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1 1 ECO 261 MATERIAL DIDÁTICO II Prof. José Maria Alves da Silva DER-UFV 2012 2 2 A ECONOMIA POLÍTICA PRÉ-CLÁSSICA O que vamos chamar aqui de economia política pré-clássica é um conjunto de escritos sobre o tema da riqueza nacional, dispersos na obra de vários autores anteriores a Adam Smith. Entre estes estão os nomes de Thomas Mun (1751 – 1641), William Petty (1632 – 1687), John Locke (1632 – 1704), John Law (1671 – 1729), Bishop Berkeley (1685 – 1753), David Hume (1711 – 1776), na Grã Bretanha, Jean Bodin (1530 – 1596), Pierre Le Sant de Boisguilbert (1646 – 1714), Richard Cantillon (1680 – 1734), François Quesnay (1694 – 1774) e Jacques Turgot (1727 – 1781), na França. Nesse período, as grandes discussões em economia giravam em torno de uma doutrina de grande aceitação nos governos das principais nações do mundo, a qual ficou conhecida como mercantilismo. 1. O Mercantilismo e Suas Formas1 O termo ‘mercantilismo’ foi criado por Adam Smith como referência a um de dois sistemas de enriquecimento das Nações: o “sistema de comércio” ou “sistema mercantilista” e o “sistema de agricultura”. Depois de Adam Smith, e em larga medida por causa dele, que foi seu severo crítico, o termo mercantilismo ficou associado à idéia de que “uma balança comercial favorável é bom para a prosperidade da Nação”. Uma vez que, mormente nos tempos de maior aceitação dessa doutrina, isso necessariamente significava acumulação nacional de metais preciosos e outros tesouros, essa “visão metalista” parece, a princípio, envolver uma confusão da riqueza em si com os seus símbolos, a qual ficou conhecida como “síndrome de Midas”. No entanto, como mostra Hugon (1976), há fundamentos racionais para essa visão, a começar do fato de que a disponibilidade de reservas de metais preciosos é vantajosa para a nação como forma de riqueza não perecível e de alta liquidez, o que, especialmente naqueles tempos, era extremamente conveniente como estratégia de enfrentamento com outras nações. 1 Mais detalhes históricos sobre o assunto podem ser encontrados em: Hugon, P. História das doutrinas Econômicas. São Paulo: Atlas, 1976. 3 3 Tudo o que pode contribuir para o superávit comercial nacional era recomendado pelos partidários da doutrina: importações de matérias primas baratas de outros países visando sua transformação em produtos exportáveis de maior valor agregado; imposição de tarifas aduaneiras sobre bens importados; protecionismo à indústria nacional; incentivo aos exportadores; arrocho salarial; combate à luxúria, e até métodos moralmente condenáveis de relações internacionais. No que diz respeito à utilização de estratégias visando ao alcance dos objetivos essenciais, a prática mercantilista variou entre os países, apresentando várias formas distintas que ficaram conhecidas como: bullionismo, na Espanha e Portugal; colbertismo, na França; comercialismo, na Inglaterra, e o cameralismo alemão. O bullionismo é considerado a forma menos inteligente, pelo forte conteúdo ilusório de sua identificação da riqueza nacional com acumulação de metal precioso (metalismo) e menos exitosa, pela efemeridade de suas conquistas. A denominação vem de bullion, como era chamada na língua inglesa a forma padronizada de ouro e prata em barras ou lingotes. Praticado nos países da península ibérica, Portugal e Espanha, o bullionismo se caracterizou por uma fixação imediatista e obsessiva na busca do ouro e da prata. Tudo o que podia contribuir para a retenção do metal era permitido. Para se ter uma idéia, em fins do século XV, os reis de Espanha, Fernando e Isabel, proibiram terminantemente a exportação de quaisquer objetos que contivessem ouro e prata em sua fabricação. A inobservância dessa proibição era punida com a pena de morte. Pela lei de contratos de 1491, vigente entre 1498 e 1503, os navios espanhóis que iam vender mercadorias no exterior deviam voltar carregados de ouro, enquanto que só se permitia a entrada dos navios de outros países desde que viessem carregados de ouro e voltassem carregados de mercadorias espanholas. Segundo Hugon (1976), o bullionismo também se caracterizava pela absoluta falta de escrúpulo moral, como o expediente de atrair ouro e prata de outros países, mediante oferecimento de taxas de juros extremamente elevadas, e depois pagar os credores com moedas falsificadas.2 O “colbertismo”, como ficou conhecida a forma francesa praticada poderoso ministro de Luis XIV, Jean-Baptiste Colbert (1619 – 1683) caracterizou-se estrategicamente pela ênfase à 2 Sem falar das expedições de conquistas ultramarinas que levaram a verdadeiras “rapinagem” de ouro e prata nos territórios de outros povos, como as que causaram o holocausto das civilizações Maia e Inca, e das incursões aventureiras dos bandeirantes portugueses, em busca de minerais preciosos, que acabaram levando as fronteiras do Brasil para bem longe dos limites previstos no tratado de Tordesilhas. 4 4 industrialização, fomentada por forte intervenção do Estado. O pensamento subjacente ao mercantilismo francês antecipou em cerca de três séculos o pensamento estruturalista latino- americano, e em cerca de dois séculos o pensamento nacionalista de Friedrich List, que influenciou políticas desenvolvimentistas para a economia norte americana, levadas a efeito nos séculos 18 e 19, por influência de Thomas Jefferson, Alexander Hamilton e Abraham Lincoln, entre outros importantes estadistas daquele país. No colbertismo, a opção pela industrialização era considerada estrategicamente vantajosa por várias razões. Primeiro devido ao fato de ser uma atividade mais regular e perene do que a agropecuária, que é muito sujeita a flutuações sazonais e aleatoriedades. Segundo porque as exportações industriais, via de regra, apresentam maior valor agregado do que as exportações agrícolas. Mas, isso não quer dizer que a política econômica de Colbert priorizava a indústria “em detrimento” da agricultura. Na verdade, ela se caracterizava mais por intervenções estatais no sentido de promover a união da indústria com a agricultura, tendo em vista um desenvolvimento mais complexo e diversificado da economia nacional.3 Pela hegemonia econômica da Inglaterra entre os séculos 18 e 19, a sua prática mercantilista é considerada a mais exitosa entre todas as outras. No entanto, é temerário dizer que o mercantilismo inglês foi mais inteligente que o francês. O fato da França não ter logrado um desenvolvimento econômico igual ou superior à Inglaterra deve-se mais à falta de continuidade do plano estabelecido por Colbert, nos reinados decadentes de Luís XV e Luís XVI, e o caos sócio-econômico que acabou culminando na revolução francesa. A Inglaterra, não obstante tenha também enfrentado várias convulsões internas, entre as dinastias Tudor e Stuart, manteve uma supremacia mundial bélica e comercial, graças ao seu poderio naval. Como a experiência parece mostrar claramente, quem mais lucra nas cadeias nacionais de produção e distribuição agrícola são os agentes que controlam os canais de comercialização. Mutatis mutandis isso se aplica à Inglaterra no comércio mundial dos séculos 16 a 19. Essa foi a razão do êxito inglês. Os navios da poderosa Companhia das Índias Orientais, da qual Thomas Mun era um dos principais diretores, buscavam especiarias que abundavam em rincões distantes do planeta, a preços baixos, para revendê-lasna Europa a preços decuplicados. 3 Alguns exemplos dessas intervenções foram os éditos suntuários, para coibir importações de bens de luxo, de um lado, e as regulamentações das corporações de ofício, o controle das taxas de juros e a fixação de tetos salariais tendo em vista a redução do custo de produção industrial, para aumentar a competitividade das exportações, de outro. 5 5 O fato é que durante o período de maior vigência das práticas mercantilistas na Europa, a Inglaterra foi a Nação que mais se sobressaiu, e embora a França tivesse sido de certo modo pioneira em política industrialista, o êxito da estratégia comercialista muito contribuiu para que a Inglaterra já ao final do século 18 se tornasse a nação mais industrializada do planeta. O chamado cameralismo alemão constituiu a forma menos óbvia de mercantilismo, refletindo uma filosofia de ação e situação política diferente das outras.4 Com efeito, enquanto a Inglaterra e França já estavam unificadas em estados nacionais relativamente sólidos, no século 16 a Alemanha permanecia dividida. Os interesses políticos na unificação e fortalecimento do Estado Nacional levaram a uma forte intervenção estatal na economia e uma filosofia da subordinação do interesse particular ao interesse nacional. Como doutrina do enriquecimento nacional, o cameralismo se caracterizava pela ênfase na administração financeira pública e externa. A medida da riqueza do país era avaliada mais pela quantidade de impostos que era possível arrecadar do que por qualquer outra coisa. Medidas governamentais típicas para isso consistiam em incentivar atividades que mais contribuíam para aumentar a arrecadação estatal concomitantemente com a geração de superávits comerciais externos. Impostos seletivos sobre consumo e tarifas protecionistas sobre o comércio exterior eram assim ingredientes particularmente importantes dessas medidas. 2. A Doutrina Mercantilista: Prós e Contras Para Adam Smith, que foi quem fez a primeira e a mais simples refutação, as idéias mercantilistas envolviam falsas analogias entre indivíduo e nação, bem como confusão de capital com dinheiro. A proposição verdadeira de que a riqueza de um indivíduo aumenta quando o seu consumo é menor que a sua renda era generalizada na proposição de que a riqueza da nação aumenta quando as exportações superam as importações5. A crítica de Smith ao mercantilismo 4 O nome vem de câmara, do alemão kammer que se refere às salas de governo nas quais se realizavam reuniões para discutir os assuntos de interesses nacionais internos e externos. A palavra, por extensão, passou a referir-se também ao compartimento de guarda do tesouro do Estado, adquirindo assim uma conotação relacionada com as finanças públicas. Segue daí o termo cameralismo, com um significado próximo de ciência da administração do Estado e formação de quadros para o funcionalismo público, precursor dos modernos cursos de administração pública. 5 Esse é uma variante do sofisma da composição que consiste em assumir como verdadeiro para o todo, o que é válido para uma parte desse todo. A objeção de Smith, nesse caso, é que o que é verdadeiro para um indivíduo da nação, não pode ser generalizado para a sociedade nacional. 6 6 parte do princípio de que as exportações e as importações de um país não são análogas à renda e ao consumo de um indivíduo. Segundo ele, isso não passava de falácia interessante para as grandes companhias de comércio ultramarino da Inglaterra e de sua emergente indústria manufatureira. O mercantilismo era apresentado assim como doutrina favorável aos interesses de certas classes sociais inglesas, como os mercadores e manufatureiros, mas não para a população inglesa como um todo. Quando um indivíduo ganha mais do que consome, a diferença implica necessariamente num acréscimo de riqueza, seja na forma de haveres financeiros ou ativos fixos. Quando a nação tem um saldo comercial favorável ela acumula ouro e prata, mas, por si só, isso não contribui para aumentar sua riqueza real, consubstanciada em coisas como edificações, benfeitorias agrícolas, vias de transporte, canais de irrigação, e outras coisas que servem para criar capacidade de produzir e consumir da sociedade, a não ser que a moeda seja gasta com aquisições de outros países, mas nesse caso o saldo do balanço comercial tende a desaparecer. Portanto, por essa via de raciocínio, conclui-se que o bom saldo da balança comercial é o saldo zero. Mas será que os autores mercantilistas não viam isso? Eram ingênuos portadores da síndrome de Midas? Ou, como sugeria Smith, não passavam de intelectuais “lobbistas” trabalhando para os “mercadores” e “manufatureiros” britânicos? A idéia de que a riqueza dos países não consiste só de seu ouro ou sua prata, mas também de suas terras, edificações, e todos os tipos de bens duráveis, já havia sido bem clarificada por escritores anteriores a Smith, como John Locke e David Hume, e mesmo notórios mercantilistas ingleses como Thomas Mun e William Petty. Esse último, inclusive, havia feito estimativas que indicavam que, no final do século 17, a quantidade de moeda representava menos de três por cento do valor total da propriedade na Inglaterra. Ele não defendia a acumulação ilimitada de metais preciosos e afirmava que a quantidade correta de moeda no país deve guardar uma determinada proporção com as necessidades do comércio. Parece assim que muitos dos ditos mercantilistas não padeciam da síndrome de Midas, mas acreditavam que “a falta de dinheiro”, que naqueles tempos significava escassez de ouro e prata, tinha conseqüências piores para o comércio e a riqueza nacional do que o excesso6. A 6 Um pensamento que tem certa semelhança com a filosofia de que ‘o dinheiro não trás felicidade”, mas é melhor para a felicidade que ele sobre do que falte. 7 7 moeda não é riqueza e a riqueza real de uma nação não pode ser aumentada pelo mero acúmulo monetário, mas, como dizia Francis Bacon: “a moeda está para o comércio como o esterco está para a horta, que dá seu melhor resultado quanto está na quantidade certa e bem espalhado”. Essas imagens ilustram bem o espírito da chamada doutrina ‘das necessidades do comércio’ do século 18, que vigorou por muito tempo sem qualquer fundamentação teórica mais sólida. Mas, se os grandes autores mercantilistas não confundiam moeda com capital porque então a preocupação universal daquela época com uma balança comercial favorável, haja vista que a conseqüência direta disso seria simplesmente o influxo de moeda? Como veremos, essa é uma questão controvertida. Blaug (1985) sugere que essas e outras aparentes contradições se devem, em larga medida, à falta de terminologia comum, precisão e uniformidade conceitual, que dificultava saber o que um autor realmente tinha em mente quando se mostrava favorável a um saldo positivo na balança comercial. Seria por uma crença ingênua de que isso levava diretamente ao aumento da riqueza nacional ou seria simplesmente uma maneira de falar para justificar medidas consideradas vantajosas por outras razões?7 O fato é que os autores mercantilistas foram duramente contestados pelos teóricos clássicos subseqüentes, a começar de Adam Smith. Mas, acabaram sendo reabilitados pelos membros da escola alemã de economia política, liderada por Roscher, Schmoller, e outros autores críticos da escola clássica, como Fredrich List e John Maynard Keynes. Estes partilhavam uma visão comum segundo a qual os grandes autores mercantilistas tinham razões maissutis para sustentar sua doutrina. Por trás da defesa, no curto prazo, da busca pelo superávit comercial externo estavam preocupações com objetivos nacionais de longo prazo, como transformações estruturais estratégicas relacionadas ao desenvolvimento industrial, fortalecimento do Estado, autonomia nacional e melhoria das condições de emprego para a população. Para os membros da escola alemã, as políticas mercantilistas eram perfeitamente racionais como meios apropriados de alcançar certos fins que, naqueles tempos, eram considerados tão desejáveis quanto hoje. O que caracteriza a doutrina mercantilista é a defesa intransigente do interesse nacional. Seus partidários eram sobretudo homens de alto espírito 7 Por exemplo, conceitos como renda, riqueza e capital não estavam tão bem estabelecidos como hoje. Para se ter uma idéia, o que Adam Smith chamava de riqueza (wealth), como está no título de sua obra principal, hoje é mais propriamente conceituado como renda (income), a qual ele se referia como revennue (receita). Outra fonte de confusão é que quando falavam em balança comercial os autores mercantilistas estavam pensando grosseiramente no que hoje chamamos de ‘a conta corrente’ como conceito distinto de ‘conta de capital’ no balanço de pagamentos. 8 8 patriótico. Quando se define metas nacionais, no confronto com outros países, a busca do superávit comercial externo não pode ser visto simplesmente como meio de acumular reservas de ouro e prata, mas sim aumentar o poderio econômico relativo da nação, conforme a expressão de John Locke: “os países ricos não são os que têm mais ouro e prata, mas sim os que tem mais em relação a outros países”. Ademais, a posse nacional de ouro era estratégica, pelo simples fato de ser este um ativo de alta liquidez. Naquela época em que os enfrentamentos bélicos não eram eventos raros, um alto volume de reservas em ouro era particularmente importante para as nações, como forma de mobilizar rapidamente recursos para a guerra. Uma defesa do mercantilismo é feita por Keynes no capítulo 23 de sua Teoria Geral. Ali, ele procura mostrar as razões pelas quais a preocupação dos mercantilistas com acumulação de ouro e prata, através do comércio internacional, não era obsessão tola, mas sim uma percepção intuitiva da relação entre quantidade de moeda, taxas de juros, investimentos, e geração de renda e emprego.8 Na medida em que a abundância de moeda oriunda dos superávits comerciais contribui para a elevação dos preços internos e para a redução das taxas de juros, os investimentos são estimulados. Desse modo, os níveis de renda e emprego são impulsionados tanto pelo lado das exportações e quanto pelos investimentos domésticos. Essas e outras considerações mostram uma preferência pelo crescimento econômico em relação à estabilidade de preços. Nessa perspectiva, a inflação é vista como um mal menor do que a recessão econômica e o desemprego.9 3. A Controvérsia Monetária No período pré-clássico da economia política, o pensamento mercantilista já havia enfrentado fortes objeções, especialmente no que concerne à questão das causas e conseqüências das alterações monetárias. No lado adversário dos mercantilistas estão alguns autores pré-clássicos que, pela forte influência que exerceram em Ricardo e seus seguidores, ser considerados precursores do monetarismo. 8Keynes, J.M. Teoria Geral do emprego, do Juro e da Moeda. São Paulo: Editora Abril, 1983 (Coleção Os Economistas). 9 Na verdade, entre os autores mercantilistas era comum a crença de que a inflação, desde que a taxas moderadas, moderadas (creeping inflation), pode até fazer bem para o crescimento econômico, como ‘fator estimulante dos negócios’. 9 9 Os pontos principais dessa controvérsia podem ser adequadamente discutidos com um recurso formal que ficou conhecido como a “equação de trocas” de Irving Fisher: MV = PT. Esta diz simplesmente que a quantidade de moeda (M) multiplicada pelo número de vezes que ela muda de mãos é identicamente igual ao volume total de comércio (T) multiplicado pela média dos preços desses bens (P). Até aqui a equação não passa de uma identidade retratando um fato óbvio, que aparece em várias obras de economia política, inclusive no capítulo 1 do Livro I do Capital de Karl Marx. Ela se converte numa teoria de causa e efeito pela forma como são estabelecidas hipóteses sobre os determinantes das variáveis envolvidas. O que veio a ser chamado de “teoria quantitativa da moeda” decorre das hipóteses de que T de algum modo é determinado pelas forças ‘reais’, ou seja, independente da quantidade de dinheiro (M); e V é uma constante determinada pelas práticas convencionais de pagamentos. Isto posto, resulta uma relação de causa e efeito entre M e P.10 A partir daí a questão é saber qual é a causa e qual é o efeito, ou, dito de outra forma, qual a direção de causalidade. Segundo a teoria quantitativa, da qual originou-se o monetarismo moderno, essa direção é de M para P, ou seja, considera-se M como a causa e P o efeito. A primeira razão para justificar essa proposição parte da observação dos sistemas monetários puramente metálicos baseados no ouro e/ou prata. Nestes pode-se dizer que a quantidade mundial de moeda depende da produção das minas. Como o total da produção anual das minas existentes é muito pequena em relação à quantidade total do metal precioso já existente, e considerando que a produtividade da extração mineral não está sujeita a grandes flutuações, de um ano para outro, pode-se tomar M como independente das variáveis T e P. Aliada à hipótese da constância de V, segue-se daí uma relação de causalidade segundo a qual o nível geral de preços P é determinado pela quantidade de moeda M. Esse é o enunciado básico da “teoria quantitativa da moeda”. Essa teoria inicialmente serviu para defender os sistemas monetários metálicos puros. É fácil explicar porque. No sistema monometálico (padrão ouro), ou no bimetálico, no qual circulam ouro e da prata, a quantidade de moeda não pode ser alterada pela vontade dos 10 Essa formulação não faz justiça às versões mais refinadas da teoria quantitativa, mas é suficiente para os presentes propósitos. Na verdade uma abordagem mais simples seria suficiente. Tudo o que é necessário para a discussão que se segue é o postulado que a direção de causalidade se dá no sentido dos termos do lado esquerdo para os do lado direito da equação. V não precisa ser uma constante. A questão em disputa essencialmente envolve saber como os acréscimos do produto MV (os termos do lado) afetam os elementos do produto PT (os termos do lado direito). 10 10 governantes, o que bom para a estabilidade do nível geral de preços. Essa salvaguarda contra a inflação foi historicamente o grande apelo em favor do padrão ouro. Entretanto, entre os séculos 17 e 18 os mercantilistas, adeptos da doutrina que ‘a moeda estimula o comércio’, que doravante vamos chamar simplesmente de ‘doutrina das necessidades do comércio’, enfatizavam um efeito de M sobre T em vez de P, sob o pressuposto de que um aumento da quantidade de moeda em circulação tem seu primeiro impacto sobre o volume de comércio e não sobre os preços ou pelo menos mais sobre o volume de comércio dos que sobre os preços. A idéia é que quando a circulação monetária aumenta, por qualquer razão, a primeira conseqüência disso é o esvaziamento mais rápido das prateleiras do comércio, implicando em mais pedidos de reposição de estoques. Em resposta a isso, aumentaa produção dos estabelecimentos que abastecem a rede varejista e outros pontos de vendas finais. Não há motivos para elevação de preços quando o comércio e a indústria estão tendo mais lucros mediante aumento de seus níveis de atividades. Os comerciantes ficam mais satisfeitos vendendo mais aos mesmos preços do que tendo pouco para vender a preços mais altos. Como já indicado na referência feita a keynes, reside aí também uma concepção do juro como fenômeno monetário, que vai ser duramente contestada pelos economistas clássicos subsequentes. A idéia de que a taxa de juros varia em função inversa da quantidade de dinheiro já estava clara nos escritos de William Petty e John Locke. Para os mercantilistas em geral o juro era visto como uma espécie de preço a ser pago pela obtenção de empréstimos, tendendo assim a ser mais baixo onde há mais dinheiro, e vice-versa, pelo mesmo motivo que o preço de uma mercadoria cai quando ela se torna menos escassa. Havia boas razões empíricas para essa crença. O nível geral da taxa de juros de mercado — a taxa sobre os empréstimos bancários de primeira classe — tenderam a cair no século 17, em que se verificou grande expansão dos estoques monetários decorrentes de descobertas de novas fontes de extração de ouro e prata. Sabia-se também que o juro nos países mais pobres, como Escócia e Irlanda era bem mais alto do que em países ricos como Holanda e Inglaterra11. 11 Cumpre ressalvar que a visão clássica do juro como fenômeno real, já havia sido de certo modo antecipada, nos escritos de Hume e Cantillon. Esses autores não achavam que a taxa de juros estava relacionada só com a oferta de moeda. Cantillon, por exemplo, considerava que a entrada em circulação de uma nova quantidade de moeda teria diferentes impactos sobre a taxa de juros, dependendo das mãos de quem ela fosse cair inicialmente. Se caísse nas mãos de pessoas frugais tenderia a ser poupada, e nesse caso, a taxa de juros provavelmente cairia; mas, se caísse nas mãos de pessoas pródigas, tenderia a ser gasta em consumo e, nesse caso, poderia até subir em vez de cair. 11 11 O fato é que, leituras cuidadosas dos escritos dos grandes autores mercantilistas mostram claramente que não estavam possuídos pela síndrome de Midas. Eles sabiam que a quantidade de moeda, por si só, não tinha nenhum poder de criar riqueza real. Mas viam que o crescimento do meio circulante, como um processo dinâmico favorável ao crescimento econômico. O que eles tinham em mente era mais uma ‘teoria monetária do volume de comércio, da produção e do emprego’ do que uma ‘teria quantitativa do valor da moeda’. O mais radical adepto da doutrina das ‘necessidades do comércio’ foi o escocês John Law. Em seu “Money and Trade Considered” (1705) ele manifestava que, para empregar pessoas desocupadas, as emissões de papel moeda serviam tão bem quanto as atividades que levavam à acumulação nacional de ouro e prata. A premissa básica por trás dessa idéia é que o verdadeiro lastro da moeda é a produção e o comércio que seguem a expansão monetária. Qualquer expansão de crédito aos empreendedores ainda que feita por meios artificiais, ou seja, por pura criação de moeda fiduciária, acaba sendo sustentada ex post pelo crescimento subseqüente dos lucros12. Entre os autores pré-clássicos, o maior oponente da doutrina das ‘necessidades do comércio’ foi David Hume, cujo pensamento em questões monetárias, conforme mostrado por Mayer (1980), já apresentava no século 19 muitos pontos em comum com o monetarismo do século 20.13 Hume não negava que uma inflação moderada poderia contribuir para o aquecimento econômico, mas minimizava a importância disso. Um influxo de ouro, argumentava ele, “tem um efeito gradual sobre os preços. Inicialmente não se percebe nenhuma alteração; os preços sobem de grau em grau, primeiro de uma mercadoria, depois de outra; até que por último o todo atinge uma proporção justa com a nova quantidade de ouro [...] é somente na fase intermediária, entre a expansão da moeda e a subida dos preços, que a indústria é favorecida”. No longo prazo não resta nenhum efeito favorável. Hume forneceu também talvez a mais conhecida refutação pré-clássica do mercantilismo, em defesa livre comércio, na exposição do que ficou conhecido na literatura econômica como ‘mecanismo auto-regulador do fluxo de ouro’. Segundo o raciocínio envolvido, não haveria motivos para preocupações quando uma nação começa a perder ouro no comércio internacional 12 Law não foi apenas o defensor mais radical da doutrina das ‘necessidades do comércio’, mas também foi o mais ativo praticante dela. Tornou-se banqueiro, participou da fundação de sociedades comerciais que controlaram o comércio francês ultramarino. Conseguiu convencer o regente da França sobre suas idéias e tornou-se Controlador Geral das Finanças do Reino, em 1726. Suas aventuras, entretanto, tiveram um final trágico. 13 Mayer, T. David Hume and Monetarism. Quarterly Journal of Economics. 95 (1), ago, 1980. 12 12 por causa do surgimento de um déficit comercial. Essa perda, mais cedo ou mais tarde (i.e. após a fase de transição acima), atua no sentido de reduzir os níveis de preços e salários domésticos. Assim, os custos de produção internos diminuem, aumentando a competitividade externa da nação, de modo que as exportações aumentam e as importações diminuem, na medida em que a queda dos preços domésticos faz com que os produtos estrangeiros importáveis se tornem relativamente mais caros para os residentes nacionais e os exportáveis nacionais se tornem mais baratos para os estrangeiros. Assim, o livre comércio internacional acaba naturalmente levando à reversão de qualquer situação deficitária inicial, e vice-versa.14 Outro notável autor pré-clássico também de certo modo crítico da doutrina das necessidades do comércio foi Richard Cantillon, autor de uma célebre obra intitulada “Ensaio sobre a natureza do Comércio” (1720). Nessa obra, ele deu duas contribuições importantes para a teoria monetária. A primeira foi mostrar com absoluta clareza que uma aceleração da circulação monetária um aumento de V é equivalente a um aumento isolado de M. A segunda foi mostrar que o efeito sobre os preços e rendas de um acréscimo da quantidade de moeda depende da maneira como a moeda é injetada na economia. Segundo Cantillon, quando a expansão monetária se dá por aumento da das minas de ouro domésticas, o primeiro efeito é o crescimento da renda gerada na indústria, depois vem o crescimento do dispêndio em bens de consumo e por último a elevação dos preço dos alimentos, contribuindo ao mesmo tempo para aumentar os lucros agrícolas e reduzir os salários reais. A resistência dos trabalhadores contra o resultante aumento do custo de vida leva a pressões por aumentos de salários, que por sua vez tendem a realimentar o processo inflacionário.15 Ele enfatizou que o fato de que um acréscimo em M não somente eleva os nível dos preços mas também altera a estrutura dos mesmos, dependendo de quais sejam os recebedores iniciais da nova moeda e suas demandas relativas de bens. Isso ficou conhecido na literatura como “efeito Cantillon”. Não obstante, por razões nacionalistas, ele não hesitava em dizer que “o poder e a riqueza comparativo dos estados consistem, tudo o mais constante, na maior ou menor abundância da 14 Por outro lado, no período de transição, a perda (ganho) de ouro no país deficitário (superavitário) contribui para reduzir (elevar) as taxas de juros no país deficitário (superavitário), devidoà escassez (excesso) de moeda. Isso também tende a reverter o fluxo de saída (entrada) de ouro. Assim, sob plena liberdade de comércio mundial, sempre haverá uma tendência automática ao equilíbrio dos balanços de pagamentos das Nações. 15 A descrição que Cantillon faz do processo inflacionário, no século 18, não fica muito a dever a algumas teorias dinâmicas da inflação que estiveram muito em voga no século 20. 13 13 moeda que neles circula” e que “qualquer estado que tem mais moeda em circulação do que seu vizinhos tem uma vantagem sobre eles enquanto conseguir se manter nessa situação”. Um influxo de ouro na verdade elevará os preços domésticos em alguma medida, mas isso, segundo ele, vem para o bem. Em linha com o pensamento estruturalista do século 20, Cantillon já havia deixado absolutamente claro as vantagens das nações que podem contar com termos de troca favoráveis, ou seja que podem vender artigos a preços mais altos do que os dos artigos que elas compram. 4. Fisiocracia Antes dos economistas clássicos, a doutrina mercantilista já havia sido alvo de críticas provenientes de uma escola francesa de economia política que ficou conhecida como fisiocracia. Pelos seus ataques ao mercantilismo e suas propostas tributárias, os fisiocratas ganharam a admiração de Adam Smith, que por isso, fizeram por merecer as notas mais honrosas a eles dedicadas na “Riqueza das Nações”. No entanto, a obra de Smith também é crítica do pensamento fisiocrático. Em certo sentido, a fisiocracia veio ao encontro de um movimento reacionário contra as políticas mercantilistas de Colbert. Algumas das medidas de incentivo à industrialização, levadas à efeito durante o reinado absolutista Luís XIV, iam contra os interesses imediatistas dos proprietários de terra. Por outro lado, as guerras empreendidas contra a Espanha e Inglaterra e o fausto da corte de Versalhes implicaram em elevações da carga tributária sobre o povo em geral e os produtores rurais, em particular, já que o imposto sobre a propriedade de terras constituía a principal fonte de receita governamental. Com a morte de Luís XIV, em 1715, a “bancada ruralista da França” conseguiu articular um movimento reacionário contra o “colbertismo”, com apoio dos huguenotes. As condições históricas tornaram-se propícias para um movimento de volta para a agricultura. Para isso, os fisiocratas deram uma contribuição fundamental com suas idéias econômicas16. Os principais personagens da fisiocracia foram François Quesnay, devido a elaboração de um modelo econômico, o “Tableau Economique” e Jacques Turgot, que foi seu membro mais 16 No tempo dos fisiocratas, a em tecnologia de produção agrícola a Inglaterra estava bem na frente da França, cujas terras agricultáveis estavam muito fracionadas em pequenas propriedades e ainda haviam fortes resquícios feudais que dificultavam a adoção dos melhoramentos introduzidos pela muito admirada ‘revolução agrícola’ na Inglaterra. 14 14 politicamente influente. O movimento durou cerca de duas décadas desde o lançamento do “Tableau” até a deposição de Turgot no cargo de controlador geral das finanças, em 1776. A teoria fisiocrática representada no tableau parece fundar-se em observações do mundo real bem concretas e apelativas. Naquela época, Paris era uma de cidade de certo porte, assim como Londres e outros “burgos” europeus, que concentravam atividades econômicas diversificadas. Além da corte real e os membros do clero, lá havia artesãos, casas comerciais, prestadores de serviços pessoais diversos, artistas, e tudo o mais que se inclui nos setores hoje chamados de secundário (indústria de transformação) e terciário (comércio e prestação de serviços). É fácil deduzir que só poderiam existir cidades como Paris, abrigando atividades econômicas das mais diversas se a produção agropecuária realizada no campo fosse capaz de gerar um excedente de alimentos suficiente para sustentar a população urbana. Naturalmente, para realizar suas atividades, os participantes do setor secundário e terciário precisam se alimentar e o alimento, ou pelo menos a matéria prima alimentar básica, vem do meio rural. Portanto, não poderia haver cidades e outras diversas atividades, fora a agropecuária, se os produtores rurais não fossem capazes de produzir uma quantidade de alimentos maior do que o necessário para sustentarem-se a si e às suas famílias.17 Portanto, o fato de existir cidades em que pessoas exercem atividades econômicas distintas e diversificadas, é uma prova clara e evidente de que a atividade agropecuária é capaz de produzir algo mais do que os meios de subsistência da população ocupada nela. A esse “algo mais” dá-se o nome de “excedente”. Quanto maior o excedente, tanto maior pode ser a população urbana e tanto maior a complexidade e a diversidade das atividades econômicas.18 De onde vem o excedente agrícola? Os fisiocratas davam uma reposta simples e direta a essa pergunta. Vem da fertilidade da terra, aliado à engenhosidade humana. Para eles, basicamente o excedente agrícola existe porque a natureza é dadivosa19. É isso que em última 17 O próprio tamanho da família dependeria da capacidade individual de produzir alimentos. Se este só fosse capaz de produzir o suficiente para alimentar-se a si e a sua esposa, não haveria sequer a possibilidade de ter filhos de modo que o próprio tamanho da população dependeria da capacidade produtiva de meios de subsistência. 18 Além dos que estão ocupados na indústria e comércio, em grandes metrópoles como Nova York ou São Paulo residem médicos e psicólogos das mais diversas e restritas especializações, músicos, atores e atrizes, jornalistas, comentaristas esportivos que são pagos para falar aquilo que estamos vendo pela televisão, figurinistas, designers, publicitários, etc e profissionais que não existiam há alguns anos atrás, como personal trainings e disk jokeys de festas, por exemplo. Isso dá bem a idéia do monumental volume do excedente agropecuário alcançado na sociedade moderna. 19 Vem daí o significado do termo fisiocracia, como “poder da natureza”, da junção dos termos gregos fis (natureza) e cratos (poder). 15 15 instância explica não só a exuberância e a complexidade da vida econômica que se pode observar nas cidades como também o fato de existir gente que não precisar trabalhar para viver. Não há nada melhor para captar o pensamento fisiocrático do que uma análise do esquema montado por Quesnay, pelo qual ele entrou para a história do pensamento econômico como pioneiro na construção de modelos formais. O modelo refere-se a uma hipotética economia estacionária com um ciclo de produção perfeitamente anual. Essa produção, uma parte da qual é consumida no mesmo ano e outra se converte em insumos necessários para a produção do ano seguinte, pode ser considerada de forma desagregada entre os três setores produtivos básicos: agropecuário (primário), manufatureiro (secundário) e serviços (terciário); mas o argumento pode ser simplificado ainda mais se classificarmos as atividades produtivas segundo sua distribuição geográfica natural, entre o meio rural, que concentra a atividade agropecuária (setor primário) e o meio urbano onde estão concentradas as atividades secundárias (setor manufatureiro) e terciárias (serviços). A partir daí, suponhamos que o valor bruto da produção agropecuária no meio rural fosse de $ 5 bilhões, dos quais $ 1 bilhão é correspondente ao que é vendido para o setor urbano, em troca de insumos necessários para a produção, inclusive reposição de capital fixo e $ 2 bilhõescorresponde ao valor dos meios de subsistência dos produtores rurais, sem fazer distinção entre fazendeiros e trabalhadores assalariados. Sobram, portanto, $ 2 bilhões. Que será feito desse montante? A resposta fisiocrática é: vai ser pago aos proprietários de terra a título de arrendamento. Mas esse pagamento não pode ser considerado um custo de produção uma vez que os proprietários de terra não desempenharam nenhuma função econômica em troca dele. Portanto, esse é o excedente gerado na agricultura, ou renda genuína da terra.20 Na ótica fisiocrática, tal excedente só poderia ser obtido no contato do homem com a terra, daí porque o viam como uma dádiva da natureza. Os produtores rurais eram assim considerados como a “classe produtiva” e o trabalho realizado na atividade agropecuária como “trabalho produtivo”. Todos os residentes do meio urbano estavam incluídos numa única grande classe dita “estéril”, não porque não fossem úteis, mas simplesmente porque se presumia que valor das coisas que eles faziam era exatamente igual ao custo de matérias primas necessárias mais o custo relacionado à sua subsistência, ou, em outras palavras, porque se presumia que eles não geravam nenhum excedente de valor. 20 Quesnay chamava esse valor de produto líquido, produit net, visto ser a diferença entre o produto total gerado na agricultura e os custos necessários à produção. 16 16 Tem-se assim uma teoria de economia política segundo a qual a riqueza nacional vem da agricultura, ou mais propriamente, da atividade agropecuária, e o produto é distribuído em três classes sociais: a classe produtiva, constituída pelos produtores rurais, a classe estéril constituída pelos manufatureiros, mercadores, e prestadores de serviços em geral, e a classe ociosa constituída pelos proprietários de terra e todos os demais que podiam viver sem trabalhar graças ao excedente gerado pela classe produtiva. O tableau de Quesnay registrava uma série de transações que mostravam como os produtos dos dois setores eram distribuídos. Os registros podem ser pensados em termos reais embora Quesnay os tivesse apresentado em termos monetários (nas mesmas cifras aqui utilizadas) para indicar a necessidade de circulação monetária21. Dos $ 2 milhões apropriados pelos proprietários de terra supõe-se que a metade é gasta na compra de alimentos (aquisições do meio rural) e que o restante $ 1 milhão é gasto em aquisições de produtos do meio urbano. Os $ 2 bilhões que vão do meio rural para o meio urbano, por conta das aquisições de insumos dos produtores agropecuários e aquisições de bens de consumo dos proprietários de terra, retornam para o meio rural como aquisições de produtos agropecuários da classe “estéril”. Dessa forma, o modelo ilustra a interdependência mútua entre os dois setores, mostrando que o produto de um é um insumo de outro, razão pela qual é considerado como uma espécie de precursor da matriz de insumo-produto de Leontief. Mas, para os presentes propósitos, outros detalhes de construção do modelo não interessam22. Ele envolve também vários equívocos revelados por autores subseqüentes, cuja discussão também não é relevante para os presentes propósitos. O que nos interessa mais aqui é entender as razões pelas quais os fisiocratas influenciaram as idéias que vieram depois, de Adam Smith até Marx, e captar o espírito de sua economia política como crítica de um sistema social decadente, com resquícios feudais que ainda se faziam notar na França daquela época. 21 Ao sugerir a necessidade de circulação monetária para a distribuição de insumos e produtos os fisiocratas se anteciparam a Malthus, Marx e Keynes e outros economistas posteriores que mostraram como o entesouramento da moeda ou deficiências de sua oferta poderiam ser causas de crises ou depressões econômicas. 22 No início do processo, os produtores rurais estão na posse de todo o estoque de moeda da economia (dois mil), usam para pagar o arrendamento aos proprietários de terra os quais, por sua vez, gastam-nos em alimentos e artigos manufaturados. Assim, $ 1 mil volta para os produtores rurais sendo então gastos com aquisições de insumos do setor urbano. Mas essa quantia também acaba voltando para eles quando os produtores urbanos gastam o que ganharam na compra de produtos agropecuários. No final, os produtores rurais receberam três mil e gastaram mil; assim eles retornam à mesma situação em que começaram. 17 17 Para isso podemos imaginar um feudo, com um grande castelo medieval fortificado em volta do qual se estende uma vasta área rural ocupada pelos servos que trabalham na terra. O castelo abriga o senhor feudal, sua família e seus serviçais diversos, inclusive as forças armadas. Em última instância, todos eles são sustentados pelos servos que trabalham a terra. Estes geram os meios de subsistência básicos para si e para todos os outros que estão no castelo. Imaginemos também que nesse feudo não exista nenhuma moeda de circulação interna, mesmo porque muito pouco dinheiro era mesmo necessário nos feudos da Europa medieval. Parte das colheitas e dos produtos de origem animal originados do trabalho dos servos, que naturalmente deveria estar além dos meios de subsistências necessários a eles, era transferida para o senhor feudal, conforme os costumes da época. Em retribuição, este se responsabilizava pela proteção e conservação dos servos em suas terras, bem como poderia permitir que o trabalho de seus artesãos ou prestadores de serviços eventualmente fossem usados também em benefício deles23. Assim parte da produção agropecuária transferida para o senhor feudal poderia ser vista como uma espécie de pagamentos por bens ou serviços prestados pelo castelo aos servos. A outra parte não tem nenhuma contrapartida. Trata-se de um excedente que é apropriado por ele, como proprietário da terra. Com a parte que lhe cabe o senhor feudal sustenta-se a si, sua família e também toda a criadagem que vive no castelo e seu entorno. É fácil deduzir daqui que o tamanho do castelo e a população envolvida nele, bem como a diversidade produtiva de bens e serviços que essa população realiza, dependerão da quantidade de produtos agropecuários que os servos conseguirem tirar da terra. Disso fundamentalmente dependerá a riqueza do feudo. Quanto maior o excedente que os servos conseguirem transferir ao senhor feudal, maior a quantidade de gente que este poderá manter na produção de bens e serviços não agrícolas. Entretanto nada seria possível caso a terra não fosse suficientemente fértil. Se, devido a uma baixa fertilidade, os servos não conseguissem tirar dela mais do que o necessário para repor a sua energia gasta no trabalho não haveria o castelo, nem o senhor feudal e nem qualquer outra atividade além da agropecuária. Nesse exercício de imaginação, os servos são a classe produtiva, os artesãos e serviçais do castelo são a classe estéril e o senhor feudal e sua família, a classe ociosa. Em seu tempo, como foi o caso da escola clássica, posteriormente, a fisiocracia constituiu um movimento progressista, que visava combater os vestígios medievais da França. 23 Pense, por exemplo, num médico residente para os habitantes do castelo, mas que eventualmente poderia socorrer um servo doente. 18 18 Naturalmente que a representação do Tableau de Quesnay não era favorável à imagem dos proprietários de terra, que constituíam a classe dominante nesse período. Por outro lado, a fisiocracia era também uma teoria de economia política crítica do mercantilismo, primeiroporque os fisiocratas não viam o comércio como fonte de riqueza e segundo porque também condenavam o protecionismo governamental por considerarem que isso contrariava uma ordem sistêmica natural.24 Eles recomendavam ao governo a implantação de medidas de liberalização do comércio de cereais acompanhadas por uma reforma agrária desenhada para aumentar a produtividade agropecuária da França que consideravam atrasada em relação à Inglaterra por causa de uma estrutura agrária inadequada e protegida. Mas no que eles ficaram mais conhecidos na história do pensamento econômico foi por sua proposta de racionalizar o sistema fiscal mediante a substituição de todos os tributos por um imposto único sobre a renda da terra. Segundo o referencial teórico do Tableau, a multiplicidade tributária era uma complicação desnecessária porque em última instância o peso de qualquer tributo sempre recairia nos proprietários de terra, sendo que os ganhos das demais classes não passavam de custos ‘necessários’ de produção. Imaginava-se que tributando esses proprietários com um único imposto sobre a renda da terra, se poderia obter toda a receita necessária à manutenção do Estado com muito menos burocracia e custos de administração tributária25. 24Quesnay era médico de profissão e economista nas horas vagas. Segundo os historiadores do pensamento econômico a inspiração do Tableu Economique veio de suas observações sobre a circulação do sangue, descoberta em 1628 por Harvey, de onde tirou uma analogia do sistema econômico com os organismos biológicos. O nutriente do “organismo econômico”, descrito no Tableau, vem da terra, e é distribuído para os órgãos através da circulação da moeda, que assim exerce o papel de sangue do sistema. 25 A renda anual gerada na agricultura brasileira é menos de 10% da renda nacional total e o nosso imposto sobre a propriedade territorial rural (ITR) gera menos de 1% da receita tributária total. Estes dados dão uma boa idéia dos equívocos teóricos da escola fisiocrática, que outros autores apontaram no devido tempo e a experiência histórica da evolução econômica vieram comprovar.
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