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REFLEXÕES SOBRE A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

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REFLEXÕES SOBRE A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
Revista de Direito Privado | vol. 38/2009 | p. 47 - 62 | Abr - Jun / 2009
Doutrinas Essenciais de Direito Civil | vol. 2 | p. 547 - 561 | Out / 2010
DTR\2009\270
Daniel Fernando Bondarenco Zajarkiewicch
Mestrando em Direitos Difusos e Coletivos pela PUC-SP. Bacharel em Teologia. Advogado.
Área do Direito: Civil
Resumo: A dignidade da pessoa humana vem buscando, ao longo da história, os seus fundamentos,
tendo tido uma grande influência do Cristianismo na sua concepção, ao destacar que o homem foi
fruto da criação divina, feito à imagem e semelhança de Deus. Todavia, essa concepção sofreu uma
secularização, à medida que o pensamento humano foi se distanciando do divino, num caminho
guiado pela autonomia da razão, derivando num aprisionamento do indivíduo na máquina de causa e
feito do universo. O retorno à origem dessa concepção, amparado pela fé na Revelação, antes que
na razão, seria um caminho plausível para a retomada dos fundamentos da dignidade da pessoa
humana.
Palavras-chave: Dignidade da pessoa humana - Pensamento humano - Fé
Abstract: The dignity of the human persona has been searching its basis throughout history, having
had a great influence from Christianity in its conception, as it highlights that man was spawned from
Divine Creation, designed under God's image and resemblance. Yet, such conception suffered a
secularization, as human thought was distancing itself from divine, in a path guided by the autonomy
of reason, yielding in an imprisonment of the individual in the universe's cause and effect machine.
The return to the origin of this conception, supported by the faith in the Revelation, before of that in
reason, would be a plausible path for perking up the fundamentals in the human persona's dignity.
Keywords: Faith - Human dignity
Sumário:
- 1.Concepção da dignidade da pessoa humana na história - 2.A pessoa humana na visão da
teologia reformada - 3.A pessoa humana e a autonomia da razão - 4.Conclusão
Introdução
A dignidade da pessoa humana tem sido, nos últimos tempos, alvo de inúmeras teses jurídicas,
relacionando-a com os mais variados temas do Direito, dentre os quais, relativos a direitos humanos,
contratos trabalhistas, prisão cautelar, indiciamento, prescrição penal, penas alternativas, pena de
morte, contratos, consumidor, alienação fiduciária em garantia, função social da propriedade, planos
de saúde, meio ambiente hospitalar, eutanásia, bioética, biotecnologia, ações investigatórias de
paternidade, direito internacional de circulação de pessoas etc.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1 proclamada pela Resolução 217 A (III), da
Assembléia Geral das Nações Unidas, em 10.12.1948, considera, no seu preâmbulo, a importância
de se reconhecer a "dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos
iguais e inalienáveis" como fundamento para a consecução dos ideais de liberdade, da justiça e da
paz, reafirmando a fé dos povos das Nações Unidas "na dignidade e no valor da pessoa humana".
Como corolário, declara como ideal comum que "todas as pessoas nascem livres e iguais em
dignidade e direitos" (art. 1.º), tendo direito "à realização dos direitos econômicos, sociais e culturais
indispensáveis dos indivíduos à sua dignidade" (art. 22) e a uma remuneração justa e satisfatória
pelo trabalho, de modo a assegurar-lhe "uma existência compatível com a dignidade humana" (art.
23).
Dessa forma, na percepção de alguns juristas, a dignidade da pessoa humana "concede unidade aos
direitos e garantias fundamentais", 2 e a referência à dignidade da pessoa humana "parece conglobar
em si todos aqueles direitos fundamentais, quer sejam os individuais clássicos, quer sejam os de
fundo econômico e social". 3 O vínculo entre "a dignidade da pessoa humana e os direitos
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fundamentais já constitui, por certo, um dos postulados nos quais se assenta o direito constitucional
contemporâneo". 4
Segundo a ponderação de Sarlet, sendo a dignidade uma qualidade intrínseca e indissociável de
todo e qualquer ser humano, de modo de que a destruição de um implicaria a destruição do outro, "o
respeito e a proteção da dignidade da pessoa (de cada uma e de todas as pessoas) constituem-se
(ou, ao menos, assim o deveriam) em meta permanente da humanidade, do Estado e do Direito". 5
A mesma conclusão é postulada por Luis Garcia San Miguel, citado por Márcia Cristina de Souza
Alvim, de que "la dignidad del hombre es intangible. Respetarla y protegerla constituye una
obligación de todo poder del Estado". 6
Mas a discussão e conceituação a respeito da dignidade da pessoa humana precede à Declaração
dos Direitos Humanos.
1. Concepção da dignidade da pessoa humana na história
O tema não deixa de ser controverso, e tem ensejado farta discussão em nível doutrinário e até
mesmo jurisprudencial. A conceituação da dignidade da pessoa humana não é tarefa fácil, e pode
ser evocada antes mesmo do seu reconhecimento no direito positivo.
A respeito do termo dignidade, Vander Ferreira de Andrade 7 cita Plácido e Silva, para quem o
vocábulo, "derivado do latim dignitas (virtude, honra, consideração), em regra se entende a qualidade
moral que, possuída por uma pessoa, serve ao próprio respeito em que é tida", compreendendo-se
também o próprio procedimento da pessoa, pelo qual se faz merecedor do conceito público. Em
sentido jurídico, também se entende como a "distinção ou honraria conferida a uma pessoa,
consistente em cargo ou título de alta graduação".
A idéia de que a dignidade é um valor intrínseco da pessoa humana tem raízes já no pensamento
clássico e no ideário cristão. 8
Damião Teixeira Pereira, fazendo um breve resumo da evolução da concepção da dignidade humana
na cultura ocidental, identifica, na Antiguidade Clássica, período compreendido de 600 a 480 a.C., a
coexistência de grandes doutrinadores, que não se comunicavam entre si e cujas diferentes
cosmovisões enunciaram os grandes princípios e diretrizes fundamentais de vida: Zaratustra, na
Pérsia; Buda, na Índia, Lao-Tsé e Confúcio, na China; Pitágoras, na Grécia e Deutero-Isaías, em
Israel. 9
Antífone (480-411 a.C.) defendia a igualdade da natureza humana para todos os homens,
contrastando com os atributos externos ao homem, visão da antiguidade clássica, que atribuída
dignidade ( dignitas) em função da posição social do indivíduo e de seu grau de reconhecimento
perante a sociedade. 10
Ainda que no período grego não se encontre uma sistematização ou formulação concreta sobre a
dignidade da pessoa humana, Celso Lafer, citado por Pereira, aponta no estoicismo um resgate da
dignidade humana, na noção de que o mundo é uma grande cidade ( cosmo-polis), no qual os
homens participam na condição de igualdade, desvinculando-se, principalmente a partir de Cícero, a
dignidade humana da condição social que cada indivíduo ocupava. 11
Para Cícero, "dizer que se deve respeitar os concidadãos, mas não os estrangeiros, é destruir a
sociedade comum do gênero humano ( communis humani generis societas)". 12 Convém lembrar,
neste ponto, que no pensamento estóico havia uma exaltação da natureza, considerada a grande
ordem universal animada pela divindade. Não havia separação entre o natural e sobrenatural, razão
espiritual e realidade sensível, alma e corpo, mas a noção de que a natureza (physis) e razão (logos)
se confundem. O homem, nessa visão unitária, não escapava à lei da natureza. 13
No Cristianismo houve uma valorização especial do ser humano, razão pela qual inúmeros autores
remetem-nos ao livro de Gênesis, onde se relata que o homem foi criado depois dos elementos do
universo e dos demais seres vivos, e segundo à imagem e semelhança do Criador:
"E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; domine ele
sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre os animais domésticos, esobre toda a terra, e
sobre todo réptil que se arrasta sobre a terra. Criou, pois, Deus o homem à sua imagem; à imagem
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de Deus o criou; homem e mulher os criou." 14
Outras passagens bíblicas, freqüentemente citadas, reforçariam a noção superioridade do homem
em relação ao restante da criação, e as palavras do apóstolo Paulo aos Gálatas, a igualdade
essencial entre os homens: "Não há judeu nem grego; não há escravo nem livre; não há homem nem
mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus." 15
As barbaridades que ao longo da história foram perpetradas em nome do Cristianismo, levou Pereira
a inferir, junto com Comparato, que a concepção de dignidade humana encontrada nos Evangelhos
se aplicaria apenas ao plano espiritual, da salvação da alma, pois "o Cristianismo continuou
admitindo, durante muitos séculos, legitimando a escravidão, a submissão doméstica da mulher ao
homem, e a inferioridade natural dos indígenas americanos". 16
Todavia, é bom que se diga que a mensagem dirigida àqueles que abraçam o evangelho de Cristo
pela fé, tem aplicação imediata, aqui e agora, no tempo e no espaço. Essa mensagem de unidade
em Cristo, destruindo as diferenças entre os homens, como criaturas à imagem de Deus, foi
"lamentavelmente renegada por muito tempo por parte das instituições cristãs e seus integrantes", 17
o que não constitui uma demonstração de que se trate de uma aplicação atemporal ou sobrenatural.
Incontestavelmente - afirma Comparato, foi com o Cristianismo "que o conceito de pessoa como
substância, em correlação com o seu sentido concreto de indivíduo, foi sistematicamente elaborado".
18 E ainda:
"Foi sobre a concepção medieval de pessoa que se iniciou a elaboração do princípio da igualdade
essencial do ser humano, não obstante a ocorrência de todas as diferenças individuais ou grupais,
de ordem biológica ou cultural. Essa igualdade de essência da pessoa forma o núcleo do se veio a
denominar, nos tempos modernos, direitos humanos." 19
Tomas de Aquino (1225-1274) utilizou-se especificamente da expressão " dignitas humana" e em
seu pensamento o fundamento da dignidade humana encontra-se no fato do ser humano ter sido
feito à imagem e semelhança de Deus, tendo a capacidade de autodeterminação inerente à sua
natureza. 20
Destaca como característico do ser humano a sua racionalidade e intelecto, e afirma que este, em
contraposição da inteligência do anjo, está acoplado ao corpo, e tem por objeto próprio a natureza
das coisas existentes corporalmente na matéria. E mediante a natureza das coisas visíveis chega-se
ao conhecimento das invisíveis. 21
Na Renascença, Giovanni Pico della Mirandolla (1463-1494) é freqüentemente citado como ponto
alto da concepção moderna da dignidade da pessoa humana, em cuja obra "Discurso sobre a
dignidade do homem" 22 sustentava que os seres criados tinham natureza bem definida e regulada
pelas leis divinas, enquanto que ao homem, como criatura de Deus, foi outorgada uma "natureza
indefinida, para que fosse seu próprio árbitro, soberano e artífice, dotado da capacidade de ser e
obter aquilo que ele próprio quer e deseja". 23
Problematiza a dignidade do homem em três níveis de inteligibilidade: a dignidade do homem é um
problema da razão, da liberdade humana e do ser. 24 E afirma que cabe ao homem o
desenvolvimento de sua dignidade, proporcional ao grau de compromisso com as verdades eternas.
25
Thomas Hobbes (1588-1679), por sua vez, entendia que os homens eram naturalmente iguais,
quanto às faculdades do corpo e do espírito, de modo que não havia base para que um reclamasse
qualquer benefício sobre outro. Mas impunha-se a intervenção do Estado para garantir que a
discórdia gerada pela competição entre os homens na consecução dos seus próprios fins,
comprometesse a segurança e o respeito mútuos. 26
Séculos depois, conforme destaca Sarlet, "a concepção filosófica e secularizada de dignidade,
encontrou em Kant o seu mais aclamado (mas não único) expoente". 27 Kant (1724-1804) tinha a
concepção e que "a dignidade partia da autonomia ética do ser humano, considerando esta (a
autonomia) como fundamento da dignidade do homem". 28
Para Kant, "os entes racionais denominam-se pessoas, pois são marcados, pela sua própria
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natureza, como fins em si mesmos; ou seja, como algo que não pode servir simplesmente de meio, o
que limita, em conseqüência, nosso livre-arbítrio". 29 Daí afirmar ele que todo do homem tem
dignidade, contrapondo-se às coisas, que têm preço.
Outros autores, como Marx, Merleaux-Pontry e Skinner, negaram qualquer tentativa de
fundamentação religiosa ou metafísica da dignidade da pessoa humana, comenta Sarlet. 30
Depois de Hegel, para quem o homem não é um ser natural, mas um ser histórico, surgem novas
perspectivas acerca da natureza do homem, entendendo-o como um ser em desenvolvimento,
inacabado (Heidegger), que deve ser entendido dentro do seu contexto social. Para Luhmann, "a
pessoa alcança (conquista) a sua dignidade a partir da conduta autodeterminada e da construção
existosa de sua própria identidade". 31
Mais recentemente, Maritain (1882-1973) retomou os ensinamentos de Tomas de Aquino, porém
numa nova perspectiva. Como biólogo, reconhecia a grande contribuição da ciência no que tange ao
conhecimento do ser humano. Defensor de um humanismo integral, de cunho existencial, participou
ativamente da elaboração da Declaração dos Direitos Humanos.
Cite-se, finalmente, a opinião de Norberto Bobbio (1909-2004), de que os direitos humanos
prescindem da busca de um fundamento, pois o problema reside na sua inefetividade. 32 Ainda
assim, admite que há dois direitos com valor absoluto, que cabem a qualquer um, em qualquer
época e lugar: o direito de não ser escravizado e o direito de não ser torturado. 33
2. A pessoa humana na visão da teologia reformada
Atribui-se ao Cristianismo uma grande contribuição à concepção da dignidade da pessoa humana,
como valor intrínseco ao ser humano, pelo fato de ser uma criatura feita à imagem e semelhança de
Deus.
Todavia, a "dignidade" da pessoa humana não é um tema tratado especifica e diretamente nas
Sagradas Escrituras. "Não se haverá de encontrar na Bíblia um conceito de dignidade, mas uma
concepção do ser humano que serviu e até hoje tem servido como pressuposto espiritual para o
reconhecimento e construção de um conceito e de uma garantia jurídico-constitucional da dignidade
da pessoa" observa Starck. 34
Ao lermos o texto bíblico de Gênesis, encontramos uma base de diferenciação entre o homem e o
restante da criação. O homem foi criado no sexto dia, após a criação dos céus e da terra, o
firmamento, a flora e a fauna, como ápice da criação, e ainda à imagem e semelhança de Deus,
expressão utilizada apenas em Gênesis 1:26-28; 5:1-3 e 9:6. O uso nestas três passagens, sugerem
alguns estudiosos, indica que os termos "imagem" e "semelhança" são utilizados como sinônimos.
Muito tem se escrito indagando o significado da imago Dei, destacando-se, em geral, a racionalidade
como aspecto singular que diferencia o homem dos demais seres vivos.
Berkhof leciona que na concepção reformada, a imagem de Deus consiste na integridade original da
natureza do homem, integridade esta que se expressa no conhecimento verdadeiro (Colosenses
3:10), na justiça (Efésios 4:24), e na santidade (Efésios 4:24). 35
Segundo Van Groningen, "ao criar a humanidade à sua própria imagem, Deus estabeleceu uma
relação na qual a humanidade poderia refletir, de modo finito, certos aspectos do infinito Rei-Criador.
A humanidade deveria refletir as qualidades éticas de Deus, tais como retidão e verdadeira santidade
(...) e seu conhecimento (Colosenses 3:10). A humanidade deveria dar expressão às funções divinas
em relação ao cosmos e atividades tais como encher a terra, cultivá-la e governar sobre o mundo
criado.A humanidade em uma forma física, também refletiria as próprias capacidades do Criador:
apreender, conhecer, exercer amor, produzir, controlar e interagir". 36
Nesse sentido, a imagem de Deus teria uma tríplice relação: relação com Deus, relação com o
próximo e relação com a criação. Tendo sido criado à imagem e semelhança de um Deus pessoal, o
homem sabe que pode ter relação pessoal com o seu Criador, desfrutar do seu companheirismo, que
há possibilidade de comunicação pessoal e que há a possibilidade de receber uma revelação do
próprio Criador. 37
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Exemplo dessa comunicação e diálogo pode ser observado logo no capítulo 3 de Gênesis. Porém,
esse cenário de harmonia é quebrado pela Queda do homem, fato que afetou a sua natureza de
forma contundente.
Para Calvino, a imagem de Deus não foi totalmente aniquilada com a Queda, mas foi terrivelmente
deformada, de tal forma que qualifica a imago Dei, após a Queda, como "uma imagem deformada,
doentia e desfigurada". 38
A Queda não elimina a diferença do homem das demais coisas. O homem caído não é menos
homem. Todavia, experimenta uma quebra no relacionamento vertical com Deus, no relacionamento
horizontal com o seu semelhante, e no relacionamento com a natureza.
Segundo as Sagradas Escrituras, o homem e a natureza não se encontram no mesmo estado em
que foram criados. A situação atual não é de "normalidade". Este aspecto deve ser levado em
consideração quando procuramos fundamentos para a dignidade da pessoa humana, principalmente
nas Sagradas Escrituras e no Gênesis, sob pena de adotarmos uma noção equivocada.
Conforme o Evangelho, a restauração dessa imagem só é possível através da obra redentora de
Cristo, " a imagem do Deus invisível" (Colosenses 1:15), em quem Deus nos predestinou para
sermos "conforme a imagem de Seu Filho" (I João 3:2; II Corintios 3:18). E a natureza também será
liberta da corrupção em que se encontra sujeita (Romanos 8:19 a 22) desde a maldição referida no
Gênesis (3:17).
Esta renovação implica que o homem pode voltar-se a Deus, o seu Criador, voltar-se para o próximo,
e voltar-se para a natureza, sob a perspectiva dos desígnios divinos.
3. A pessoa humana e a autonomia da razão
Com Tomas de Aquino a concepção da natureza humana muda. Ele tinha uma visão particular da
Queda, sustentando que o homem tinha se rebelado contra Deus e tinha caído. A Queda não tinha
afetado o homem em sua totalidade, mas apenas em parte.
Para Aquino, a vontade do homem tinha caído, mas o intelecto não. Nesse sentido, comenta
Schaeffer que "o intelecto do homem quis ser autônomo; em uma esfera concreta, o homem se
declarou independente, autônomo". 39 E continua: "essa esfera do autônomo toma em Aquino várias
formas. Uma das conseqüências, por exemplo, foi o desenvolvimento da teologia natural, (...) uma
reflexão teológica que pode ser realizada independentemente da Escrituras". 40 Embora buscasse a
unidade e manifestasse que havia uma correlação entre a teologia natural e as Escrituras, sentou as
bases para uma área realmente autônoma.
Sobre esse princípio de autonomia, "a filosofia declarou-se livre e separou-se da Revelação". Não
que essa tendência não tivesse se manifestado antes na história, mas a partir de Aquino,
manifestou-se de uma forma avassaladora, visto que não ficou restrita ao sistema filosófico-teológico
de Tomas de Aquino. Invadiu, prontamente, o campo das artes. 41
A natureza, que representava a criação, a terra e as coisas terrenas, o visível e o que a natureza e o
homem fazem sobre e terra, o corpo do homem e a diversidade, começou a ganhar espaço no
pensamento, na filosofia e nas artes, em detrimento da graça, que representava o Deus Criador, os
céus e as coisas celestes, o invisível e sua influência sobre a terra, a alma do homem e a unidade. E
através do Renascimento, a natureza converteu-se, gradualmente, em algo cada vez mais
autônomo, de modo que ao final do Renascimento, a natureza tinha "engolido" a graça. 42
A partir de então, a unidade que a graça prestava aos particulares, à diversidade, foi sendo
eliminada, dando lugar à fragmentação das mais diversas disciplinas humanas. Estudamos teologia
como teologia, filosofia como filosofia, arte como arte, música como música, sem compreender que
todas estas coisas tem a ver com o homem, são coisas do homem, e como tais, não são linhas
paralelas eternamente distanciadas. 43
Onde achar a unidade, uma vez que os particulares são libertados, são considerados autônomos?
Como achar a unidade no meio da diversidade? Leonardo da Vinci (1452-1519), dominador de várias
disciplinas humanas, enfrentou esse dilema. Percebeu que se começamos com uma racionalidade
autônoma, chegamos à matemática (o que é medido), mas a matemática só se ocupa do
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particulares, nunca dos universais. 44
Segundo Giovanne Gentile, 45 citado por Schaeffer, Leonardo morreu desesperado porque se
prendia à esperança de encontrar uma unidade racional entre os universais e os particulares.
Daí em diante, o pensamento, amarrado à autonomia da razão, ficou preso à lei de causa e efeito.
Quando chegamos a Kant e Rousseau, a liberdade ocupa o lugar que antes era destinado à graça. A
natureza toma tal grau de autonomia que começa a surgir o determinismo, antes apenas reservado
ao campo da física. Porém, dizer que a liberdade é autônoma, significa colocar o indivíduo no centro
do universo. É o que alguns expoentes da filosofia grega tinham feito, e o que o humanismo
renascentista fez.
"E na medida em que o homem sente o peso da máquina (do determinismo), levanta-se Rousseau, e
outros com ele, e amaldiçoa a ciência que retinge a liberdade humana", comenta Schaeffer. 46
Até Hegel (1770-1831) acreditava-se na possibilidade de se encontrar um campo unificado de
conhecimento, a uniformidade de causas naturais num sistema aberto. Com Hegel, o binômio
tese-antítese é substituído pelo trinômio tese-antítese-síntese, mudando a epistemologia e a
metodologia. A partir desse momento, o mundo mudou.
A uniformidade de causas naturais passa a ser concebida dentro de um sistema fechado, e o homem
(e Deus) dentro dele. O homem morre, Deus também (Nietzsche), e com ele a verdade em termos de
tese-antítese.
Sem um ponto de integração, infinito, que dê sentido e unidade à diversidade, o homem sucumbe no
mar do relativismo e da mecânica do universo. Não é por acaso que Sartre diz que "se não há um
ser necessário para explicar a existência, a contingência é o absurdo; tudo é gratuidade perfeita,
tudo é demais e o homem, o próprio homem, nasce sem razão, subsiste por fraqueza e morre por
acaso". 47
Sucedem-se vários pensadores que deram seqüência ao pensamento mecanicista. Feuerbach
(1804-1872) expõe a filosofia do materialismo. Ernst Haeckel (1834-1919) biólogo, afirma que a
matéria e a energia são eternas e assume que a mente e a alma humana devem ser explicadas na
base do materialismo. Não há mais lugar para Deus ou para o homem num sistema fechado de
causas naturais.
Charles Luell (1797-1875) abriu a porta da unidade de causas naturais num sistema fechado no
campo da geologia. Mais tarde, Charles Darwin (1809-1882) estendeu o conceito ao campo da vida
biológica. Thomas Huxley (1825-1895), e Herbert Spencer, (1820-1903) argumentam em termos da "
sobrevivência do mais forte". Heirich Himmler (1900-1945), da Gestapo, fez essa lei seguir,
literalmente, o seu curso.
O resultado histórico da autonomia da razão foi o banimento dos absolutos. A esperança e o
otimismo passaram a ser opções irracionais ou supra racionais (Carl Jaspers - experiência final,
Heidegger, Kierkegaard). E o homem, preso ao determinismo da máquina do universo, vive apenas a
ilusão de ser "homem", segundo Skinner, a quem dirige as seguintes palavras: "to man qua (as) we
readily say, good riddance". 48
4. Conclusão
Otema da dignidade da pessoa humana se nos afigura como um dos temas basilares na busca dos
fundamentos dos interesses e direitos difusos e coletivos.
Lembramos, como Sarlet, "que a dignidade evidentemente não existe apenas onde é reconhecida
pelo Direito (...), já que constitui dado prévio, no sentido de preexistente e anterior na toda
experiência especulativa". 49 O papel do Direito será crucial na sua promoção e proteção, não
necessariamente na definição do que seja dignidade da pessoa humana, mas na proteção da
natureza do ser humano como tal, embora se deva reconhecer que a falta de uma conceituação tem
levado a defender até a morte com dignidade, como no caso da eutanásia. 50
Se se adota a tese de que o conceito de dignidade tem apenas uma dimensão histórico-cultural,
mister perguntar-se, como Sarlet, "até que ponto a dignidade não está acima das especificidades
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culturais, que, muitas vezes, justificam atos que, para a maior parte da humanidade, são
considerados atentatórios à dignidade da pessoa humana, mas que em certos quadrantes, são tidos
por legítimos, encontrando-se puramente enraizados na prática social e jurídica de determinadas
comunidades". 51
Na sociedade atual, onde impera a relatividade, a ausência de absolutos, justifica-se sustentar, como
Dworkin, "a existência de um direito das pessoas de não serem tratadas de forma indigna" em que
"qualquer sociedade civilizada tem seus próprios padrões e convenções a respeito do que constitui
esta indignidade, critérios que variam conforme o local e a época". 52 Apesar de contarmos com uma
Declaração Universal dos Direitos Humanos, verificamos que os próprios países signatários
negligenciam o seu cabal cumprimento.
Se deveras pretendemos recuperar a dignidade da pessoa humana em nossa sociedade,
precisaremos discutir os fundamentos desse princípio, pois como diz Chorão "a questão fundamental
dos direitos fundamentais é a do seu fundamento (...) confrontando o déficit argumentativo notório
das teses positivistas e do agnosticismo metafísico e ético, das teorias de cunho utilitarista,
neocontratualista e liberal". 53
Há necessidade de um retorno à discussão desses fundamentos, considerando fontes do Direito que
a história do pensamento humano deixou de lado.
Chorão, no preâmbulo da sua obra "Pessoa Humana, Direito e Política", diz pretender não somente o
"tratamento filosófico do tema, segundo a razão natural, mas também, na medida do possível, ter em
conta, no discernimento da verdade acerca das coisas 'divinas e humanas' (a natureza e dignidade
da pessoa, os fundamentos e princípios da ordem moral, a causa primeira e o Fim último da
realidade etc.), os dados da Revelação divina, considerados sob a luz da fé". 54
Considerar os dados da Revelação Divina, na pessoa de Cristo e nas Sagradas Escrituras, implicará,
certamente, em voltar a considerar a uniformidade de causas naturais num sistema aberto. Implicará
em negar autonomia à razão natural, e a considerar fontes externas à razão humana na nossa
epistemologia.
O tema dos fundamentos dos interesses e direitos difusos e coletivos passa, a nosso ver, pelo
princípio da dignidade da pessoa humana. E esta, por sua vez, pela conceituação da natureza
humana. A concepção que tenhamos da origem do homem e do universo será determinante para a
construção da nossa antropologia.
Nesse sentido, propomos voltar a considerar a Revelação como fonte do Direito, da qual poderemos
extrair fundamentos para o princípio da dignidade da pessoa humana e contribuir na busca dos
fundamentos dos interesses e direitos difusos e coletivos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Saraiva, 1988. vol. 1.
BERKHOF, L. Teologia sistemática. São Paulo: Luz para o Caminho, 1990.
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
CHORÃO, Mário Bigotte. Pessoa humana, direito e política. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da
Moeda, 2006.
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 1999.
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MORAES, Alexandre. Direito constitucional. 5. ed. São Paulo: Atlas, 1999.
PEREIRA, Damião Teixeira. Dignidade da pessoa humana: evolução da concepção de dignidade e
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mestrado, São Paulo, PUC-SP, 2006.
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SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição
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SCHAEFFER, Francis A. Génesis en el tiempo y en el espacio. Barcelona: Ediciones Evangélicas
Europeas, 1974, p. 50.
VAN GRONINGEN, Gerard. Revelação messiânica no Velho Testamento. Campinas: Luz para o
Caminho, 1995.
1. A Declaração Universal dos Direitos Humanos estabelece: "Art. 22. Todo o homem, como membro
da sociedade, tem direito à segurança social e à realização, pelo esforço nacional, pela cooperação
internacional e de acordo com a organização e recursos de cada Estado, dos direitos econômicos,
sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento de sua personalidade.
Art. 23. I) Todo o homem tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e
favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego. II) Todo o homem, sem qualquer distinção,
tem direito a igual remuneração por igual trabalho. III) Todo o homem que trabalha tem direito a uma
remuneração justa e satisfatória, que lhe assegure, assim como a sua família, uma existência
compatível com a dignidade humana, e a que se acrescentarão, se necessário, outros meios de
proteção social. IV) Todo o homem tem direito a organizar sindicatos e a neles ingressar para
proteção de seus interesses". Disponível em:
[http://www.dhnet.org.br/direitos/deconu/textos/integra.htm].
2. MORAES, Alexandre. Direito constitucional. 5. ed. São Paulo: Atlas, 1999, p. 66.
3. BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil. São
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4. SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição
Federal de 1988. 5. ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 26.
5. Idem, p. 27.
6. ALVIM, Maria Cristina de Souza. Princípio da dignidade da pessoa humana e o direito
constitucional do trabalho. Dissertação de mestrado, PUC-SP, 1997, p. 69.
7. ANDRADE, Vander Ferreira de. A dignidade da pessoa humana como valor-fonte da ordem
jurídica. Dissertação de mestrado, PUC-SP, 2002, p. 54.
8. Idem, p. 29.
9. PEREIRA, Damião Teixeira. Dignidade da pessoa humana: evolução da concepção de dignidade
e sua afirmação como princípio fundamental da Constituição Federal de 1988. Dissertação de
mestrado, PUC-SP, 2006, p. 18.
10. Idem, p. 20.
11. PEREIRA, ob. cit., p. 24.
12. COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva,
1999, p. 113.
13. Idem, p. 109.
14. Bíblia Sagrada. Gênesis 1: 26, 27.
15. Idem, Gálatas 3: 28 .
16. COMPARATO, ob. cit., p. 17.
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17. SARLET, ob. cit., p. 30.
18. COMPARATO, ob. cit., p. 479.
19. Idem, p. 457.
20. SARLET, ob. cit., p. 31.
21. AQUINO, Tomas de. Summa Teológica (I, 84, 7).
22. "Tu, porém, não estarás coactado por amarra nenhuma. Antes, pela decisão do arbítrio, em cujas
mãos te depositei, hás de predeterminar a tua compleição pessoal." Apud ANDRADE, ob. cit., p. 62.
23. Apud SARLET, ob. cit., p. 32.
24. ALVIM, ob. cit., p. 57.
25. ANDRADE, ob. cit., p. 65.
26. ALVIM, ob. cit., p. 59.
27. Idem, p. 38.
28. SARLET, ob. cit., p. 32.
29. Idem,p. 33.
30. SARLET, p. 38.
31. SARLET, p. 49.
32. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 24.
33. Idem, p. 37.
34. Citado por SARLET, ob. cit., p. 30.
35. BERKHOF, L. Teologia sistemática. São Paulo: Luz para o Caminho, 1990, p. 206.
36. VAN GRONINGEN, Gerard. Revelação messiânica no Velho Testamento. Campinas: Luz para o
Caminho, 1995.
37. SCHAEFFER, Francis A. Génesis en el tiempo y en el espacio. Barcelona: Ediciones Evangélicas
Europeas, 1974, p. 50.
38. CALVINO, João. As Institutas, I, XV, 3.
39. SCHAEFFER, Francis A. Huyendo de la razón. Barcelona: Ediciones Evangélicas Europeas,
1969, p. 13.
40. Idem, ibidem.
41. Idem, ibidem.
42. Idem, p. 15.
43. Idem, ibidem.
44. Idem, p. 20.
Reflexões sobre a dignidade da pessoa humana
Página 9
45. GENTILE, Giovanni. Leonardo Da Vinci. New York: Reynal & Co., 1963, p. 163-174 apud
SCHAEFFER, ob. cit., p. 20.
46. SCHAEFFER, ob. cit., p. 37.
47. REZEK, Romano. Deus ou nada: reflexões sobre o ateísmo moderno. São Paulo: Edições
Paulinas, 1975, p. 149.
48. Skinner era um comportamentalista americano (behaviorismo), que influenciou muito o
pensamento até a década de 50, inclusive a brasileira. Era determinista. Em sua teoria não havia
nenhum espaço para o livre-arbítrio, pois afirmar que os seres humanos são capazes de livre
escolha seria negar sua suposição básica de que o comportamento é controlado pelo ambiente e os
genes. Podemos modelar a sociedade do jeito que se quiser. A expressão citada "good riddance"
indica o prazer de se livrar de algo que lhe aborrece, geralmente, um indivíduo.
Geddeert-Steinmacher (apud SARLET, ob. cit., p. 38) menciona que para Skinner, liberdade de
dignidade são categorias ultrapassadas, já que a autonomia não é empiricamente comprovável, não
sendo o ser humano quem dirige o seu próprio comportamento, mas sim, este é controlado pela
natureza, de tal sorte que os conceitos jusnaturalistas de liberdade e dignidade deveriam ser
substituídos por uma "tecnologia do comportamento", ao passo que para muitos autores marxistas
não há como aceitar a idéia de um estatuto da liberdade (e dignidade) pré-estatal, já que são as
forças econômicas e a luta de classes os fatores condicionantes do fenômeno jurídico.
49. SARLET, ob. cit., p. 43.
50. Idem, ibidem.
51. SARLET, ob. cit., p. 57.
52. Idem, ibidem.
53. CHORÃO, Mário Bigotte. Pessoa humana, direito e política. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da
Moeda, 2006, p. 11.
54. Idem, p. 8.
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