidade à sua maneira. O homem ativo aprende a fazer a distinção entre a obediência 
ao poder e a obediência à potência. Todo “tu deves” é um mandamento de natureza 
negativa e reativa, sendo, portanto, de subtração das forças ativas. Ora, o homem ativo 
aprende que a religião, a política, a ciência, estão banhados de valores adaptativos e de 
subjugação dos tipos fortes. Isso é insuportável para ele. Daí a necessidade que ele sente 
de priorizar os encontros que ressoam com a sua singularidade. Um livro, uma música, 
um filme, um indivíduo, enfim, ele quer sugar o máximo que pode das forças que 
atingem o seu corpo, para transformá-las em aliadas. Há um prazer em ver, ouvir, 
cheirar, saborear, em acumular riquezas: obedecer à potência, e não ao poder, lhe torna 
fecundo... Nisto a palavra “humildade” tem toda a sua nobreza... Certos afetos aceleram 
 17 
a sua metamorfose: daqui a algum tempo, o veremos escrever e falar de modo diferente; 
sua postura irá mudar, sua voz estará mais forte, o seu olhar estará mais confiante. 35 
Esse espírito livre é sábio porque encontra as idéias mais ousadas, os lugares mais 
acolhedores. A arte do encontro é a sua especialidade. Ao contrário do homem reativo, 
ele está livre da inveja (afinal, o que há para ele invejar se a sua vontade não é a da 
falta?). Portanto, o espírito livre pode admirar e amar aquilo que é grande... Ele sabe 
escolher os seus alimentos e por isso ama-os... Zaratustra já dizia que o espírito é um 
estômago. Saber selecionar a alimentação é um sintoma de saúde: 
 
“De que aprenderam mal e não o que havia de melhor e tudo cedo demais e demasiado 
depressa: de que comeram mal, daí lhes proveio aquele estômago estragado – um 
estômago estragado, com efeito, é seu espírito: esse lhes aconselha a morte! Porque na 
verdade, meus irmãos, o espírito é um estômago! [...] Conhecer: este é o prazer para 
quem tem a vontade do leão!”36 
 
Amor ao conhecimento é amor à obediência... Pois somente assim o espírito 
livre pode comandar e distribuir. Ele torna-se grande demais para exigir algo em troca, 
porque transborda de riquezas... Virtude dadivosa: o espírito livre sente que é eterno no 
seu esgotamento ao doar-se; e suas obras passam a viver por si próprias, alimentando os 
espíritos que sabem recebê-las. As obras sobrevivem à sua carne e seu sangue. Não há 
estoques – pois os estoques não sobreviverão a ele –, nenhum arquivo erudito: tudo é 
prazerosamente distribuído... Comunismo cosmológico: a vida que ama a si mesma se 
produz dadivosamente. 
 
“Tornar-vos vós mesmos oferendas e dádivas, é essa a vossa sede; e, por isso, tendes 
sede de acumular, na vossa alma, todas as riquezas. Insaciável, aspira vossa alma a 
tesouros e jóias, porque insaciável é a vossa virtude em querer dar presentes. Obrigais 
todas as coisas a ir a vós e a estar em vós, para que voltem a fluir do vosso manancial 
como dádivas do vosso amor.”37 
 
Já o homem reativo sobrevive de modo mesquinho, precisou criar uma estranha 
imagem do amor e, por isso, vive infeliz. Leva a sua existência de modo fúnebre, não 
cansa de pensar na morte – e esse é o seu perigo para o espírito livre: ele é um 
reprodutor de infelicidade... 38 E qual é a saída que esses mortos-vivos inventaram para 
 18 
afastar de si toda perspectiva suicida? Inventaram a felicidade como refúgio das 
inquietações diárias. 
 
“[...] tudo isso o oposto da felicidade no nível dos impotentes, opressos, achacados por 
sentimentos hostis e venenosos, nos quais ela aparece essencialmente como narcose, 
entorpecimento, sossego, paz, ‘sabbat’, distensão do ânimo e relaxamento dos 
membros, ou, numa palavra, passivamente.”39 
 
Os senhores, ao contrário, vivem felizes porque sabem que a felicidade faz parte 
da ação. Para eles, a felicidade é uma superação 40: o aumento de potência cria novos 
modos de interpretar e de avaliar. 
 
“[...] sendo homens plenos, repletos de força e portanto necessariamente ativos, não 
sabiam separar a felicidade da ação – para eles, ser ativo é parte necessária da 
felicidade.”41 
 
Os senhores libertam a existência do tédio e da degeneração. Abrem novos 
horizontes existenciais, derrubam regras que foram estabelecidas há muito tempo. Eis a 
importância da distinção real entre senhores e escravos. Pura sensibilidade do filósofo 
genealogista. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 19 
“E nenhuma chama nos devora tão rapidamente quanto os afetos do 
ressentimento.O aborrecimento, a suscetibilidade doentia, a impotência 
 de vingança, o desejo, a sede de vingança, o revolver venenos em todo 
sentido[...] O ressentimento é o proibido em si para o doente – seu mal: 
 infelizmente também sua mais natural inclinação.” 42 
 
 
 
 
Ressentimento e Má Consciência 
 
A humanidade, como a conhecemos, é constituída por um devir reativo das 
forças. Portanto, é fundamental pensarmos sobre como isso se deu. Vimos que os 
valores foram invertidos através da nociva aliança entre a vontade de negação e a força 
reativa. Mas há também dois sintomas essenciais que constituem esse devir reativo: o 
ressentimento e a má consciência. Sobre isso, diz Deleuze: “Honra a Nietzsche por ter 
sabido isolar essas duas plantas, o ressentimento e a má consciência.”43 
Em razão disso, é importante pensarmos sobre as relações de poder. Um 
pensador francês do século XVI, Etienne de La Boétie, tocou num dos pontos principais 
da filosofia: por que as multidões vêem alguma vantagem em prover o poder? No 
“Discurso da Servidão Voluntária”, ele diz: 
 
“Por hora gostaria apenas de entender como pode ser que tantos homens, tantos burgos, 
tantas cidades, tantas nações suportam às vezes um tirano só, que tem apenas o poderio 
que eles lhe dão [...] Como diremos que isso se chama? Que infortúnio é esse? Que 
vício, ou antes, que vício infeliz ver um número infinito de pessoas não obedecer mas 
servir, não serem governadas mas tiranizadas, não tendo nem bens, nem parentes, 
mulheres ou crianças, nem sua própria vida que lhes pertença; aturando os roubos, os 
deboches, as crueldades, não de um exército [...] mas de um só; não de um Hércules 
nem de um Sansão, mas de um só homenzinho [...] No entanto, não é preciso combater 
esse único tirano, não é preciso anulá-lo; ele se anula por si mesmo, contanto que o país 
não consinta a sua servidão; não se deve tirar-lhe coisa alguma, e sim nada lhe dar [...] 
Portanto são os próprios povos que se deixam, ou melhor, se fazem dominar.”44 
 
 20 
“[...] os homens nascidos sob o jugo, mais tarde educados e criados na servidão, sem 
olhar mais longe, contentam-se em viver como nasceram; e como não pensam ter outro 
bem nem outro direito que o que encontraram, consideram natural a condição de seu 
nascimento”45 
 
La Boétie não chegou a produzir uma crítica radical que nos leve a entender 
melhor esse estranho fenômeno de um povo que busca a sua própria servidão. Mas 
encontramos essa crítica em Espinosa e Nietzsche: são os pensadores que mais foram a 
fundo na crítica da servidão humana. Em Nietzsche, o problema é colocado da seguinte 
forma: quem, em nós, é cúmplice do poder? Quem, em nós, quer obedecer ao poder e 
almeja, também, ter o poder?... 
Nos encontros que experimentamos, há uma tendência do domínio das forças 
reativas ao fixarem-se em imagens – em toda imagem há afeto. Podemos querer 
encontrar uma causa exterior aos desprazeres ou prazeres que experimentamos, já que a 
imagem, em vez de ficar no estado latente – de “digestão”, inconsciente –, fixa-se 
temporariamente na consciência. Assim, a imagem torna-se, momentaneamente, um 
bloqueio para novos fluxos que o corpo recebe. Ressentir a imagem pode ser uma 
experiência prazerosa ou um verdadeiro tormento. Mas isso é apenas o primeiro aspecto 
do ressentimento (que pode se tornar venenoso), o que Nietzsche chama de psicologia 
animal: um momentâneo deslocamento das forças reativas, caracterizando um estado 
bruto. 46 Para quem é ativo, ou seja, quando a força ativa está no comando, o 
ressentimento não chega a dominar: a imagem desloca-se da superfície (“consciência é 
superfície”47) para a profundidade. Eis o que Nietzsche chama de verdadeira reação, “a 
dos atos”48, que acelera o processo: a força ativa adestra a força reativa para receber as 
excitações novas, e não para ruminar as imagens do passado que sobem à superfície. 
Não há tempo para ficar atolado na lama da conservação das marcas; o homem ativo 
passa por esse processo rapidamente. Um excesso de força ativa e um querer inteiro 
constituem a sua saúde. 
 
“Fechar temporariamente as portas e janelas da consciência [...] para que novamente 
haja lugar para o novo.”49 
 
“Mesmo o ressentimento do homem nobre, quando nele aparece, se consome e se 
exaure numa reação imediata, por isso não envenena: por outro lado, nem sequer 
 21 
aparece, em inúmeros casos em que é inevitável nos impotentes e fracos. Não conseguir 
levar a sério por muito tempo seus inimigos, suas desventuras, seus malfeitos inclusive 
– eis o indício de naturezas fortes e plenas, em que há um excesso de força plástica, 
modeladora, regeneradora, propiciadora do esquecimento.”50 
 
A reação a esse primeiro aspecto do ressentimento caracteriza-se através de duas 
maneiras: cozinhar o acaso na panela para transformá-lo num alimento 51 (reação ativa) 
ou sentir-se um injustiçado, uma vítima do destino, que quer encontrar uma causa pelo 
que sofreu (reação reativa). Na segunda reação, não há dúvida de que “a lembrança é 
uma ferida supurante”52. O mundo torna-se cinzento, um mar de injustiças, um 
sofrimento interminável: o devir tornar-se algo abominável. Os fluxos que chegam são 
interpretados pelas imagens do passado: tudo o que é novo é submetido ao velho. 
Gradualmente, o esquecimento, como força inibidora, deixa de funcionar. 
 
“O homem no qual esse aparelho inibidor é danificado e deixa de funcionar pode ser 
comparado (e não só comparado) a um dispéptico – de nada consegue ‘dar conta’...”53 
 
Esse dispéptico precisa de um alívio para o seu sofrimento, de uma causa para o 
seu infortúnio, de um antídoto para esse veneno. Já podemos entender melhor o que 
acontece: os momentos em que podemos ter uma inclinação a um domínio da vontade 
de negação e da força reativa – um niilismo emergente – são quando as marcas alojam-
se na consciência. O envenenamento ocorre quando se perde o devir ativo para entrar 
em um devir reativo, ou seja, de ruminação das marcas, tornando a vida pesada... O 
ressentido não se abre mais às experimentações inocentes do devir por medo de 
aumentar o seu sofrimento, de que se repita o que, antes, deu errado: é o lamuriento. 
Então, essa ovelha doente vai precisar de um pastor – e o pastor vai precisar dessas 
ovelhas ressentidas para formar o seu rebanho. Nietzsche introduz o agente fundamental 
no processo de fomentação de doentes: o sacerdote ascético judaico 54. Em um cenário 
propício para que uma moral seja desejada, o sacerdote cumpre aquilo que faltava para 
o seu triunfo: ele dá forma ao ressentimento (o segundo aspecto do ressentimento). Isso 
quer dizer o seguinte: a fundação do poder sacerdotal judaico surge através da tristeza 
das massas, atoladas no ressentimento, utilizando-as como matéria-prima para o 
estabelecimento do seu domínio. Através do ideal ascético, “o sofrimento era 
interpretado; a monstruosa lacuna parecia preenchida; a porta se fechava para todo 
 22 
niilismo suicida”55. Percebemos que não há poder que não se mantém sem a vida 
impotente: quanto maior o número de fracos, melhor. Fórmula básica para a formação 
de igrejas, por exemplo... O mundo passa a ser interpretado pelos signos: acredita-se 
que no signo abriga toda a explicação do que acontece... O que não pode ser controlado, 
o simulacro, passa a ser a causa das injúrias. O sacerdote, que é também um ressentido, 
encontra, através do poder, umamaneira de direcionar o desejo dos seus sofredores, 
dando um sentido à vida deles. 56 
A moral é o lugar do juízo, com valores que interessam somente à vida dos 
“malogrados, atrofiados, amargurados, envenenados”57. Ocorre a inversão do “bom e 
ruim”, para o “bom e mau”. Ao contrário da distinção que os homens ativos 
estabeleceram entre “bom” (o criador, o comandante) e “ruim” (o animal de carga, o 
sofredor), o sacerdote inventou a distinção moral entre “bons” (nós, as vítimas) e 
“maus” (eles, os culpados). Portanto, através dessa visão invertida, toda ovelha que 
segue o seu pastor imagina o seu oposto como “mau”. E quem é o oposto? O animal de 
rapina, aquele que age sem pensar nas conseqüências, que não segue o que está 
estabelecido e, por isso, é uma ameaça ao rebanho. Por ser obediente ao sacerdote que 
lhe “protege” do acaso, o homem do ressentimento se considera “bom” porque, antes de 
tudo, o seu oposto é “mau”. 
 
“Enquanto toda moral nobre nasce de um triunfante Sim a si mesma, já de início a 
moral escrava diz Não a um ‘fora’, um ‘outro, um ‘não-eu’ – e este Não é seu ato 
criador. Esta inversão do olhar que estabelece valores – este necessário dirigir-se para 
fora, em vez de voltar-se para si – é algo próprio do ressentimento: a moral escrava 
sempre requer, para nascer, um mundo oposto e exterior, para poder agir em absoluto – 
sua ação é no fundo reação.”58 
 
“[...] imaginemos ‘o inimigo’ tal como o concebe o homem do ressentimento – e 
precisamente nisso está seu feito, sua criação: ele concebeu ‘o inimigo mau’, ‘o mau’, e 
isto como conceito básico, a partir do qual também elabora, como imagem equivalente, 
um ‘bom’ – ele mesmo!...”59 
 
 A moral do ressentimento expande-se através da acusação aos homens ativos. 
“Tudo que é diferente a ‘nós, os bons’, deve ser acusado como ‘mau e culpado’”, assim 
diz o pastor para as suas ovelhas – o paralogismo do homem do ressentimento. Mas 
Nietzsche diz que impedir uma força de se expressar é um absurdo: 
 23 
 
“Exigir da força que não se expresse como força, que não seja um querer-dominar, um 
querer-vencer, um querer-subjugar, uma sede de inimigos, resistências, triunfos, é tão 
absurdo quanto exigir da fraqueza que se expresse como força [...] apenas sob a sedução 
da linguagem [...] a qual entende ou mal-entende que todo atuar é determinado por um 
atuante, um ‘sujeito’ é que pode parecer diferente.”60 
 
A acusação do homem do ressentimento dirige-se sempre a uma ação, ou a uma 
força que, ao se expressar, causou-lhe algum dano. Ele imagina que a realidade, em 
algum momento, voltou-se contra ele – ele, uma pessoa tão “boa”, que “escolheu” o 
caminho do “bem”, tornou-se “vítima” de alguém que poderia ter “escolhido” o mesmo 
caminho da subtração das forças ativas, respeitando o “direito” dos outros, dos seus 
iguais, da sua comunidade. Mas o que está em jogo é sempre uma relação entre forças: 
dominado pela força reativa, essa “vítima” do acaso não pode, de fato, agir – e fez disso 
uma virtude. O homem do ressentimento “tomou a roupagem pomposa da virtude que 
cala, renuncia, espera, como se a fraqueza mesma dos fracos [...] fosse um 
empreendimento voluntário, algo desejado, escolhido, um feito, um mérito.”61 O homem 
ativo, ao contrário, apenas age pela natureza das suas forças agressivas: 
 
“O homem ativo, violento, excessivo, está sempre bem mais próximo da justiça que o 
homem reativo; pois ele não necessita em absoluto avaliar seu objeto de modo falso e 
parcial, como faz, como tem que fazer o homem reativo.”62 
 
O forte sempre está em real perigo. Através da acusação dos fracos (que 
encontram no forte a causa de algum desprazer sofrido, por não ter respeitado os 
sentimentos deles, por não ter pensado na felicidade do rebanho, etc.), há o risco 
permanente de entrar em um devir reativo. É o que leva Nietzsche alertar que “os 
doentes são o maior perigo para os sãos”63. Nota-se o enorme risco do homem forte ser 
contaminado pelo veneno mortal do ressentimento (o que pode transformá-lo também 
num morto-vivo), porque ao ser acusado (principalmente por pessoas tão próximas a ele, 
que querem apenas o “bem” dele... a instituição familiar, neste ponto, é insuperável...), 
corre um gigantesco risco de envergonhar-se da sua ação e sentir-se culpado pelo seu 
ato...64 A multiplicação do rebanho e a expansão dos valores nocivos à vida apenas 
tornam-se possíveis pela subtração das forças ativas dos fortes. Através de um terrível 
 24 
sistema de aniquilação dos homens ativos, o poder sacerdotal cresce a tal ponto que os 
tipos saudáveis tornam-se cada vez mais escassos. É possível constatarmos que o 
mundo humano que conhecemos foi constituído por doses cavalares do veneno 
rancoroso contra tudo o que é alegre e saudável por si mesmo. 
 
“São para mim desagradáveis as pessoas nas quais todo pendor natural se transforma em 
doença, em algo deformante e ignominioso - elas nos induziram a crer que os pendores 
e impulsos do ser humano são maus; elas são a causa de nossa grande injustiça para 
com a nossa natureza, para com toda natureza! Há pessoas bastantes que podem se 
entregar a seus impulsos com graça e despreocupação: mas não o fazem, por medo 
dessa imaginária ‘má essência’ da natureza!”65 
 
Os fracos não suportam a felicidade dos fortes. O que os ressentidos não 
conseguem entender é que os saudáveis não têm vergonha de rir, de ser egoístas, de 
estarem felizes no meio de tantos sofredores. Por não saberem o que é o amor, o que 
eles mais desejam é o amor de alguém – até de Deus. Querem ser cada vez mais 
mimados, nunca se dão por satisfeitos, e esse é o perigo deles: quando os agrados 
cessam, eles acusam quem quer que seja de não amá-los mais, injetando doses do 
mortífero veneno da culpa... 
Mas o triunfo das forças reativas não elimina as forças ativas dos fracos. Por não 
estarem no comando, as forças ativas tomam uma outra direção, voltando-se para 
dentro do homem. 
 
“Todos os instintos que não se descarregam para fora voltam-se para dentro – isto é o 
que chamo de interiorização do homem [...] A hostilidade, a crueldade, o prazer na 
perseguição, no assalto, na mudança, na destruição – tudo isso se voltando contra os 
possuidores de tais instintos: esta é a origem da má consciência.”66 
 
Esse movimento de interiorização das forças ativas, segundo a hipótese de 
Nietzsche, somente foi possível através do surgimento do Estado. Não nos fundadores 
de Estado, mas como conseqüência da magnitude desse ato. 
 
“Neles [os fundadores de Estado] não nasceu a má consciência, isto é mais do que claro 
– mas sem eles ela não teria nascido, essa planta hedionda, ela não existiria se, sob o 
peso dos seus golpes de martelo, da sua violência de artistas, um enorme quantum de 
 25 
liberdade não tivesse sido eliminado do mundo, ou ao menos do campo da visão, e 
tornado como que latente. Esse instinto de liberdade tornado latente à força – já 
compreendemos –, esse instinto de liberdade reprimido, recuado, encarcerado no 
íntimo, por fim capaz de desafogar-se somente em si mesmo: isto, apenas isto, foi em 
seus começos a má consciência.”67 
 
As forças ativas, não vazadas, não cessam de multiplicar as dores. Ao ser 
domesticado pelo Estado, o homem tornou-se, gradualmente, um animal cruel consigo 
mesmo.68 Como é evidente, todo aquele que sofre quer livrar-se das suas dores. No 
ressentimento, já como aspecto formal,o culpado é identificado e punido. A esperança 
daquele que sofre é que, após a consumação da vingança, as dores desapareçam, já que 
o culpado teve o “fim que mereceu”. 
 
“[...] pois todo sofredor busca instintivamente uma causa para seu sofrimento; mais 
precisamente, um agente culpado suscetível de sofrimento – em suma, algo vivo, no 
qual possa sob algum pretexto descarregar os seus afetos [...] pois a descarga de afeto é 
para o sofredor a maior tentativa de alívio, de entorpecimento, seu involuntariamente 
ansiado narcótico para tormentos de qualquer espécie.”69 
 
Mas, apesar disso, o sofrimento não vai embora. Por mais que os culpados sejam 
punidos, permanecer vivo ainda continua a ser um fardo. Dominado pelas forças 
reativas, o sofredor continua a não agir, tornando-se obediente, preocupando-se em 
respeitar as regras estabelecidas. É a ovelha que todo pastor gosta porque está sempre 
prestativa. 
Esse movimento de interiorização das forças ativas é o primeiro aspecto da má 
consciência. Enquanto que no homem ativo a interiorização das forças, quando surge, 
não chega a dominá-lo, no homem reativo essa interiorização pode se multiplicar a 
níveis insuportáveis. Ele acredita que tudo que faz dá errado, que é um frustrado, que 
não consegue fazer sozinho muitas coisas. Temos nesse cenário um emergente 
sentimento de que a dívida para com o poder cresce, de que “algo de errado acontece 
com a vida dessa ovelha”, de que “ela precisa cada vez mais de ajuda”. É aí que o 
sacerdote cristão interpretará a dor como uma dívida, um pecado... A dor sob a 
perspectiva da culpa... Pois a culpa que, outrora, era da ave de rapina (“sofro, portanto 
 26 
alguém deve ser culpado”), volta-se contra a própria ovelha... Antes mesmo que o ódio 
do ressentimento se dirija contra o próprio sacerdote, ele inverte a direção da acusação: 
 
“De fato, ele defende muito bem o seu rebanho enfermo, esse estranho pastor – ele o 
defende também de si mesmo [...] ele combate, de modo sagaz, duro e secreto, a 
anarquia e a autodissolução que a todo momento ameaçam o rebanho, no qual aquele 
mais perigoso dos explosivos, o ressentimento, é continuamente acumulado. 
Descarregar este explosivo, de modo que não faça saltar pelos ares o rebanho e o pastor, 
é a sua peculiar habilidade, e suprema utilidade; querendo-se resumir numa breve 
fórmula o valor da existência sacerdotal, pode-se dizer simplesmente: o sacerdote é 
aquele que muda a direção do ressentimento.”70 
 
O sacerdote cristão diz para o sofredor: “Você é o único culpado por estar 
sofrendo! Somos todos pecadores, por isso viver na Terra é uma enfermidade!”. Ele deu 
um novo sentido para a dor (“Adão”, “pecado original”...); este movimento é o segundo 
aspecto da má consciência, que é o aspecto formal. Através dessa fabulação inventada 
por Paulo de Tarso 71, o cristianismo, ao contrário do judaísmo, universalizou-se, 
espalhando-se por outros cantos do mundo: a interpretação da dor como pecado foi 
suficientemente contagiosa para expandir o seu poder. 
 
“Paulo [...] contra Roma, contra o ‘mundo’, o judeu, o judeu errante par excellence... O 
que ele adivinhou foi o modo como poderia atear um ‘incêndio universal’ com a ajuda 
do pequeno movimento sectário dos cristãos, à parte do judaísmo; como com o símbolo 
‘Deus na cruz’ conseguira reunir num poder imenso tudo quanto era inferior.”72 
 
E para manter o seu reino, o sacerdote fere para depois “curar.”73 E qual é a 
“cura” que ele oferece? Expiar a culpa, não pelo ódio, mas pela compaixão... O 
sacerdote cristão serve-se disso para fundar o seu reino: a fórmula “Jesus morreu pelos 
nossos pecados” foi forte o suficiente para reverter o ódio do Deus judaico para o amor 
do Deus cristão – “Perdoai-os Pai, pois eles não sabem o que fazem!”. Nietzsche diz 
que esse “amor” foi o golpe de gênio do cristianismo: 
 
“[...] o próprio Deus se sacrificando pela culpa dos homens, o próprio Deus pagando a si 
mesmo, Deus como o único que pode redimir o homem daquilo que para o próprio 
 27 
homem se tornou irredimível – o credor se sacrificando por seu devedor, por amor (é de 
se dar crédito?), por amor a seu devedor!...”74 
 
O credor é “fiel”, tem os pecadores “dentro do seu coração”... A dívida atinge 
proporções estratosféricas. O mundo dos doentes constitui-se pelo “amor ao próximo”, 
que é o amor do fraco pelo mais fraco... Com que interesse? Para salvar a própria 
alma! No dia do “juízo final”, o céu será a recompensa para aqueles que, apesar de 
terem levado uma existência sofrível, permaneceram fiéis às palavras de Deus; já o 
inferno será o destino inevitável dos pecadores incuráveis, possuídos pelas forças 
demoníacas. Vitória da insanidade, da doença, da fraqueza sobre a Terra. Multiplicação 
dos malogrados; o poder como a única coisa que resta para os enfermos se agarrarem... 
As igrejas estão de portas abertas para abrigar os seus “clientes”: o mau-cheiro que sai 
de dentro delas é insuportável para quem está acostumado a atmosferas mais 
saudáveis... 
 O sacerdote diz: “livrai-vos das tentações da carne”. Quando isso não acontece 
(o que é inevitável – e isso as igrejas usam muito bem...), o doente vê a dívida 
aumentar, pois, afinal de contas, o risco de viver a dor que ele sente nesta vida numa 
outra vida, eternamente no inferno, causa-lhe um grande tormento! A sua salvação é 
correr em direção ao sacerdote para confessar os seus pecados na esperança de redimir-
se. Grande estratégia do poder sacerdotal: rolar a dívida, tornando-a impagável, para 
manter o devedor sempre sob o seu jugo – e o uso dos desejos sexuais, por exemplo, 
estão a serviço desse nefasto sistema de aprisionamento da vida. Sem a instauração do 
mecanismo da dívida impagável, não há poder... Não há como o poder se sustentar sem 
o arrependimento dos seus servos... O penitente abaixa a cabeça diante do sacerdote 
para pedir-lhe clemência... O que é a cruz, senão um símbolo da culpa que está 
espalhado por todos os cantos para quer o devedor nunca se esqueça da sua dívida?... 
Indo mais além: o que é a dívida familiar, ou seja, a dívida para com os nossos pais? 
Com o empregador? Com a sociedade? São armadilhas do poder... Não foi por acaso 
que Nietzsche disse que a má consciência é uma planta hedionda... 
 Já podemos entender melhor a receita para o estabelecimento do insano 
investimento no poder. Os ingredientes são: ressentimento (marcas alojadas na 
consciência, bloqueio das novas experimentações), vontade de negação (a realidade 
torna-se dura demais para ser afirmada), triunfo das forças reativas (conservação dos 
modos de vida estabelecidos), má consciência (interiorização das forças ativas), o 
 28 
sacerdote (o médico das almas doentes e guia indispensável para “resolver” as 
infelicidades da existência), ressentimento e má consciência como aspectos formais (a 
culpa é do outro, a culpa é minha) e o ideal ascético (a salvação da alma, a esperança de 
alcançar uma vida feliz)... Por isso Nietzsche diz que “o homem é, em termos relativos, 
o animal mais falhado, o mais doente, o mais perigosamente desviado dos seus instintos 
– sem dúvida também, com tudo isso, o mais interessante!”75 A obediência, o comando, 
o amor, a felicidade, o prazer, enfim, tudo é invertido pelas ficções que a vida 
impotente, obstinadamente, não cessa de reproduzir.29 
“Como gostaríamos de aplicar à sociedade e a seus fins um ensinamento que 
pudesse ser extraído da consideração de todas as espécies do reino animal e vegetal – 
para elas, somente importa o exemplar individual superior, o mais incomum, o mais 
poderoso, o mais complexo, o mais fecundo –, que prazer não haveria aí, se os 
preconceitos enraizados pela educação quanto à finalidade da sociedade não 
oferecessem uma pertinaz resistência!” 76 
 
 
 
 
O Sentido da Cultura 
 
 Na “Genealogia da Moral”, Nietzsche diz que durante o mais longo período do 
homem – a pré-história –, o trabalho do homem sobre o homem foi o meio para a 
produção de um tipo mais corajoso, soberano, capaz de prometer o futuro. Trata-se da 
cultura como produção do gênio... Nas sociedades primitivas a justiça é “a atividade 
genérica que adestra as forças reativas do homem”77. O castigo é o meio utilizado para 
que o indivíduo soberano seja produzido; somente aquele que domina as suas forças 
reativas pode se tornar um legislador. Trata-se, portanto, do sentido e do valor que o 
castigo possui para a atividade genérica. 
Já nas sociedades históricas – sociedades com Estado, igrejas, etc. –, a justiça 
nasce da planta venenosa do ressentimento e o castigo produz a planta da má 
consciência: nelas, o sentido da justiça é para vingar-se de um dano sofrido, e o do 
castigo é para produzir a culpa naquele que sofre a punição. Ora, se nas sociedades com 
Estado o castigo visa produzir a culpa, está claro que o que se pretende com isso é 
aumentar a dívida para com o poder, de maneira que aquele que sofre o castigo, ao 
sentir-se culpado pelo seu ato, continue submetido às normas vigentes. Por isso 
Nietzsche ataca os genealogistas da moral reativos, que “descobrem no castigo uma 
‘finalidade’ qualquer, por exemplo a vingança, ou a intimidação”78. Nas sociedades 
históricas, além do castigo ter a finalidade de produzir a culpa no criminoso, serve para 
impedir que os outros sigam o mesmo caminho (“se mexer com o poder, vai levar!”). 
Na atividade pré-histórica, isso não acontece: o castigo serve para que o torturado pague 
 30 
a sua dívida, e não para que a má consciência seja inoculada nele. Por isso diz 
Nietzsche que: 
 
 “A ‘má consciência’, a mais sinistra e mais interessante planta da nossa vegetação 
terrestre, não cresceu nesse terreno – de fato, por muitíssimo tempo os que julgavam e puniam 
não revelaram consciência de estar lidando com um ‘culpado’. Mas sim um causador de danos, 
com um irresponsável fragmento do destino.” 79 
 
Nesse caso, o castigo, como ritual de crueldade, serve para equivaler a dor ao 
dano causado para a comunidade. Com isso, consegue-se produzir no torturado uma 
outra memória, que é a memória de que há sempre um trabalho – o maior de todos – a 
ser realizado: o da produção ética do futuro. Produzir um tipo forte, para uma sociedade 
forte, é o que deseja a justiça primitiva. 
 
“‘Como fazer do bicho-homem uma memória? Como gravar algo indelével nessa 
inteligência voltada para o instante, meio obtusa, meio leviana, nessa encarnação do 
esquecimento?’... Esse antiqüíssimo problema, pode-se imaginar, não foi resolvido 
exatamente com meios e respostas suaves; talvez nada exista de mais terrível e 
inquietante na pré-história do homem do que sua mnemotécnica.”80 
 
Não há um sentimento de revolta naquele que sofre um ritual de crueldade. E 
porque essa revolta não acontece, já que o nosso mundo civilizado apenas conhece o 
castigo no seu uso mais vulgar, ou seja, reprimir para produzir o sentimento da culpa? 
Porque nos rituais de crueldade não é um Estado ou um sujeito injustiçado que exerce o 
poder de castigar, mas sim a própria tribo que, nesses rituais, demonstra toda a sua 
alegria através das suas grandes festas... Há um grande gozo coletivo; fazer sofrer dá 
prazer à tribo... Ao contrário da má consciência – que é o sentido interno da dor – a dor 
no mundo primitivo tem um sentido externo: ela é sempre a alegria de alguém que a 
contempla... Segundo Nietzsche, era assim também no antigo mundo grego, onde a dor 
era a ocasião para os deuses rirem: 
 
“Com que olhos pensam vocês que os deuses homéricos olhavam os destinos dos 
homens? Que sentido tinham no fundo as guerras de Tróia e semelhantes trágicos 
horrores? Não há como duvidar: eram festivais para os deuses.”81 
 
 31 
“Por muito e muito tempo, esses gregos se utilizaram dos seus deuses precisamente para 
manter afastada a ‘má consciência’, para poder continuar gozando a liberdade da alma: 
uso contrário, portanto, ao que o cristianismo fez do seu Deus.”82 
 
No mundo pré-histórico, a dor serve como um excitante, como uma nova 
disposição das forças, como uma reação, como uma maneira de produzir um homem 
forte, como uma alegria para os deuses. A dor é uma oportunidade para prestar 
homenagens à vida, como uma das condições indispensáveis para que um povo possa 
superar-se. Portanto, tem o sentido contrário ao da moral judaica-cristã, onde a dor é 
sempre uma oposição à vida. 
O castigo, na atividade genérica, é utilizado para potencializar as forças do 
torturado. Ao adestrar as suas forças reativas, o torturado paga a sua dívida para com a 
tribo, porque, afinal de contas, o que o credor mais deseja é que a dívida seja paga, o 
que não acontece, vale recordar, com o credor das sociedades históricas... No mundo 
primitivo, os torturados podem pensar assim: “algo aqui saiu errado” e não “eu não 
devia ter feito isso”83... A tribo fica mais forte ao produzir alguém responsável pelas 
suas forças reativas, adestrando-as para prometer o futuro. Memória da produção da 
cultura. E para que isso aconteça, a lei da tribo é inscrita no próprio corpo do torturado. 
Na esteira de Nietzsche, Pierre Clastres diz: 
 
“De uma tribo a outra, de uma a outra região, diferem as técnicas, os meios, os objetivos 
explicitamente afirmados da crueldade; mas a meta é sempre a mesma: provocar o 
sofrimento.” 84 
 
“Entretanto, depois da iniciação, já esquecido todo o sofrimento, ainda subsiste algo, 
um saldo irrevogável, os sulcos deixados no corpo pela operação executada pela faca ou 
a pedra, as cicatrizes das feridas recebidas [...] A marca é um obstáculo ao 
esquecimento, o próprio corpo traz impressos em si os sulcos da lembrança – o corpo é 
uma memória [...] Que sabem agora o jovem caçador guayaki, o jovem guerreiro 
mandan? ‘És um dos nossos e não te esquecerás disso’.”85 
 
É possível constatarmos que a luta dessa atividade genérica é contra o Estado; 
mas também podemos afirmar: ela luta contra o ressentimento e a má consciência. 
 
 32 
“[...] eis a utilidade do esquecimento, ativo, como disse, espécie de guardião da porta, 
zelador da ordem psíquica, da paz, da etiqueta: com o que logo se vê que não poderia 
haver felicidade, jovialidade, esperança, orgulho, presente, sem o esquecimento [...] 
Precisamente esse animal que necessita esquecer [...] desenvolveu em si uma faculdade 
oposta, uma memória [...] uma memória da vontade.”86 
 
Ao produzir essa memória da vontade, a atividade genérica produz alguém que é 
capaz de domar as suas paixões e fazer delas forças aliadas à criação: desse processo 
poderá surgir o indivíduo soberano, responsável por suas forças, que poderá responder 
por si. Produzir o gênio significa produzir aquele que irá superar um estágio da 
humanidade. Somente o indivíduo soberano, como produto dacultura, pode estabelecer 
uma nova justiça, já que a justiça que o produziu é suprimida 87. Nasce o indivíduo livre 
para criar novas leis. 
 
“Mas coloquemo-nos no fim do imenso processo, ali onde a árvore finalmente sazona 
seus frutos, onde a sociedade e sua moralidade do costume finalmente trazem à luz 
aquilo para o qual eram apenas o meio: encontramos então, como o fruto mais maduro 
da sua árvore, o indivíduo soberano, igual apenas a si mesmo, novamente liberado da 
moralidade do costume, indivíduo autônomo supramoral [...] o que pode fazer 
promessas – e nele encontramos, vibrante em cada músculo [...] uma verdadeira 
consciência de poder e liberdade, um sentimento de realização [...] O orgulhoso 
conhecimento do privilégio extraordinário da responsabilidade, a consciência dessa rara 
liberdade, desse poder sobre si mesmo e o destino, desceu nele até sua mais íntima 
profundeza e tornou-se instinto, instinto dominante.” 88 
 
“[...] posto que a humanidade pode tomar consciência da sua finalidade, ela tem de 
buscar e instaurar as circunstâncias favoráveis que permitiriam o nascimento destes 
grandes homens redentores [...] pois esta [a cultura] é a filha do conhecimento de si, e 
da insatisfação de si, de todo indivíduo. Aquele que apela para ela exprime isto dizendo: 
‘Vejo acima de mim algo de mais elevado e mais humano do que eu; ajudem-me todos 
a chegar aí, assim como ajudarei a qualquer um que reconheça a mesma coisa e sofra 
com ela, para que, enfim, renasça o homem que se sentirá completo e infinito no 
conhecimento e no amor [...] se agarrará à natureza e se inscreverá nela como juiz e 
medida do valor das coisas’.”89 
 
 33 
Ao contrário do socialismo da sua época, Nietzsche via na luta por igualdade de 
direitos um sintoma de decadência. Ele não se preocupou em fazer meras distinções 
sócio-econômicas entre classes sociais; não perdeu tempo com isso. O que lhe 
interessava era a distinção do tipo fisiológico – aquele que tem excesso ou diminuição 
de forças, ou seja, quem pode dominar e quem pode ser dominado. 
 
“Em toda sociedade sã, distinguem-se três tipos fisiológicos que entre si se 
condicionam, mas são de diversa gravitação, dos quais cada um tem a sua própria 
higiene, o seu próprio domínio de trabalho e a sua própria espécie de sentimento de 
perfeição e mestria [...] A casta superior – a quem chamo os poucos – como a mais 
perfeita, tem também os privilégios do menor número: cabe-lhe representar sobre a 
Terra a felicidade, a beleza e a bondade [...] Os homens mais espirituais, por serem os 
mais fortes, encontram a sua felicidade onde os outros deparariam com a sua ruína [...] 
A tarefa difícil surge-lhes como privilégio; brincar com pesos que oprimem os outros é 
para eles recreação... [...] Dominam, não porque queiram dominar, mas porque são [...] 
Os segundos: estes são as sentinelas do direito, os guardiães da ordem e da segurança, 
os nobres guerreiros [...] são os executivos dos espirituais [...] a desigualdade dos 
direitos é a primeira condição para que em geral haja direitos. Um direito é um 
privilégio.”90 
 
Certamente, para o olhar domesticado do homem moderno e democrático, tais 
palavras são abomináveis. Por isso confundem Nietzsche como se ele fosse um terrível 
tirano, um sanguinário, um precursor do nazismo. Afastando essas interpretações 
equivocadas, podemos pensar sobre o que Nietzsche diz sobre a desigualdade dos 
direitos. Vejamos: ele diz que é a natureza que faz a separação. O que ele quer dizer 
com isso? É importante recordarmos que uma força nunca é igual a outra. A diferença 
entre as forças somente é constituída na relação. Essa diferença é a qualidade da força, 
portanto, sempre haverá uma dominante e outra dominada. Não há uma qualidade “em 
si” da força, que seria separada de uma relação com outra força. 
 
“É virtuoso que uma célula se transforme numa função de outra célula mais forte? Ela 
tem de fazê-lo. E é mau que a mais forte a assimile? Ela tem de fazê-lo também; é 
necessário que o faça, pois procura abundante substituição e quer regenerar-se. Alegria 
e desejo coexistem no mais forte, que quer transformar algo em função sua; alegria e 
vontade de ser desejado, no mais fraco, que gostaria de tornar-se função.”91 
 34 
Dizer que não há igualdade na natureza é o mesmo que dizer que não há um 
equilíbrio das forças. O desequilíbrio é absolutamente necessário. Um suposto 
equilíbrio seria a conclusão do universo, o que é um absurdo. O que se coloca, então, é 
o problema ético da dominação: é para o poder ou para a potência? É a dominação do 
homem ativo ou do reativo? Conhecemos o mundo sob a dominação do niilismo, que é 
o domínio do ressentimento, da má consciência e do ideal ascético. O triunfo do devir 
reativo é o triunfo da moral judaica-cristã, do sacerdote que fez dos sentimentos de ódio 
da vida impotente a oportunidade para expandir o seu poder. Ele acolheu todos os 
excluídos do privilégio da vida nobre – os do terceiro tipo fisiológico – para adoecê-los 
ainda mais. A multiplicação dos rebanhos, os valores de negação da vida passaram a 
dominar a vida humana. Mas já vimos do que se trata esse domínio: uma simulação de 
comando, nada mais além disso. É o rancor presente nos discursos humanistas dos 
falsos ídolos da nossa época, desses homens pequenos que precisam do poder para ter 
alguma credibilidade. Querem tudo tirar, porque nada podem dar. O sentido da cultura 
se perdeu: no lugar da atividade genérica, veio a história, os Estados, as igrejas e todas 
as formas parasitárias inventadas pelo homem reativo para se proteger do acaso. 
Numa comunidade sã, não há espaço para o déspota. O poder é constantemente 
esconjurado 92. Os homens saudáveis são desejados, e não amaldiçoados. Por isso 
existem “as sentinelas do direito”, os “nobres guerreiros” (os do segundo tipo 
fisiológico), que servem como funções dos homens dominadores, a “casta superior” (os 
do primeiro tipo fisiológico), dos que podem criar valores ainda mais interessantes para 
uma comunidade, porque potencializam a vida... Os dominadores podem amar a si 
mesmos, por isso são dadivosos, por isso são verdadeiramente bons, por isso 
conquistaram o direito de serem responsáveis... 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 35 
“Quais são os que se demonstrarão os mais fortes? Os mais comedidos. Aqueles que 
não necessitam de artigos de fé extremados. Aqueles que não somente admitem mas 
amam uma boa parte de acaso, de insensatez, aqueles que podem pensar no homem 
com um significativo comedimento de seu valor, sem com isso tornarem-se pequenos e 
fracos: os mais ricos de saúde, os que estão à altura do maior dos malheurs e por isso 
não têm medo dos malheurs – seres humanos que estão seguros de sua potência e que 
representam, com consciente orgulho, a força alcançada do homem. 
 
Como um tal homem pensaria no eterno retorno?” 93 
 
 
 
 
Niilismo e Eterno Retorno 
 
A vontade de nada possui vários disfarces, ela é traiçoeira. Sabemos que o 
niilismo constitui-se com o triunfo da vontade de negação e das forças reativas. 
Também sabemos que a abertura da vida – o seu ineditismo – pode fazer do homem um 
ousado artesão, mas também pode torná-lo um fugitivo da vida; e, antes que esse 
fugitivo se afogue no imenso mar do nada, numa existência sem sentido algum, o ideal 
ascético serve como o invólucro desse mesmo nada – um invólucro atrativo para a 
vontade

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