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A publicidade opressiva de julgamentos criminais SCHREIBER

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A PUBLICIDADE OPRESSIVA DE JULGAMENTOS CRIMINAIS 
 
SCHREIBER, Simone. A publicidade opressiva de julgamentos criminais. Rio de 
Janeiro: Renovar, 2008. 426 p. 
Por Luís Roberto Barroso* 
 
Ser orientador de Simone Schreiber, compartilhar com ela – ainda que modestamente – 
o processo de concepção e desenvolvimento deste estudo, me trouxe dois grandes 
proveitos. O primeiro é bastante óbvio: o trabalho é primoroso. As idéias são claras e 
bem lançadas, a pesquisa foi exaustiva e o texto é ótimo. De modo que pude aprender 
ou reaprender com ele. O segundo proveito é ainda mais valioso: as reflexões da autora 
permitiram que eu olhasse para o tema de um ponto de observação diverso do meu 
habitual. O esforço de desmistificação do papel da imprensa, paralelamente ao resgate 
do direito a um julgamento justo – isto é, sem pressões midiáticas –, traz para o debate 
valores e perspectivas que não estão na tela nem nos jornais. 
A tese de Simone foi aprovada com nota máxima, distinção e louvor por banca 
composta por dois constitucionalistas – eu e meu querido amigo e grande professor 
Paulo Galvão – e três criminalistas do primeiro time: Nilo Batista, Alberto Zacharias 
Toron e Geraldo Prado. Empolgados pelo tema e pela multiplicidade de visões que 
comporta, os próprios membros da banca se entretiveram em rico e caloroso debate, 
motivado pela qualidade do trabalho examinado e pelo alcance de suas idéias acerca da 
colisão entre liberdade de expressão e direito a um julgamento justo. 
A matéria é de fato polêmica e é possível divergir de algumas das premissas ou de uma 
ou outra conclusão da autora. Mas é impossível não apreciar a seriedade de sua 
investigação, a riqueza das informações que traz e a ousadia de enfrentar algumas visões 
tradicionais sobre o tema. 
 
1 Algumas idéias centrais da tese 
O trabalho elaborado por Simone Schreiber afirma, desde o início, seu compromisso 
com a liberdade de expressão e com os valores democráticos. Nessa linha, não faz a 
autora concessão às razões de Estado ou às razões do poder, ainda quando travestidas de 
interesse público ou coletivo. Em suas palavras: Não se discute a estreita relação entre a 
liberdade de expressão e a democracia. Contudo, ainda que possam ser discutidas 
iniciativas regulatórias para corrigir falhas de mercado, o qual de fato se mostra 
extremamente monopolizado no Brasil, nesse estudo partilha-se do entendimento 
(sustentado por Jónatas Machado) de que o exercício das liberdades comunicativas 
possui uma dimensão preponderantemente negativa, em que qualquer iniciativa de 
regulação para realização de fins coletivos deve ser vista com cautela. Trata-se de um 
lócus de autonomia individual, só se justificando restrições à liberdade de expressão 
quando esse direito colidir com valores constitucionais. 
Nada obstante isso, a autora procura desmistificar o tratamento que muitas vezes é dado 
pela imprensa ao crime. Assim, além da visão subjetiva do próprio jornalista, a mídia 
pode ter as suas próprias circunstâncias e interesses – quando mais não seja, ao menos 
os que são ditados pelo mercado. Tais fatores podem afastá-la do puro interesse público 
na apuração isenta dos fatos e na observância do devido processo legal. Tal como posto 
na tese: Contudo, nem sempre é possível distinguir num texto jornalístico a veiculação 
de fatos e opiniões, dado que a própria eleição de temas envolve escolhas subjetivas e, 
ademais, a forma como são retratados nunca está totalmente dissociada das impressões 
pessoais do emissor da mensagem. Acrescente-se ainda que as empresas de 
comunicação adotam rotinas impostas pelas exigências do mercado, que não favorecem 
a atuação neutra e comprometida apenas com a verdade. 
Um outro ponto relevante destacado diz respeito ao descompasso entre a verdade 
jornalística e a verdade processual, e suas implicações para um julgamento criminal 
justo. No registro da autora, a produção da notícia é afetada, dentre outros fatores, pela 
exigência de velocidade, que favorece abordagens parciais e simplificadoras. 
Textualmente: A “verdade” reportada nada mais é do que uma versão dos fatos 
ocorridos, intermediada pela linha editorial do veículo e pela subjetividade dos 
jornalistas que redigem a notícia. É necessário assim desmistificar o papel que a 
imprensa se atribui de mediadora desinteressada a serviço unicamente da cidadania e 
democracia, para que se possa compreender a forma como o fato criminal é tratado na 
mídia. 
Por tudo isso, conclui a autora: É necessário portanto desmistificar a idéia de que 
eventuais restrições postas à liberdade de expressão para promoção de outros direitos 
implicam em última análise cerceamento indevido da única instituição depositária dos 
ideais democráticos no país. 
E, em desfecho, apresenta o conjunto de medidas que, a seu ver, podem ser utilizadas 
para lidar com a colisão entre free press e fair trial. Nem todas teriam lugar no meu 
próprio cardápio de possibilidades. Mas esta não é a minha tese! Simone exerceu com 
desenvoltura, talento e originalidade sua liberdade de ser, pensar e criar. Jamais me 
ocorreu a idéia – contraditória e inaceitável – de pautar suas convicções de acordo com 
as minhas. 
 
2 Algumas reflexões sobre a liberdade de expressão no Brasil 
As pessoas na vida se assustam com assombrações diferentes. Sou da geração que 
chegou ao mundo adulto e à vida cívica em meados da década de 70 do século passado. 
Pessoalmente, descobri o Brasil no final de 1975, quando da morte do jornalista 
Vladimir Herzog, no Comando do II Exército em São Paulo. A versão oficial era a de 
que ele havia se suicidado. Herzog, no entanto, como veio a ser reconhecido 
oficialmente pela Justiça Federal, anos depois, fora preso arbitrariamente, torturado e 
morto. A grande imprensa, sob censura direta ou autocensura, só divulgou a versão do 
regime militar. Lembro-me de ter ficado intrigado, contudo, com algumas informações 
paralelas. Por exemplo: as autoridades religiosas judaicas recusaram-se a enterrar o 
corpo na área do cemitério israelita reservada para suicidas. Dom Paulo Evaristo Arns, o 
cardeal arcebispo de São Paulo, celebrou um concorrido culto ecumênico na Praça da 
Sé, em homenagem ao morto. E a manchete do Pasquim, sutil como um holofote, dizia 
algo assim: “Tudo em ordem”. Mas as letras estavam tombadas ou invertidas. A censura 
à imprensa ocultava o país real, e a resistência democrática se fazia por símbolos e 
sutilezas. 
Como se sabe, a história da liberdade de expressão e de informação, no Brasil, é uma 
história acidentada. Convive com golpes, contragolpes, sucessivas quebras da legalidade 
e pelo menos duas ditaduras de longa duração: a do Estado Novo, entre 1937 e 1945, e a 
do Regime Militar, de 1964 a 1985. Desde o Império, a repressão à manifestação do 
pensamento elegeu alvos diversos, da religião às artes. As razões invocadas eram 
sempre de Estado: segurança nacional, ordem pública, bons costumes. Os motivos reais, 
como regra, apenas espelhavam um sentido autoritário e intolerante do poder. Durante 
diferentes períodos, houve temas proibidos, ideologias banidas, pessoas malditas. No 
jornalismo impresso, o vazio das matérias censuradas era preenchido com receitas de 
bolo e poesias de Camões. Na televisão, programas eram proibidos ou mutilados. 
Censuravam-se músicas, peças, livros e novelas. O Ballet Bolshoi foi proibido de se 
apresentar no Brasil, sob a alegação de constituir propaganda comunista. Um surto de 
meningite teve sua divulgação vedada, por contrastar com a imagem que se queria 
divulgar do país. 
Em fases diferentes da experiência brasileira, a vida foi vivida nas entrelinhas, nas 
sutilezas, na clandestinidade.A interdição compulsória da liberdade de expressão e de 
informação, por qualquer via, evoca episódios de memória triste e dificilmente pode ser 
vista com naturalidade ou indiferença. É claro que uma ordem judicial, precedida de 
devido processo legal, não é uma situação equiparada à da presença de censores da 
Polícia Federal nas redações e nos estúdios. Mas há riscos análogos. E o passado é 
muito recente para não assombrar. 
Ao relembrar o episódio Herzog, parágrafos atrás, a evocação me pareceu distante como 
se tivesse acontecido em outra vida. De fato, de lá para cá, percorremos diversos ciclos 
do atraso em pouco mais de uma geração. Nos dias que correm, os meios de 
comunicação desfrutam de liberdade ampla nos múltiplos domínios da expressão 
artística, religiosa e política. É impossível não celebrar diuturnamente a importância de 
tal conquista, fato que minimiza, nos corações e mentes da minha geração – a que foi 
assombrada pela tortura e pela censura –, os exageros, injustiças e impropriedades 
inevitavelmente praticados pelos meios de comunicação. A verdade, no entanto, é que 
as novas gerações vêm com suas próprias assombrações, muitas delas gerando 
reivindicações que resultam em colisões com a liberdade de expressão. Algumas delas: 
a proteção dos direitos da personalidade, notadamente o direito de privacidade; a tutela 
da criança e do adolescente contra programação considerada inadequada; e o tema 
magnificamente estudado no livro que ora apresento, que é o direito a um julgamento 
justo e imparcial, com observância do devido processo legal. 
A ditadura já vai longe. A liberdade de expressão, inclusive e notadamente a de 
imprensa, já não pode se proteger apenas pela invocação de velhos fantasmas. Precisará 
legitimar-se e afirmar-se por mérito e virtude próprios, conquisstando a proteção que lhe 
vem do apoio e do reconhecimento por parte da sociedade. Toda e qualquer causa boa e 
justa precisa estar pronta para o debate público livre e aberto a todos, sem precisar 
refugiar-se em dogmas ou em argumentos de autoridade. 
 
3 Conclusão 
Conheci Simone Schreiber como líder de classe, quando ela era diretora da Associação 
dos Juízes Federais (AJUFE). Sua visão larga e não corporativa das questões nacionais 
se manifestava na defesa de teses arrojadas encampadas por aquela entidade, como as de 
respeito ao teto remuneratório e de criação do Conselho Nacional de Justiça. Na sua 
atuação funcional, inclusive como juíza criminal, Simone tem-se destacado pela 
seriedade e ponderação com que se desincumbe de seu ofício árduo, sem sacrifício de 
uma coerente posição garantista. Após estas importantes realizações profissionais, 
Simone ainda encontrou tempo e energia para cumprir a etapa acadêmica do doutorado, 
concedendo-me o prazer e a honra de estar ao seu lado. 
Produziu um estudo admirável, materializado neste livro. Ao voltar a percorrer as 
páginas do seu trabalho, para escrever este prefácio, tornei a me surpreender com o 
vigor de suas idéias, a densidade teórica de suas reflexões e a coragem de enfrentar 
concepções estabelecidas de longa data. Este é um texto que merece ser lido por todos 
os que se preocupam com a proteção dos direitos fundamentais, independentemente das 
assombrações com que se assuste. É corrente afirmar-se que o papel do conhecimento é 
o de confortar os aflitos e de afligir os confortados. O texto de Simone desempenha de 
maneira soberba essas duas funções. Uma tese digna desse nome e do sucesso que 
certamente fará. 
 
*Luís Roberto Barroso é professor titular de Direito Constitucional da Universidade do 
Estado do Rio de Janeiro.

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