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Artaud e o Seu Duplo

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1 
 
 
 
 
 
 
 
aarrttaauudd ee oo sseeuu dduupplloo 
rriiccaarrddoo ffeerrrreeiirraa ddee aallmmeeiiddaa 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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 3 
 
 
Personagens 
 
ANTONIN ARTAUD 
DOUTOR FERDIERE 
 
Tempo da acção 
1943/1946 Pós II Guerra Mundial 
 
A 11 de Fevereiro de 1943, Antonin Artaud é admitido no Hospital Psiquiátrico de Rodez, 
extremamente magro, sujo, desdentado e saído de uma sucessão errante de internamentos 
que durante seis anos o conduziram de Rouen a Sainte-Anne, em Paris. Os seus amigos 
surrealistas Robert Desnos e Paul Eluard, confiaram-no ao doutor Gaston Ferdière. Este 
psiquiatra, próximos dos surrealistas e director do Hospital Psiquiátrico, acolheu Artaud, 
ministrando-lhe uma série de choques eléctricos, prática conhecida por terapia electro-
convulsiva. A peça Artaud e o seu duplo dá uma visão dos anos vividos por Antonin em 
Rodez, recuperando algumas das suas cartas e textos originais e estreou em Vila Real pela 
mão da A TROUXA MOUXA TEATRO, com Tiago Pires como Artaud e Gilmar Albuquerque 
como Ferdiere. A encenação foi de Marlene Castro. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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 5 
 
1. 
ARTAUD 
São quase quatro da manhã e não consigo dormir! Deve ser da mudança de hora… e desta 
chuva teimosa e incansável… ping ping ping… estou farto! Com esta idade sinto-me só, 
profundamente só, e aquela esperança que tinha aos dez anos de idade, esfumou-se. Não me 
lembro de me ter visto assim, sonâmbulo. Será que são lombrigas? Excesso de alguma coisa? 
Ou a alma que se vai recompondo e formulando novos presságios: estarei careca aos 50 
anos? (silêncio) O acaso das horas transmite tão facilmente as horas… e é a prova que a 
magia é real. Quando tinha dez anos de idade, tinha os olhos azuis e sabia o que era o azul. 
Sabia o que havia nas mãos dos pobres e sentia cada vértebra estalar quando esticava o 
pescoço para perceber o número de pássaros pendurados nas mansardas. Tinha mais que um 
pescoço para olhar para trás e ficar aceso com os olhos em água. Dantes eu sabia que deitar 
as palavras ao chão era incriminar as tentativas de viver e só isso bastava para que os peixes 
apanhassem um nome que eu lhes punha. Jogava ao berlinde e sentia o sol a saber a cerejas. 
Bronzeava-me com lençóis, chuva e malmequeres. Agora, estou despojado de tudo. De ninfas 
na cerveja, do onírico respirar da plateia. Um homem repleto de nada. Descoberto como um 
caracol à geada. 
FERDIERE (entrando) 
Bom dia! Como se sente hoje? 
ARTAUD 
Descoberto, como um caracol na geada. 
FERDIERE 
Tem frio? 
ARTAUD 
Sim, bastante. 
FERDIERE 
Podemos resolver isso de imediato. Quer que mande aumentar a temperatura do quarto? 
ARTAUD 
Não é necessário, obrigado. 
FERDIERE 
Talvez mais um cobertor? 
ARTAUD 
Não é necessário, obrigado. 
FERDIERE 
Mas não sente frio? 
ARTAUD 
Não é esse frio a que me refiro. 
FERDIERE 
É aquele ao qual eu me refiro? 
 6 
ARTAUD 
Não. É um frio cultural. 
FERDIERE 
Sente-se desenraizado? Não podemos trazer para cá ninguém da sua família ou algum dos 
seus amigos. Vai ter de se habituar a viver assim, nestas condições. 
ARTAUD 
Não me refiro à minha família quando digo que sinto frio. Ela pouco pode fazer em relação a 
isso. 
FERDIERE 
Então, temo que não o tenha estado a perceber desde o início. Explique-se melhor, se puder. 
ARTAUD 
Sinto frio, e isso não passa apenas pelo mau estar físico. Prolonga-se ao resto do corpo, 
penetra as entranhas e atinge a alma. Se acaso ainda a tiver. 
FERDIERE 
É uma certeza ou apenas uma desconfiança? 
ARTAUD 
É uma forma que encontrei para mim próprio para explicar e aguentar este desterro forçado. 
FERDIERE 
Tem consciência daquilo que está a dizer? 
ARTAUD 
Sim, perfeitamente. Já perguntou a um prisioneiro se gosta de estar na sua cela? Pergunte-lhe 
e verá! Aposto que não… mas é uma suspeita, apenas e nada mais… 
FERDIERE 
Não tenha assim tanta certeza disso. Tem escrito? 
ARTAUD 
Pouco. 
FERDIERE 
O que é que tínhamos combinado? Esqueceu-se… 
ARTAUD 
Não preciso escrever, tenho tudo na cabeça. 
FERDIERE 
Pois, ainda bem. Mas não perca isso, escreva. 
ARTAUD 
Não perco. Só se me arrancarem a cabeça. 
FERDIERE 
Ainda à volta do teatro? 
ARTAUD 
Sim. 
FERDIERE 
O quê? 
 7 
ARTAUD 
Pensei num manifesto. 
FERDIERE 
Costumam ser interessantes. 
ARTAUD 
Alguns. 
FERDIERE 
Diga-me, considera o seu manifesto interessante? 
ARTAUD 
Considero-o um protesto. 
FERDIERE 
Um protesto… Contra quem? 
ARTAUD 
Um protesto contra uma concepção de cultura distinta da vida, como se de um lado estivesse a 
cultura e do outro a vida. Como se a verdadeira cultura não fosse um meio sublimado de 
compreender e exercer a vida. 
FERDIERE 
Complementam-se uma à outra, quer dizer? 
ARTAUD 
Sim. 
FERDIERE 
Tem andado a pensar muito nisso? 
ARTAUD 
Sim. 
FERDIERE 
E em teatro, simultaneamente? 
ARTAUD 
O teatro é como a peste. É um delírio comunicativo. Não consigo fugir dele. 
FERDIERE 
Gosto muito de o ouvir falar sobre teatro, e concordo em parte com as suas concepções de 
popularização da cultura. 
ARTAUD 
Desculpe-me, mas está errado. Não falei em popularização da cultura mas sim na percepção 
que a cultura deve ser ela própria arte. 
FERDIERE 
Para muitos é impossível. 
ARTAUD 
Para muitos a impossibilidade é arte. Não ter o que se quer pode desembocar numa obra de 
arte. A ausência e a sua consciência podem ser arte. 
FERIDERE 
 8 
A consciência da ausência poderá ser arte, mas quando se populariza a arte em demasia, não 
se corre do risco dela ser canibalizada pelo povo? 
ARTAUD 
O povo precisa de comer, tanto a arte como sopa. Se uma alimenta a outra educa. São dois 
géneros de alimento para a alma. 
FERDIERE 
Não está mal pensado. Quando sair daqui poderá, melhor que ninguém, aplicar na prática tudo 
aquilo que defende. 
ARTAUD 
Há alguma esperança em sair daqui? 
FERDIERE 
Isso apenas depende de si. O que quer fazer? 
ARTAUD 
Em relação à minha presença neste hospital? 
FERDIERE 
Sim. 
ARTAUD 
Quero sair. 
FERDIERE 
(rindo) Sente-se mal em Rodez, então? 
ARTAUD 
Eu sinto-me óptimo. Mas você é que não acha que me sinto assim e não assina os malditos 
papéis para que eu possa ir embora daqui. Eu sinto-me melhor, se quer saber. 
FERDIERE 
Pois claro… 
ARTAUD 
Pois claro… diz sempre isso… gostava que assumisse tudo o que me está a fazer! 
FERDIERE 
Seja mais concreto por favor. 
ARTAUD 
Seja mais concreto, seja mais concreto… sempre a mesma coisa… ser mais concreto… 
FERDIERE 
Custa-lhe ser mais concreto, só um bocadinho mais? 
ARTAUD 
Você é um dos responsáveis por isto tudo! Entrou na engrenagem da maquinação da minha 
suposta loucura. Eu não sou louco! Já o disse milhares de vezes a tantos outros como você 
que me confundiram com um louco. Eu não o sou! Eu não sou o louco que procuram! 
FERDIERE 
Sim, você não é louco… pode estar um pouco perturbado com tudo o que lhe aconteceu 
nestesúltimos anos, mas tenho me esforçado por provar a sua sanidade. Veja só. Quando cá 
 9 
chegou, a 11 de Fevereiro de 1943, pesava 55 quilos, estava desdentado, sujo e hirsuto. Veja 
como engordou e como está. Você vai melhorar! 
ARTAUD 
Como choques eléctricos? Diga-me como é que hei-de melhorar com choques eléctricos? 
Repare na minha mão. Conseguia mexe-la de trás para a frente, girava-a sobre o pulso. Como 
esta. Está morta graças aos choques eléctricos dados por si! 
FERDIERE 
Você mostrava evidentes sintomas de delírio. 
ARTAUD 
Como chegou a essa conclusão? 
FERDIERE 
Analisando tudo aquilo que escrevia. 
ARTAUD 
Aquilo que você me incentivava a escrever! 
FERDIERE 
Sim. Eu incentivava-o a escrever. Mas de um pedaço da sua arte evoluiu para um campo de 
delírio que me cabia mitigar. Lembra-se disso? 
ARTAUD 
Não me consigo lembrar de nada. Fiquei apenas com este corpo, esta mão doente… a perder 
cabelo e a memória… mas continuo saudável… e você é o único que não quer ver que eu 
melhorei! 
FERDIERE 
Digamos que as últimas indicações são positivas… mas não quero com isto dizer que esteja 
completamente recuperado. Não está. 
ARTAUD 
Mas posso vir a estar e voltar ao princípio, recomeçar tudo de novo no teatro. O teatro é o lugar 
onde se refaz a vida, ouça bem isto. E depois eu irei dizer-lhe quem é que está louco! 
FERDIERE 
Gosto de o ver falar assim. 
ARTAUD 
Não seja cínico. Estou farto disso. Da sua hipocrisia, da forma como tolera aquilo que eu digo e 
penso. Está a roubar tudo para si! 
FERDIERE 
Não roubo nada para mim e muito menos estou a ser cínico. Gosto que escreva. 
ARTAUD 
Para depois encontrar em cada figura, em cada metáfora, em cada letra de cada palavra um 
pedaço da minha loucura? Não. Prefiro estar calado… Além disso, desconfio que você usa as 
minhas coisas em proveito próprio. 
FERDIERE 
Como é capaz de dizer uma coisa dessas? Eu sou o clínico responsável por si. 
 10 
ARTAUD 
Você é um cínico irresponsável, que me quer ver morrer, que quer ver morrer o teatro que eu 
trago dentro de mim. Ouvi na rádio que numa tertúlia falavam do teatro e da peste… 
FERDIERE 
Uma coincidência… você falou nisso há pouco, não falou? 
ARTAUD 
Foi, por acaso falei… e por acaso, você estava ai quando eu falei nisso… só por acaso… 
FERDIERE 
Você não detém a exclusividade dos pensamentos à volta do teatro… 
ARTAUD 
Claro que não, mas é no mínimo estranho que estando eu aqui preso os meus pensamentos 
circulem lá fora! 
FERDIERE 
Agora vou reagir… está a ser incorrecto e isso não lhe admito! 
ARTAUD 
Não me mace com a correcção. Não tem moral para falar disso! Quero sair daqui, quero 
respirar o ar de Paris! Quero respirar o ar de Paris… 
FERDIERE 
Quando melhorar irá sem duvida respirar… inspirar e expirar… inspirar e expirar… 
metodicamente… inspira, expira… acalme-se. 
ARTAUD 
Não posso acalmar-me! Eu quero ir embora! Eu quero passear nas ruas de Paris! 
FERDIERE 
Acalme-se! Enfermeira! Enfermeira! 
 
2. 
ARTAUD (escrevendo) 
Tal como a peste, o teatro é um terrível apelo às forças que impelem o espírito, pelo exemplo, 
para a fonte originária dos conflitos. Se o teatro essencial se compara à peste não é por ser 
contagioso mas por, tal como a peste, ser a revelação, a apresentação, a exteriorização dum 
profundo intimo de crueldade latente, por meio da qual todas as potencialidade perversas do 
espírito, quer de um individuo, quer de um povo, são localizadas. Assim como a peste, o teatro 
é o tempo do mal, por excelência, o triunfo dos poderes obscuros que são alimentados por um 
poder ainda mais profundo, até à extinção. O teatro contemporâneo é um teatro decadente 
porque perdeu, por um lado, o sentido do sério e, por outro, o do riso: porque abdicou da 
sisudez e de efeitos que são imediatos e dolorosos, numa palavra, porque abdicou do perigo. 
Porque perdeu o sentido do verdadeiro humor, o sentido do poder de desintegração física e 
anárquica que há no riso… Porque perdeu o sentido do verdadeiro humor, o sentido do poder 
de desintegração física e anárquica que há no riso… (riso descontrolado) 
FERDIERE 
 11 
Esteve a escrever? 
ARTAUD 
Sim. 
FERDIERE 
Pode mostrar-me? 
ARTAUD 
Não sei se deva. 
FERDIERE 
Por pudor literário ou existe outra razão? 
ARTAUD 
Por medo aos choques eléctricos. 
FERDIERE 
Oh… vá lá… não esteja receoso… 
ARTAUD 
Não vou mostrar… 
FERDIERE 
Está bem, não mostre. Mas previno-o que assim se torna mais difícil fazer um diagnóstico 
correcto da sua situação clínica. 
ARTAUD 
Não me interessa. Diga-me uma coisa: com que intenção retiraram todos os relógios daqui? 
FERDIERE 
Isso preocupa-o? 
ARTAUD 
Deixa-me intrigado… os vossos planos, para além de alienarem a noção de espaço, também 
passam pela ocultação do tempo? 
FERDIERE 
O tempo só preocupa ainda mais as cabeças em agonia. Não bastam os sedativos. Há que 
retirar os relógios e qualquer contacto com a sua marcha. 
ARTAUD 
A minha cabeça não está em agonia… 
FERDIERE 
Talvez sim, ou talvez não. Quem o pode saber? 
ARTAUD 
E este cheiro… é premeditado também? 
FERDIERE 
Temos de manter a máxima assepsia do local. 
ARTAUD 
Este cheiro… não saber as horas… não consigo escrever, se é que lhe interessa saber. 
FERDIERE 
Nem uma linha? 
 12 
ARTAUD 
Nem isso. 
FERDIERE 
De certeza que escreveu uma linha, pelo menos uma. Não o acho capaz de desistir de uma 
linha. Uma simples linha, não escreveu? 
ARTAUD 
Não escrevi. Nada. 
FERDIERE 
E os seus sonhos? Tem sonhado? 
ARTAUD 
Não tenho sonhado. 
FERDIERE 
Não seja assim. Toda a gente sonha. Você deve ter tido os seus sonhos, por mais esquisitos 
que lhe possam parecer. Vá, deite tudo cá para fora, eu escuto. 
ARTAUD 
Não sonho. 
FERDIERE 
Quer falar de teatro então? Gosto de o ouvir falar de teatro. Se bem se lembra, fui eu que 
impulsionei essa sua faceta, que acho simultaneamente estranha e extremamente criativa. 
Vamos falar de teatro, vá! 
ARTAUD 
Você não iria entender o meu ponto de vista. Tudo o que eu digo é doença, delírio… a minha 
suposta loucura… 
FERDIERE 
Não. Como me pode acusar de uma coisa dessas? Escute: eu estou aqui para o ajudar, só 
para o ajudar. Vá, fale, não tenha receio. Você que fala tanto na crueldade está a ser cruel 
agora, com todos esses joguinhos… 
ARTAUD 
Sem um elemento de crueldade como fundamento de todo o espectáculo, não é possível haver 
teatro. 
FERDIERE 
Não estamos propriamente numa sala de um teatro… 
ARTAUD 
Cale-se! No estado de degenerescência em que nos encontramos, é através da pele que se 
fará penetrar de novo a metafísica nos espíritos. 
FERDIERE 
Bravo! Conseguiu! Excelente frase. Pode repetir? 
ARTAUD 
Reagi a uma provocação sua, nada mais. 
FERDIERE 
 13 
Reagiu mas com conteúdo! Respondeu muito bem! Agora vou reagir eu: parabéns! 
ARTAUD 
Está a brincar comigo? 
FERDIERE 
Não estou nada. Gostei dessa ideia de teatro, parabéns… embora me pareça um pouco 
incipiente a ideia… 
ARTAUD 
Um pouco, talvez… 
FERDIERE 
Mas folgo em saber que continua a escrever. Acertei? 
ARTAUD 
Se isso o deixa feliz, eu confirmo. Escrevo regularmente. 
FERDIERE 
Deixa-me feliz. E você, não é feliz? 
ARTAUD 
Porque pergunta isso? 
FERDIERE 
Não é feliz? A escrever? 
ARTAUD 
Isso não interessa agora. Além disso, o que lhe interessa a minha felicidade? 
FERDIERE 
Interessa e muito. Não é feliz? 
ARTAUD 
Pois se lhe interessa, não! Não sou feliz. 
FERDIERE 
O que lhe faz falta? 
ARTAUD 
A minha solidão neste quarto faz-me querer ser ainda mais que issoque você quer que eu 
seja. Encarar os outros é a primeira parte da minha terapia. Olhar as plantas, daqui de cima, 
completa a locução diária que a mim mesmo lembro. Sinto que estou a morrer. Dói-me o 
estômago e a cabeça e sei que são os primeiros sinais que a morte se aproxima. Já foram os 
primeiros sinais desta doença. 
FERDIERE 
Não diga asneiras! Você vai sair daqui, são e salvo. Quando estiver curado… 
ARTAUD 
Como se você me quisesse deixar sair daqui… 
FERDIERE 
Sai, um dia sai. 
ARTAUD 
E você? Como é sua vida lá fora? 
 14 
FERDIERE 
Desculpe? 
ARTAUD 
Ouviu muito bem. Perguntei-lhe sobre a sua vida lá fora, longe deste hospital. 
FERDIERE 
Faz questão que eu lhe responda? 
ARTAUD 
Porque é que responde às minhas perguntas com outra pergunta? Concentre-se naquilo que 
digo e responda! 
FERDIERE 
Não se zangue. O que quer saber de mim? 
ARTAUD 
Comece pelo mais vulgar. 
FERDIERE 
O mais vulgar… tomo o pequeno-almoço as sete da manhã. Depois venho para aqui. Almoço 
as treze horas e lancho as dezassete. Janto, invariavelmente, as vinte horas. Tenho dois filhos. 
O mais velho é recruta e a mais nova ainda estuda. Diz que quer seguir os passos do pai. 
Outra psiquiatra na família! 
ARTAUD 
E a sua mulher? Não tem mulher? 
FERDIERE 
Interessa-lhe saber se tenho mulher? 
ARTAUD 
Interessa. 
FERDIERE 
Acha interessante para a nossa conversa saber se eu tenho mulher? 
ARTAUD 
Não acho nada interessante é responder com perguntas. Eu faço o mesmo, assim. Não quer 
falar sobre a sua mulher? 
FERDIERE 
Acha que eu estou a fugir à questão? 
ARTAUD 
Acha que eu não estou a dar conta que sim? 
FERDIERE 
Não tenho mulher. 
ARTAUD 
Não tem presentemente ou nunca teve? 
FERDIERE 
Nunca tive. Menti quando disse que era casado. Sou viúvo. 
ARTAUD 
 15 
Viúvo? E os filhos? São de quem? 
FERDIERE 
O primeiro da minha primeira mulher. O segundo, da segunda. 
ARTAUD 
Nunca mais as viu desde então? 
FERDIERE 
Nunca mais as vi. 
ARTAUD 
Acabaram assim o relacionamento, sem mais nem menos? 
FERDIERE 
Mais complicado que isso. 
ARTAUD 
Complicado? 
FERDIERE 
Sim, bem mais. 
ARTAUD 
Como? 
FERDIERE 
Suicidaram-se, as duas. 
ARTAUD 
As duas? Uma de cada vez? 
FERDIERE 
Sim. 
ARTAUD 
Isso é que é ter sorte. Desculpe a ironia. 
FERDIERE 
Está desculpado pelo seu inocente cinismo. 
ARTAUD 
Mas deixe que lhe diga que não me admira nada o suicídio de ambas. 
FERDIERE 
Ai sim? 
ARTAUD 
Sim. 
FERDIERE 
Porque diz isso? 
ARTAUD 
Você é detestável. Nem sei como os seus filhos aguentam cheirar o mesmo ar que você 
respira. 
FERDIERE 
Está a dizer que cheiro mal? 
 16 
ARTAUD 
Estou, cinicamente. E cinicamente olho para a sua figura e concluo que o doente, o psicótico, é 
você e não eu. 
FERDIERE 
Acha que “sou” ou que tenho alguma doença? 
ARTAUD 
Acho que você é um doente, mais ainda que eu. Nunca ninguém se suicidou por ter estado em 
contacto comigo. Consigo sim, duas pessoas. 
FERDIERE 
Espero que você não se suicide, então. 
ARTAUD 
Não lhe darei esse prazer, de arrastar o meu corpo frio por estes corredores desumanizados, 
como já vi muitos, os que estiveram fechados nas celas. Quando morrer, o meu corpo irá 
cheirar a rosas e a erva de Paris. Sabe a que cheira Paris? 
FERDIERE 
Diga me você. 
ARTAUD 
Paris cheira aquilo que nos quisermos que cheire, como qualquer cidade, vila ou rua. A 
verdade, a beleza está em nós. Somos nós que inventamos os cheiros, a arte, o teatro… 
FERDIERE 
Sempre a representar… 
ARTAUD 
Sempre a poesia… 
FERDIERE 
Não está em nenhum palco… 
ARTAUD 
Não é preciso estarmos em cima de um palco para haver teatro. Suprimimos o palco e a sala 
que são substituídos por um local único, sem barreiras. Há uma comunicação directa entre o 
espectador, você, e o espectáculo, eu e aquilo que digo e faço. Você está colocado no meio da 
acção, é envolvido por ela e afectado. 
FERDIERE 
Pois… 
ARTAUD 
Neste palco, você faz várias coisas, age… 
FERDIERE 
Naturalmente… 
ARTAUD 
Então, diga lá: porque razões se suicidaram as suas duas mulheres? Nojo? Partilha do mesmo 
espaço? Aposto que você nem sabe foder e elas, frustradas, suicidaram-se. Você não chegava 
para elas… nem para uma, nem para outra… 
 17 
FERDIERE 
Cale-se. 
ARTAUD 
E além disso era pérfido. 
FERDIERE 
Não sou nem nunca fui pérfido. 
ARTAUD 
É isso, você matou-as com a sua perfídia… Estou a imaginar a cena: luzes foscas, música 
miserável de burguês, cortinados a condizerem com a cor das paredes da sala… você chega a 
casa e pergunta “O jantar está pronto?” e ela responde “Ainda não tive tempo.” Então você diz 
“Quero jantar, estou estafado!” e ela responde “Estou no banho, espera!”. Então, tomado por 
uma raiva, a raiva que acumula há tantos anos por não conseguir compreender a vida, dirige-
se à banheira, amordaça-a, prende-a e enche a banheira de água a ferver, obrigando-a a 
manter-se dentro dela com uma faca encostada à garganta! Quando ela sai da banheira, as 
queimaduras moldam-lhe o corpo e só lhe apetece morrer de ódio e vergonha! Então, a faca 
descuidada no lavatório serve para o suicídio, e você vê-a a cortar os pulsos dentro da 
banheira, enquanto a carne e o sangue cozem juntos naquela panela branca da 
desumanidade… 
FERDIERE 
Cale-se! Não fui assim cruel! 
ARTAUD 
Uma imagem de teatro obedece a todas as exigências da vida…você matou as suas mulheres! 
Você é um demente lunático! 
FERDIERE 
Você está louco! Eu não as matei, elas suicidaram-se! 
ARTAUD 
Não, você é que é louco! Elas suicidaram-se porque não o aguentam por perto, a espreitar tudo 
o que se faz ou diz! 
FERDIERE 
Você é um filho da puta cruel! 
ARTAUD 
Sem um elemento de crueldade, não é possível haver teatro! É através da pele que se fará 
penetrar de novo a metafísica nos espíritos! Este hospital é o meu palco! 
FERDIERE 
Enfermeira! Enfermeira! 
 
Blackout. Luz em Ferdiere. Artaud tombado no chão. 
 
FERDIERE 
 18 
Artaud acusa-me de ser um bárbaro, e todos os cuidados médicos que teve neste hospital 
foram objecto de mil reclamações. Sofre de delírio parafrénico de tipo alucinatório, além de ter 
uma história de consumo de ópio, láudano e mescalina. Porra, ele almoçou em minha casa, na 
minha mesa! A minha mulher foi um anjo de paciência! Convidar uma pessoa como estas que 
não se sabe comportar à mesa, que arrota e se peida constantemente não é muito agradável. 
Administrei muitos choques eléctricos na minha vida. Devo ser responsável por cerca de 
quatrocentos mil, directamente ou indirectamente, ordenados aos meus médicos subordinados 
ou nas clínicas onde dava consultas. Todos os psiquiatras o fazem, pois é preferível combater 
com choques eléctricos uma crise de melancolia que pode desembocar em suicídio. É 
preferível fazê-lo a dar ansioliticos ou soporíferos, em doses muitas vezes perigosas. 
 
3. 
FERDIERE 
Bom dia! Cá estou eu de novo! Não fala? Está muito calado hoje. Vá, vamos lá a falar. Já 
ontem esteve assim o dia todo, apesar de ter passado bem a noite. A enfermeira avisou-me 
disso assim que cheguei. Não sei o que se passa consigo. Julgo que as doses estão a ser 
administradas correctamente, não há nenhum erro na prescrição nem me parece que o 
diagnóstico tenha sido feito levianamente. Se prefere manter esse silêncio por teimosia, o 
problema é seu e apenas seu. Mas aviso-o que deve começar a tomar consciência dos seus 
actos. É para seu próprio bem. Não quer falar, está visto. 
ARTAUD 
Você está louco… e não eu… nem mesmo todos aquelesque passaram pelas suas mãos. 
Você é o único doente neste hospital. 
FERDIERE 
Persiste em negar a sua patologia. Isso não leva a lado nenhum. Tem de admitir a sua doença. 
É o primeiro passo para a cura. 
ARTAUD 
A partir de hoje não admito nada na sua presença. Tire as conclusões que tirar, mas eu não 
admito mais nada. 
FERDIERE 
É pior para si. Enquanto não der ordem, você não sai daqui. 
ARTAUD 
Você não me mete medo. 
FERDIERE 
Você também não me mete medo nenhum. E digo-lhe mais, baterei palmas quando o enterrar 
e estarei atrás de si a tocar a sineta. Estou farto da sua presença tosca no meu hospital! 
ARTAUD 
Não pense que me assusta com as suas ameaças, muito menos com as suas palmas. Não 
temo as suas ironias, já não me dizem nada… apesar de me terem atrasado a vida em três 
 19 
anos! E nem a morte temo mais. Só ela me poderá libertar deste corpo queimado e 
prejudicado, única e somente por si. Quando morrer, voltarei a Paris! 
FERDIERE 
Farei com que não fuja nem regresse nunca mais a Paris. 
ARTAUD 
Não me pode impedir disso. Eu voltarei a Paris. Nas flores ou mesmo em cinzas. As flores de 
Paris terão a minha cara, obstinada e cinzelada pelas suas mãos carniceiras. 
FERDIERE 
Você está louco. Vou aumentar a dose de choques eléctricos. 
ARTAUD 
Não me interessam já os choques eléctricos, benditos sejam! Essa luz vai-me levar aos 
Campos Elísios, às ruas cheias de fantasia, impregnadas de poesia, de vida e de amor! As 
suas ruas estão cheias de fantasmas! 
FERDIERE 
Os meus fantasmas estão mortos e enterrados. A seguir irá você. 
ARTAUD 
Ouça o que lhe digo… você está com medo. Começa a medir as almas que puniu, em prol de 
uma suposta medicina e de uma cura desajustada! 
FERDIERE 
O meu dever é curar. 
ARTAUD 
Você não sabe o que é curar uma alma! Não sabe compreender as almas, não sabe de nada! 
As leis, os costumes, concedem-lhe o direito de medir o espírito e essa jurisdição soberana e 
terrível, exerce-a segundo seus próprios padrões de entendimento. 
FERDIERE 
O meu dever é curar lunáticos como você! 
ARTAUD 
Não me faça rir. Para si um sonho meu ou as imagens que me perseguem não passam de uma 
salada de palavras! Foda-se! Os loucos são vítimas da ditadura social. E em nome da 
individualidade, reclamo a liberdade, quero-me libertar do estigma de amaldiçoado da 
sensibilidade, já que não está dentro das faculdades da lei condenar à prisão a todos que 
pensam e trabalham. 
FERDIERE 
Você piora de dia para dia, seu velho decrépito! 
ARTAUD 
Engana-se. Eu sou um atleta do coração. Velho, mas consciente desta realidade em que estou 
imerso. Recorde isto, quando conversar sem dicionário com esses homens sobre os quais só 
tem a superioridade da força. 
FERDIERE 
Porque não se cala? 
 20 
ARTAUD 
Não me posso calar ao vê-lo aí, armado em superior. 
FERDIERE 
Cale-se imediatamente! 
ARTAUD 
Era assim que falava com as suas mulheres? 
FERDIERE 
Cale-se! 
ARTAUD 
Estou a ver que sim. Ameaçava-as e elas, coitadas, caíam nas suas ameaças prepotentes. Se 
calhar ainda lhes dava alguns choques eléctricos! 
FERDIERE 
Cale-se, já disse! 
ARTAUD 
Não me calo! Eu sou o louco que a sociedade não quer ouvir! 
FERDIERE 
Cale-se! 
ARTAUD 
Loucos, sifilíticos, cancerosos, meningíticos, incompreendidos como eu. Há um ponto em todos 
nós que nenhum médico jamais entenderá: estamos além da vida, os nossos males são 
desconhecidos pelo homem comum, ultrapassamos o plano da normalidade e daí a severidade 
na punição dos homens! 
FERDIERE 
Calado! 
ARTAUD 
Não somos loucos, somos médicos maravilhosos, conhecemos a dosagem da alma, da 
sensibilidade, da medula, do pensamento! Deixem-nos em paz, deixem os doentes em paz, 
não pedimos nada aos homens, só queremos aliviar as nossas dores! 
FERDIERE (bate-lhe. Artaud cai) 
Ouça bem o que lhe vou dizer. A vida está aqui, no que vemos e mais nada! Não irá para Paris! 
Estamos em guerra! 
ARTAUD 
Eu irei para Paris! 
FERDIERE 
Não irá parar ao antro da pior corja do mundo e de que você é exemplo perfeito! Actores 
pedintes, músicos, putas… merda como você é! 
ARTAUD 
A única merda que Paris tem é você, seu filho da puta! 
FERDIERE (bate-lhe e Artaud quase desmaia) 
 21 
Acorde. Então? Componha-se que está a chegar a enfermeira. Não quero que suspeitem de 
nada, de tudo aquilo que se passou aqui hoje. Nem daquilo que se passou durante este tempo 
todo… quantos anos? Já fez bem as contas? Quase quatro… você chegou quase na 
Primavera. Desde então, passaram-se três natais, três frios e sombrios natais. Que lhe diz o 
Natal? Pouco, pouquíssimo, já vi… então? Componha-se. Penteie-se. Tire esse fio de sangue 
dos lábios. E esse sorriso irónico. As enfermeiras não compreendem a sua ironia, já sabe? 
Fazem-me todos os dias queixa de si… “o senhor Artaud é um mal-humorado que não se 
aguenta. Perguntamos se se sente bem, responde que não é da nossa conta. Perguntamos se 
quer um cobertor, diz que o frio que sente é mental… não se percebe!” 
ARTAUD 
Você não se cala? 
FERDIERE 
Vamos, componha-se. Vou chamar uma enfermeira. Quer alguma coisa para beber? Hoje pode 
beber um copo de whisky. Sabe que vai fazer três anos que está aqui? Três longos anos… e o 
teatro, adiado… para sempre… 
ARTAUD 
O teatro não se adia, seu esquizofrénico. O teatro estará sempre presente, até na condição 
mais iníqua, aquela a que me obrigou. 
FERDIERE 
Não me diga que essas merdas que você diz e escreve podem ser aproveitadas numa peça de 
teatro… que merda de peça de teatro que seria. 
ARTAUD 
Seria apenas se os actores não sentissem o que dizem. Como você, seu demente. Os 
dementes não sentem o que dizem quando desejam a morte a quem lhes dá os carros e as 
casas. 
FERDIERE 
Cale-se, imbecil! Componha-se, eu volto já! (vai buscar aparelho de choques eléctricos) 
ARTAUD 
Nunca perdi um átomo de lucidez e nunca me escapou um gesto inconsciente nestes nove 
anos de internamento em Le Havre, Rouen ou Sainte-Anne. As únicas perdas de consciência 
tive-as nos últimos de dois meses, que advieram do coma dos choques eléctricos, aqui em 
Rodez. Passei nove anos em asilos de alienados e os métodos de cura ainda hoje me 
revoltam. Mas o pior método de todos é este, chama-se choque eléctrico, e consiste em 
ensopar um paciente numa descarga voltaica atroz. Ferdière impôs-mos várias vezes nestes 
três anos, o que me fez perder a memória do meu ser que se encontrava bem consciente… 
FERDIERE 
Ainda não perdeu essa mania, do teatro? (vai ligando o aparelho de choques eléctricos em 
volta de Artaud) 
ARTAUD 
O teatro é o lugar… 
 22 
FERDIERE (interrompendo) 
…onde se refaz a vida… já ouvi essa, milhares de vezes… 
ARTAUD 
Porco! Imita-me em tudo! Você é um imitador, é o inimigo da arte. 
FERDIERE 
Meu caro, pode ter a certeza que sou apenas um seu inimigo. 
ARTAUD 
Dói-me a cabeça… 
FERDIERE 
A dor física não é nada literária valha-o Deus… 
ARTAUD 
… e apetece-me morrer… 
FERDIERE 
Deixe-se disso. Uma guerra lá fora, você aqui dentro, a salvo da ocupação nazi e ainda pensa 
nisso? O suicídio não é a solução. (silêncio) Ou acha que é? 
ARTAUD 
Não, o suicídio ainda é uma hipótese. Quero ter o direito de duvidar do suicídio assim como de 
todo o restante da realidade. É preciso, por enquanto e até segunda ordem, duvidar 
atrozmente, não propriamente da existência, que está ao alcance de qualquer um, mas da 
agitação interior e da profunda sensibilidade das coisas, dos actos, da realidade. Tolero 
terrivelmente mal a vida. Não existe estado que eu possa atingir. E certamente já morri há 
muito tempo, já me suicidei.Suicidaram-me, quero dizer. Mas o que achariam de um suicídio 
anterior, de um suicídio que nos fizesse dar a volta, porém para o outro lado da existência, não 
para o lado da morte? Só este teria valor para mim. Não sinto apetite da morte, sinto apetite de 
não ser, de jamais ter caído neste torvelinho de imbecilidades, de abdicações, de renúncias e 
de encontros obtusos que é o eu de Antonin Artaud, bem mais frágil que ele. O eu deste 
enfermo errante que de vez em quando vem oferecer a sua sombra sobre a qual ele já cuspiu 
faz muito tempo, este eu “clochard”, apoiado em muletas, que se arrasta; este eu virtual, 
impossível e que todavia se encontra na realidade. Ninguém como ele sentiu a fraqueza que é 
a fraqueza principal, essencial da humanidade. A de ser destruída, de não existir. 
FERDIERE 
Você é ridículo… mas já que quer literatura, veja bem o que eu escrevi. Muito engraçado, acho 
eu. Ai vai. Quem sou? De onde venho? Eu sou … (silêncio) Ferdiere e basta dizê-lo como sei 
dizê-lo, imediatamente vereis o meu corpo actual voar em estilhaços e em dois mil aspectos 
notórios refazer um novo corpo onde nunca mais podereis esquecer-me. (Enorme choque 
eléctrico. Black-out) 
 
ARTAUD (no escuro) 
Fui eu que escrevi isso!

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