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Universidade Federal de Alagoas - Campus Sertão - Delmiro Gouveia Silmara de Farias F. da Silva Tatiane Ribeiro A ABNEGAÇÃO, HONRA E O AMOR NAS OBRAS LUCÍOLA E SENHORA DE JOSÉ DE ALENCAR Delmiro Gouveia/AL 2016 Universidade Federal de Alagoas Campus Sertão - Delmiro Gouveia Discentes: Silmara de Farias F. da Silva Tatiane Ribeiro Licenciatura em Letras - Português / Turma: T / Período 2015.2 Disciplina: Literatura de Língua Portuguesa 2 Docente: Murilo Cavalcante Alves A ABNEGAÇÃO, HONRA E O AMOR NAS OBRAS LUCÍOLA E SENHORA DE JOSÉ DE ALENCAR Delmiro Gouveia/AL 2016 Trabalho apresentado ao professor Murilo Cavalcante Alves do curso de Licenciatura Plena em Letras – Português da Universidade Federal de Alagoas – Campus Sertão / Delmiro Gouveia, como requisito parcial para obtenção de nota na disciplina de Literatura de Língua Portuguesa 2. SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO 2. PERFIL DE MULHER CONSTRUÍDO POR JOSÉ DE ALENCAR NO ENREDO DE LUCÍOLA 3. PERFIL DE MULHER CONSTRUÍDO POR JOSÉ DE ALENCAR NO ENREDO DE SENHORA 4. A ABNEGAÇÃO E A HONRA EM LÚCIA E AURÉLIA 5. O AMOR EM LÚCIA E AURÉLIA 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS REFERÊNCIAS A ABNEGAÇÃO, HONRA E O AMOR NAS OBRAS LUCÍOLA E SENHORA DE JOSÉ DE ALENCAR Silmara Farias (UFAL) ¹ Tatiane Ribeiro(UFAL) ² RESUMO O presente artigo tem por objetivo abordar a resignação feminina diante dos desafios a elas propostos na busca pela honra no ideal romântico de José de Alencar, fazendo uma análise de suas personagens Lúcia e Aurélia, em Lucíola e Senhora, enfatizando o contexto social que ambas viveram, os perfis de mulher existentes no século XIX e o olhar que a sociedade da época tinha sobre os seus comportamentos. Além disso, buscaremos abordar a visível abnegação ao amor que ambas vivenciaram como meio para a busca do ideal da honra nos romances alencarianos, a partir da grande influência sociocultural no século XIX presente no enredo e desenrolar das tramas, abordando duas mulheres urbanas na sociedade oitocentista. Também iremos dar ênfase ao amor, tema presente nas duas obras em análise e como este se apresenta para as distintas personagens. Palavras-Chave: Abnegação. Honra. Amor. Contexto social. Preconceito. Perfis Femininos. 1. INTRODUÇÃO José de Alencar trabalhou os perfis femininos com muita ênfase, nas obras Lucíola, (1862) e Senhora (1875), onde ele aborda dois perfis de mulheres diferentes do século XIX, revelando a conservadora e patriarcal sociedade que resignava a mulher a certos papeis sociais e limitadas atuações na sociedade simplesmente por serem mulheres. No momento sociocultural em que as obras foram escritas, percebemos que o próprio autor vivia imerso em uma sociedade característica desse tempo, e por mais inovadoras, valentes e fortes que suas personagens possam nos parecer hoje, estas ainda ¹ Graduanda do Curso de Licenciatura Plena em Letras Português da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) ² Graduanda do Curso de Licenciatura Plena em Letras Português da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) careciam manter uma conduta moral e até religiosa, que condissessem com as noções de merecimento, reconhecimento e estima social. Voltando nossa atenção a relatos históricos, vemos que antes da chegada dos regentes D. João e sua mãe, a Rainha Maria I, à colônia em 1807, o Brasil vivia uma cultura de total silenciamento e anulação da mulher na esfera social, sendo-lhes resignada apenas a área doméstica. Em um artigo de Lilian Sarat de Oliveira (2008), Educação e religião das mulheres no Brasil do século XIX: conformação e resistência, temos uma descrição rápida e concisa da mulher e sua atuação social nesse período: A história da mulher brasileira, como a história de tantas mulheres, é marcada pelo estabelecimento da ordem patriarcal que, legitimada pela religião cristã ocidental, transmitiu o silenciamento do feminino em todas as esferas sociais. A mulher do Brasil oitocentista, formada e constituída socialmente nesta ordem, era subordinada e dependente do pai ou do marido, sendo feita propriedade do homem e silenciada por ele. Desde menina era ensinada a ser mãe e esposa, sua educação limitava-se a aprender a cozinhar, bordar, costurar, tarefas estritamente domésticas. Carregava o estigma da fragilidade, da pouca inteligência, entre outros que fundamentava a lógica patriarcal de mantê-la afastada dos espaços públicos. A negação de outros espaços além da casa/quintal as afastava também da educação formal, não sendo permitido o acesso à escola. (Oliveira, 2008). De acordo com escritora e professora da UFMG, Ruth Silviano Brandão, em seu livro Mulher ao ṕ da letra: a personagem feminina na literatura: ensaio (2006), “o ideal de mulher na literatura no século XIX, é a máxima figura fálica, é a réplica da face da mãe, uma mulher abstrata e imaginária, um ser submisso em relação ao homem, que é visto sempre como herói, e a mulher como objeto desejado”. A mulher do século XIX, precisava estar sempre consciente de suas tarefas domésticas, de seu papel de mãe e esposa, estando estas sempre privadas do espaço público, e a todo momento cuidando de sua casa e filhos, sendo que a mesma nunca ficava sozinha, sempre tinha alguém ao seu lado, na ausência do marido. Esse contexto social sofre uma leve e tímida mudança em 1807, com o estabelecimento da corte no Rio de Janeiro. A partir dessa transposição da Família Real, deixando a metrópole e vindo para a colônia, a europeização dos modos de vestir, comer, andar, falar, pensar, enfim, de viver, também se estabeleceram. A mulher é requisitada a expor sua adequação à moda e comportamento vigente, acompanhando, por toda a corte, seus tutores sociais – pais e maridos. Assim, belos vestidos de grandes estilistas europeus passam a desfilar nos salões cariocas, jóias finíssimas são expostas nos pescoços de senhoras distintas em bailes e cerimônias e a mulher vai ganhando um novo papel no teatro social brasileiro do século XIX. Porém, mesmo com essa abertura do espaço social à presença da mulher, não há como negar que isso não é indício de independência ou empoderamento feminino. Apenas se revela como uma saída da mulher de detrás das cortinas da vida social, que, de forma alguma se daria sem a presença masculina. A mulher estava apenas a serviço da vaidade masculina, que tinha agora mais uma forma de mostrar poder e influência, ao exibir o estereótipo de mulher honrada, intocável e bela, através dos padrões europeus que vigoravam na aparência feminina na corte carioca. Podemos perceber que Alencar representa, em Lucíola e Senhora, personagens femininos que seguiam o perfil de mulher do século XIX, onde suas características primordiais eram as diretamente ligadas ao conceito de feminilidade comum entre aquela sociedade: o de mulher recatada, que tenha dotes domésticos, trato modesto, que tenha a beleza e juventude como objeto de ambição masculino e que sejam sempre honradas e moralmente impecáveis para que mereçam serem tidas como mulheres aceitas socialmente. Na sociedade do século XIX, os casamentos eram arranjados entre as famílias, isto é, a mulher não tinha o direito de escolher o seu marido, pois só assim poderia ser garantidoo patrimônio familiar, e a responsabilidade que até então era do pai, passava agora a ser do marido. 2. PERFIL DE MULHER CONSTRUÍDO POR JOSÉ DE ALENCAR NO ENREDO DE LUCÍOLA No romance Lucíola de José de Alencar, Lúcia, com apenas 19 anos, é uma das mais belas e ricas cortesãs da corte carioca, que acaba se apaixonando por Paulo, um jovem advogado sem posses, recém chegado do Nordeste brasileiro na corte do Rio de Janeiro. Em um primeiro encontro, Paulo, ao conhecer Lúcia, fica deslumbrado pela suave beleza e a amabilidade da jovem. Sua afeição por ela vai crescendo e a dela também por ele, ao ponto de ambos, por um momento, desprezarem as circunstâncias em que se encontravam diante da sociedade em que estavam inseridos. Lúcia, então se vê apaixonada por Paulo, como se este fosse, dentre todos os numerosos homens que ao seu redor, o único que a visse como alguém que merecesse ser admirada e objeto de afeição despretensiosa e pura. Por certo momento, isso é o que realmente acontece, mostrando que o jovem parecia se apegar à jovem meretriz, atraído por um forte e honesto sentimento amoroso. Porém, através do personagem Sá, amigo de Paulo, o autor vem descortinar a verdade implacável sobre a figura de Lúcia perante a sociedade vigente do século XIX, a de uma mulher fadada a ser objeto de repúdia social e sem nenhuma valorização moral. Em um primeiro momento, quando Lúcia percebe que Paulo passa a enxergá-la como todos os outros, como uma meretriz, revolta e decepção profunda se instalam em seu interior, que passa a vê-lo, também, como qualquer outro “cliente”. Porém, o amor que surgiu em Lúcia se faz mais forte. Da mesma sorte é o sentimento que Paulo nutre por ela. Assim, o casal, por certo momento, vive apenas um para o outro, amando-se intensamente, porém, ainda, sem ignorar a condição social de Lúcia. Isso perdura até o momento em que, afadigada pelo peso da culpa e repugnância contra si mesma, sentimentos que Lúcia sempre carregava em sua alma, ela passa a se distanciar dos enlaces físicos amorosos com o único homem com quem divide a cama e o coração. Paulo passa a perceber esse distanciamento, e no início, reage com ciúmes, acreditando ser isso resultado da presença de outro amante na vida de sua amada, porém, mais tarde, percebe que é uma necessidade de Lúcia, pois, a cada enlace sexual, ela se via mais doente e debilitada, devido à sua relutância no ato amoroso. Os dois passam, então, a manter uma amizade afetuosa e despretensiosa. A possível explicação para a situação de prostituição de Lúcia é apresentada apenas no meio do enredo. Vemos no roteiro construído por José de Alencar a construção de uma personagem feminina que, mesmo em face de um ato nobre e louvável, toma atitudes que a destituem de qualquer aceitação e favor da sociedade vigente da época. A narração da história se constitui logo de inicio, como sendo um relato vivido pelo narrador-personagem Paulo, um jovem advogado carioca, no qual ele conta a uma senhora amiga, anônima para o leitor, o amor vivido entre ele e Lúcia, mulher pela qual se apaixonou, mesmo sendo ela uma cortesã. Em Lucíola, a personagem principal, chamava-se Maria da Glória, nome que só será revelado no fim do enredo, pois a personagem leva o nome de Lúcia na maior parte da 7 estória. Quando ainda muito jovem, torna-se prostituta para salvar seus pais e irmãos da febre amarela, já que estes não tinham recursos para pagar o tratamento. Desesperada, é levada por um desconhecido a deitar-se com ele por dinheiro, fato que marca para sempre sua vida e sua visão em relação a si mesma. Quando seu pai descobre que esta fora a forma que a filha encontrara para trazer dinheiro para o tratamento da família, a expulsa de casa. A partir de então, ela passa a mendigar, porém somente consegue encontrar sustento em uma casa de mulheres, denominação dada aos antigos bordéis. Quando uma de suas amigas, Lúcia, que também vivia na prostituição, morre, Maria da Glória assume a identidade de sua amiga, para resguardar seu pai e irmã da vergonha de terem um parente na condição degradante em que se encontra e passa a ser chamada de Lúcia. Vemos que apresentar a grande tribulação na qual ainda menina Maria da Glória passava foi o meio de justificar a iniciação da personagem em uma vida promíscua, pois mais tarde vemos a grande busca por remissão e libertação feita por Lúcia. Esta passa a travar uma continua jornada de distanciamento do que lhe macula e lhe lembre de sua conduta imprópria de viver, na qual ela dava seu corpo em troca de dinheiro, se submetia aos desejos dos outros e era vista como objeto. Ao final da história, para alcançar essa remissão, ela chega ao ponto de buscar a castidade em todas as suas ações e, até, pensamentos, transformando sua relação amorosa com seu grande e verdadeiro amor em uma amizade de profunda afeição, porém sem nenhum contato físico, por mais inocente que seja. Dessa forma, Lúcia abnega ao amor de Paulo para alcançar a paz interior e moral e a aceitação própria diante da sociedade em que vive. Por fim, vemos uma grande contextualização religiosa no enredo, buscando trazer aos diálogos e intenções de Lúcia a ideia de purificação da personagem, que constantemente se utiliza de termos sacros para definir seu amor por Paulo e é referenciada por ele como santa e pura. A partir do momento em que ela abre mão do luxo e riqueza que conseguira com a prostituição, muda- se com a inocente irmã para um simples chalé que pertencera a sua família, passando a ideia de que estaria se redimindo e purificando, tal qual nos dita os ritos cristãos, onde a abnegação e a resignação são as formas de se chegar a dignidade. Por fim, a prova maior da remissão da personagem se apresenta na purificação através do sofrimento maior, a morte. Através dela, todos os pecados da mulher são perdoados e ela passa a ser admirada e é muito improvável que seja julgada por aquela sociedade, porque deu a paga máxima pelos seus erros, chegando ao seu fim 3. PERFIL DE MULHER CONSTRUÍDO POR JOSÉ DE ALENCAR NO ENREDO DE SENHORA O livro Senhora foi publicado dois anos antes da morte de José de Alencar, nessa obra, assim como em Lucíola, Alencar aborda alguns perfis de mulher existentes no século XIX. A personagem feminina principal é uma jovem chamada Aurélia Camargo, que, com apenas 17 anos é considerada a estrela dos salões e destaque entre todas as jovens moças da época, dona de uma reputação grandiosa, admirada pela sua exuberante beleza e vasta riqueza e ambicionada por, praticamente, todos os bons partidos para um bom casamento na corte carioca no século XIX. Riquíssima, e consciente desse fato, tinha tudo o que a sociedade da época poderia dar aos seus pés. No enredo, após a apresentação triunfante da personagem pelo narrador, vemos certo ar de mistério sobre a origem de Aurélia e suas intenções, contudo é assegurado pelo narrador que mais tarde isso será revelado ao leitor. A narrativa prossegue mostrando que a jovem mulher, cheia de caprichos, decide então se casar. Nisto, chama seu tutor, o tio Lemos, figura masculina que faz a salvaguarda dos patrimônios de Aurélia, e de certa forma, até dela mesmo, sendo o homem que representa a figura protetora paterna para a jovem. Este é minuciosamente instruído, sem chances de questionamentos ou dúvidas pela autoritária jovenzinha, a qual ele se submetia incontestavelmente, a desenrolar uma trama que levasse Fernando Seixas, um jovem jornalista de poucas posses, a enlaçar-se com ela em matrimônio, com o motivo de sua escolha ainda desconhecido para o leitor. Nesse momento vemos uma mulher que, graças a sua riqueza, consegue, mesmo em tal sociedade patriarcal e que valorizava a mulher como um pertence masculino, “domar” as convenções da época e tomar para si um poder ainda não atribuídoàs mulheres naquele período da história brasileira. Fernando Seixa, levado pela ganância de poder manter a aparência que ostenta à duras penas com seu trabalho de jornalista, de porte galã e de um dos mais finos cavalheiros da corte, tem ainda um outro motivo para casar-se de forma vantajosa. É o tutor, figura masculina responsável pela pobre família que tinha, formada por sua mãe e duas irmãs ainda solteiras. O destino seria cruel para com as moça sob sua tutela caso não encontrassem casamento, e ele precisava estar pronto para ampará-las. Vemos mais uma forte crítica social de Alencar aos padrões fortemente estabelecidos na época, que designavam a figura da mulher na época. Casar-se era mais que um capricho ou desejo, era uma necessidade. Fernando então se desenlaça de seu relacionamento com outra jovem com a qual possivelmente viria a se casar e aceita a proposta de Lemos, de que se case com uma jovem, a qual ele ainda não conhece, mas que lhe oferecera um dote muito superior. Vendo-se humilhado pelas circunstâncias de ter que ser levado pelo dote de uma esposa, Fernando vai ao encontro de sua nova noiva, a fim de conhecê-la e depara se com uma grande surpresa. Aquela era a moça que ele amara muito antes e firmara um compromisso de noivado, quando esta se encontrava pobre, porém, que não se casou com ela por querer arrumar para si um matrimônio que lhe trouxesse vantagens financeiras, que permitisse que se mantivesse em sua posição atual de status diante da sociedade da época. Ele se alegra em saber que aquela que amou, agora torna a se interessar por ele, e o escolhe como marido. Após o casamento de Aurélia com seu “noivo comprado”, é apresentada ao leitor a história anterior a esse fato, a história de Aurélia antes de sua fortuna e sua motivação em casar-se com esse jovem em particular. A personagem era uma moça pobre, órfã de pai, que vivia com a mãe e o irmão, noiva de um rapaz também pobre, Fernando Seixas. Os dois se amavam, porém por ser uma moça pobre e não ter como pagar um dote ao seu noivo, o mesmo a abandona e ficara noivo de uma moça rica, já que era um homem ambicioso. Nesse contexto, são apresentados ao leitor os grandes desafios e sofrimentos que uma jovem mulher pobre passava naquela sociedade. A busca por uma forma de sustento na vida de uma moça dava-se apenas de uma forma, pelo casamento. Aurélia teve, então, que enfrentar a dor de ferir seu orgulho, expondo-se na janela de sua humilde casa para ser admirada por algum possível pretendente. Além disso, enfrentava o estigma de, por ser pobre e desamparada de uma figura masculina, paterna, ser tida como um objeto de diversão e distração dos que a ambicionavam, sendo ela, vitima do próprio tio Lemos, que lhe propôs possibilidades indecentes de prover sustento para si e para a mãe. Além disso, não havia grande interesse dos jovens mancebos que a viam na janela de tomá-la como esposa, já que o dote, grande atrativo nos matrimônios daquela época, era certamente inexistente. Assim, nesse momento do enredo de Alencar, Aurélia prefigurava a mulher desamparada do auxílio masculino. O amor que a unira a Fernando não fora o suficiente para que este a aceitasse, apesar de que também a amasse muito. Ao descobrir que fora trocada por outra mulher por não ter um dote superior, Aurélia se mostra profundamente magoada, tirando Fernando do pedestal idealizado por seu amor, para abominá-lo, pois o maior crime desta traição, para Aurélia, não seria o fato de Seixas a deixar por amar a outra, mas sim por trocá-la por um dote, por um recurso financeiro e o status de um casamento bem arranjado. Nesse momento do enredo, o irmão de Aurélia morre, acentuando o seu sofrimento, e ela se vê apenas com a mãe doente, que frequentemente lhe incitava a ir à janela para expor sua beleza e ter a chance de conseguir um matrimônio, pois era a única saída para a menina de se sustentar e não cair em desgraça física e moral se ficasse só no mundo. Então, num certo dia, as senhoras recebem a visita do avô de Aurélia, que estava procurando a família do falecido filho, a fim de se redimir diante do erro que cometera de não aceitar o casamento do filho com a mãe de Aurélia. Apesar de apresentar-se como uma grande oportunidade de ascensão para Aurélia e sua mãe, elas não se aproveitam da situação financeira dele, que era um rico fazendeiro, e buscam manter sua honra ao mostrar total desinteresse aos recursos do senhor. Porém, este afirma que irá ajudá-las daquele tempo em diante. Antes de retornar a sua fazendo, o avô de Aurélia lhe deixa um testamento fechado, dizendo lhe que não abrisse enquanto não fosse o tempo. Algum tempo depois, morre a mãe de Aurélia, e esta se encontra totalmente desamparada, não só de familiares, mas também de oportunidades para a vida que descortina para ela, pobre e desprovida da proteção masculina. Porém, uma reviravolta do destino a constitui herdeira universal do avô, que acabara de morrer. Ao tomar posse de sua herança, a personagem feminina se torna uma mulher fria e vingativa, por isso “compra” seu marido, antes seu noivo, que a tinha trocado por uma mulher que pode lhe oferecer um dote. Após o casamento, na noite em que eles consumariam o casamento, acreditando Fernando que o que motivara Aurélia a escolhê-lo como marido fora o antigo amor que ambos nutriram um pelo outro durante um breve tempo no passado, este a espera na câmara nupcial, ansioso e feliz por a vida lhe ter dado a sorte de casa-se com a mulher que amava, livrando-o também do peso de não ter que tornar-se incapaz de cuidar da mãe e irmãs e de manter a vida que almejava. Porém, ao entrar no aposento, Aurélia deixa bem claro que se casou por vingança e que ele não passa de mais um objeto comprado pela rica moça, para satisfazer mais uma de suas necessidades femininas, a de “possuir” um marido, artigo de luxo para mulheres honradas daquela sociedade. Pasmo e atingido de forma brusca por aquele golpe inesperado do destino, Fernando resigna-se a prestar o papel do “marido comprado” e passa a empregar em Aurélia a mesma hostilidade que dela recebe. Ambos convivem por um bom tempo relutando entre o amor que sentiam um pelo outro e o orgulho ferido, ao considerarem-se, uma, a mulher abandonada pelo seu amor por causa da falta de um dote e, agora dona de um marido comprado, e outro por se ver humilhado devido a sua condição de objeto de posse de sua mulher rica, traído pela ideia de ter se unido em matrimônio por amor. Porém, ao final, vemos o amor como triunfante sobre os ânimos do casal, que por fim, perdoam-se e vivem uma vida feliz juntos. 4. A ABNEGAÇÃO E A HONRA EM LÚCIA E AURÉLIA É-nos possível estabelecer comparações entre esses dois perfis de mulher, Lúcia e Aurélia, em alguns pontos das narrativas alencarianas. Em Lúcia, há a figura de uma mulher que, em um primeiro momento demonstra total desprezo pelas convenções de moral ditadas pela sociedade em que vivia. Ela conseguiu, a partir de seus esforços, angariar não apenas seu sustento material, mas também grande luxo, sendo dona se si, em uma época em que mulheres não tinham liberdade para tal, estando sempre submetidas a figuras masculinas, que as tinha em seu poder para tutelar da forma que lhes apraziam. Com relação à Aurélia, também vemos tal caráter de mulher, de certa forma, independente e que se impõe sobre o que quer, conseguindo manter as figuras masculinas que fazem parte de sua vida, submetidas ao que ela escolhe, pois dispõe de meios para isso, que é a sua fortuna. Tais mulheres são retratadas de um modo que as difere das mulheres de suas épocas nesse requisito. Porém, são retratadas de forma totalmente diferentes entre si. A uma, o amor é oferecido por seu amante no início, porém ela o nega no final, não se vendo como alguém digna de possuí-lo. Já aoutra, recebe o amor de seu marido e, inicialmente, o nega. Porém, por fim, o amor lhe é bem vindo, pois, aparentemente, encontra o merecimento de existir. A partir daí, vemos que a abnegação ao amor que ambas vivem é em nome da honra. Elas vêem que um só pode existir ao alcançarem o outro. Lúcia vive ardentemente seu amor por Paulo, porém depois não encontra meios continuar sua relação amorosa, pois, para ela, sua honra, a honra de sua alma só seria alcançada ao renunciar tudo o que um dia a maculou. O relacionamento sexual, para Lúcia, não confirmariam seu amor para com Paulo, mas sim o mancharia. E para isso, ela abre mão de manter qualquer enlace sexual com ele, mantendo o amor que sentia apenas em sua alma, sem externações físicas, pois ela era uma mulher manchada, indigna, imprópria ao amor. Já Aurélia, mulher digna de viver todas as delícias do amor nos braços de um marido, abre mão desse amor, pois ele se encontra manchado pela indignação e está longe do ideal verdadeiro e puro que um dia ela construiu, pois ele, o amor que sentia, fora traído por seu amado, que, buscando seguir convenções e ritos sociais para a ascensão, o trocara por dinheiro. Para poder viver esse amor, ela precisaria lhe restituir a pureza que ele um dia teve. Para isso, se utilizou da vingança, que travaria uma purificação desse amor, expondo as mazelas que a atitude do amado provocara nesse romance, para então, curá-las e assim, viverem o amor em seu estado mais puro. Para que se chegassem ao entendimento de merecimento ou não do amor que vemos implícito no enredo, fortemente influenciado pelo ideal de honra da época em que foi escrito, o autor, se conscientemente ou não, traz às narrativas, fatores que determinam um certo previsível final às personagem, pois não seria lógico ou correto, fazer a ambas, uma sendo uma prostituta e outra, um virgem honrosa, que ambas fossem acolhidas pelo mesmo belo fim. Assim, vemos que a personagem Lúcia, por ser uma prostituta e já ser conhecida na cidade, não se esforçava em esconder os seus atos transgressores, pois diante da sociedade ela não era vista como uma senhora, mas como “uma mulher de qualquer um”, diferente da personagem Aurélia, que era vista como uma verdadeira senhora, pois esta não se vendia como Lúcia, e fazia de tudo para manter sua decência, casa-se de acordo com o que a sociedade exige, sendo seu maior ato transgressor, a busca da vingança na “compra” de seu marido. Por isso é difícil encontrar a transgressão de Aurélia, já que esta não é mostrada nitidamente como a de Lúcia, pois apenas ela tem conhecimento que comprara o seu marido por pura vingança, e para viver um casamento forjado perante a sociedade. Alencar, nessas duas obras, buscava o ideal de civilização, por isso ele descreve nas obras em análise o valor do matrimônio, do trabalho, do ideal de mulher e do homem de bem, sempre de forma positiva. De acordo com Régine Pernoud, historiadora medievalista, arquivista e paleógrafa francesa do século XX, em seu livro As origens da burguesia (1973), o ideal moral e do homem de bem seria a moderação aos prazeres mundanos, impedindo-o do excesso das paixões, praticando assim o trabalho e a poupança, tem uma vida ordenada com sua família, evitando as distrações que o tornaria um homem imoral. É possível percebermos que em Senhora, o valor do trabalho é abordado com grande ênfase, quando Fernando Seixas descobre que fora comprado pela sua ex-noiva para vingar-se dele, então trabalha com entusiasmo e poupa o seu dinheiro, para assim conquistar a sua liberdade. Em Lucíola, a partir do momento em que Lúcia abandona a prostituição e todos os prazeres mundanos, ela deixa a casa luxuosa em que morava para viver em uma casinha simples e modesta com sua irmã. Com isso, assim como Lúcia, Paulo também passa a viver uma vida modesta, já que até então vivera uma vida de prazeres com os amigos e com a própria Lúcia, e se dedica ao seu trabalho, para que assim pudessem juntos construir uma vida normal e diferente da que ambos viviam no passado. É interessante notar que as duas obras, inicialmente abordam os personagens masculinos fora da conduta do que seria um homem ideal perante a sociedade do século XIX, por isso é importante enfatizar que ambos os sexos eram idealizados naquela sociedade, o homem tendo que ser trabalhador, poupador, atencioso com a família, e distante dos prazeres mundanos, e a mulher seguindo o modelo da mãe, dona de casa, esposa dedicada. A partir do momento em que os personagens masculinos, Seixas e Paulo, voltam-se ao ideal de homens de bem ditados pela sociedade vigente, as personagens femininas, Aurélia e Lúcia passam então a se submeterem de forma positiva aos seus amados, já que os mesmos tornaram-se homens honrados. 5. O AMOR EM LÚCIA E AURÉLIA É interessante enfatizar, que todas as figuras femininas criadas pelos romancistas do século XIX, tinham como principal interesse, encontrar um grande amor e casar-se, tendo assim um final feliz. José de Alencar é um desses romancistas, que traçou grandes perfis femininos em seus romances, e em Lúcia tinha um perfil muito ousado para a época em que vivia. Essa mulher tão marcante torna-se uma espécie de heroína, pois renunciou aos prazeres carnais, para viver um grande amor. Mesmo sendo impura na carne, era pura de alma. Contudo, a obra Lucíola, nos mostra que a prostituição, de maneira alguma, poderia ter um final feliz, e que mesmo que quisesse se redimir depois, a mulher prostituta não seria aceita pela sociedade, já que não seria modelo de decência para outras mulheres. Mesmo assim, Lúcia abandona a prostituição e se torna uma mulher casta e moral, deixando de praticar atos considerados transgressores. Contudo, a sociedade ainda não a aceita, sempre deixando transparecer o preconceito por uma mulher que jamais poderia ser digna de viver uma vida normal como as outras mulheres. Aurélia, personagem da obra Senhora, tem outro perfil de mulher. É uma jovem que se vê dividida entre o amor e desejo que sente por Seixas, e o ódio e desprezo por ter sido abandonada por ele quando ainda era pobre, até então, seu noivo. Por isso, Aurélia se torna uma mulher fria e vingativa, tendo como foco apenas vingar-se pelo grande mal que sofrera após o rompimento do noivado. Assim, ao mesmo tempo em que ela segue os padrões estabelecidos pela sociedade, também quebra essas regras, quando decide comprar o seu próprio marido, e ainda mais para somente vingar-se. Porém, nem ela mesma sabe que, com esse reencontro com o seu ex-noivo, e agora atual marido, ela não conseguirá resistir ao amor, que ainda não acabara. Portanto, os dois perfis de mulher, na verdade são heroínas que sofrem por amor, ambas lutam por seus ideais, se sacrificam. Aurélia ao se casar com Fernando Seixas, inicialmente recusa-se a entregar-se a esse amor, já que o seu único objetivo é vingar-se desse homem, porém no final de sua trajetória, ela acaba perdoando e aceitando viver esse amor, diferente de Lúcia que inicialmente aceita viver um sentimento tão lindo que até então nunca sentira por ninguém, então se entrega completamente a Paulo, ambos apaixonados, vivem intensamente esse amor por um breve período de tempo, no entanto, no final mesmo se redimindo de seus atos transgressores que cometera, recusa-se a ser feliz com seu amado, por se sentir indigna de construir uma família ao lado de um homem íntegro. É certo que ambas as personagens alencarianas encontraram o amor. De formas diferentes, em contextos diferentes, e por isso, muito provavelmente, com desfechos diferentes. É certo afirmar que os meios justificaram os fins em Alencar, de acordo com os conceitos morais e socioculturais do autor em sua época, dando a cada uma delas, o fim que lhe pareceu mais apropriado em seus contextos. 6. CONSIDERAÇÕESFINAIS As personagens de Alencar, protagonistas que prefiguram a mulher do século XIX, em Lucíola e Senhora, buscam o amor, cada uma ao seu jeito e “dentro de suas possibilidades”. Estas se destacam entre outras mulheres daquela época, pois são construídas por Alencar um pouco a frente do tempo em que vivem, escolhendo, ditando qual seriam seus futuros, aceitando ou recusando amor, fazendo seus próprios destinos. Vemos que ambas, Lúcia e Aurélia, trazem em si a força e resiliência necessárias para sobreviverem às intempéries da vida que se apresentam para ambas em contextos bem parecidos – mortes de entes queridos, pobreza, desamparo – porém, que são distanciados por atitudes distintas, tomada por cada uma diante da situação em que estavam, o que determina fortemente o desfecho que a história tomará, de acordo com os padrões de moral de sua época, onde uma é desmerecida de um final de vida e amor, e a outra se faz merecedora de toda a felicidade ao fim, sendo essa uma das graças que se espera que mulheres honradas recebam. Assim, vemos uma confirmação, em José de Alencar, mesmo que sutilmente disfarçada, de que os finais felizes são destinados aos que sempre se desviam de qualquer conduta que fira a moral social e aos que condiga com ditames da sociedade vigente. REFERÊNCIAS ALENCAR, José de. Senhora, 1874. ALENCAR, José de. Lucíola, 1976. BRANDÃO, Ruth Junqueira Silviano. Mulher ao pé da letra: a personagem feminina na literatura. 2. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. PERNOUD, Régine. As origens da burguesia. 2. ed. S.l.: Publicações Europa-América, 1973. MOREIRA, Greiciellen Rodrigues. MAIA, Cláudia de Jesus. Transgressão/ Submissão Feminina em Lucíola e Senhora, de José de Alencar. Diaspóras, Diversidades, Deslocamentos, 2010. ARRUDA, Luiza Valentina Pereira. Lucíola: A ambiguidade na construção da personagem. Mestrado em Literatura e Crítica Literária. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUC-SP. São Paulo, 2009. FILHO, Francisco Miranda. O amor, o preconceito e as questões do Império no romance Lucíola de José de Alencar. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Ceará, Centro de Humanidades, Programa de Pós-graduação em Letras, Fortaleza(CE), 2007.
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