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1 HAUSER, Arnold "A perspectiva sociológica". In: Teorias da Arte. Tradução: F. E. G. Quintanilha. Lisboa: Presença, 2ª ed., 1988, p. 25-42. A PERSPECTIVA SOCIOLÓGICA: O conceito de ideologia na história de arte [p. 25] O conceito de ideologia, derivado da noção de «falsa consciência», revela analogias surpreendentes com o conceito de «racionalização» em psicanálise. O indivíduo «racionaliza» as suas atitudes, os pensamentos, os seus sentimentos, as suas acções; quer isto dizer que se preocupa em dar-lhes uma interpretação aceitável, irrepreensível do ponto de vista das convenções sociais. De igual modo, os grupos sociais, exprimindo-se através de representantes, interpretam os acontecimentos naturais e históricos e, acima de tudo, as suas próprias opiniões e apreciações de acordo com os seus interesses materiais, desejo de poder, questões de prestígio, e outras aspirações de carácter social. E do mesmo modo que o indivíduo nos seus motivos e finalidades permanece inconsciente de que está a racionalizar, a maior parte dos membros de um grupo social, permanece também inconsciente do facto de que o seu pensamento está 'condicionado pelas condições materiais da vida. De outro modo, como afirma Engels, «toda a ideologia cairia por terra» 1 . A analogia com a psicanálise leva-nos mais longe. Tal como o indivíduo não necessita de racionalizar todo o seu comportamento, sendo uma grande parte dos seus pensamentos, sentimentos e acções socialmente irrepreensíveis ou sem importância, assim também os produtos culturais de. grupos contêm [p. 26] representações e interpretações da realidade que são «inofensivas» e «objectivas», porque não têm relação directa com os interesses dos grupos em questão e não entram em conflito com os interesses de quaisquer outros grupos. Assim, as proposições matemáticas e as teorias das ciências naturais são, no seu conjunto, objectivas e obedecem a princípios que podem ser considerados como critérios 1 Friedrich, Engels: Ludwig Feuerbach and the Oultcome of Classical German Philosophy; em Selected .Works (1942), I, p. 417 e seguintes (de Karl Marx & Friedrich Engels). Carta a Franz Mehring de 14 de Julho de 1893, Ibid., p. 388 e seguintes. eternos e imutáveis da verdade. Mas a amplitude de tais proposições objectivas é relativamente estreita e, embora sintamos uma certa relutância em fazer da história das matemáticas ou da mecânica um suplemento da história económica, não pode haver dúvidas de que mesmo uma ciência natural, tal como a medicina, apresenta traços de dependência de condições econômicas e sociais, de modo que não somente o aparecimento de problemas mas, muitas vezes, também a direcção na qual se procura a solução dos problemas, podem ser considerados como sendo socialmente condicionados. Por outro lado, também as disciplinas humanísticas, especialmente os diferentes ramos da investigação histórica, são confrontadas com um vasto número de problemas que nada ou quase nada têm que ver com uma interpretação ideológica do material, problemas cuja solução pode, na maior parte, ser julgada por critérios objectivos. Pondo de parte questões de pormenor, é óbvio que cada uma das várias estruturas culturais, tais como a religião, a filosofia, a ciência e a arte; têm a sua própria «distância» a partir da sua origem social; elas formam uma série com muitos graus, manifestando uma «saturação ideológica» progressiva. Esta série estende- se da matemática que é quase neutra sob o ponto de vista sociológico, as suas proposições características raramente permitindo que se tirem quaisquer conclusões quanto à data, ao local e às circunstâncias de origem, até à arte, na qual mal se poderia considerar indiferente um simples aspecto do ponto de vista histórico ou social. Nesta série, a arte permanece na mais íntima relação com a realidade social e o mais afastada possível da zona do que é geralmente considerado como ideias eternamente válidas. Pelo menos, é dirigida de uma forma bastante mais franca e directa para objectivos sociais, serve muitíssimo mais manifesta e inequivocamente como arma ideológica, como panegírico ou propaganda, do que as ciências bjectivas. As tendências sociais que a arte serve raramente podem ser consideradas visíveis e não sublimadas ‒ isto faz parte da essência do modo de expressão ideológico que, se atingir os seus propósitos, não poderá permitir-se chamar uma criança pelo seu próprio nome. [p. 27] Na série que se estende da arte às ciências exactas e às matemáticas, a autonomia das estruturas culturais cresce na proporção inversa à distância da experiência imediata do verdadeiro ser vivo, em cuja 2 vida psíquica; pensamento e sentimento, contemplação e acção, teoria e prática não estão diferenciados ‒ o indivíduo que Wilhelm Dilthey, como sabemos, denominou «homem integral». Quanto mais próximo estiver o «tema» dos vários, campos de criação cultural do homem real concreto, menos este terna é considerado como, algo impessoal e não- histórico, e mais o seu pensamento é considerado como sendo socialmente dependente e ideologicamente condicionado. Sem dúvida, tanto «a consciência em geral» corno o correlativo das ciências naturais e o «homem integral» de Dilthey são simplesmente conceitos limitativos e úteis apenas como «tipos ideais». «A consciência em geral» abstracta e infinita não se encontra na sua pureza mesmo numa operação matemática; e o «homem integral», livre de todos os traços de especialização, não se encontra revelado mesmo nessas obras de arte que possuem o atractivo mais universal e imediato ‒ porque qualquer obra de arte exige para sua realização um certo grau de parcialidade e de meditação, uma restrição na função do ser vivo integral. Mesmo em Marx e em Engels fala-se das diversas distâncias entre as diferentes estruturas culturais e o seu substrato económico; e Engels observa numa passagem bem conhecida da sua obra sobre Feuerbach que nas ideologias superiores «a relação entre as ideias e a sua condição material de existência se toma cada vez mais complicada, cada, vez mais obscurecida por elos intermediários». Esta perspectiva é essencialmente correcta. O conteúdo da arte, da religião e da filosofia é muito mais rico e a sua estrutura muito mais opaca do que os das ciências naturais e das matemáticas; é assim, mesmo quando comparado com os de Direito e os de Estado, nos quais as condições económicas são enunciadas mais directamente, isto é, de uma forma menos sublimada. Mas o facto de as condições características de um certo sistema económico serem enunciadas mais directamente em disposições legais em vigor e em instituições políticas do que nas tendências contemporâneas da filosofia, ou da arte, não significa que a arte e a filosofia sejam mais independentes do que o pensamento jurídico ou político das verdadeiras condições de vida. De facto, continuam a usar a realidade sócio-histórica imediata numa maior extensão do que o Direito com as suas leis codificadas ou o Estado com as suas instituições estereotipadas. No caso da arte e da filosofia o mecanismo da causação social pode estar oculto, mas não é menos decisivo nem de menor alcance do que noutros campos culturais. [p. 28] Porém, o problema da ideologia assume uma forma diferente no campo da arte e no das ciências, sendo o conceito de verdade em arte muitíssimo diferente do da verdade teórica. Uma obra de arte nãoé «correcta» ou «incorrecta» do mesmo modo que uma teoria científica o é; falando correctamente, não se pode designar nem por verdadeira nem por falsa. O conceito de imutabilidade, de validade supra-histórica, pode ser aplicado à arte só com reservas muito especiais, e aqui, tudo o que se disse sobre «falsa consciência» ou sobre consciência verdadeira se torna inoportuno. Por outras palavras: quando a verdade não é o que se deseja, é escusado falar de conformidade ou de evasão em relação a ela. A arte é sempre partidária e porque uma perspectiva da realidade que não reflectisse nenhum ponto de vista especial seria destituída de toda a qualidade artística, o problema da relatividade simplesmente não se põe em arte. Todo o aspecto da arte é uma perspectiva; só um que envolva uma contradição íntima pode, correctamente, ser denominado de «falso». E, todavia, seria errado negar à arte todo o direito de conquistar a verdade; negar que ela possa dar um contributo valioso ao nosso conhecimento do mundo e do Homem. Que os trabalhos de literatura são uma fonte abundante de conhecimento é, talvez, inegável; as realizações mais perspicazes de introspecção psicológica que temos à nossa disposição provêm os mestres do romance e do drama. Mas não pode haver dúvidas de que as artes visuais também contribuem muito para o nosso ponto de apoio no mundo. É importante, evidentemente apontar a diferença entre o conhecimento científico e a representação artística, salientar, por exemplo, que falar de tendências «estilísticas» é perfeitamente legítimo em arte, mas muilto discutível em ciência 2 . Porém, o sociólogo só pode sentir-se apreensivo quanto a qualquer separação demasiado radical entre a arte e a ciência. Porque, afinal; a visão do mundo de um geração ‒ ou, mais exactamente, de um grupo que está histórica e socialmente delimitado ‒ é um todo indivisível. Tentativas para demarcar os diferentes campos nos 2 'Theodor Geiger: «Kritische Bemerkungen zum Begriffe der Ideologie» em Gegenwartsprobleme der Soziologie (A. Vierkandt zum 80, Geburtstag, 1949), p. 143 3 quais esta visão do mundo se manifesta podem ser muito prometedoras de um ponto de vista epistemológico, mas, para o sociólogo, aparecem como dissecações violentas da realidade que ele estuda. Para ele, a filosofia, a ciência, o direito, o costume e a arte são aspectos diferentes de uma atitude unitária para com a realidade; em todas estas formas, [p. 29] os homens andam em busca de uma resposta para a mesma pergunta, de uma solução para um e o mesmo problema: o de como viver. Eles não estão fundamentalmente interessados em formularem verdades científicas, em produzirem obras de arte, ou mesmo em enunciarem preceitos de ordem moral, mas em alcançar uma visão praticável do mundo, um princípio directivo da vida digno de confiança. Sempre e por todo o lado, debruçam-se sobre uma e mesma farefa, a de subjugarem a desconcertante singularidade e ambiguidade das coisas. Indicar a quota-parte da arte na formação das visões do mundo não é dizer que ela seja continuamente ligada a necessidades práticas ou negar que um aspecto especial da arte seja precisamente a sua emancipação da realidade presente. Se alguém se sentir inclinado a acentuar as condições reais da produção artística, pode dizer-se correctamente que o desenvolvimento das formas estilísticas tem uma lógica interna própria. A arte apresenta uma consistência rigorosa na sua busca da solução de determinados problemas formais e, dentro de cada período estilístico pode distinguir-se um progresso regularmente constante e contínuo em direcção a esse objectivo. Porém, tem-se afirmado que um desenvolvimento imanente deste tipo não ocorre só nos períodos da história que são estilisticamente unitários e coerentes ‒ períodos por exemplo em que há um progresso constante na representação naturalista ou da formalização abstracta ‒ mas também na sucessão dos vários estilos. Deste ponto de vista, os estilos sucessivos parecem estar relacionados como pergunta e resposta, ou como tese e antítese: por exemplo, diz- se que o barroco é, não a expressão de novas condições sócio-históricas da vida, mas a continuação «lógica» da Renascença ‒ isto é, em parte, a solução dos problemas formais postos pelas obras dos mestres da Renascença, em parte, o resultado de uma contradição que também surge de uma afinidade com esses mestres. Semelhante «lógica da história», que afirma a necessidade íntima de cada passo consecutivo no progresso, possui sempre um certo atractivo; porém, justifica-se: apenas quando aplicada dentro dos limites de uma determinada tendência estilística unitária. Quando se chega a uma mudança de estilo, ela sucumbe. Suponho mesmo que se pudesse admitir que semelhante relação antitética entre tendências sucessivas seria um princípio geral de desenvolvimento estilístico, nunca se poderia explicar por características puramente formais e intrínsecas porque é que, em determinado momento, uma tendência dá lugar a uma outra de carácter diferente. O estímulo para a mudança de estilo vem sempre do exterior e é logicamente contingente. Nem o sentimento de saciedade [p. 30] nem o desejo de mudança são, de modo algum, adequados para explicarem o desaparecimento de um estilo. Certamente, o desejo de mudança desempenha, muitas vezes, um papel tão importante na história da arte como na história da moda; mas este requisito pode ser satisfeito quando há talento, sem se sair das potencialidades do estilo em vigor. Seja como for, com o envelhecimento de uma cultura social bem estabelecida, surge tanto um desejo crescente de uma renovação das formas aceites como, muitas vezes, uma resistência crescente a cada tentativa de as alterar. Em geral, é necessário o aparecimento de um público novo para sacudir uma tradição de arte profunda e firmemente enraizada e trazer uma mudança radical no gosto. A dissolução do rococó não pode ser esclarecida, de modo algum, por causas intrínsecas, embora as suas criações se tivessem tornado moles e enfadonhas mas, principalmente, pelo novo patrocínio da arte no período revolucionário. Wölfflin afirmou que o estímulo externo é mais vincado e mais claramente perceptível numa reversão de estilo do que na flutuação de uma linha contínua de desenvolvimento. Na realidade, não há diferença de princípios entre estas duas fases ou estes dois estados do mesmo processo. As influências externas não são mais decisivas, são apenas mais óbvias no caso do desenvolvimento interrompido. Uma observação mais minuciosa revela factores extrínsecos sempre a trabalharem quer haja ou não uma mudança de estilo. As realidades sociais ‒ o que Wölfflin denominou de «condições externas» 3 ‒ representam sempre o mesmo papel, influenciando a escolha da forma; pois qualquer formulação implica uma escolha de forma. Em cada momento do desenvolvimento, a questão do 3 Heinrich Wölfflin: Kunstgeschtliche Grundbegriffe (1929), p. 252. 4 que é que se devia fazer, que atitude é que se devia tomar perante as possibilidades do momento, é uma questão em aberto que não obteve ainda uma resposta adequada. Diz-se «sim» ou «não» à direcção em que os outros se movem e que se tem seguido até agora; e a aceitação nem é mais mecânica nem menos voluntária do que a rejeição. Manter uma tradição estabelecida muitas vezes significa tantouma decisão, o resultado de um processo dialéctico cheio de conflitos e com as suas pré-condições internas e externas, como a decisão de a alterar. A tentativa, por exemplo, de remar contra a maré que se dirige para um naturalismo sempre crescente, não implica princípios de motivação diferentes dos que controlam o desejo oposto, de promover e de celerar este naturalismo. Temos sempre que enfrentar as mesmas [p. 31] perguntas: será o estilo aceite ainda de interesse como guia de vida num mundo transformado? Poderá ele ainda impressionar, conversar e estimular a acção? Será ainda uma arma adequada à luta pela vida? Revela ele o que devia ser revelado e oculta o que devia ser ocultado? O artista nunca põe estas perguntas a si próprio em tantas palavras. Raramente lhes dá uma resposta consciente ou directamente; nem elas lhe são postas por quaisquer forças específicas da sociedade. O erro de Wölfflin, a sua falta de sentido sociológico a sua concepção lógica abstracta de história são principalmente devidas à sua diferenciação demasiado radical entre a influência externa e a lógica interna. O erro da sua maneira de pensar é típico; uma deficiência semelhante em compreender a causação social sublinha a incompreensão vulgar dos métodos sociológicos, em especial, a interpretação errónea do materialismo histórico. A essência da filosofia materialista da história, com a sua doutrina de carácter ideológico do pensamento, consiste na tese de que atitudes espirituais são, desde o seu início, fixadas em condições de produção e se movem dentro do âmbito de interesses, objectivos e expectativas que lhe são característicos; não é que sejam subsequentes, externa ou deliberadamente ajustadas a condições económicas e sociais. «Primum vivere, deinde philosophari» é uma verdade que todos reconhecem sem qualquer necessidade de teorias de materialismo histórico ou de ideologias. O que é notável é que mesmo os pensadores experimentados neste campo representam a dependência económica da arte em termos de um vínculo puramente externo. Mesmo um escritor como Max Scheler cai nesta linha de pensamento quando fala das condições materiais da criação artística. «Rafael necessita de um pincel», lemos. «As suas ideias as suas visões não lho podem fornecer. Precisa de protectores politicamente influentes que o incumbam de glorificar os seus próprios ideais; sem eles, não poderia dar expressão ao seu génio 4 .» É extraordinário que um sociólogo da craveira de Scheler não tivesse reconhecido que o artista glorifica os «ideais» de possíveis bem como de verdadeiros protectores; que o carácter inevitável da ideologia ‒ tanto quanto é verdadeiramente inevitável ‒ conduz o pintor a representar as ideias e as aspirações das classes preponderantes e cultas, mesmo quando não tem protectores ‒ ou melhor, apesar de não ter os protectores adequados ou de não representar o grupos sociais que estariam de facto de acordo com ele. O [p. 32] fracasso em reconhecer isto é ainda mais notável porque Engels, na sua tese sobre o «triunfo do realismo» e a natureza do método de Balzac, não deixou lugar a dúvidas quanto ao que significa ideologia em arte 5 . Pensar-se-ia naturalmente que se devia ter compreendido que o artista não necessita de ter consciência das ideias sociais que exprime, sentir-se ele próprio em oposição às leis e aos ideais que retrata, justifica ou mesmo glorifica nas suas obras. Balzac, como é bem conhecido, foi um entusiasta da monarquia absoluta, da Igreja Católica e da aristocracia francesa; mas isso não o impediu de escrever a mais extraordinária apologia da burguesia! A arte pode exprimir objectivos sociais de duas maneiras diferentes. O seu conteúdo social pode ser apresentado sob a forma de confissão explícita ‒ confissões de crenças, doutrinas explícitas, propaganda directa ‒ ou da simples dedução, isto é, em termos da perspectiva tacitamente pressuposta em obras que parecem destituídas de qualquer referência social. Pode ser francamente tendenciosa ou um veículo de uma ideologia inconsciente e não reconhecida. O conteúdo social de um credo definido ou de uma mensagem explícita é conscientemente compreendido pelo orador e conscientemente aceite ou rejeitado pelo ouvinte; por outro lado, o motivo social por detrás de um manifesto pessoal pode ser inconsciente, e pode operar sem os homens dele estarem conscientes; será tanto mais eficiente quanto menos for exprimido conscientemente e quanto menos for ou parecer estar 4 Max Scheler: Die Wissensformen und die Gesellschaft (1926). 5 Engels: Carta a Miss Harkness em Literature and Art de Mark & Engels, pp. 42-3. 5 conscientemente a aspirar à aprovação. A arte francamente tendenciosa repele, muitas vezes, onde a ideologia disfarçada não encontra resistência. As peças de Diderot, Lessing, Ibsen e Shaw são francamente tendenciosas; a mensagem através da qual eles procuram conseguir aprovação não tem que ser lida nas entrelinhas, como acontece com o sentido de Sófocles, Shakespeare ou Corneille; não se encontra envolvida em nenhuma ideologia mas é convincente só para o que já está semiconvencido. E, em arte, o modo de expressão indirecto e ideológico não é só o mais eficiente, é também o mais esclarecedor sob um ponto de vista histórico, porque, na verdade, uma perspectiva social só cria um estilo quando não pode encontrar directamente uma expressão. A expressão aberta de uma perspectiva social é compatível com o maior número de formas estilísticas, visto que, nesse caso, o conteúdo das ideias se sobrepõe simplesmente a uma dada estrutura formal; não é necessária qualquer transformação [p. 33] deste conteúdo em novas formas de expressão. Com Diderot, Lessing e Shaw, as versões de liberalismo são expressas em três estilos diferentes, ao passo que os estilos de Sófocles, Shakespeare e Corneille são as expressões de situações políticas e sociais diferentes. Num dos casos, a atitude social mantém uma certa independência abstracta da forma artística; no outro, é apresentada numa forma estilística que lhe é própria. A tradução de uma perspectiva social num estilo requer, evidentemente, um mecanismo bastante diferente daquele que é suficiente para a sua expressão directa num programa político ou num manifesto. O artista como representante de um estilo não só o intérprete da sociedade, a sua função como representante de um grupo social não pode ser explicada apenas em termos psicológicos; só se toma inteligível através da investigação da natureza das relações que são o tema do materialismo histórico. O materialismo histórico não é uma teoria psicológica; deduz as ideologias, não dos motivos individuais, mas das condições objectivas que as realizam, muitas vezes, sem o conhecimento dos participantes, e com frequência contrariamente às intenções destes. Falar mesmo de «interesses» nesta relação não é completamente adequado porque os pensamentos, os sentimentos e as acções dos homens não estão, de modo algum, sempre de acordo com o que, sob um ponto de vista psicológico, se pode designar como os seus interesses. Geralmente, eles pensam e actuam de acordo com a consciência de classe pura a qual a protecção de uma certa classe é o objectivo essencial, embora nem sempre o fim admitido. O pensamento dos homens depende desta consciência, embora a unidade colectiva com que eles concordam nem sempre seja a classe social da qual provieram nem sempre tenhamconsciência da sua categoria social. Por exemplo, os motivos que levam alguém a oferecer- se como voluntário para determinada guerra pode, de um ponto de vista subjectivo, ser inteiramente idealista; não obstante, a guerra pode ser não só condicionada economicamente mas também ser activa por detrás dos motivos idealistas do voluntário, factores inconscientes de um carácter materialista, interessado e determinado pela classe social. A consciência de classe não é uma realidade psicológica; ela materializa-se até ao ponto em que os indivíduos de facto se comportam de acordo com a classe a que pertencem. Na medida em que a consciência de classe encontra expressão, pode-se, na linguagem dos românticos, falar das intenções superiores de grupo ‒ ou, na gíria hegeliana, de uma espécie de «astúcia» neste caso, de astúcia da guerra de classes. Posto em termos menos românticos e especulativos, isto equivale a dizer que o pensamento dos homens é muito mais influenciado positivamente pela sua situação social do que pelas suas ilusões ou [p. 34] reflexões conscientes sobre a sua situação ‒ embora as condições sociais em vigor funcionem, possivelmente, apenas através da motivação psicológica, ou, como Engels afirma, «tudo que põe o homem em acção tem que passar pelo seu cérebro 6 ». À primeira vista, o argumento mais eficiente contra a admissão de factores ideológicos na história da arte provém da observação de que as mesmas características estilísticas não aparecem muitas vezes simultaneamente nas diferentes artes, que um estilo pode durar mais tempo num ramo de arte do que noutro, que um pode parecer ficar para trás em relação aos outros todos, em vez de se conservar no mesmo ritmo. Assim, no caso da música, até aos meados do século XVIII, isto é, até à morte de Bach, encontramos o estilo barroco ainda florescente, enquanto nas artes visuais, o rococó alcançara já o seu ponto culminante. Se, contudo, como se costuma afirmar, condições sociais afins não produzem resultados afins em todos 6 Engels: Feuerbach. 6 os campos da arte e da cultura, então, não há evidentemente qualquer razão para se falar de condicionamentos ideológicos ou de leis sociológicas de qualquer espécie e os movimentos em arte estão livres da influência da causação social. A solução desta dificuldade aparente é óbvia. Em qualquer estado de civilização razoavelmente avançado, as condições sociais nunca são perfeitamente uniformes; não nos apresentam a mesma situação nos vários campos da arte e da cultura. Na primeira metade do século XVIII os escalões médios da burguesia exerciam uma influência muito maior sobre a pintura e sobre a literatura do que sobre a música. Constituíam uma secção muito influente de consumidores nos campos da literatura e da pintura, ao passo que, na música, o gosto da corte e das autoridades eclesiásticas era ainda predominante. A instituição que, no caso da música, iria desempenhar o papel dos editores e das exposições de arte, a comercialização dos concertos para um público da classe média, estava ainda na sua infância. Com efeito, uma tensão idêntica, causada pelas diferenças dos públicos interessados, entre as artes visuais e as formas literárias persiste através da história da cultura ocidental. O círculo de clientes de pintura e de escultura e, naturalmente, de arquitectura, é, por razões óbvias, bastante mais restrito do que o da literatura. Isto não implica que a mudança de estilo comece sempre na literatura; a literatura só assume a chefia quando a burguesia assume uma posição de chefia na sociedade, e isso só acontece com o Iluminismo, a Revolução Francesa [p. 35] e a democratização do público que lê, nos séculos XVIII e XIX. É evidente que esta situação predominante da literatura na evolução do estilo, como também a da música numa data posterior, é causada por uma alteração no mercado da arte. O conceito de ideologia pode ser usado de uma forma sensata só em relação a um certo grupo social; falar da ideologia de uma época histórica, sem uma tentativa de diferenciar classes ou grupos é, sociologicamente, sem sentido. Só quando atribuímos fenómenos ideológicos a determinados grupos sociais, ultrapassamos um mero registo de sequência histórica; só então poderemos lograr um conceito de ideologia concreto e sociologicamente útil. Num período historicamente avançado, não há uma ideologia mas apenas ideologias ‒ do mesmo modo que não há várias tendências artísticas importantes para serem assinaladas, correspondentes às várias camadas sociais influentes. Isto não altera o facto de que, em qualquer período histórico, uma classe predomine, mas faz-nos recordar que esta predominância não é menos desafiada por concorrentes no reino espiritual do que nas ciências económicas ou na política. Regra geral, as novas forças de produção começam a manifestar-se na forma de «ideias novas», dando origem a tensões dialécticas no campo do pensamento que, muitas vezes, se resolvem em organização económica somente numa data posterior; mas isto não invalida o argumento de Marx e Engels de que as ideias novas são apenas um sinal de «que dentro da sociedade velha foram criados elementos de uma sociedade nova 7 ». De facto, encontramo-nos frequentemente numa situação em que as tendências espirituais estão muito mais confundidas, mais permeadas de oposições profundas do que as económicas; em que, como por exemplo na época do Iluminismo, a classe dominante já estava dividida espiritualmente em dois campos opostos enquanto, economicamente, mantinha ainda uma aparência de unidade. Sem dúvida que a composição divergente dos públicos não é a única explicação para a diferente rapidez nas alterações registadas nas várias artes. Nos diversos ramos de arte, as regras formais tradicionais que prescrevem meios de representação e estabelecem limites para o que pode ser representado podem ser mais ou menos rigorosas e podem, deste modo, oferecer mais ou menos resistência à influência das condições sociais contemporâneas. Numa forma de arte tal como a música sacra, na qual a criação é regida por tradições bastante rigorosas e serve exactamente funções [p. 36] definidas, em que os executantes pertencem, regra geral, a um grupo profissional fechado, e a procura da novidade é, naturalmente, mais fraca do que em qualquer outra parte, o ritmo a que as alterações se processam será relativamente lento e as formas estilísticas menos obviamente ideológicas ‒ a não ser que tratemos a verdadeira regra da própria tradição como um sintoma ideológico, como, de certo modo, o é. Mas para a formação de novas ideologias, toda a tradição é um factor de inércia, tal como Marx e Engels observam. «A tradição de todas as gerações passadas pesa sobre a cabeça dos 7 Manifest of the Cammunist Party. 7 vivos», afirma Marx 8 e Engels, um tanto mais favoravelmente, mas ainda com um certo horror, fala da tradição como de uma «grande força conservadora em todos os campos ideológicos» . A tradição deve a sua existência ao facto de que as estruturas culturais sobrevivem às condições sócio- históricas da sua origem e podem continuar a existir, embora, por assim dizer, desenraizadas. Existe uma articulação notável de factores transitórios e permanentes, cujo carácter problemático Marx parece ter notado primeiro quando começou a tratar da experiênciaartística. A passagem na Introdução à Critique of Political Economy na qual se refere à dificuldade de prestar esclarecimentos sobre a impressão causada pela época grega sobre as gerações vivendo num mundo totalmente diferente do de Homero é bem conhecida. Aqui, Marx deu com a discrepância entre génese e validade, sem, contudo, ser capaz de formular o problema com precisão. Mal se apercebeu de que estava a tratar com uma particularidade de todas as formas de actividade espiritual e, deste modo, com o problema central e o mais difícil de toda a doutrina da ideologia; a circunstância de que a chamada supra-estrutura tem uma vitalidade própria, que as estruturas espirituais têm tanto a capacidade como a tendência para se separarem das suas origens e seguirem o seu próprio caminho. Por outras palavras, elas tornam-se a origem de novas estruturas que se desenvolvem de acordo com leis internas próprias, alcançando um valor específico perdurável. Este fenómeno, segundo o qual as estruturas culturais que foram uma vez instrumentos e armas vitais, meios de controlar a natureza e de organizar a sociedade, se tornam gradualmente formais e neutralizadas e, finalmente, fins em si próprias é, sem dúvida, intimamente idêntico ao processo de «reificação» (Verdinglichung), descoberto e tão [p. 37] vivamente descrito por Marx. As estruturas espirituais com a sua independência, autonomia e imanência, os seus valores formais e supra-históricos, confrontam-nos como tantas «forças naturais estranhas» - como Marx denomina as instituições da sociedade capitalista. Mesmo em arte, a mais humana de todas as forças de expressão humanas, este carácter estranho sente-se onde quer que eIa seja tratada como forma pura. Uma obra de arte, considerada como um produto puramente 8 Marx: «The Eighteenth Brumaire of Louis Bonaparte», em Selected Works, II, p. 311 e seguintes. formal, um mero jogo de linhas e de tons, uma encarnação de valores eternos sem importância para algo histórico e social, perde a sua relação vital com o artista e a sua significação humana para o indivíduo que a contempla. Em arte, especialmente em arte, a criação ou o postulado de valores supratemporais e suprapessoais possuem algo de «fetichismo» que Marx defendera ser a essência da «reificação». Pelo estabelecimento de semelhantes valores abstractos e pela demarcação de faculdades mentais distintas que o acompanham, essa unidade do mundo espiritual que a filosofia romântica da história reconheceu nas denominadas culturas «orgânicas» com a sua total visão do mundo e o seu crescimento natural, é, finalmente, destruída. O próprio Marx descreve em termos um tanto românticos a dissolução deste estado natural que ele faz coincidir com o início do capitalismo moderno, como o «fim da inocência humana». A sua verdade messiânica, com o seu tema dominante da «corrupção absoluta» da época capitalista e a sua promessa da sociedade sem classes é, certamente, um legado romântico. Na realidade, a formalização dos poderes e das realizações espirituais, a invenção da «ciência pura» e da «arte pela arte» não é mais uma criação do capitalismo do que o é a utilidade, característica dos produtos industriais. O processo tem início no século VII antes de Cristo na Jónia e, evidentemente, é uma concomitante da colonização grega 9 . Aqui não nos encontramos apenas perante uma concepção inteiramente nova e não pragmática da ciência, mas, igualmente, perante uma ideia completamente nova de arte que já não é exclusivamente magia, feitiçaria, oferenda votiva ou propaganda, mas uma tentativa para criar beleza por amor da beleza. Do mesmo modo que do conhecimento dirigido a fins puramente práticos surge a «investigação» que é, em certa medida, sem finalidade, assim também da arte como meio de ganhar o favor dos deuses, dos espíritos ou dos potentados, surge, gradualmente, uma forma pura, não tendenciosa e sem preconceitos. [p. 38] Este desenvolvimento é, sem dúvida, um acompanhamento do contacto dos Gregos com povos estrangeiros, da sua descoberta da variedade e da relatividade de valores que vincula a dissolução da sua sabedoria antiga, essa mais ou menos indistinta unidade na qual a religião, a ciência e a arte mal se distinguem. O 9 Arnold Hauser: The Social History of Art (1951), I, 93. 8 processo de formalização e de separação dos ramos da cultura acompanha os princípios contemporâneos da economia monetária e pode, até certo ponto, ser explicado pela noção de que o uso de meios abstractos de permuta promove adaptabilidade intelectual e poder de abstracção 10 ; mas tudo isso não tem muito em comum com a ascensão do capitalismo moderno. Apesar do processo, quase ininterrupto a partir dessa altura, da separação crescente dos campos culturais, aumentando cada vez mais a autonomia da arte, todavia, em nenhum período da história da arte, nem mesmo nos tempos do mais extremo esteticismo e formalismo, encontramos o desenvolvimento da arte como completamente independente das condições económicas e sociais prevalecentes. As criações artísticas estão muito mais intimamente ligadas à sua própria época do que estão à ideia de arte em geral ou à de história de arte como um processo unitário. As obras de diferentes artistas não têm nenhum objectivo ou modelo comuns; uma não continua a outra nem é o seu suplemento; cada uma começa pelo seu princípio e atinge o seu objectivo o melhor que pode. Não há realmente qualquer progresso em arte; os trabalhos da maturidade não são necessariamente mais valiosos do que os realizados na juventude; as obras de arte são, de facto, incomparáveis. É isso que torna a verdade na arte tão diferente da verdade na ciência; e que também explica porque é que o valor do conhecimento adquirido e difundido pela arte não é totalmente prejudicado pelo seu carácter ideológico. O facto de que os conhecimentos profundos adquiridos pela arte são muitas vezes ultrapassados tão rapidamente e, na verdade, nunca conseguem aceitação universal não nos preocupa de modo algum. Consideramo-los como interpretações da vida invulgarmente e muitas vezes singularmente valiosas, não como proposições objectivamente compulsivas, demonstráveis, ou mesmo, correctamente falando, discutíves. As comunicações do artista sobre a realidade pretendem ser e devem ser pertinentes; não têm que ser verdadeiras ou incontestáveis. Podemos ficar completamente subjugados por uma obra de arte e, todavia, reconhecermos que ela deixa outros indivíduos que são nossos espíritos [p. 39] afins indiferentes. Que nada há de obrigatório em opiniões de gosto é um dos critérios estéticos mais antigos, sendo de gustibus non disputandum quase um exemplo 10 George Simmel: Philosophie des Geldes (1900). de sabedoria proverbial popular. O mais notável é que os critérios de gosto fazem, não obstante uma reivindicação e, embora não reivindicando validade universal, têm, na verdade, um aspecto normativo; criticando, o indivíduo crê que está a reconhecer um valor objectivo que é de certo modo obrigatório pelo menos para ele. Esta complicação merece ser assinalada, mas não altera o facto de que a validade em arte seja totalmente diferente da validade em ciência e que não haja contradição no facto de a arte ser ideológica e, simultaneamente, ter valor objectivo.Mas o problema da relatividade dos valores que assim evitamos ao considerar a verdadeira produção e o prazer que arte proporciona, coloca-nos, quando nos voltamos para a história da arte com uma ciência, perante dificuldades quase tão grandes como as que se encontram em qualquer outro ramo de estudo. O desenvolvimento da história da arte nem mesmo manifesta esse elemento bastante pequeno de progresso contínuo que pode ser detectado em outros ramos da documentação histórica. No caso da arte, as interpretações e avaliações históricas de uma geração não só não são consideradas como obrigatórias em relação à geração seguinte mas, muitas vezes, têm que ser positivamente ignoradas, mesmo combatidas, de modo a que a nova geração possa conquistar o seu próprio acesso directo às obras do passado. Apreciamos toda esta variedade e multiplicidade de interpretação histórica, sentimo-nos infinitamente enriquecidos e estimulados por essas mudanças constantes sob cujo ponto de vista os historiadores de arte, sensíveis e engenhosos, investigam e reflectem sobre as obras dos mestres; no final, a questão da validade de todas estas interpretações diferentes que gerações sucessivas aplicam às criações artísticas do passado, impõe-se e exige mais investilgação. É algo inquietante observar que a posição dos artistas considerados importantes esteja a alterar-se constantemente, que, por exemplo, Rafael ou Rubens sejam constantemente avaliados de novo, que artistas como El Greco, Breughel e Tintoretto tivessem que ser salvos do esquecimento total ou da incúria, que formas de arte que ontem eram consideradas publicamente como as mais terríveis aberrações, sejam hoje aplaudidas como as mais interessantes e estimulantes de todas, que um Burkhardt escrevesse com desprezo sobre oBarroco e que um Wölfflin o fizesse sobre Maneirismo. Tais interpretações são correctas ou incorrectas? Será uma mais correcta do que a outra? 9 Será uma interpretação mais recente sempre mais [p. 40] correcta do que uma anterior? Ou a sequência temporal de critérios nada tem que ver neste caso com o progresso, com nenhuma descoberta crescente da verdade? Será inevitável e irrepreensível o relativismo na história da arte? Ou, temos nós, em último recurso, que tratar com afirmações que se não podem distinguir como verdadeiras ou falsas mas, de acordo com alguns critérios bastante diferentes, tais como o grau de importância das relações indicadas, ou a extensão do aprofundamento e enriquecimento da nossa experiência estética que pode resultar? Decerto parece evidente que o curso não simplesmente da arte mas também da história de arte ‒ isto é, não apenas da aplicação mas também da interpretação da arte ‒ está sujeito a leis de algo como o «desenvolvimento cultural» de Alfred Weber que não é um movimento estritamente progressivo, ao contrário do processo contínuo de realizações cumulativas que ele denomina de «civilização». Os julgamentos da história de arte não podem ser nem completamente objectivos nem absolutamente obrigatórios; porque interpretações e, avaliações não são tanto conhecimento mas são aspirações ideológicas, desejos e ideais que se gostaria de ver realizados. Obras ou escolas de arte do passado são interpretadas, descobertas, apreciadas, desprezadas, de acordo com o ponto de vista e os padrões correntes da época. Cada geração julga os esforços artísticos de épocas anteriores mais ou menos à luz das suas próprias finalidades artísticas; considera-as com interesse renovado e uma visão nova só quando elas estão de acordo com os seus próprios objectivos. Deste modo, nos meados do século XIX, uma geração de liberais da classe média, chefiada por Michelet e Burrckhardt descobriu ou revalorizou a arte renascentista; a geração dos impressionistas, arrastada por Wölfflin e Riegl, fez o mesmo em relaçao ao Barroco; a nossa própria geração, com o seu expressiomsmo e surrealismo, a cinematografia e a psicanálise, está a empreender a mesma tarefa para a arte intelectualista cheia de problemas e interiormente despedaçada do Maneirismo. As avaliações e revalorizações da história de arte é evidente são regidas pela ideologia, não pela lógica. Referem-se às mesmas condições existentes, baseiam- se nos mesmos princípios sociais, como o fazem as tendências artísticas contemporâneas e, como estas, exprimem e revelam uma visão exacta do mundo. A sociologia da história da arte tem ainda que ser escrita; podia dar uma contribuição valiosa para a história social da arte. Teria que tratar de problemas tais como os da alteração de significado da Antiguidade Clássica através dos séculos: a sua interpretação naturalístico- progressista pelos patrícios cultos da Renascença Italiana, a sua [p. 41] interpretação cortesã da França do século XVII e a sua interpretação rigorosamente académica pela intelligentsia burguesa do período revolucionário. Sem dúvida, a história de arte, tanto interpretando como avaliando, tem uma quantidade de outras tarefas não essencialmente diferentes das da investigação histórica concreta em geral. Neste campo, a verdade objectiva das suas descobertas é um problema que não pode ser ignorado. Tais tarefas são as que dizem respeito à data e atribuição das obras, ao seu agrupamento de uma forma que reflicta correctamente o desenvolvimento das escolas ou da personalidades individuais, a determinação do que pode ser inferido delas como «testemunho», em relação a grupos sociais e indivíduos a descoberta da identidade do patrono e do alcance da sua influênciana configuração da obra, o exame das flutuações no mercado de arte e nos métodos de organização da produção artística. Tudo isto são problemas cuja proposta e solução são apenas ligeiramente afectadas por qualquer ideologia particular, embora mesmo aqui esses aspectos e modos de explicação tendam, naturalmente, a ser preferidos por serem apropriados às condições de vida da época. Por exemplo, a avaliação das condições do mercado em vigor e da relação entre o artista e o patrono nunca deixa de ser afectada completamente pela posição social e pelas perspectivas económicas dos que continuam a profissão da história de arte. Todavia, nestas circunstâncias, necessitamos certamente de não perder a esperança de descobrirmos «como é que realmente aconteceu». Mas o problema central da história de arte é a interpretação e a avaliação dos estilos e aqui cabe perguntar se se deve mesmo aspirar à objectividade e à imutabilidade do julgamento. Pode alguém, deve alguém experimentar e apreciar as obras de arte numa espécie de vácuo sem quaisquer pressuposições? Não específicas , concretas e ideologicamente condicionadas? Não é uma obra de arte uma utopia, a satisfação de uma necessidade que encontra expressão 10 numa ideologia? Não é, na frase de Stendhal, «uma promessa de felicidade»? O que é que a arte pode significar para alguém que não a julgue a partir de uma posição na vida real, que não esteja envolvido na vida tão profunda, tão apaixonada, tão perigosamente como o próprio artista! A arte ajuda apenas os que procuram o seu auxílio, vindo até ela com os seus escrúpulos de consciência, as suas dúvidas e os seus preconceitos. Muda para o mundo, só fala àqueles que a interrogam. [p. 42] A análise das pressuposições sociológicas da história de arte permite-nos alcançar uma visão mais verdadeira do problema da ideologia, o seu lugar na nossa vida espiritual, a sua importância para a vitalidade, e para opoder estimulante do nosso conhecimento. Confirma a suspeita de que o desejo de ser livre de toda e qualquer ideologia é precisamente uma variante da velha ideia da salvação filosófica que prometia ao espírito humano acesso a um mundo de segurança meta-histórico e sobrenatural, de valores absolutos, eternos. Numa palavra, ajuda-nos a compreender que a ideologia não é um erro, engano, falsificação, mas expressão de alguma exigência, de alguma necessidade que quer ou luta, que se envolveu numa capa de proposições aparentemente objectivas e impassíveis. O homem é uma criatura cheia de contradições: não existindo apenas, mas consciente da sua existência; não só consciente da sua existência mas também com vontade de a alterar. A História é uma controvérsia dialéctica entre a ideologia e o ideal da Verdade, entre a vontade e o conhecimento, o desejo de alterar as coisas e a consciência da inércia das mesmas. Movemo-nos para trás e para diante, eternamente, dentro do espaço estabelecido pelas condições materiais da nossa vida e pelas nossas intenções. Todo o boato sobre um fim do movimento, isto é, sobre um fim da História, quer em linhas hegelianas, quer marxistas, é pura especulação. Para o pensamento racional, os limites da História coincidem com as limitações humanas.
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