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SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL Memória Jurisprudencial MINISTRO NELSON HUNGRIA LUcIANO FELícIO FUck Brasília 2012 ISBN 978-85-61435-33-2 Disponível também em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=publicacaoPubl icacaoInstitucionalMemoriaJurisprud Secretaria do Tribunal Alcides Diniz da Silva Secretaria de Documentação Janeth Aparecida Dias de Melo Coordenadoria de Divulgação de Jurisprudência Andreia Fernandes de Siqueira Preparação de originais: Flávia Teixeira da Silva, Janeth Aparecida Dias de Melo, Rochelle Quito e Viviane Monici Revisão: Amélia Lopes Dias de Araújo, Lilian de Lima Falcão Braga e Rochelle Quito Revisão de referências bibliográficas: Seção de Gerência do Acervo Diagramação: carolina Woortmann Lima Capa: Jorge Luis Villar Peres Dados Internacionais de catalogação na Publicação (cIP) (Supremo Tribunal Federal – Biblioteca Ministro Victor Nunes Leal) Seção de Distribuição de Edições Maria Cristina Hilário da Silva Supremo Tribunal Federal, Anexo II-A, Cobertura, Sala C-624 Praça dos Três Poderes – 70175-900 – Brasília-DF livraria.cdju@stf.jus.br Fone: (61) 3217-4780 Fuck, Luciano Felício. Memória jurisprudencial : Ministro Nelson Hungria / Luciano Felício Fuck. -- Brasília : Supremo Tribunal Federal, 2012. 372 p. (Série Memória Jurisprudencial). 1. Ministro do Supremo Tribunal Federal, jurisprudência. 2. Ministro do Supremo Tribunal Federal, biografia. 3. Tribunal supremo, Brasil. 3. Hoffbauer, Nélson Hungria - jurisprudência. I. Título. II. Série. ––– ISBN 978-85-61435-33-2 cDD-341.419108 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL Ministro Antonio cEZAR PELUSO (25-6-2003), Presidente Ministro carlos Augusto AyRES de Freitas BRITTO (25-6-2003), Vice-Presidente Ministro José cELSO DE MELLO Filho (17-8-1989) Ministro MARcO AURÉLIO Mendes de Farias Mello (13-6-1990) Ministro GILMAR Ferreira MENDES (20-6-2002) Ministro JOAQUIM Benedito BARBOSA Gomes (25-6-2003) Ministro Enrique RIcARDO LEWANDOWSkI (16-3-2006) Ministra cÁRMEN LÚcIA Antunes Rocha (21-6-2006) Ministro José Antonio DIAS TOFFOLI (23-10-2009) Ministro LUIZ FUX (3-3-2011) Ministra ROSA Maria WEBER candiota da Rosa (19-12-2011) Ministro Nelson Hungria APRESENTAÇÃO A constituição de 1988 retomou o processo democrático interrompido pelo período militar. Na esteira desse novo ambiente institucional, a Constituição significou uma renovada época. Passamos para a busca de efetividade dos direitos no campo das pres- tações de natureza pública, como pelo respeito desses direitos no âmbito da sociedade civil. É na calmaria institucional que se destaca a função do Poder Judiciário. É inegável sua importância como instrumento na concretização dos valo- res expressos na carta Política e como faceta do Poder Público, em que os hori- zontes de defesa dos direitos individuais e coletivos se viabilizam. O papel central na defesa dos direitos fundamentais não poderia ser alcançado sem a atuação decisiva do Supremo Tribunal Federal na construção da unidade e do prestígio de que goza hoje o Poder Judiciário. A história do SUPREMO se confunde com a própria história de constru- ção do sistema republicano-democrático que temos atualmente e com a conso- lidação da função do próprio Poder Judiciário. Esses quase 120 anos (desde a transformação do antigo Supremo Tribunal de Justiça no Supremo Tribunal Federal, em 28‑2‑1891) não significaram sim- plesmente uma sequência de decisões de cunho protocolar. Trata-se de uma importante seqüência político-jurídica da história nacio- nal em que a atuação institucional, por vários momentos, se confundiu com defesa intransigente de direitos e combate aos abusos do poder político. Essa história foi escrita em períodos de tranqüilidade, mas houve tam- bém delicados momentos de verdadeiros regimes de exceção e resguardo da independência e da autonomia no exercício da função jurisdicional. conhecer a história do SUPREMO é conhecer uma das dimensões do caminho político que trilhamos até aqui e que nos constituiu como cidadãos brasileiros em um regime constitucional democrático. Entretanto, ao contrário do que a comunidade jurídica muitas vezes tende a enxergar, o SUPREMO não é — nem nunca foi — apenas um prédio, um ple- nário, uma decisão coletada no repertório oficial, uma jurisprudência. O SUPREMO é formado por homens que, ao longo dos anos, abraçaram o munus publicum de se dedicarem ao resguardo dos direitos do cidadão e à defesa das instituições democráticas. Conhecer os vários “perfis” do SUPREMO. Entender suas decisões e sua jurisprudência. Analisar as circunstâncias políticas e sociais que envolveram determi- nado julgamento. Interpretar a história de fortalecimento da instituição. Tudo isso passa por conhecer os seus membros, os valores em que acre- ditavam, os princípios que seguiam, a formação profissional e acadêmica que tiveram, a carreira jurídica ou política que trilharam. Os protagonistas dessa história sempre foram, de uma forma ou de outra, colocados de lado em nome de uma imagem insensível e impessoal do Tribunal. Vários desses homens públicos, muito embora tenham ajudado, de forma decisiva, a firmar institutos e instituições de nosso direito por meio de seus votos e manifestações, são desconhecidos do grande público e mesmo ignora- dos entre os juristas. A injustiça dessa realidade não vem sem preço. O desconhecimento dessa história paralela também ajudou a formar uma visão burocrática do Tribunal. Uma visão muito pouco crítica ou científica, além de não prestar homena- gem aos Ministros que, no passado, dedicaram suas vidas na edificação de um regime democrático e na proteção de um Poder Judiciário forte e independente. Por isso esta coleção, que ora se inicia, vem completar, finalmente, uma inaceitável lacuna em nossos estudos de direito constitucional e da própria for- mação do pensamento político brasileiro. Ao longo das edições desta coletânea, o aluno de direito, o estudioso do direito, o professor, o advogado, enfim, o jurista poderá conhecer com mais pro- fundidade a vida e a obra dos membros do Supremo Tribunal Federal de ontem e consultar peças e julgados de suas carreiras como magistrados do Tribunal, que constituem trabalhos inestimáveis e valorosas contribuições no campo da interpretação constitucional. As constituições Brasileiras (1824, 1891, 1934, 1937, 1946, 1967 e 1988) consubstanciaram documentos orgânicos e vivos durante suas vigências. Elas, ao mesmo tempo em que condicionaram os rumos político-insti- tucionais do país, também foram influenciadas pelos valores, pelas práticas e pelas circunstâncias políticas e sociais de cada um desses períodos. Nesse sentido, não há como segmentar essa história sem entender a dinâ- mica própria dessas transformações. Há que se compreender os contextos históricos em que estavam inseridas. Há que se conhecer a mentalidade dos homens que moldaram também essa realidade no âmbito do SUPREMO. A constituição, nesse sentido, é um dado cultural e histórico, datada no tempo e localizada no espaço. Exige, para ser compreendida, o conhecimento dos juristas e dos polí- ticos que tiveram papel determinante em cada um dos períodos constitucio- nais tanto no campo da elaboração legislativa como no campo jurisdicional de sua interpretação. A Constituição, por outro lado, não é um “pedaço de papel” na expressão empregada por FERDINAND LASSALE. O sentido da Constituição, em seus múltiplos significados, se renova e é constantemente redescoberto em processo de diálogo entre o momento do intér- prete e de sua pré-compreensão e o tempo do texto constitucional. É a “espiral hermenêutica” de HANS GEORG GADAMER. O papel exercido pelos Ministros do SUPREMO, como intérpretes ofi- ciais da constituição, sempre tevecaráter fundamental. Se a interpretação é procedimento criativo e de natureza jurídico-polí- tica, não é exagero dizer que o SUPREMO, ao longo de sua história, completou o trabalho dos poderes constituintes que se sucederam ao aditar conteúdo nor- mativo aos dispositivos da constituição. Isso se fez na medida em que o Tribunal fixava pautas interpretativas e consolidava jurisprudências. Não há dúvida, portanto, de que um estudo, de fato, aprofundado no campo da política judiciária e no âmbito do direito constitucional requer, como fonte primária, a delimitação do pensamento das autoridades que participaram, em primeiro plano, da montagem das linhas constitucionais fundamentais. Nesse sentido, não há dúvida de que, por exemplo, o princípio federativo ou o princípio da separação dos Poderes, em larga medida, tiveram suas fron- teiras de entendimento fixadas pelo SUPREMO e pela carga valorativa que seus membros traziam de suas experiências profissionais. Não é possível se compreender temas como “controle de constitucionali- dade”, “intervenção federal”, “processo legislativo” e outros tantos sem se saber quem foram as pessoas que examinaram esses problemas e que definiram as pautas hermenêuticas que, em regra, seguimos até hoje no trabalho contínuo da corte. Por isso, esta coleção visa a recuperar a memória institucional, política e jurídica do SUPREMO. A ideia e a finalidade é trazer a vida, a obra e a contribuição dada por Ministros como cASTRO NUNES, OROZIMBO NONATO, VIcTOR NUNES LEAL e ALIOMAR BALEEIRO, além de outros. A redescoberta do pensamento desses juristas contribuirá para a melhor compreensão de nossa história institucional. contribuirá para o aprofundamento dos estudos de teoria constitucional no Brasil. contribuirá, principalmente, para o resgate do pensamento jurídico-polí- tico brasileiro, que tantas vezes cedeu espaço para posições teóricas construídas alhures. E, mais, demonstrará ser falaciosa a afirmação de que o SUPREMO deve ser um Tribunal da carreira da magistratura. Nunca deverá ser capturado pelas corporações. Brasília, março de 2006 Ministro Nelson A. Jobim Presidente do Supremo Tribunal Federal “Éramos uma lagoa plácida e o Nelson nos transformou em um mar revolto.” Orozimbo Nonato “Muitas vezes, com a minha fácil e irreprimível exaltação, fui provocador de acalorados debates, em que todos nos empenhávamos, imprimindo ondulações na superfície de nosso até então invariável ‘manso lago azul’. Não me arrependo de tê-lo feito. Tenho aversão às águas estagnadas, que só servem para emitir eflúvios malignos ou causar emanações mefíticas.” Nelson Hungria, 14 de abril de 1961 SUMáRIO ABREVIATURAS 17 DADOS BIOGRÁFIcOS 19 NOTA DO AUTOR 23 1. cONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRIcA 29 2. JURISPRUDÊNcIA 35 2.1 Direito penal e processual penal 35 2.1.1 crimes políticos 35 2.1.2 crimes de imprensa 41 2.1.3 Ampliação da garantia do habeas corpus 46 2.1.3.1 Exame de fatos e provas no habeas corpus 46 2.1.3.2 Efeito suspensivo e habeas corpus 55 2.1.3.3 Local inapropriado para internação de menores 57 2.1.3.4 Reiteração de habeas corpus 60 2.1.4 Tribunal do Júri 61 2.1.4.1 constitucionalidade do novo julgamento pelo Tribunal do Júri na decisão contrária à prova dos autos 64 2.1.4.2 Nulidade do novo Júri pela participação de jurado presente no conselho de sentença anterior 65 2.1.4.3 Nulidade de quesito 66 2.1.5 Foro por prerrogativa de função 67 2.1.6 crimes de espionagem 71 2.1.7 crimes praticados por funcionário público contra a administração em geral 74 2.1.8 crimes de responsabilidade 79 2.1.9 crimes contra o patrimônio 80 2.1.10 crimes de quadrilha ou bando 83 2.1.11 Defesa no processo penal 84 2.1.12 Prescrição da pena in concreto 85 2.1.13 Desacato e vias de fato 86 2.2 Direito constitucional 87 2.2.1 Separação dos Poderes 88 2.2.1.1 Atos políticos do congresso e intervenção judicial 88 2.2.1.2 caso café Filho 91 2.2.1.2.1 MS 3.557/DF 95 2.2.1.2.2 Hc 33.908/DF 101 2.2.1.2.3 Petições apreciadas na sessão de 11-1-1956 102 2.2.1.2.4 Rp 258/DF 103 2.2.1.2.5 Petição apreciada na sessão de 7-11-1956 104 2.2.1.3 Reserva de iniciativa 105 2.2.1.4 Retratação de veto 109 2.2.1.5 Delegação legislativa para o presidente da República 110 2.2.2 Federalismo 117 2.2.2.1 Autonomia municipal 117 2.2.2.1.1 criação de Municípios 117 2.2.2.1.2 Nomeação de prefeitos 125 2.2.2.1.3 Autonomia financeira 128 2.2.2.2 Simetria constitucional 129 2.2.2.3 Aplicação do código Penal Militar aos militares estaduais 132 2.2.2.4 Excepcionalidade da intervenção federal 133 2.2.2.5 Possibilidade de isenções heterônomas 134 2.2.3 controle de constitucionalidade 135 2.2.3.1 Prescrição e decadência da representação pela inconstitucionalidade 135 2.2.3.2 Necessidade do full bench 136 2.2.3.3 Mandado de segurança contra lei em tese 138 2.2.4 Direito intertemporal 139 2.3 Outros ramos do direito 141 2.3.1 Direito administrativo 142 2.3.1.1 Responsabilidade civil do Estado e guerra civil 142 2.3.1.2 concurso público e magistratura 143 2.3.1.3 Estabilidade de servidor público 145 2.3.1.4 Anistia e retorno ao cargo público 149 2.3.2 Direito tributário 150 2.3.2.1 Isenções concedidas em tratados internacionais 150 2.3.2.2 Nomenclatura e natureza jurídica de tributos 151 2.3.2.3 Bitributação e taxas 153 2.3.2.4 constitucionalidade do imposto de vendas incidente na exportação 154 2.3.2.5 Imunidade recíproca 155 2.3.3 Direito civil 156 2.3.3.1 Proteção do adquirente de boa-fé 156 2.3.3.2 Reconhecimento de paternidade 157 2.3.3.3 Equiparação entre filhos adotivos e legítimos 159 2.3.4 Direito eleitoral 159 cONcLUSÃO 164 REFERÊNcIAS 167 APÊNDIcE 169 íNDIcE NUMÉRIcO 367 ABREVIATURAS Aci Apelação cível Acr Apelação criminal AI Agravo de Instrumento AR Ação Rescisória art. artigo c/c combinado com cE código Eleitoral cexim carteira de Exportação e Importação cf. confronte CJ Conflito de Jurisdição Den Denúncia DJ Diário de Justiça Ec Emenda constitucional EI Embargos Infringentes FPM Fundo de Participação dos Municípios Hc Habeas Corpus IF Intervenção Federal Inq Inquérito LIcc Lei de Introdução ao código civil min. ministro MS Mandado de Segurança PSD Partido Social Democrático PSP Partido Social Progressista PTB Partido Trabalhista Brasileiro QO Questão de Ordem Rc Recurso criminal RE Recurso Extraordinário rel. relator RHc Recurso de Habeas Corpus RMS Recurso Ordinário em Mandado de Segurança Rp Representação Rvc Revisão criminal STF Supremo Tribunal Federal UDN União Democrática Nacional v.g. verbi gratia 20 Memória Jurisprudencial Ministro Nelson Hungria DADOS BIOGRáFICOS Nelson Hungria Hoffbauer nasceu junto com a primeira constituição Republicana (cF/1891)1, em 16‑5‑1891, na Fazenda “Solidão”, propriedade de seus avós maternos, localizada no Município de Além Paraíba, na Zona da Mata do Estado de Minas Gerais. Seus pais, ricos apenas em valores morais2, cha- mavam-se Alberto Teixeirade carvalho Hungria, humilde funcionário público municipal, e Anna Paula Domingues Hungria, costureira. Precoce, foi alfabetizado aos 3 anos de idade pela mãe. Em virtude das viagens ocasionadas pela profissão do pai3, Nelson Hungria fez o curso primá- rio no colégio cassão, em Belo Horizonte, e o secundário em 3 estabelecimen- tos diversos: no colégio cassão, em Belo Horizonte; no colégio Azevedo, em Sabará — onde estudou latim com Francisco campos e Orozimbo Nonato4 — e no Ginásio Nogueira da Gama, em Jacareí, Estado de São Paulo. Ainda criança, aos 7 anos de idade, fundou um semanário de uma página denominado A Vespa, em Santo Antônio do Pinhal, e impresso em Pindamonhangaba no Estado de São Paulo5, no qual ferroava os fazendeiros locais. Aos 14 anos, o menino pobre ingressou na Faculdade de Direito em Belo Horizonte. No final do segundo ano, mudou‑se sozinho para o Rio de Janeiro, onde conseguiu emprego como mata-mosquito, para se sustentar. Bacharelou-se aos 18 anos no curso de Direito da Faculdade Livre de Direito do Rio de Janeiro. Retornou a Minas Gerais, onde foi nomeado promotor público em Rio Pomba, agreste interior do Estado. Aos 21 anos, em 1912, casou-se com D. Isabel Maria Machado Hungria Hoffbauer, com quem teve quatro filhos. 1 constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891. 2 cf. LIMA, Leopoldo césar de Miranda. Discurso como representante dos advogados de Brasília, na homenagem de 14-4-1961 ao ministro Nelson Hungria. In: BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Homenagens prestadas aos ministros que deixaram a Corte no período de 1960 a 1975. Brasília: STF, 1975. p. 17. 3 cf. ScARTEZZINI, cid Flaquer. Nelson Hungria: o homem e o jurista. Discurso de posse na Academia Paulista de Direito em 23-9-1974. São Paulo: Academia Paulista de Direito, 1974. p. 6. 4 cf. TAVARES, Adelmar. Discurso por ocasião da posse do ministro Nelson Hungria no Supremo Tribunal Federal, em 5-6-1951. Revista Forense, v. 48, n. 135, p. 619-623, e PERTENcE, José Paulo Sepúlveda. Discurso na homenagem do centenário do ministro Nelson Hungria. In: BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Nelson Hungria: centenário de seu nasci- mento. Brasília: STF, 1993. 5 cf. ScARTEZZINI, loc. cit. 21 Ministro Nelson HungriaMemória Jurisprudencial Em 1918, mudou-se para Belo Horizonte e advogou até 1922, quando se trans- feriu novamente para o Rio de Janeiro. Na antiga capital, foi delegado de polícia por dez meses e vendedor de estampilhas no Tesouro Nacional. Em 1924, passou em primeiro lugar no Brasil para o concurso de pretor, assu- mindo como juiz da 8º Pretoria criminal do antigo Distrito Federal, nomeado por decreto de 12 de novembro de 1924. Serviu posteriormente como juiz de órfãos e da Vara dos Feitos da Fazenda Pública. Em 1934, também foi aprovado em primeiro lugar para a livre-docência da cadeira de Direito Penal na Faculdade Nacional de Direito. Em 1936, foi promovido por merecimento a juiz de direito e, em 1944, ascen- deu ao cargo de desembargador, após vinte anos de exercício da magistratura, no Tribunal de Apelação do Distrito Federal. Por decreto de 29 de maio de 1951, foi nomeado ministro do Supremo Tribunal Federal pelo presidente Getúlio Vargas, para a vaga decorrente da aposentadoria do ministro Annibal Freire. Tomou posse em 4 de junho do mesmo ano, época em que compunham o Plenário os ministros José Linhares (presidente), Barros Barreto, Orozimbo Nonato (vice-presidente), Lafayette de Andrada, Edgard costa, Ribeiro da costa, Hahnemann Guimarães, Rocha Lagôa e Mario Guimarães. Foi eleito, como membro substituto (1955-1957) e efetivo (1957-1961), pelo Supremo Tribunal Federal para integrar o Tribunal Superior Eleitoral, tendo ocupado a presidência do órgão, no período de 9 de setembro de 1959 a 22 de janeiro de 1961. Apesar dos árduos trabalhos como magistrado, inclusive no Supremo Tribunal Federal, dedicou-se com profundidade à academia e outras atividades jurídicas. Argumentava que “a natureza me privilegiou com boa memória e decretou que só dormiria cinco horas por noite, o que me sobre tempo para ler”6. Entre outras medidas legislativas, participou da elaboração do código Penal7, do código de Processo Penal8, da Lei das contravenções Penais e da Lei de Economia Popular. O ministro Nelson Hungria já era professor e doutrinador renomado quando nomeado para o Supremo Tribunal Federal, destacando-se entre seus quinze livros e cerca de trezentas monografias: Fraude penal e legítima defesa putativa — teses destinadas à conquista da cátedra universitária — Estudos sobre a Parte Especial do Código Penal de 1890; Crimes contra a economia popular; Questões jurídico-penais; Novas questões jurídico-penais; Comentários ao 6 HOFFBAUER, clemente Hungria. Nelson Hungria, meu pai. AIDP, ano 5, n. 4, p. 3, 2009. 7 Decreto-Lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940. 8 Decreto-Lei 3.689, de 3 de outubro de 1941. 22 Memória Jurisprudencial Ministro Nelson Hungria Código Penal (8 volumes) e ainda Cultura, religião e direito; O sermão da mon- tanha e A obrigação absoluta no direito cambiário. Ainda, participou ativamente de congressos nacionais e internacionais, entre os últimos o 2º congresso Latino-Americano (Santiago — chile, 1947), o 3º congresso Latino-Americano de criminologia (1949) e Jornadas Penales (Buenos Aires — Argentina, 1960). Foi agraciado com inúmeras condecorações, com destaque para o prê- mio Teixeira de Freitas, outorgado em 1958, pelo Instituto dos Advogados Brasileiros, pela obra Comentários ao Código Penal; além da Medalha Rui Barbosa, Medalha do Rio Branco, Medalha do Sesquicentenário do Superior Tribunal Militar, Medalha Teixeira de Freitas e a comenda do Mérito do Ministério Público. Em razão do limite constitucional de idade, foi aposentado por decreto de 11 de abril de 1961, despedindo-se da corte na sessão de 14 do mesmo mês. A mencionada cerimônia de despedida foi marcada pela presença do presidente da República, Dr. Jânio Quadros, circunstância excepcional jamais repetida, antes ou depois, em preito semelhante no Tribunal. Na ocasião, foi saudado, em nome do Tribunal, pelo ministro Ary Franco, falando pela Procuradoria- -Geral da República o Dr. Joaquim canuto Mendes de Almeida; pela Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Distrito Federal, o Dr. Leopoldo cesar de Miranda Lima; pela Ordem dos Advogados do Brasil, Seção de São Paulo, o Dr. Eloy Franco de Oliveira; pelo Instituto dos Advogados Brasileiros o Dr. Ruy Nunes Pereira e pelos advogados criminalistas do então Estado da Guanabara, o Dr. Evandro Lins e Silva, que viria a ser ministro do Supremo Tribunal Federal pouco tempo depois. Após a aposentadoria retornou à advocacia, que exerceu até seu faleci- mento, em 26 de março de 1969, aos 78 anos, na cidade do Rio de Janeiro. Na mesma data, foi homenageado pelo Supremo Tribunal Federal, falando pela corte o ministro Luiz Gallotti; pela Procuradoria-Geral da República, o Dr. Décio Miranda; e, pela Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Distrito Federal, o Dr. Antonio carlos Osório. Ainda foi celebrado no Supremo Tribunal Federal por ocasião de seu centenário de nascimento, em sessão de 16 de maio de 1991, quando falou pela corte o ministro Sepúlveda Pertence; pelo Ministério Público Federal, o Dr. Affonso Henriques Prates correia, Procurador-Geral da República em exercí- cio; e, pelo conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, o Prof. René Ariel Dotti. É conhecido pelo epíteto de “Príncipe dos Penalistas Brasileiros”. 23 Ministro Nelson Hungria Ministro Nelson Hungria NOTA DO AUTOR A memória jurisprudencial do ministro Nelson Hungria busca identificar as principais marcas deixadas pelo “Príncipe dos Penalistas Brasileiros” na jurispru- dência e no papel institucional do Supremo Tribunal Federal. A partirda contextualização histórica e institucional, o trabalho objetiva destacar as mais importantes intervenções do ministro Nelson Hungria na Primeira Turma e no Plenário da corte. Para essa finalidade, a memória jurisprudencial limitar‑se‑á aos votos proferi- dos em colegiado pelo eminente ministro e que foram anotados na jurisprudência da Corte, seja por votos escritos, seja por registros taquigráficos. É certo que, no exercício da judicatura, os ministros elaboram também grande quantidade de despachos, liminares e decisões monocráticas de toda natureza. No entanto, por limitações de espaço e de foco, essas decisões singulares não serão con- sideradas neste trabalho. Também não serão contemplados os votos do ministro pro- latados no Tribunal Superior Eleitoral, nem em qualquer outro órgão jurisdicional. Pela mesma razão, o estudo não abarcará artigos e obras doutrinárias do pro- fessor Nelson Hungria, apesar da inegável riqueza desses trabalhos para o direito brasileiro. Nesse contexto, a monumental obra do ministro Nelson Hungria enquanto membro do Supremo Tribunal Federal, que compreende mais de cinco mil acórdãos, será selecionada, reunida e analisada de acordo com o respectivo ramo do direito em que estão fundamentadas as decisões. Registre-se que os acórdãos serão citados sempre pela classe processual, número e origem de autuação, acompanhados do nome do relator (ou relator para o acórdão), do órgão e da data de conclusão do julgamento. Tendo em vista a falta de regularidade nas publicações mais antigas do Diário da Justiça, optou-se por somente citar essa fonte de informação quanto aos acórdãos mais recentes, lavrados após a cF/19889. Antes de agrupar pela classe processual em que julgados, o critério do ramo do direito permite a mais ampla percepção da universalidade das contribuições do ministro Nelson Hungria, inclusive destacando os avanços de suas opiniões, bem como das opiniões do colegiado, durante os quase dez anos (4-6-1951 a 14-4-1961) em que serviu ao Supremo Tribunal Federal. 9 constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Memória Jurisprudencial Os característicos votos enfáticos e precisos do ministro Nelson Hungria reú- nem extensa riqueza não só de conhecimento dogmático, como também de lógica jurídica e de bom senso, qualidades indispensáveis ao devido exercício da magistratura. Para melhor destacar toda essa riqueza, a obra conterá breve contextualização histórica do Supremo Tribunal Federal. O comentário das manifestações será dividido em três partes: (a) os votos do ministro Nelson Hungria relacionados ao direito penal e ao processo penal; (b) as grandes discussões de direito constitucional da época; e (c) as mais relevantes manifestações do ministro nos demais ramos do direito, de que Sua Excelência tratou com acuidade e brilhantismo, desde o direito civil e o processo civil, até o direito administrativo e o tributário. É importante destacar que o desenvolvimento do direito penal no Brasil, de forma especial, deve muito ao ministro Nelson Hungria, razão pela qual grande parte desta obra dedicar-se-á a ilustrar essas contribuições. Assim, serão analisados, de início, os acórdãos relacionados à ciência penal, com ênfase nos crimes políticos — examinados, à época, em sede de apelação criminal pelo Supremo Tribunal Federal — e na defesa dos direitos fundamentais, que basearam grandes decisões no âmbito do habeas corpus. Manifestações já no primeiro ano do ministro Nelson Hungria no Supremo Tribunal Federal consistem em pronunciamentos marcantes em defesa da liberdade de pensamento e de expressão, como as proferidas na Acr 1.456, rel. para o acórdão min. Luiz Gallotti, julgado em 19-9-1951, Primeira Turma, DJ de 4-4-1952, e na Acr 1.450, rel. min. Barros Barreto, Primeira Turma, julgado em 6-6-1951, DJ de 30-8-1951, entre outros. É importante registrar que posteriormente esses posicionamentos tornaram-se vencedores na casa, a exemplo do decidido na Acr 1.516, rel. min. Nelson Hungria, Pleno, em julgado de 16-7-1954. Por outro lado, o voto condutor na Acr 1.486 (rel. para o acórdão min. Nelson Hungria, Pleno, julgado em 30-12-1952, DJ de 4-11-1953), decidido por voto de desem- pate do ministro presidente, pontuou a necessidade de dolo específico para a perturba- ção da ordem político-social quanto aos delitos inscritos na Lei de Segurança Nacional, em vigor à época. Outros casos marcantes referentes à citada lei também serão expostos, como o Hc 32.618, rel. min. Nelson Hungria, Pleno, julgado em 16-9-1953; o Hc 32.445, rel. min. Luiz Gallotti, Pleno, julgado em 16-12-1953; e o Hc 32.331, rel. min. Luiz Gallotti, julgado em 5-12-1952, este concedido para relaxar a prisão preventiva de carlos Lacerda, ocasião em que o ministro Nelson Hungria deixou importante testemunho da consciência do magistrado, afirmando: Senhor Presidente, quando entrei hoje neste recinto, vinha com o propó- sito de alhear-me a este julgamento, dando-me por impedido. Ministro Nelson Hungria Sofri, como é sabido, uma tremenda campanha difamatória por parte do jornalista ora paciente, e me achei, hoje, entre as guampas deste dilema: se denegasse o habeas corpus, estaria obedecendo a espírito de vingança; se o concedesse, estaria revelando medo, querendo fazer as pazes, levantar bandeira branca, acovardar-me diante desse jornalista, que, realmente, é truculento. Mas por um lado, de mim para mim, fiz exame de consciência e me certifiquei de que jamais guardei ódios, nunca meu coração foi ninho de rancores, e apesar de ter nascido na hinterlândia e lá vivido minha mocidade, nunca aprendi a dormir na pontaria, atrás do toco. Não sei exercer vindictas, aguardando o adversário na “volta do caminho”. Por outro lado, creio que meu passado de juiz fala por mim. Se não sou um destemido, se não sou um Dom Quixote de la Mancha, também não sou um covarde; sou um homem que nunca deixei de ser igual a mim mesmo, e digo as coisas que me vêm do coração à guela, custe o que custar. Houve, porém, um argumento que me decidiu. Fiel ao meu ponto de vista, reiteradamente manifestado em julgamentos, livros e artigos, meu voto tinha de ser a favor desse homem; e suponhamos que esse meu voto lhe faltasse e ele viesse, por isso, a ter o habeas corpus denegado. Teria eu contribuído para uma iniquidade em virtude de minha abstenção. (...) Devo insistir em que o paciente não me causa temor; pode ele reiniciar quando quiser e como entender a campanha de difamação contra mim, o que, aliás, deve fazer a qualquer pretexto, para ser coerente consigo mesmo; e já que lhe incorri nos ódios. Não o temo em terreno algum. Não é ele santo da minha igreja, mas é preciso que eu faça justiça, evitando que a minha subconsciente malquerança possa prejudicar a sua causa neste momento. concedo a ordem. Nessa primeira parte, também serão analisados votos significativos em pro- cesso penal, ainda que pertencentes à corrente minoritária, como o amplo conheci- mento da garantia do habeas corpus e o reconhecimento de prejuízo, não só ao réu, mas à administração da justiça, no caso de participação de um jurado impedido (Hc 31.653, rel. min. Luiz Gallotti, Pleno, julgado em 26-9-1951). Além disso, merecem destaque votos valiosos que não perderam atuali- dade, apesar dos quase sessenta anos decorridos desde que foram proferidos: o Hc 32.386, Pleno, julgado em 25-3-1954, rel. para o acórdão min. Nelson Hungria, a respeito da tipicidade do crime de prevaricação; o Hc 33.440, rel. para o acórdão min. Nelson Hungria, Pleno, julgado em 26-1-1955, no qual se decidiu que, “deixado definitivamente o cargo, por qualquer motivo, o seu ex- ‑titular responderá no foro comum”; o RC 1.032‑EI, rel. para o acórdão min. convocado Henrique D’Ávila, Pleno, julgado em 16-9-1959, sobre os crimes de imprensa; e o Hc 37.921, rel.min. Nelson Hungria, Pleno, julgado em 14-9- 1960, que, superando a vedação de reapreciar provas em habeas corpus, assen- tou a possibilidade de considerar e valorar provas e elementos fáticos. Memória Jurisprudencial Na segunda parte, será dada atenção à jurisdição constitucional, especial- mente quanto aos votos do ministro Nelson Hungria sobre graves discussões institucionais, tais como o célebre caso café Filho (Hc 33.908, rel. min. convo- cado Afrânio costa, Pleno, julgado em 21-12-1955; e MS 3.557, rel. para o acór- dão min. convocado Afrânio costa, Pleno, julgado em 7-11-1956). O polêmico voto, até hoje criticado e debatido, sobressai por sua clareza, aduzindo: Afastado “o manto diáfano da fantasia sobre a nudez rude da verdade”, a resolução do congresso não foi senão a constatação da impossibilidade material em que se acha o Sr. café Filho, de reassumir a Presidência da República, em face da imposição dos tanke e baionetas do Exército, que estão acima das leis, da constituição e, portanto, do Supremo Tribunal Federal. Podem ser admitidos os bons propósitos dessa imposição, mas como a santidade dos fins não expunge a ilicitude dos meios, não há jeito, por mais auspicioso, de considerá-la uma situa- ção que possa ser apreciada e resolvida de jure por esta corte. É uma situação de fato criada e mantida pelas forças das armas, contra a qual seria, obviamente, inexequível qualquer decisão do Supremo Tribunal. A insurreição é um crime político, mas, quando vitoriosa, passa a ser um título de glória, e os insurretos estarão a cavaleiro do regime legal que infligiram; sua vontade é que conta, e nada mais. (...) contra uma insurreição pelas armas, coroada de êxito, somente valerá uma contrainsurreição com maior força. E esta, positivamente, não pode ser feita pelo Supremo Tribunal, posto que este não iria cometer a ingenuidade de, numa inócua declaração de princípio, expedir mandado para cessar a insurreição. (...) Jamais nos incalcamos leões. Jamais vestimos, nem podíamos vestir, a pele do rei dos animais. A nossa espada é um mero símbolo. É uma simples pintura decorativa — no teto ou na parede das salas de Justiça. Não pode ser oposta a uma rebelião armada. conceder mandado de segurança contra esta seria o mesmo que pretender afugentar leões autênticos sacudindo-lhes o pano preto de nossas togas. Ademais, serão destacados os votos vencidos do ministro Nelson Hungria na importante questão de desmembramento de municípios e da autonomia municipal (Rp 199, rel. min. Luiz Gallotti, Pleno, julgado em 30-7-1954; Rp 210, rel. para o acórdão min. convocado Afrânio costa, Pleno, julgado em 4-10-1955; e Rp 285, rel. min. Rocha Lagôa, Pleno, julgado em 22-1-1958, entre outros). Importantes temas hodiernos também foram apreciados com maestria pelo ministro Nelson Hungria e precisam ser analisados. Nesse sentido, tem-se a declaração de inconstitucionalidade de emenda constitucional estadual edi- tada com o propósito de circunscrever a iniciativa do chefe do Poder Executivo (Rp 164, rel. min. Mario Guimarães, Pleno, julgado em 16-6-1952); a regra do full bench para a declaração de inconstitucionalidade de normas (RE 15.343, rel. min. Nelson Hungria, Primeira Turma, julgado em 18-9-1952); e a aplicação da Ministro Nelson Hungria lei vigente ao tempo da aposentadoria, e não do ingresso no serviço (MS 3.126, rel. min. convocado Sampaio costa, Pleno, julgado em 27-5-1955). Outras manifestações devem ser destacadas: a aplicação retroativa de lei sucessória sob a égide da constituição de 1937 (AR 215, rel. min. Edgard costa, Pleno, julgado em 17-7-1951), a manutenção de prefeitos indicados pelo governa- dor até a posse dos prefeitos e vice-prefeitos eleitos (Rp 179, rel. min. Hahnemann Guimarães, Pleno, julgado em 15-12-1952), a aplicabilidade de lei federal (código Penal Militar) a policiais militares estaduais (cJ 2.046, rel. min. Nelson Hungria, julgado em 6-7-1953) e a constitucionalidade da delegação legal ao presidente da República para regulamentar o salário mínimo (MS 2.655, rel. para o acórdão min. convocado Afrânio costa, Pleno, julgado em 5-7-1954). Em síntese, nessa parte serão abordados os mais relevantes temas consti- tucionais discutidos pelo ministro Nelson Hungria na época, os quais iluminam atuais questões. Por fim, na terceira parte, serão salientados os votos do ministro Nelson Hungria nos demais ramos dogmáticos do direito, tais como o direito civil, o processo civil, o direito internacional, o administrativo e o tributário. No que tange ao direito administrativo, destacam-se os votos prolatados a respeito da responsabilidade civil do Estado em caso de guerra externa ou guerra civil (Aci 7.496-embargos, rel. min. Edgard costa, Pleno, julgada em 13-7-1953), da necessidade de concurso público para ingresso na magistratura de carreira (RE 22.542, rel. para o acórdão min. Nelson Hungria, julgado em 31-8-1953) e da obrigatoriedade do aproveitamento de funcionário em disponi- bilidade no caso de restabelecimento do cargo extinto (RE 21.219, rel. min. Luiz Gallotti, Primeira Turma, julgado em 10-11-1952). Relativamente ao direito tributário, revelam-se importantes os seguin- tes precedentes: o que concluiu que não se estendem aos sócios as isenções concedidas à renda de pessoas jurídicas (Aci 9.597, rel. min. Nelson Hungria, Primeira Turma, julgada em 31-7-1952), o que declarou a inconstitucionalidade da taxa de registro e fiscalização de São Paulo (RE 18.606, rel. para o acórdão min. convocado Afrânio costa, Pleno, julgado em 15-8-1954), o que garantiu a isenção das cooperativas (RE 18.998, rel. para o acórdão min. Nelson Hungria, Primeira Turma, julgado em 8-5-1952) e o que diferenciou taxas e impostos para efeito de bitributação (RE 19.027, rel. min. Barros Barreto, Primeira Turma, jul- gado em 20-12-1951), entre outros importantes votos. No que concerne ao direito civil, pronunciou-se o ministro Nelson Hungria em interessantes casos, como o a propósito da proteção do adquirente de boa-fé, seja com relação a imóveis (RE 19.715, rel. para o acórdão min. Nelson Hungria, Primeira Turma, julgado em 26-6-1952), seja com relação a títulos da bolsa vendidos Memória Jurisprudencial sem intermediação de corretores (RE 20.256, rel. min. Mario Guimarães, Primeira Turma, julgado em 19-6-1952); e a respeito da possibilidade de reconhecimento de paternidade sem prévia anulação do falso registro (RE 21.046, rel. min. Nelson Hungria, Primeira Turma, julgado em 18-9-1952). No que se refere ao direito eleitoral, ganha relevo o decidido no RE 19.285/DF, rel. para o acórdão min. Barros Barreto, Pleno, julgado em 22-11- 1951, no qual se determinou que o partido que não alcançou o quociente eleito- ral não pode concorrer na distribuição das sobras. Infelizmente, apenas uma pequena parte dos arestos que contaram com a participação do ministro Nelson Hungria poderá ser destacada neste trabalho, por contingência de tamanho e de foco. Por essa razão, o autor pede escusas, desde logo, da inevitável ausência de votos não selecionados para comporem esta obra. 30 Memória Jurisprudencial 1. CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA como bem apontou Emilia Viotti da Costa, o ministro Nelson Hungria e a maioria de seus contemporâneos no Supremo Tribunal Federal nasceram nas últimas décadas do século XIX e amadureceram durante a Primeira República10. Com efeito, eles testemunharam acontecimentos mundiais significativos, como as duas guerras mundiais, a crise de 1929, a ascensão de regimes totalitá- rios nazistas, fascistas e comunistas e o acirramento da Guerra Fria. Destaque-se, em especial, não só o impacto das duas guerras mundiais, como também o da expansão dos regimes autoritários, que marcaram o século XX por sua violência e tragédia em escalas sem precedentes. No País, esses ministrosvivenciaram crescentes greves; golpes e contra- golpes; as Revoltas de 1922 e 1924 e a coluna Prestes; constantes restrições aos direitos fundamentais e reiteradas decretações de estado de sítio; a Revolução de 1930; a ditadura do Estado Novo; o crescimento da inflação; e as habituais intervenções do Exército no cenário político. O próprio Supremo Tribunal Federal sofreu diversos ataques à sua independência e autonomia, que culminaram na redução de sua competência e do número de ministros, além de na aposentadoria compulsória de seis de seus membros, em 18-2-1931: ministros Pires e Albuquerque, Muniz Barreto, Pedro Mibieli, Godofredo cunha, Geminiano da Franca e Pedro dos Santos. A cF/193711 chegou a delegar ao presidente da República a nomeação do presi- dente e do vice-presidente da Suprema corte. Nos quase dez anos de exercício da judicatura no Supremo Tribunal Federal do ministro Nelson Hungria, esteve vigente no País apenas a democrá- tica constituição de 1946 (cF/1946)12. Não obstante, o período compreendeu momentos institucionais deli- cados, tais como o suicídio do presidente Getúlio Vargas, em 1954, e a crise do presidente café Filho, impedido de reassumir a presidência da República. Naquela época, grande era a responsabilidade da corte Suprema pela estabili- dade da carta Magna e do incipiente sistema democrático. Atualmente, parece autoevidente o exercício de direitos relacionados à livre manifestação de pensamento na democracia, como a propaganda de parti- dos políticos e de movimentos ideológicos — ainda que tendentes a desconsti- tuir o próprio sistema democrático. No entanto, na década de 1950, o avanço dos 10 cOSTA, Emilia Viotti da. O Supremo Tribunal Federal e a construção da cidadania. 2. ed. São Paulo: IEJE, 2007. p. 142. 11 constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1937. 12 constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1946. 31 Ministro Nelson Hungria regimes totalitários comunistas, sob patrocínio e orientação da então União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), demandou limites que culminaram na própria ilegalidade do Partido comunista no Brasil. Naquele período, o estabelecimento da cortina de ferro na Europa orien- tal, o bloqueio de Berlim (24-6-1948), a Revolução Maoísta (1949), a Guerra da coreia (25-6-1950), a divulgação dos crimes de Stalin por Nikita kruschev (25-2-1956) e a Revolução cubana (1959) — associados a levantes armados no País, como os de novembro de 193513 — dominavam o imaginário popular, dividiam a sociedade e justificavam o receio da implantação de ditadura comu- nista no Brasil e o emprego de restrições a direitos e liberdades fundamentais. Obviamente, essas circunstâncias se refletiam nas leis e na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal no período. Por outro lado, instituições e garantias democráticas ainda estavam pouco maduras, razão pela qual era comum o rigor no tratamento de ativis- tas comunistas e debates árduos em assuntos atualmente corriqueiros, como a declaração da imprestabilidade de provas obtidas mediante tortura de acusados e testemunhas. A propósito desse tema, confira‑se o HC 37.921/SE, rel. min. Nelson Hungria, Pleno, 14-9-1960. Além disso, os resultados eleitorais eram reiteradamente desafiados pelos derrotados, desde a primeira eleição realizada, que elegeu o general Eurico Gaspar Dutra em 1945 com 55% dos votos, pelo Partido Social Democrático (PSD), o que representava cerca de 13% da população do País.14 Naquele momento, dispunha a constituição de 1946 sobre a competência do Supremo Tribunal Federal: Art. 101. Ao Supremo Tribunal Federal compete: I — processar e julgar originariamente: a) o Presidente da República nos crimes comuns; b) os seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da República nos crimes comuns; c) os Ministros de Estado, os Juízes dos Tribunais Superiores Federais, os Desembargadores dos Tribunais de Justiça dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, os Ministros do Tribunal de contas e os chefes de Missão Diplomática em caráter permanente, assim nos crimes comuns como nos de res- ponsabilidade, ressalvado, quanto aos Ministros de Estado, o disposto no final do art. 92; d) os litígios entre Estados estrangeiros e a União, os Estados, o Distrito Federal ou os Municípios; 13 cf. SkIDMORE, Thomas E. Brasil: de Getúlio a castelo. Tradução coordenada por Ismênia Tunes Dantas. 10. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. p. 42-43. 14 cOSTA, Emilia Viotti da. O Supremo Tribunal Federal e a construção da cidadania. 2. ed. São Paulo: IEJE, 2007. p. 123. 32 Memória Jurisprudencial e) as causas e conflitos entre a União e os Estados ou entre estes; f) os conflitos de jurisdição entre Juízes ou Tribunais Federais de Justiças diversas, entre quaisquer Juízes ou Tribunais Federais e os dos Estados, e entre Juízes ou Tribunais de Estados diferentes, inclusive os do Distrito Federal e os dos Territórios; g) a extradição dos criminosos, requisitada por Estados estrangeiros e a homologação das sentenças estrangeiras; h) o habeas corpus, quando o coator ou paciente for Tribunal, funcio- nário ou autoridade cujos atos estejam diretamente sujeitos à jurisdição do Supremo Tribunal Federal; quando se tratar de crime sujeito a essa mesma juris- dição em única instância; e quando houver perigo de se consumar a violência, antes que outro Juiz ou Tribunal possa conhecer do pedido; i) os mandados de segurança contra ato do Presidente da República, da Mesa da câmara ou do Senado e do Presidente do próprio Supremo Tribunal Federal; j) a execução das sentenças, nas causas da sua competência originá- ria, sendo facultada a delegação de atos processuais a Juiz inferior ou a outro, Tribunal; k) as ações rescisórias de seus acórdãos; II — julgar em recurso ordinário: a) os mandados de segurança e os habeas corpus decididos em última instância pelos Tribunais locais ou federais, quando denegatória a decisão; b) as causas decididas por Juízes locais, fundadas em tratado ou con- trato da União com Estado estrangeiro, assim como as em que forem partes um Estado estrangeiro e pessoa domiciliada no País; c) os crimes políticos; III — julgar em recurso extraordinário as causas decididas em única ou última instância por outros Tribunais ou Juízes: a) quando a decisão for contrária a dispositivo desta constituição ou à letra de tratado ou lei federal; b) quando se questionar sobre a validade de lei federal em face desta constituição, e a decisão recorrida negar aplicação à lei impugnada; c) quando se contestar a validade de lei ou ato de governo local em face desta constituição ou de lei federal, e a decisão recorrida julgar válida a lei ou o ato; d) quando na decisão recorrida a interpretação da lei federal invocada for diversa da que lhe haja dado qualquer dos outros Tribunais ou o próprio Supremo Tribunal Federal. IV — rever, em benefício dos condenados, as suas decisões criminais em processos findos. Art. 102. com recurso voluntário para o Supremo Tribunal Federal, é da competência do seu Presidente conceder exequatur a cartas rogatórias de Tribunais estrangeiros. 33 Ministro Nelson Hungria Além de ter retomado princípios democráticos e direitos fundamentais, a cF/1946 restaurou a tradição de controle judicial, principalmente do controle de constitucionalidade de leis e atos normativos15. com efeito, extinguiu-se a possibilidade de o presidente da República submeter ao parlamento a confirmação de lei declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, prevista na constituição de 1937 (cF/1937), e for- taleceu-se a representação interventiva, assim prevista no texto constitucional: Art. 7º O Governo federal não intervirá nos Estados salvo para: (...) VII — assegurar a observância dos seguintes princípios: a)forma republicana representativa; b) independência e harmonia dos Poderes; c) temporariedade das funções eletivas, limitada a duração destas à das funções federais correspondentes; d) proibição da reeleição de Governadores e Prefeitos, para o período imediato; e) autonomia municipal; f) prestação de contas da Administração; g) garantias do Poder Judiciário. Art. 8º A intervenção será decretada por lei federal nos casos dos nº s VI e VII do artigo anterior. Parágrafo único. No caso do nº VII, o ato arguido de inconstitucionali- dade será submetido pelo Procurador-Geral da República ao exame do Supremo Tribunal Federal, e, se este a declarar, será decretada a intervenção. A Lei 2.271, de 22 de julho de 1954, regulamentou a arguição de incons- titucionalidade nos seguintes termos: O congresso Nacional decreta e eu promulgo, nos termos do art. 70, §4º, da constituição Federal, a seguinte Lei: Art. 1º cabe ao Procurador-Geral da República, toda vez que tiver conhecimento da existência de ato que infrinja algum dos preceitos assegurados no art. 7º, inciso VII, da constituição Federal, submeter o mesmo ao exame do Supremo Tribunal Federal. Parágrafo único. Havendo representação de parte interessada, a qual deverá ser em 2 (duas) vias, o ato arguido de inconstitucionalidade será, subme- tido pelo Procurador-Geral da República ao Supremo Tribunal Federal, dentro de 90 (noventa) dias, a partir do seu recebimento. Art. 2º Nesse prazo, por 45 (quarenta e cinco) dias improrrogáveis, conta- dos da comunicação da respectiva assinatura, o Procurador-Geral da República ouvirá, sobre as razões da impugnação do ato, os órgãos que o tiverem elabo- rado, ou expedido. 15 cf. MENDES, Gilmar Ferreira; cOELHO, Inocêncio Mártires; BRANcO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 989-991. 34 Memória Jurisprudencial Art. 3º A falta, ou retardamento, da manifestação dos órgãos em apreço, não prejudicará a observância do prazo constante do parágrafo único do art. 1º desta Lei. Art. 4º Aplica-se ao Supremo Tribunal Federal o rito do processo do man- dado de segurança, de cuja decisão caberá embargos caso não haja unanimidade. Art. 5º Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário. Nessa época, a classe processual representação era utilizada tanto para fins penais (v.g., Rp 211/DF, rel. min. Nelson Hungria, Pleno, 26-5-1954), como para conflitos entre Poderes (v.g., Rp 406/RN, rel. min. Vilas Boas, Pleno, 5-8- 1959) e para declaração de inconstitucionalidade de atos e normas (Rp 414/PR, rel. min. Nelson Hungria, Pleno, 11-7-1960). Preparam-se, assim, os primeiros passos do controle abstrato de consti- tucionalidade de leis e atos normativos no Brasil, culminando na Ec 16/1965. Portanto, investiam-se novos poderes e responsabilidades no Supremo Tribunal Federal, que deveria zelar não só pelos direitos fundamentais assegu- rados na carta Magna como pela própria ordem constitucional vigente, cons- tantemente ameaçada por instabilidades e conflitos passados. Quando Nelson Hungria tomou posse no cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal, em 4 de junho de 1951, compunham a corte os ministros José Linhares (presidente), Barros Barreto e Orozimbo Nonato (vice-presidente) — nomeados pelo presidente Getúlio Vargas; Lafayette de Andrada, Edgard Costa, Ribeiro da Costa — nomeados por José Linhares no exercício da pre- sidência; Hahnemann Guimarães, Luiz Gallotti e Rocha Lagôa — nomea- dos pelo presidente Eurico Gaspar Dutra; e Mario Guimarães — nomeado na segunda presidência de Getúlio Vargas, assim como o próprio Nelson Hungria. Durante o exercício de sua judicatura no Supremo Tribunal Federal, foram também contemporâneos na corte, além dos convocados, os ministros Ary Franco (nomeado por Nereu Ramos no exercício da presidência para a vaga do ministro José Linhares), Candido Motta (nomeado pelo presidente Juscelino kubitschek para a vaga do ministro Mario Guimarães), Vilas Boas (nomeado pelo presidente Juscelino kubitschek para a vaga do ministro Edgard costa), Gonçalves de Oliveira (nomeado pelo presidente Juscelino kubitschek para a vaga do ministro Orozimbo Nonato) e Victor Nunes (nomeado pelo pre- sidente Juscelino kubitschek para a vaga do ministro Rocha Lagôa). Ainda, merecem ser ressaltados os ministros convocados do extinto Tribunal Federal de Recursos, que constantemente compunham a Primeira Turma e o Plenário do Supremo Tribunal Federal nesse período, entre os quais Abner de Vasconcelos, Afrânio Costa, Candido Lôbo, Cunha Mello, Henrique D’ávila e Sampaio Costa. Não por acaso, esses ministros convocados 35 Ministro Nelson Hungria funcionavam em casos importantíssimos decididos pelo Supremo Tribunal Federal e restavam como redatores da posição majoritária, uma vez que eram os primeiros a votar, após a manifestação do relator. 36 Memória Jurisprudencial 2. JURISPRUDÊNCIA 2.1 Direito penal e processual penal O Príncipe dos Penalistas Brasileiros muito marcou a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal pelos magníficos votos na matéria penal e de pro- cesso penal. Por vocação e dedicado aprofundamento acadêmico, o ministro Nelson Hungria notabilizou-se pelo domínio do direito penal, seja como magistrado, seja como professor, seja como ativo participante dos projetos legislativos. Nesta primeira parte, serão analisados os mais significativos votos do ministro Nelson Hungria concernentes ao direito penal e ao processual penal. Destaque-se que esses precedentes tratam de diversos dispositivos legais que estão em vigor até hoje, principalmente considerando o código Penal e o código de Processo Penal. 2.1.1 Crimes políticos consoante o art. 101, II, c, da cF/1946, cabia ao Supremo Tribunal Federal julgar os recursos ordinários de sentenças que apreciavam crimes políticos. Essencialmente, os crimes políticos eram definidos pelo Decreto‑Lei 431, de 18 de maio de 1938, e pela Lei 1.802, de 5 de janeiro de 1953, que tipificava as ações, inclusive a propaganda, que visavam modificar a ordem política e social por meios não permitidos em lei. Neste contexto, enquadravam-se as ações de movimentos revolucionários, em especial integralistas e comunistas16. É certo que esses grupos, capitaneados respectivamente pela Ação Integralista Brasileira (AIB) e pela Aliança Nacional Liberadora (ANL), pretendiam implantar regimes totalitários, baseados em partidos únicos e que se afastavam do ideal democrático. No entanto, a perseguição a esses movimentos muitas vezes atentava contra direitos fundamentais, principalmente quanto à manifestação de pensamento e opi- nião, e servia como fundamento para o autoritarismo crescente do Estado Novo e para a desestabilização do regime democrático inaugurado pela cF/1946. Relativamente aos comunistas, de forma particular, muitos crimes políticos foram apreciados pelo Poder Judiciário, sobretudo em decorrência da declaração da ilegalidade do Partido comunista pela Justiça Eleitoral, em sentença judicial transi- tada em julgado, sob o fundamento de ser contrário à ordem pública. 16 cOSTA, Emilia Viotti da. O Supremo Tribunal Federal e a construção da cidadania. 2. ed. São Paulo: IEJE, 2007. p. 98. 37 Ministro Nelson Hungria Assim, cabia ao Supremo Tribunal Federal julgar as apelações dos pro- cessos criminais, como forma de garantir os direitos constitucionais e a ordem constitucional. Desde sua posse, o ministro Nelson Hungria não tergiversou ao votar pela condenação dos acusados que, extrapolando seu direito de manifestação de pensamento, incitavam à luta armada contra a ordem política democrática da cF/1946, aduzindo: Senhor Presidente, a incriminação da difusão ou perigo de difusão de processos subversivos da nossa ordem política,no meu entender, em que pese o Sr. ministro revisor, não colide com a constituição, não ofende nenhum de seus preceitos. Não era possível que a constituição impedisse essa incriminação, isto é, a incriminação da propaganda ou perigo de difusão ou propaganda de processos atentatórios da ordem política, que dizem de perto com a segurança do Estado. Evidentemente, estava implicitamente excepcionado, no preceito invo- cado pelos Srs. ministros relator e revisor, esse caso. Se o direito penal comum incrimina a apologia dos crimes comuns, por que a ordem política teria de se abster de incriminar os fatos orientados no sentido de sua própria subversão? Teria de cruzar os braços diante da ameaçadora onda subversiva? No caso, segundo leitura que acaba de ser feita pelo Sr. ministro Afrânio Antonio da Costa, verifica‑se o caráter francamente subversivo dos panfletos apreendidos, com incitamento à luta pela violência, ou concitamento a uma ação tendente a destruir o regime atual. (Voto na Acr 1.450/SP, rel. min. Barros Barreto, Pleno, 6-6-1951.) Senhor Presidente, em que pese ao eminente Sr. ministro relator, fico com o eminente Sr. ministro revisor. Se a constituição proíbe a propaganda de meios subversivos contra a segurança do Estado, contra a ordem política, evidentemente permite que a lei ordinária incrimine todos os fatos que tenham por fim essa propaganda. Em matéria de defesa do Estado, os critérios penais, tradicionalmente, secularmente, divergem daqueles adotados na lei penal comum. Já dizia catão da Útica que, nos crimes contra o Estado, se se fosse esperar pela consumação deles, não haveria criminosos a punir, mas heróis a aplaudir. De modo que o Estado, advertido pela lição da História, não se limita a incriminar, em tal caso, o dano efetivo ou o concreto perigo de dano: incri- mina o próprio perigo remoto, e vai colher o crime nos atos preparatórios, antes mesmo que surja um perigo imediato, um perigo iminente. É punida a criação do simples perigo de perigo. É o que ocorre na espécie. O apelante tinha em seu poder uma série de panfletos subversivos, de franco incitamento ao emprego de meios violentos contra o nosso vigente regime político. Não há indagar se ele, no momento, estava distribuindo esses panfletos: a lei incrimina o simples fato de ele os ter em seu poder ou sob sua guarda. (...) 38 Memória Jurisprudencial Não vejo em que o dispositivo da Lei de Segurança colide com o preceito constitucional; ao contrário, a ele se ajusta, a ele se afeiçoa plenamente, pois a constituição proíbe a propaganda de meios violentos contra a ordem política. (Voto na Acr 1.452/SP, rel. para o acórdão min. Edgard costa, Pleno, 20-6-1951.) Da mesma forma, é da relatoria do ministro Nelson Hungria precedente do Plenário que declarou a constitucionalidade da Lei 1.802/1953 em face da cF/1946 (Hc 32.618/SP, rel. min. Nelson Hungria, Pleno, 16-9-1953). Na opor- tunidade, o ministro Nelson Hungria assim se manifestou: Nada tem de inconstitucional a Lei 1.802, de 5 de janeiro de 1953, defi- nidora dos crimes contra o Estado e a ordem política e social. Ao contrário, encontra ela evidente apoio no próprio capítulo que a constituição vigente con- sagra aos “direitos e garantias individuais”, isto é, nos § 5º, in fine, § 12 e § 13 do art. 141. Não há liberdade de manifestação do pensamento para o preconício de processos violentos e subversivos da ordem político-social, nem liberdade de associação para fins ilícitos, ou para organização ou funcionamento de partidos políticos ou agremiações cujo programa ou ação contrarie o regime democrático instituído pela carta de 1946. (Hc 32.618/SP, rel. min. Nelson Hungria, Pleno, 16-9-1953.) Por outro lado, já no ano de 1951, diversos votos do ministro Nelson Hungria contrariaram a orientação predominante e manifestaram posição mais tolerante, fun- dada na liberdade de opinião quanto aos crimes contra a segurança nacional. Por exemplo, destacam-se os votos vencidos do ministro Nelson Hungria que exigiam dolo específico para os crimes contra a segurança nacional, desde o crime de injúria, previsto no Decreto-Lei 431/1938 (Hc 31.682/DF, rel. min. Lafayette de Andrada, Pleno, 29-8-1951), e a organização e direção de socie- dades de fins subversivos da ordem política e social (RvC 4.544/SP, rel. para o acórdão min. convocado Afrânio costa, Pleno, 28-11-1952), até crimes vio- lentos, como homicídio de magistrado (Rc 1.024/RJ, rel. min. Barros Barreto, Pleno, 7-8-1957). Além disso, constantemente, os votos do ministro Nelson Hungria apon- tavam a ausência de crime na simples realização de propaganda comunista, diferenciando-a da propaganda de processos violentos contra a ordem consti- tucional. Na Acr 1.456/SP, rel. min. Hahnemann Guimarães, Pleno, 19-9-1951, manifestou-se, em voto vencido, o ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, data venia dos Srs. ministros relator e revisor e dos que me precederam na votação, entendo que, no caso, não se configura crime algum. O que a atual constituição proíbe é a propaganda de processos violentos contra a ordem político-social. Em face do art. 141, § 5º, é lícita a propaganda de qualquer credo político, uma vez que se não faça apologia do emprego de meios subversivos do regime político-social. Neste ponto, o genérico inciso 9º 39 Ministro Nelson Hungria do art. 3º da Lei de Segurança, de 1938, está derrogado: só continua em vigor no tocante à propaganda de processos violentos contra o atual regime de Estado. Fazer propaganda do comunismo ou fazer propaganda do partido comunista não é, necessariamente, fazer propaganda de tais processos. O credo comunista não se confunde com o famoso Manifesto comunista, que aconselhava a revo- lução universal. Pode haver comunismo e partido comunista sem esse objetivo belicoso. Dentro dos trâmites do próprio processo chamado “constitucionalismo”, que impera nos países democrático-liberais, será possível a implantação do regime marxista. Não se pode dizer, assim, que a simples propaganda do comu- nismo, como um ideal político a realizar-se, sem que se faça referência alguma a emprego de meios violentos, ou mesmo à apologia da Revolução Russa, como acontecimento histórico, continua a ser crime. Pode fazer-se o elogio da Revolução Russa, como se faz da Revolução Francesa. Não vejo como isso possa exceder a órbita da liberdade de opinião assegurada pela constituição. (Voto vencido na Acr 1.456/SP, rel. min. Hahnemann Guimarães, Pleno, 19-9-1951.) Nelson Hungria também afastava com bastante veemência os delitos de propaganda subversiva, apontando o exagero na tipificação pela posse de um único folheto ou exemplar do estatuto do Partido comunista, como no julga- mento da Acr 1.462/SP, rel. para o acórdão min. convocado Afrânio costa, Pleno, 18‑1‑1952, em que afirmou, em voto vencido: Entre os papéis apreendidos, há, realmente, um estatuto do Partido comunista. Mas, quid inde? Também eu tenho entre os meus papéis um exemplar desse estatuto, e estarei, acaso, infringindo a Lei de Segurança? Absolutamente não. A própria unidade do exemplar está a significar que sua posse não atende a fim de propaganda, mas de estudo ou leitura exclusivamente por parte do possuidor. (Acr 1.462/SP, rel. para o acordão min. convocado Afrânio costa, Pleno, 18-1-1952.) Marcantes, neste ponto, foram seus votos pela não configuração, como crime de propaganda de guerra, das manifestações contra a intervenção do Brasil na Guerra da coreia. com efeito, assentou o ministro Nelson Hungria, com fundamento na cF/1946, que as manifestações pela não intervenção brasi- leira à invasão da coreia do Norte pela coreia do Sul, em 25-6-1950, não eram equivalentes à propaganda de guerra: Quanto à posse dos boletins acentuando o horror das mãos pela guerra, também não é criminosa. O que a constituiçãoproíbe e a Lei de Segurança incrimina é a propa- ganda de guerra. A propaganda contra a guerra é ato lícito e indiscutivelmente louvável. Entende o Sr. ministro relator, porém, que no caso concreto, esses boletins, con- jugados com a bandeirola anunciando que “os soldados, nossos filhos, não irão à Coreia” constituem crime de incitamento, entre militares, à desobediência à lei, à 40 Memória Jurisprudencial indisciplina e à deserção. Ora, pergunto eu: onde há lei que ordenava a expedição de tropas à coreia? Será, acaso, verdade que, algum dia, o nosso Governo pretendeu, realmente, enviar tropas à coreia? Se isto, alguma vez, foi objeto de cogitações, não passou daquele material que serve para calcamento do Inferno. Tudo quanto se disse a respeito não passou de boato. E, se o nosso Governo tivesse chegado a cogitar dessa expedição, teria desistido de tal propósito, de modo que sua atitude de abstenção veio a coincidir com o pensamento externado pela apelante. O crime a atribuir-se à apelante, admitida a desclassificação proposta pelo Sr. ministro relator, teria como elemento condicionante um boato, e, o que é mais, um boato desmentido. (...) A mulher que erradamente se supõe grávida e ingere substâncias abortivas não comete o crime de aborto. Assim também a apelante, que, supondo falsamente a iminência de participação do Brasil na guerra coreana, incita os soldados a não seguir, não cometeu o crime de incitamento à desobediência, indisciplina ou deser- ção. Num caso e noutro, falta um elemento mínimo objetivo indispensável à configu- ração do crime: a ocorrência concreta de um perigo de dano. (Voto que acompanhou a maioria na Acr 1.448/SP, rel. p/ o ac. min. con- vocado Abner de Vasconcelos, Pleno, 20-9-1951.) Entendo que os fatos imputados não constituem crime, em face da constituição vigente. O que esta proíbe é a propaganda de guerra ou de subver- são violenta da ordem política ou social. No caso, trata-se de difusão de bole- tins convidando o povo para a conferência de Paz. Não pode ser incriminada a propaganda de paz. Provocar movimento de opinião pela paz não é apenas uma ação lícita, senão também louvável. (Voto na Acr 1.455/SP, rel. min. convocado Abner de Vasconcelos, Pleno, 28-11-1951.) com a edição da Lei 1.802/1953, o entendimento do ministro Nelson Hungria — até então reiteradamente vencido — passou a prevalecer em diversos julgamentos do Plenário, como na Acr 1.511/SP, rel. min. Hahnemann Guimarães, Pleno, 28-5-1954; na Acr 1.497/SP, rel. min. Nelson Hungria, Pleno, 12-6-1953; na Acr 1.496/DF, rel. min. Mario Guimarães, Pleno, 12-6-1953; na Acr 1.498/SP, rel. para o acórdão min. Orozimbo Nonato, Pleno, 12-6-1953; no Rc 993/GO, rel. para o acórdão min. Nelson Hungria, Pleno, 6-6-1953; na Acr 1.504/SP, rel. para o acórdão min. convocado Abner de Vasconcelos, Pleno, 19-10-1953; na Acr 1.557/MG, rel. min. Nelson Hungria, Pleno, 11-11-1960; no Hc 37.928/SP, rel. min. Nelson Hungria, Pleno, 21-12-1960; e na Acr 1.516/SP, rel. min. Nelson Hungria, Pleno, 16-7-1954, esta última assim ementada: O simples fato de proferir, num raptus de entusiasmo, “vivas”, ao comunismo e “morra” ao chefe de Governo, não pode ser considerado propaganda subversiva e, muito menos, serviço prestado à tentativa de reorganização do partido comunista. (Acr 1.516/SP, rel. min. Nelson Hungria, Pleno, 16-7-1954.) Em sentido semelhante, o decidido na Acr 1.530/SP, rel. min. Orozimbo Nonato, Pleno, 16-8-1955, cujo voto do ministro Nelson Hungria constitui ver- dadeiro libelo na defesa da liberdade de convicção e de manifestação, verbis: 41 Ministro Nelson Hungria Senhor Presidente, nunca é demais acentuar que a nossa constituição dispõe, com todas as letras, no § 8º do art. 141: “Por motivo de convicção reli- giosa, filosófica ou política, ninguém será privado de nenhum de seus direitos”. E, em outro parágrafo do mesmo artigo, assegura a liberdade de pen- samento, salvo no tocante à propaganda de meios subversivos da ordem político-social. Se interpretarmos a Lei 1.802, no sentido de incriminar até mesmo a mani- festação de ideias comunistas, estamos contrariando preceitos constitucionais. Não há crime em ter-se convicções comunistas e manifestá-las. Não comete crime algum quem afirma, de público e razo, que o clima soviético é mais saudável que o clima democrático. O que é crime é fazer propaganda e defender ideias no sentido da subver- são violenta do regime vigente entre nós. A Lei 1.802 só pode ser interpretada à luz dos citados dispositivos constitucionais. Declara a Lei 1.802 que é crime reorganizar ou tentar reorganizar partido cujo registro tenha sido cassado, tal como no caso anterior, do julgamento da Acr 1.534, também no processo que estamos julgando não se apresenta partido comunista reorganizado ou que se tenta reorganizar. Trata-se, apenas, de dois ou três indivíduos surpreendidos na posse de impressos que se diz serem de caráter subversivo ou pleiteando ideias no sentido implícito de uma rebelião violenta contra a ordem político-social, que impera entre nós. Desconfio muito dessa imputação, pois já uma vez disse aqui, e repito: o sim- ples fato de propugnar por ideias dentro da corrente comunista não implica, neces- sariamente, o precocínio do emprego de meios violentos. É possível a transformação de um Estado democrático em Estado soviético sem derramamento de sangue, sem emprego de violência, a história contemporânea dá exemplo disso. (Voto na Acr 1.530/SP, rel. min. Ribeiro da costa, Pleno, 16-8-1955.) Além disso, o ministro proferiu o voto condutor na Acr 1.486 (rel. para o acórdão min. Nelson Hungria, Pleno, julgado em 30-12-1952), decidido por voto desempate do ministro presidente. Nele, Nelson Hungria pontuou a necessidade de dolo específico para a perturbação da ordem político‑social quanto aos delitos ins- critos na Lei de Segurança Nacional, em vigor à época. Ou seja, a maioria liderada pelo ministro Nelson Hungria entendeu que a convocação de greve para aumento de salários — ainda que greve ilegal — não constituía crime contra a segurança nacio- nal quando não visava “à perturbação da ordem político‑social”. Nesse sentido, o Plenário começou a exigir, com o voto do ministro Nelson Hungria, o dolo específico para configuração de outros crimes contra a segurança nacional, como a posse de armas de guerra (Acr 1.479, rel. min. Ribeiro da costa, Pleno, 20-6-1952). Outro caso significativo em que prevaleceu o voto do ministro Nelson Hungria, também por voto desempate do ministro presidente, cuidou da dispersão de comício de estudantes realizado nas escadarias do Palácio da Justiça em São Paulo (Acr 1.515/SP, rel. para o acórdão min. Nelson Hungria, 30-7-1954). 42 Memória Jurisprudencial O então relator, ministro Mario Guimarães, mantinha a sentença condenatória dos dois oradores sob o fundamento de que o comício não tinha sido autorizado para aquele local e os réus só se retiraram “quando entraram na praça as forças policiais e os agarraram, donde então resultou o pânico”. A divergência foi inaugurada, então, pelo ministro Nelson Hungria, que res- saltou que a desobediência só poderia configurar‑se caso houvesse recalcitrância ou resistência após a determinação de dissolução da manifestação. Assentou seu voto vencedor, que não se eximiu de criticar o aparato repressivo policial: Não houve recalcitrância alguma; ao contrário, o que ocorreu, logo após a chegada dos policiais, foi o movimento geral de retirada, dissolvendo-se o comício. Precisamente a hipótese prevista pelo referido parágrafo [§ 2º do art. 19 da Lei 1.802/1953], como excludente de punibilidade. O processo penal contra os apelantes foi uma demasia, em contraste franco com a lei. com o imediato movimento de dissolução do comício, a autoridade poli- cial estava adstrita a abster-se de efetuar prisões,aguardando o completo resta- belecimento da normalidade da ordem no local. O comício criminoso é somente aquele cujos componentes, à aproxima- ção da autoridade policial ou após a determinação da dissolução, mostram-se rebeldes e teimam na continuidade da reunião. E tal não ocorreu na espécie. (Voto condutor da Acr 1.515/SP, rel. para o acordão min. Nelson Hungria, 30-7-1954.) Desta forma, as firmes convicções do ministro Nelson Hungria, apuradas por fina técnica penal, muito iluminaram os julgamentos de crimes contra a segurança nacional, nesse período, na Suprema corte. Importantes precedentes marcaram a tolerância da própria democracia com relação à manifestação de pensamento, sem hesitar em punir os delitos de violência contra o Estado Democrático de Direito. 2.1.2 Crimes de imprensa Além dos crimes políticos, é importante ressaltar também a contribuição dada à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, na época, pelo ministro Nelson Hungria, quanto a outro gênero de delitos, também ligados à livre mani- festação de pensamento, quais sejam, os denominados crimes de imprensa. Entre eles, cabe destacar o célebre habeas corpus impetrado pelo futuro ministro Adaucto cardoso e por Sobral Pinto em favor do jornalista carlos Lacerda, em 2-12-1952 (Hc 32.331/DF, rel. min. Luiz Gallotti, 3-12-1952). Na ocasião, o jornalista fora preso preventivamente por deixar de com- parecer para depor como testemunha em inquérito que apurava suposto crime de injúria, por meio da palavra na imprensa contra agente público. Na oportu- nidade, o polêmico jornalista recusou-se a comparecer e limitou-se a prestar depoimento por meio de carta aberta, transcrita no jornal que dirigia. 43 Ministro Nelson Hungria À época, carlos Lacerda, que já tinha muitos desafetos políticos e seria figura central no suicídio do presidente Vargas, havia publicado, no Tribuna da Imprensa, vespertino que dirigia, acusações de irregularidades cometidas por autoridades policiais na antiga capital. Os acusados, então, ajuizaram queixa- -crime contra a fonte da matéria, e o jornalista foi arrolado como testemunha. com a recusa de prestar depoimento na delegacia, o juiz da 24ª Vara criminal do Distrito Federal converteu a testemunha em indiciado e decretou sua prisão preventiva a requerimento da autoridade policial, sob o fundamento de que o paciente incidira também no crime de injúria contra agente público, nos termos do art. 3º, item 25, do Decreto-Lei 431/1938, além de criar obstá- culos ao regular andamento do inquérito. O decreto de prisão praticamente se justifica no fato de o paciente ser jornalista, assim dispondo: Atendendo a que assim dito indiciado [carlos Werneck Lacerda] vem criando obstáculos ao regular andamento do inquérito, além de manter uma atitude de desafio à autoridade o que não se pode admitir em indiciado, o que legitima a decretação de sua prisão preventiva a bem de instrução criminal; Atendendo a que essa medida também se impõe porque o citado indi- ciado está aproveitando a sua liberdade para influir no ânimo da autoridade, a quem pretende atemorizar com as facilidades da imprensa que possui, o que constitui uma modalidade de contempt of Court, que o juízo não pode permitir, porque traria a desmoralização da autoridade de polícia judiciária e afinal recai- ria sobre o próprio juízo, impedindo‑o de proferir sentença final com a liberdade imprescindível, uma vez que ficaria sujeito a no curso do processo vir a sofrer campanhas de acintes e insultos, o que o princípio da liberdade de imprensa não tutela, porque as demais liberdades asseguradas na constituição dependem... “upon an untramled aroused and whose minds are not distorted by extra-judi- cial considerations”, como bem acentuou o ministro Frankfurter ao apreciar um caso de demasia da imprensa pendente julgamento, o que motivou a sanção legal (314 US 252, caso “Times‑mirror c. versus Superior Court of California”). O caso é significativo não só pelas figuras que o compõem, como também pelo precedente que assentou, a um só tempo, amplo prestígio à liberdade de imprensa, excepcionalidade da prisão preventiva e necessidade de dolo especí- fico para a injúria fundada na Lei de Segurança Nacional. Ressalte-se que o habeas corpus, julgado diligentemente pelo Plenário no dia seguinte à impetração, era de competência do Supremo Tribunal Federal justamente pelo enquadramento de crime político. Tal fato deslocou para a Suprema corte a competência para apreciar a apelação e, consequentemente, também para julgar o respectivo habeas corpus. O relator, ministro Luiz Gallotti, votou pela concessão da ordem, desta- cando que o paciente sofrera “violência inútil”, tendo em seu depoimento apenas confirmado as informações constantes na carta aberta publicada no vespertino. Além disso, não cabia prisão preventiva para escutar testemunha; convinha, no 44 Memória Jurisprudencial máximo, a condução coercitiva, quando necessária. Ademais, assentou o minis- tro relator, quanto aos obstáculos criados pelo paciente na imprensa: Outro motivo alegado no decreto de prisão preventiva é que o paciente, com as facilidades de imprensa que possui, traria a desmoralização da autori- dade de polícia judiciária e afinal recairia sobre o próprio juízo, impedindo‑o de proferir sentença final com a liberdade imprescindível. Ora, isso não constitui motivo para prisão preventiva e, se admitido como tal, deveria levar logicamente não à prisão do paciente, mas ao fecha- mento do jornal, pois só com tal fechamento, ou mesmo de toda a imprensa, o juiz pode evitar a influência a que alude. Por outro lado, o argumento levaria a tornar forçosa a decretação da pri- são preventiva, sempre que contra jornalista fosse intentada ação penal. (Hc 32.331/DF, rel. min. Luiz Gallotti, 3-12-1952.) O voto do relator foi seguido à unanimidade pelo Plenário. Ao acompa- nhá-lo, o ministro Nelson Hungria deixou importante voto que se destaca não só pelo brilho da técnica jurídica, como, principalmente, pelo testemunho da consciência do magistrado. Registre-se que o paciente já havia publicado ácidas críticas pessoais ao ministro Nelson Hungria. Isso não impediu, no entanto, que o eminente juiz repudiasse iniquidade praticada contra o polêmico jornalista. Na oportunidade, assentou o ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, quando entrei hoje neste recinto, vinha com o propó- sito de alheiar-me a este julgamento, dando-me por impedido. Sofri, como é sabido, uma tremenda campanha difamatória por parte do jornalista ora paciente, e me achei, hoje, entre as guampas deste dilema: se denegasse o habeas corpus, estaria obedecendo a espírito de vingança; se o concedesse, estaria revelando medo, querendo fazer as pazes, levantar bandeira branca, acovardar-me diante desse jornalista, que, realmente, é truculento. Mas por um lado, de mim para mim, fiz exame de consciência e me certifiquei de que jamais guardei ódios, nunca meu coração foi ninho de rancores, e apesar de ter nascido na hinterlândia e lá vivido minha mocidade, nunca aprendi a dormir na pontaria, atrás do toco. Não sei exercer vindictas, aguardando o adversário na “volta do caminho”. Por outro lado, creio que meu passado de juiz fala por mim. Se não sou um destemido, se não sou um Dom Quixote de la Mancha, também não sou um covarde; sou um homem que nunca deixei de ser igual a mim mesmo, e digo as coisas que me vêm do coração à guela, custe o que custar. Houve, porém, um argumento que me decidiu. Fiel ao meu ponto de vista, reiteradamente manifestado em julgamentos, livros e artigos, meu voto tinha de ser a favor desse homem; e suponhamos que esse meu voto lhe faltasse e ele viesse, por isso, a ter o habeas corpus denegado. Teria eu contribuído para uma iniquidade em virtude de minha abstenção. (...) Devo insistir em que o paciente não
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