Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
1 Linguagem e sociedade em Habermas: atos de fala, pragmática universal e agir comunicativo Marco Antônio Sousa Alves Doutorando em Filosofia pela UFMG. Contato: marcofilosofia@ufmg.br Comunicação apresentada no IX Seminário dos alunos de pós-graduação em filosofia da UERJ, no dia 4 de dezembro de 2009 Habermas construiu um audacioso projeto filosófico que conectou teses advindas da filosofia da linguagem, de origem analítica ou hermenêutica, com questões relativas à teoria da sociedade. Embora muitos sejam os que estudam o pensamento habermasiano, raramente encontramos uma apresentação clara de como se dá essa junção. Este constitui o objetivo principal desta comunicação, qual seja, analisar a passagem, no seio do pensamento habermasiano, da filosofia da linguagem para a teoria da sociedade. Para o bom cumprimento dessa tarefa, e o desenvolvimento adequado da argumentação, divide-se a apresentação em dois momentos, que constituem as paradas obrigatórias pelas quais teremos de nos deter para compreender o percurso proposto por Habermas. No primeiro momento, será apresentada a apropriação feita por Habermas da teoria dos atos de fala (speech acts) de Austin e Searle, o que deu origem à proposta da pragmática universal. Para explicar esse momento do pensamento habermasiano, será preciso abordar qual razão levou Habermas a se interessar pela teoria da significação (theory of meaning) da tradição analítica. No segundo momento da comunicação, abordaremos a importância da teoria pragmática universal na elaboração da teoria do agir comunicativo. Tentaremos mostrar como Habermas retira de sua reflexão sobre a linguagem os elementos para a elaboração de uma teoria crítica da sociedade que consiga, a partir do desenvolvimento de um estudo das condições das ações comunicativas (a pragmática universal), realizar, dentre outras, uma grande façanha: encontrar as bases que permitam identificar as patologias sociais em termos de comunicações sistematicamente distorcidas. Para tanto, analisaremos a associação feita por Habermas da teoria dos atos de fala com o estudo da racionalidade da ação. I. Dos atos de fala à pragmática universal Na ótica de Habermas, a grande conquista da virada pragmática, ocorrida no seio da filosofia da linguagem, está na importância atribuída à praxis comunicativa e não somente à representação da realidade, levando-se em conta o caráter intersubjetivo da linguagem (as interações comunicativas, os usos que se fazem dos sinais lingüísticos, em suma, o seu caráter pragmático). Habermas (1976:329) chegará a Marco Antonio Text Box Citar: nullALVES, Marco Antônio Sousa. Linguagem e sociedade em Habermas: atos de fala, pragmática universal e agir comunicativo. Trabalho apresentado no IX Seminário dos alunos de pós-graduação em filosofia da UERJ, Rio de Janeiro, 2009. Disponível em http://ufmg.academia.edu/MarcoAntonioSousaAlves/Papers/898246/Linguagem_e_sociedade_em_Habermas_atos_de_fala_pragmatica_universal_e_agir_comunicativo. Acesso em: [data de acesso] nullContato: marcofilosofia@ufmg.br null 2 dizer, inclusive, que a análise das orações veritativas (que refletem experiências ou fatos) é uma parte menos importante para uma teoria da comunicação (que se centrará nas relações interpessoais, e não na relação com o mundo). Se no domínio sintático-semântico o sentido das palavras é apreendido em razão de sua contribuição às condições de verdade de uma proposição, no plano pragmático apreende-se o sentido de um termo quando se sabe usá-lo, sendo o sentido pensado em função de regras de uso. Segundo Apel (1973), a análise lógica da linguagem (que se limita às propriedades sintáticas e semânticas) tendeu a deixar a dimensão pragmática da linguagem entregue a um mero estudo empírico, como se não pudesse ser submetida a uma análise formal. Ainda que seja legítimo estabelecer um corte entre a linguagem como estrutura e a fala como processo, tal separação incorre em uma falácia abstrativa quando abandona a dimensão pragmática à mera análise empírica da lingüística. Habermas (1976:304-306), na elaboração de sua pragmática universal, cita vários estudos contemporâneos vindos da lógica, da lingüística e da filosofia analítica da linguagem que vão no sentido de uma análise formal da dimensão pragmática e conclui que o desenvolvimento mais promissor está na teoria dos atos de fala, que será exposta resumidamente a seguir. A teoria dos Speech Acts enfatizou o caráter performativo dos proferimentos lingüísticos, sem, contudo, prescindir da relação entre linguagem e estado de coisas. A análise lógica da linguagem, que estava restrita ao estudo semântico das proposições (as frases, sentenças ou orações, entendidas como unidades elementares da linguagem), amplia-se, incluindo também a análise lógica das unidades elementares da fala ou da comunicação, que são os proferimentos ou emissões. A meta dessa teoria é realizar uma descrição explícita das regras que um falante competente tem de dominar para formar orações gramaticalmente corretas e emiti-las de forma aceitável. Segundo o pressuposto dessa teoria, a competência comunicativa implica a habilidade de empregar orações em atos de fala, o que respeita um sistema fundamental de regras. A teoria geral dos atos de fala visa exatamente descrever essas regras, o que não se confunde com a mera descrição empírica de uma língua particular ou de contextos contingentes de emissões. A primeira tese que será abandonada será a idéia de que o valor-verdade é determinante para o significado de uma proposição (nas teorias das condições de verdade, o significado de uma sentença é analisado apenas no nível proposicional, de modo que uma proposição tem sentido quando sabemos o que a faz verdadeira – a sua condição de verdade). Esse fetiche do verdadeiro-falso (true-false fetish), segundo Austin, nos faz desconhecer outros tipos de empregos lingüísticos (performances) e suas condições de satisfação (e a variedade dos possíveis defeitos - infelicities). Austin (1946:38) acredita que essas teorias do significado centradas nas condições de verdade cometem uma falácia descritiva, já que a linguagem não é puramente descritiva (mesmo quando se diz eu sei). Segundo ele, há circunstâncias nas quais não descrevemos a ação, mas a praticamos. A performatividade adquire, então, um estatuto único ao ser 3 analisada no interior dos estudos da linguagem, sendo a preocupação central de Austin a relação da fala com seu uso por um sujeito. Resumindo, Austin substitui a semântica da verdade por uma teoria do uso do significado e a análise das proposições por uma análise dos usos das proposições em proferimentos. Austin mostra que a linguagem não é apenas descritiva, mas é ação, de modo que dizer alguma coisa é sempre fazer ou realizar (perform) alguma coisa (cf. How to do things with words, 1962:12). Para Austin o ato de fala é composto de três partes, três atos simultâneos: a) um ato locucionário, que produz tanto os sons (phonetic act) pertencentes a um vocabulário ou palavra (phatic act) quanto a articulação entre a sintaxe e a semântica, lugar em que se dá a significação no sentido tradicional (rhetic act). b) um ato ilocucionário, que é o ato de realização de uma ação através de um enunciado. Assim, Austin introduz uma segunda dimensão, que diz respeito ao uso particular que é feito do enunciado, entendido como a realização de um ato ilocucionário. Ou seja, ao dizer algo, realizamos um ato que tem uma força, por exemplo, de promessa ou ameaça. Podemos ilustrar a diferença entre o ato locucionário e o ilocucionário com o seguinte caso: o proferimento “eu vou fazer isso” pode ter a força de uma promessa, de uma predição, de uma ameaça,de um aviso, etc. Assim, temos diversos usos (atos ilocucionários) de uma sentença que tem um significado literal comum (o mesmo ato locucionário) (cf. Searle, 1968:406). c) um ato perlocucionário, que é o ato que produz efeito sobre o interlocutor. Essa terceira dimensão diz respeito às conseqüências ou efeitos particulares, os chamados efeitos perlocucionários. Enquanto os atos ilocucionários são convencionais, os perlocucionários não o são. O efeito ilocucionário é atingido quando, por exemplo, “ao dizer isso, eu o estava avisando”, ou seja, quando a intenção ao falante é compartilhada tal qual, já o efeito perlocucionário é atingido quando o resultado não decorre da força ilocucionária, por exemplo, quando “pelo fato de dizer isso, eu o surpreendi”. Partindo das idéias de Austin, John Searle leva adiante a teoria com algumas alterações. Primeiro, Searle considerará dispensável a noção de ato locucionário, uma vez que ao proferir uma sentença com um certo significado não se realizam dois atos diferentes, mas um mesmo ato com duas faces. Não há como pensar o ato locucionário sem associar a ele um ato ilocucionário, ao seja, com essa abstração se perde também o significado da sentença, o que torna essa distinção sem interesse para uma teoria da significação. O ato ilocucionário é, assim, a unidade mínima da comunicação lingüística e é ele que será o foco dos estudos de Searle (cf. What is speech act, 1965:39). Searle produzirá uma descrição lógica do ato de fala com uma dupla estrutura (criando a fórmula F(p)), composta pelo conteúdo proposicional (p) e a 4 sua força ilocucionária (F). O elemento ilocucionário, implicado em todo ato de fala, determina o modo pelo qual o conteúdo proposicional é utilizado, ou seja, o ato de expressar a proposição. A própria asserção (ou ato de fala constatativo) é pensada performativamente, estabelecendo, portanto, relações intersubjetivas que podem ser bem ou mal sucedidas. Para exemplificar, vejamos a asserção: “isto é uma cadeira”. Pode-se perceber que além do conteúdo proposicional, temos o componente performativo ou ilocucionário implícito que pode ser expresso como “eu afirmo que isto é uma cadeira”. Assim, o elemento performativo estabelece o tipo de relação intersubjetiva que se pretende com a proposição “isto é uma cadeira”. Noutros termos, o elemento performativo exibe o modo pelo qual os sujeitos devem compreender o conteúdo proposicional, vale dizer, como afirmação, ordem, promessa e assim por diante. Assim, o ato de linguagem é bem sucedido quando não só o ouvinte compreende o significado da frase, mas aceita a oferta do falante e se realiza a relação interpessoal visada por este. Quanto à distinção entre o ato ilocucionário e o perlocucionário, Searle observa que eles são dois tipos diferentes de efeitos relacionados com a noção de significação (meaning). Searle (1965:45-46) apresenta um exemplo que, segundo ele, é capaz de mostrar a diferença entre o que o falante tem a intenção de significar e o que as palavras que ele utiliza significam por si mesmas 1 . O exemplo dado é o do soldado americano que, durante a segunda guerra mundial, foi capturado pelos italianos. Para se livrar dessa situação, o soldado queria fazer os italianos acreditarem que ele era alemão, mas não sabia falar alemão nem italiano. Esperando que os italianos não soubessem falar alemão, o soldado americano recitou um verso em alemão que se lembrava de ter aprendido na escola, pois, dessa maneira, poderia atingir o efeito desejado. O soldado quer significar "eu sou um soldado alemão" dizendo em alemão "Kennst du das Land wo die Zitronen blühlen?", que em português significa algo como "Você conhece o país onde florecem os limoeiros?". Ainda que o soldado venha a obter o efeito esperado, ele não passará de um efeito perlocucionário (apesar de sua intenção coincidir com a interpretação do ouvinte). Para Searle, dizer algo querendo efetivamente significar o que se diz é ter a intenção de realizar um ato ilocucionário. Dessa forma, o efeito buscado na significação é a compreensão, e ela não é um efeito perlocucionário. A passagem do lado do locutor para o lado do ouvinte se faz pela língua que eles têm em comum. Após essa breve exposição da teoria dos atos de fala, convém relacionarmos esses estudos com a proposta habermasiana de uma pragmática universal. Durante a década de 70, Habermas desenvolveu vários estudos em filosofia da linguagem 2 . Em 1976, em um estudo prévio à elaboração da Teoria do Agir 1 A compreensão de um ato de fala resulta daquilo que é dito, e não da intenção do falante (em oposição a uma teoria intencionalista como a de Grice). 2 Já em 1970 e 1971, Habermas (1971) demonstra seu interesse pela filosofia da linguagem em suas Lições sobre uma fundamentação da sociologia em termos de teoria da linguagem (“Christian Gauss Lectures”, pronunciadas na Princeton 5 Comunicativo (O que significa pragmática universal?) Habermas (1976:306) diz que o ponto de partida mais promissor para uma pragmática universal está na teoria dos speech acts de Austin e Searle. Em 1981, em um capítulo da Teoria do Agir Comunicativo (intitulado “Considerações Prévias sobre a teoria analítica da ação e do significado”, cf. Habermas, 1981a:351-432), Habermas já se mostra familiarizado com a tradição analítica de problemas lingüísticos, remontando a Frege e Wittgenstein e discutindo, sobretudo, com Austin e Searle (ele voltará ainda a essas questões em 1988, em Pensamento pós- metafísico e, recentemente, em Verdade e Justificação 3 , 1999). Focalizarei minha apresentação no texto O que significa pragmática universal? (que foi a primeira apresentação mais sistemática da teoria pragmática formal de Habermas) e procurarei ressaltar aqui a influência da teoria dos atos de fala em sua elaboração. Logo na primeira frase do texto de 1976, Habermas deixa claro seu projeto: ele tem como tarefa identificar e reconstruir as condições universais de possibilidade do entendimento possível. Pretendo mostrar aqui como Habermas irá buscar na teoria dos atos de fala os elementos para desenvolver sua teoria da significação e do entendimento. Podemos resumir o projeto habermasiano nos seguintes pontos: o estudo das condições universais do entendimento possível é compreendido como o estudo dos pressupostos universais da comunicação ou, mais especificamente, os pressupostos da ação comunicativa (que é entendida como a ação orientada ao entendimento, que tem um caráter fundamental em relação às demais formas de ação social). Quanto à conexão entre o estudo das condições da comunicação com a teoria dos atos de fala, ela se encontra no próximo passo dado por Habermas, que consiste em entender as ações comunicativas (ou aquelas que se orientam ao entendimento) em termos de atos de fala explícitos. A teoria pragmática da significação se empenha exatamente em explicar o que significa compreender um ato de fala. Para Habermas (1976:341), se observamos a estrutura de um ato de fala (conteúdo proposicional e força ilocucionária), vemos de um lado o aspecto cognitivo e de outro o aspecto comunicativo. Enquanto a semântica formal estuda o conteúdo proposicional de um enunciado, a pragmática formal, tal como a desenvolvida pela teoria dos speech acts e por Habermas, investiga a força ilocucionária (ou seus pressupostos). A pragmática formal parte da questão acerca do que significa entender uma oração ou sentença empregada comunicativamente (uma emissão ou proferimento) e responde dizendo que entendemos um ato de fala quando sabemos o que o faz aceitável, tomando a aceitabilidade a partir da ação performativa de um participante na comunicação(cf. Habermas, 1976:325-326; 1981a:381-382). University), texto no qual fica ainda evidente seu arsenal teórico vindo da sociologia, mas já com elementos da filosofia analítica da linguagem, como a teoria dos atos de fala e, sobretudo, Wittgenstein. 3 Sobretudo no artigo “Racionalidade do entendimento mútuo: explanações sobre o conceito de racionalidade comunicativa segundo a teoria dos atos de fala”, que veio a público pela primeira vez em 1996. 6 Como qualquer ação, a ação ou ato de fala pode ser bem ou mal sucedida: o seu sucesso depende do estabelecimento de uma relação interpessoal. Assim como Searle, Habermas (1976:343-345) vai defender a importância da força ilocucionária, dizendo que constitui uma falácia descritiva reduzir o processo comunicativo à simples transmissão de conteúdos ou informações. Segundo Habermas (1988:77), não é possível isolar, de um lado, a questão do significado (isto é, o que significa compreender o significado de uma expressão lingüística) e, de outro lado, a questão referente ao contexto em que essa expressão pode ser aceita como válida. Porém, Habermas se afastará de Searle ao associar o componente ilocucionário à questão das pretensões de validez, dizendo que as questões de significado se associam intimamente às questões de validez ou aceitação racional. A tese de Habermas (1976:300) é assim expressa: todo agente que atua comunicativamente tem de estabelecer, na execução de qualquer ato de fala, pretensões universais de validez. Isso ocorre porque, ao emitir uma oração, o falante tem de cumprir pressupostos universais da comunicação (baseados nas estruturas universais da fala). Segundo Habermas (1976:357), é preciso distinguir as classes de ato de fala padronizadas em uma língua particular (as condições gerais de contexto implicitamente pressupostas e o sentido específico da relação interpessoal estabelecida) e os modos de comunicação universais, inscritos na própria fala (as pretensões universais de validez implicitamente estabelecidas: de inteligibilidade, verdade, correção e veracidade). Para Habermas (1996:108), o êxito ilocucionário depende da realização de duas metas: primeiro, que o ato seja compreendido pelo ouvinte, segundo, que seja aceito. O sentido ilocucionário de um proferimento não se esgota no conhecimento do ouvinte da intenção ou da opinião do falante, mas no fato de levar a sério e aceitar as pretensões de validez do falante. E o que torna aceitável a oferta do ato de fala são as razões que o falante poderia apresentar para a validez do dito. Observa-se, assim, que o conceito chave da teoria pragmática da significação não é verdade, mas o conceito de validez, no sentido de aceitabilidade racional (de modo que o que deve ser estudado não são as condições de verdade de uma proposição, mas as condições de validez ou de aceitabilidade de um proferimento). Podemos dizer que a pragmática universal de Habermas se apóia na teoria dos Speech Acts, mas conduz a uma interpretação diferente. A teoria dos speech acts desenvolvida por Austin e Searle foi o primeiro passo em relação a uma pragmática formal, mas, na opinião de Habermas (1981a:357), ela permaneceu atrelada aos estreitos pressupostos ontológicos da semântica veritativa. Austin e Searle não perceberam a conexão dos atos de fala com as pretensões de validez. Para Austin, o significado se dava no nível locucionário ou proposicional, e Searle, apesar de aprofundar o estudo das felicity-conditions de um ato de fala, acaba retornando a Frege quando utiliza na classificação dos atos de linguagem um critério semântico (as directions of fit, ou as formas de encaixe entre linguagem e mundo). Segundo Habermas 7 (1988:122-123), Searle gasta em vão suas energias nisso e oferece uma base extremamente estreita para o estudo dos proferimentos. Em outras palavras, é preciso generalizar o conceito de validez para além da validez veritativa das proposições, de modo a identificar as condições de validez também no plano pragmático das emissões. Embora parta da teoria dos Speech Acts, Habermas critica Searle por ter perdido de vista a dinâmica da negociação e do reconhecimento intersubjetivo das pretensões de validez para a formação do consenso. Habermas (1976:301) diz claramente que a meta do entendimento é a produção de um acordo. Realmente, para Searle, a perspectiva intersubjetivista pressupõe a intencionalista, não sendo possível analisar a significação, comunicação e os speech acts em termos de obtenção de consenso (ele irá inclusive radicalizar sua versão intencionalista ao defender que a teoria dos atos de fala é parte de uma teoria mais geral da intencionalidade, inscrita num estudo de filosofia da mente). Habermas (1988:145) ressalta a insuficiência do modelo intencionalista, que condena o ouvinte a uma situação passiva, roubando-lhe a possibilidade de levar a sério o proferimento do falante (ou seja, aceitar como válido) ou não (recusando-o como inválido). É claro, e Habermas reconhece isso, que o proferimento válido (o significado de uma expressão lingüística) não é mesma coisa que o proferimento tido como válido (a aceitação da validez). Apesar disso, não é possível isolar a questão do significado da questão da validez, pois não saberíamos o que significa entender o significado de uma expressão lingüística, caso não soubéssemos como nos servir dela. Assim, o próprio processo de compreensão da linguagem envolve a orientação através da possível validez do proferimento. Em suma, Habermas quer dar uma interpretação intersubjetiva da linguagem, destacando o fato de que falantes e ouvintes levantam em seus atos ilocucionários pretensões de validez e exigem seu reconhecimento. II. Da pragmática universal à teoria do agir comunicativo Posteriormente, na Teoria do Agir Comunicativo, Habermas (1981a:351-433) irá integrar o seu estudo da pragmática universal com um quadro teórico mais amplo e ambicioso. Habermas (1981b:139) buscou na filosofia da linguagem de molde analítico (sobretudo na teoria dos atos de fala) os elementos para a elaboração de uma teoria crítica da sociedade que consiga, a partir do desenvolvimento de um estudo das condições das ações comunicativas (a pragmática universal), realizar, dentre outras, uma grande façanha: encontrar as bases que permitam identificar as patologias sociais em termos de comunicações sistematicamente distorcidas (ou pseudo-comunicações). Uma pragmática formal conseguiria mostrar as condições universais da ação comunicativa e, desta forma, reconstruir o padrão “normal” ou não distorcido da comunicação (essas patologias são resultado de uma confusão entre ações orientados ao êxito e ações 8 orientadas ao entendimento, uma vez que ocorrem quando o falante faz o ouvinte crer que ele cumpre os requisitos de uma ação comunicativa) 4 ; Habermas associará o estudo da racionalidade da ação (a partir de Weber) com a teoria dos atos de fala. Ao contrário da razão prática (centrada na consciência), a razão comunicativa não se prende a nenhum ator singular e ocorre através do médium linguístico e está inscrita no telos do entendimento, que, por sua vez, implica a visada, por parte dos participantes, de fins ilocucionários. Não que a linguagem seja racional per se, mas Habermas (1996:107) mostra que há uma racionalidade inerente à aplicação comunicativa de expressões lingüísticas (a racionalidade comunicativa). Ao associar a racionalidade à competência de uso da linguagem, ao “seguir regras” (como diz Wittgenstein), fica claro o molde pragmático da reflexão habermasianaacerca da racionalidade. Habermas mostra que a distinção traçada por Austin e Searle entre atos perlocucionários e ilocucionários pode ser pensada em termos de ações que visam ao sucesso (racionalidade orientada para um fim - Zweckrationalität) e ações orientadas para o entendimento (racionalidade orientada para o entendimento - Verständigungsrationalität). É claro que, em um sentido bem geral, todas as ações, lingüísticas ou não, podem ser apreendidas como atividades orientadas para fins. Mas Habermas (1981a:367-378) pretende mostrar que em um caso faz-se um uso estratégico da linguagem (orientado ao êxito) e, no outro, um uso não-estratégico (orientado ao entendimento): a) as ações orientadas ao êxito são aquelas que visam a execução de regras de escolha racional: a ação estratégica (avaliada sob o ponto de vista da eficiência). Esse modelo teleológico de ação recorre à linguagem como um meio entre outros, através do qual se pode influenciar o auditório na formação das opiniões ou interações desejadas com a finalidade de obter o próprio interesse. Neste caso, trata-se de um entendimento indireto, cuja única meta dos participantes é a realização de seus fins. Trata-se, aqui, de atos perlocucionários, nos quais o falante busca causar um efeito sobre o ouvinte, sendo seus efeitos externos ao dito e dependentes de contextos contingentes. b) as ações orientadas ao entendimento são aquelas interações sociais coordenadas não através de cálculos egocêntricos de êxito, mas através de atos cooperativos de entendimento mútuo dos participantes. Trata-se, aqui, de atos ilocucionários, nos quais o falante realiza uma ação dizendo algo, guardando seu êxito uma relação interna ou regulada por convenção com o ato de fala. Os fins ilocucionários não podem ser 4 Habermas (1981a:426) divide as ações sociais em ação comunicativa e ação estratégica, esta última, por sua vez, se divide em ação abertamente estratégica e ação estratégica encoberta, na qual ocorre ou um engano consciente (a manipulação do ouvinte pelo falante) ou um engano inconsciente (a comunicação sistematicamente distorcida). 9 atingidos sem que haja cooperação, intercompreensão, entendimento, ou seja, ele tem de estar sempre expresso, explícito, sendo aceito abertamente. Assim, a racionalidade comunicativa tem como fio condutor o entendimento lingüístico e o levantamento de pretensões de validez, o que remete a um acordo motivado racionalmente. Baseado na tese de que o entendimento é o telos imanente da linguagem humana, uma vez que linguagem e entendimento não se comportam entre si como meio e fim, Habermas (1981a:369-370) sustentará que o uso da linguagem orientado ao entendimento (a ação comunicativa) constitui o modo original de uso da linguagem, enquanto o uso da linguagem orientado ao êxito é uma forma parasitária (um entendimento indireto). Ela é indireta e parasitária pois seus efeitos só surgem quando o falante não declara ao ouvinte seus fins, ou seja, sob a condição de que o falante simule a intenção de perseguir fins ilocucionários, enquanto na verdade está ferindo os pressupostos do agir orientado ao entendimento e está ocultando esse fato do ouvinte. Assim, o uso estratégico da linguagem só funciona quando uma das partes parte do pressuposto que a linguagem está sendo utilizada com o fim do entendimento. Habermas distingue, assim, entre um uso mais originário da linguagem (intercompreensivo, argumentativo, ilocucionário, integrado ao mundo da vida e à racionalidade comunicativa) e um uso derivado (retórico, perlocucionário, orientado ao êxito, integrado à racionalidade sistêmica). (cf. Habermas, 1981a:122- 136,351-432; 1983:63). Em razão de algumas críticas recebidas após a publicação da Teoria do Agir Comunicativo, Habermas (1988:132n) irá reconhecer que uniu de modo apressado a distinção entre atos ilocucionários e perlocucionários (feita no nível de uma teoria do significado) e a distinção entre agir orientado ao entendimento e agir orientado ao sucesso (feita no nível de uma teoria da ação). Ele perceberá que os efeitos perlocucionários podem ser descritos de várias formas na teoria da ação: seja como efeitos passíveis de consenso, seja como efeitos intencionados estrategicamente e que não podem ser declarados. Recentemente, Habermas (1996:121) distinguiu três classes de sucessos perlocucionários: os efeitos perlocucionários1, que resultam do conteúdo de um ato ilocucionário bem sucedido; os efeitos perlocucionários2, que são as conseqüências contingentes de um ato de fala (como a notícia que, segundo o contexto, alegra ou assunta seu receptor); e os efeitos perlocucionários3, que só podem ser alcançados se ocultados do destinatário. O valor desses estudos da linguagem para uma teoria da sociedade fica mais claro quando Habermas mostra o papel das ações comunicativas como mecanismo de coordenação de ação. Segundo Habermas (1996:117), a racionalidade comunicativa corporificada em atos ilocucionários também se estende, para além de proferimentos verbais, a ações ou interações sociais. A ação comunicativa tem três funções na reprodução do mundo da vida: de uso e renovação do saber cultural, de formação de 10 identidades pessoais (através da socialização) e, por fim, o que será de grande importância para entender seu valor para o estudo do direito, o papel de coordenador da ação, gerando integração social e solidariedade. A integração social garante a coordenação das ações através de relações interpessoais legitimamente reguladas. As ações comunicativas (realizadas através de atos ilocucionários), guardam uma relação interna com razões (capazes de mover o ouvinte à aceitação), levantando uma pretensão de validez susceptível de crítica e fundamentação, o que difere de outras formas de coordenação de ação, calcadas em pretensões de poder, que não se associam a razões, mas vêm respaldadas por sanções e se exprimem na forma de imperativos simples ou ordens advindas de uma autoridade normativa (cf. Habermas, 1981a:389- 390). No primeiro caso, Habermas (1988:71) diz que a coordenação da ação se deu pela força consensual do entendimento lingüístico (as energias de ligação da própria linguagem), ao passo que no segundo caso o efeito de coordenação depende da influência dos atores uns sobre os outros (que atuam estrategicamente). Em resumo, temos dois mecanismos distintos de interação social: o do entendimento motivador da convicção e o da influenciação. Considerações finais A questão da linguagem perpassa todo o pensamento de Jürgen Habermas, com inúmeras e profundas repercussões filosóficas. A presente comunicação pretendeu apenas jogar alguma luz em determinadas questões que estão no fundo do pensamento habermasiano e que nos levam a intrincados problemas de filosofia da linguagem e a uma série de pensadores da tradição analítica. Procurei mostrar como a questão da linguagem conecta-se com questões sociológicas, na Teoria do Agir Comunicativo, além de ser associada a questões jurídicas (em Faticidade e Validez), políticas (sobretudo em A inclusão do outro, 1996) e morais (na ética do discurso desenvolvida, sobretudo, em Consciência moral e agir comunicativo, 1983), temas que não foram tratados nesse texto. Espero, com este estudo, permitir que os cientistas sociais e os filósofos da linguagem consigam entender-se melhor. Afinal, é a isso que nos convida Habermas: a uma ação em vista ao entendimento mútuo. Bibliografia APEL, Karl-Otto. (1973) Transformação da filosofia..2 vols. Tradução de Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 2000. [1 a publicação: Transformation der Philosophie. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1973].AUSTIN, John L. (1946) Other Minds. In Philosophical Papers. Oxford University Press, 1961, pp. 76-116. [1 a publicação: Supplement to the Proceedings of the Aristotelian Society 20, 1946, pp.148-187]. AUSTIN, John L. (1962) How to do Things with Words. Harvard University Press, 1962. 11 HABERMAS, Jürgen. (1976) ¿Qué significa pragmática universal? In: Teoría de la acción comunicativa: complementos y estudios previos. Tradução de Manuel Jimenez Redondo. 2 a ed. Madrid: Cátedra, pp.299-368, 1994. [1 a publicação: Was heißt Universalpragmatik? In: APEL, Karl-Otto (org.) Sprachpragmatik und Philosophie. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, pp. 174-272, 1976]. HABERMAS, Jürgen. (1981a) Teoría de la acción comunicativa I: Racionalidad de la acción y racionalización social. Tradução de Manuel Jiménez Redondo. Madrid: Taurus, 1987. [1 a publicação: Theorie des kommunikativen Handels. Band I. Frankfurt: Suhrkamp, 1981]. HABERMAS, Jürgen. (1981b) The theory of communicative action: reason and the rationalization of society. Tradução de Thomas McCarthy. Boston: Beacon Press, 1984. [1 a publicação: Theorie des kommunikativen Handels. Band I. Frankfurt: Suhrkamp, 1981]. HABERMAS, Jürgen. (1988) Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990. [1ª publicação: Nachmetaphysisches Denken: Philosophische Aufsätze. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1988]. HABERMAS, Jürgen (1992). Direito e Democracia: entre facticidade e validade. vol. I. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. [1 a publicação: Faktizität und Geltung: Beiträge zur Diskurstheorie des Rechts und des demokratische Rechtstaats. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1992]. HABERMAS, Jürgen. (1996) Racionalidade do entendimento mútuo: explanações sobre o conceito de racionalidade comunicativa segundo a teoria dos atos de fala. In: Verdade e Justificação: ensaios filosóficos. São Paulo: Loyola, 2004, pp.99-132. [1 a publicação: Sprechakttheoretische Erläuterungen zum Begriff der kommunikativen Rationalität. Zeitschrift für philosophische Forschung, vol. 50, 1996, pp.65-91; reimpresso em Wahrheit und Rechtfertigung: Philosophische Aufsätze. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1999]. HABERMAS, Jürgen. (1998) Filosofia hermenêutica e filosofia analítica: duas versões complementares da virada lingüística. In: Verdade e Justificação: ensaios filosóficos. São Paulo: Loyola, 2004, pp.63-98. [1 a publicação: Hermeneutische versus analytische Philosophie, Zwei Spielarten der linguistischen Wende. Karl Jaspers Lecture, Oldenburg University, 3 de junho de 1998; reimpresso em Wahrheit und Rechtfertigung: Philosophische Aufsätze. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1999]. LAFONT, Cristina. (1993) La razón como lenguaje: una revisión del „giro lingüístico‟ en la filosofía del lenguaje alemana. Madrid: Visor, 1993. SEARLE, John R. (1965) What is a speech act? In: SEARLE. The philosophy of language. Londres: Oxford University Press, 1971, pp.39-53. [1 a publicação: In: BLACK, Max (ed.) Philosophy in America. Allen & Unwin, 1965, pp.221-239]. SEARLE, John R. (1968) Austin on locutionary and illocutionary acts. The Philosophical Review, vol. 7, n. 4, october, 1968, pp. 405-424. SEARLE, John R. (1969) Speech acts: an essay in the philosophy os language. Londres: Cambridge University Press, 1969. SEARLE, John R. (1979). Expression and Meaning: studies in the theory of speech acts. Cambridge University Press, 1979.
Compartilhar